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Aletheia
Print version ISSN 1413-0394
Aletheia no.22 Canoas Dec. 2005
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
O que fala o psicótico? A pesquisa interdisciplinar no estudo da psicose
What does the psychotic say? The interdisciplinary research in the study of psychosis
Margareth Shäaffer 1 ; Valdir do Nascimento Flores 2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
Este texto, de um ponto de vista interdisciplinar, aborda questões relativas ao funcionamento da linguagem em sujeitos com estruturação psicótica, articulando o referencial teórico oriundo da escola psicanalítica freudo-lacaniana ao da lingüística estrutural. O tema da linguagem na psicose é estudado tendo em vista a construção de formas teórico-metodológicas de análise da linguagem que permitam falar da divisão do sujeito e das alterações da função simbólica na psicose.
Palavras-chave: Lingüística, Psicanálise, Psicose.
ABSTRACT
This article discusses from an interdisciplinary point of view issues related to the functioning of language in individuals with psychotic structure, relating the theoretical reference derived from the Freudian and Lacanian psychoanalytic school to that of structural linguistics. The subject of language in psychosis is studied based on the construction of theoretical-methodological forms of language analysis that allow us to speak about the split subject and the alteration of the symbolic function in psychosis.
Keywords: Linguistics, Psychoanalysis, Psychosis.
Introdução: do ponto de vista teórico
Este texto, de um ponto de vista interdisciplinar, objetiva debater questões relacionadas ao funcionamento da linguagem em sujeitos com estruturação psicótica, articulando o referencial teórico oriundo da escola psicanalítica freudo-lacaniana ao da lingüística estrutural. Aborda-se a problemática da linguagem na psicose, a partir da descrição da especificidade de marcas lingüísticas nesse tipo de discurso, tendo em vista a construção de formas teórico-metodológicas de análise da linguagem que permitam estudar a divisão do sujeito e as alterações da função simbólica na psicose.
Para tanto, parte-se das seguintes hipóteses: a) o sujeito psicótico apresenta estruturação diferenciada da linguagem que diz respeito à alteração da função simbólica; b) a abordagem interdisciplinar entre os campos psicanalítico e lingüístico permite construir formas de estudo da especificidade do discurso do psicótico de maneira a contribuir com aspectos referentes à clínica na psicose.
Quanto à articulação teórica pretendida, vale dizer que a psicanálise interessa-se pelo fenômeno da linguagem desde o seu estabelecimento como uma área do saber. Já nos primeiros textos de Freud é possível encontrar reflexões de cunho lingüístico, através de questões como o chiste, o lapso, os neologismos, entre outras. Logo, é natural que a psicanálise tenha algum interesse na lingüística. É bem verdade que isso se deve, em grande parte, à leitura lacaniana do texto freudiano, ou seja, é a partir de Lacan que as referências à lingüística, em especial na vertente estruturalista, ganham destaque no escopo da psicanálise. Prova disso é que Lacan recorre ao jargão da lingüística em diversos momentos de sua elaboração teórica. São comuns na bibliografia lacaniana termos já consagrados na lingüística, tais como, significante, metalinguagem, metáfora, metonímia, símbolo, etc.
Evidentemente, essas homonímias devem ser vistas como algo a ser investigado com prudência, porque elas representam o ponto para onde retornam teóricos de uma e de outra área – não sem equívocos – e, depois de Lacan parece não haver avanço significativo que justifique o diálogo entre os dois campos. A pergunta que se coloca quanto a essa relação é: quais os riscos que a implicação psicanálise /lingüística acarreta, tanto no que tange à especificidade da clínica, como à análise stricto sensu da linguagem? Soma-se a isso o fato de ser a lingüística uma ciência ancorada na idéia de completude de seu objeto.
Em outras palavras, submeter a lingüística a uma leitura pelo viés da psicanálise é, necessariamente, problematizar o estatuto da linguagem desde a sua incompletude constitutiva. Assim, passa-se da separação entre os dois campos à perspectiva de apresentar a análise da linguagem como uma reflexão necessariamente implicada na clínica psicanalítica.
Entende-se que a lingüística e a psicanálise têm muito a ganhar quando confrontadas e/ou articuladas. Então, pode se inferir que ambas, desde que consideradas do prisma aqui pretendido, são reconfiguradas em seus métodos. Desta forma, interessa estudar, do ponto de vista que articula a psicanálise à lingüística, o funcionamento da linguagem na psicose e a sua relação com o processo de simbolização e de constituição da subjetividade. Uma possível linha de investigação na fronteira entre a lingüística e a psicanálise seria a de procurar, dentro das patologias que envolvem da perspectiva teórica da psicanálise a clivagem do eu, elementos lingüísticos, marcas discursivas, que possam dar conta, de forma independente, dessa divisão. Ou seja, tentar pensar a clivagem dentro da própria enunciação.
Como forma de ilustrar isso, este texto faz uma análise do discurso do psicótico, e busca colocar em relevo uma questão lingüística: o funcionamento da negação/ denegação na psicose. O corpus que serve de base à análise da (de)negação é constituído por cinco entrevistas coletadas pelo psicanalista Francisco Settineri junto aos pacientes do Instituto Mário Martins de Porto Alegre, tendo sido, posteriormente, transcritas. Os sujeitos envolvidos apresentam estrutura esquizofrênica e são notados por uma letra maiúscula, acompanhada da idade e do sexo (por exemplo, S. 34 anos, feminino). Finalmente, vale lembrar, a metodologia, tal como é aqui entendida, não pode ser separada da base teórica que lhe dá origem, e a sua construção integra os objetivos da pesquisa interdisciplinar.
Fundamentos no estudo da psicose
Na psicanálise, a psicose é normalmente abordada em contraposição à neurose, apesar de ser corrente na literatura que uma não é o avesso da outra. Em função disso, parece ser importante, para se proceder a uma abordagem da psicose, apresentar o que vem a ser o sujeito na psicanálise, já que se trata, aqui, de estudar a constituição da subjetividade na especificidade da patologia.
O sujeito da ciência, do ponto de vista da psicanálise, é o sujeito sobre o qual ela opera. O ato inaugural desse sujeito é o cogito de Descartes. A esse respeito vale lembrar a indagação de Porge (1996): “Como pode o cogito ao mesmo tempo estar na origem do sujeito suposto saber, de que devemos prescindir, e ser o sujeito sobre o qual opera a psicanálise?” (p.508). É o próprio Porge (1996) quem responde: “O cogito é o ponto lógico da explicação do real pelo impossível, ele liga o fundamento de uma ciência à certeza do sujeito. É nisso que o sujeito do cogito, correlato da ciência, é também o sujeito sobre o qual operam os psicanalistas”. (p.509)
Para Porge (1996), a ciência progride instituindo um saber que não precisa se preocupar com seus fundamentos de verdade: “A partir de Descartes, é saber aquilo que pode servir para aumentar o saber, e a verdade é outra questão, bem diferente” (p.509). É a essa divisão entre saber e verdade, que redobra a divisão do sujeito, que Lacan chama de o sujeito da ciência. A tentativa de suturar essa divisão do sujeito faz dele um impossível, um real. Assim “é com isso que se defronta a psicanálise, por uma via diferente daquela do enfrentamento com o saber acumulado: pela via do sintoma, do engano, do lapso, em que a verdade retorna” (p.509).
Para os objetivos deste texto, interessa perceber como esse sujeito se constitui nas psicoses e, neste sentido, parece importante lembrar que a fratura na constituição do sujeito psicótico remete a um fenômeno sui generis que é a negação (verneinung) na contraposição das afirmações primordiais (bejahung). Soma-se a isso o fato de qualquer tentativa de síntese concernente à psicopatologia freudiana envolver a questão defensiva.
Em Freud, a idéia de defesa surge como sendo uma modalidade de rejeição da realidade, expressa de diferentes maneiras. Do ponto de vista da observação clínica, pode-se dizer que algo fica fora, esquecido ou afastado, da consciência. Esse movimento permite a Freud concluir que algo foi afastado em função de constituir ameaça à integridade psíquica, ou de ser ele insuportável. Esse conteúdo, entretanto, de uma maneira ou de outra, continua a produzir efeitos, a retornar à cena, provocando uma divisão subjetiva.
A noção de Ichspaltung é tardia na teorização freudiana e diz respeito à existência de duas atitudes contrárias relativas à ausência de pênis na mulher: “as duas atitudes subsistem uma junto à outra, sem influenciar-se reciprocamente” (Freud, 1940/1980, p. 205). Freud considera que a clivagem e a Verleugnung (recusa da realidade), ao se constituírem em conjunto, é um exemplo do processo defensivo, que questiona os fundamentos da própria noção de eu. De fato, que eu é esse que, ao se defender, se divide em dois? Como ver aí a sua função de síntese?
No fetichismo isso é facilmente observável. Por um lado, o fetichista, ao escolher um substituto simbólico para o pênis da mulher, opera sob a recusa da realidade e, por outro lado, ao aceitar que a mulher seja desprovida de pênis, necessitando de um substituto para ele, está de acordo com esta mesma realidade. Assim, há duas posições acerca da diferença dos sexos. O fetichista – diante da ameaça de castração, representada pela ausência de pênis na mulher – retém uma das últimas impressões recebidas no ato de despir-se, fazendo de um elemento possivelmente próximo de onde o pênis deveria estar, um símbolo deste. A excitação sexual fica então condicionada à presença do fetiche, assegurador da hipótese universal do falo e proteção contra a ameaça de castração.
Também a criança fóbica ao prosseguir na masturbação edípica, como se não fosse possível a ameaça da castração atribuída ao pai, se enche de angústia e desenvolve sintomas de fobia, devido à crença na possibilidade da castração.
Haveria, pois, a existência de dois juízos contraditórios em relação à realidade exterior, ou, como infere Freud, esse mecanismo daria conta de comportamentos contraditórios no menino pequeno, que introduziriam uma divisão em seu eu.
Da mesma forma, na neurose obsessiva há exemplos dessa duplicidade de juízos, que se manifestam de maneira independente. Ao procurar explicar o comportamento oscilante e contraditório do Homem dos Ratos, Freud (1909/1974) formula sua hipótese sobre o pensar obsessivo: “não vacilei em supor que, sobre estas coisas, ele tinha duas convicções diversas e contrapostas, e não, por exemplo, uma opinião indecisa. Entre essas duas opiniões oscilava, então, em uma bem visível dependência de toda a sua postura restante em relação ao seu padecimento obsessivo” (p.179).
Porém, como se manifesta essa divisão do eu, na fala dos pacientes em análise? Há um trecho da fala do pequeno Hans que pode ser esclarecedor a este respeito. Trata-se de sua exclamação, diante da confrontação com os genitais de sua irmã, durante o banho: “Mas...seu faz-pipi é ainda muito pequeno. Quando crescer, ele se tornará maior” (Freud, 1909/1974, p.179). O mas inicial faz pensar em um contexto anterior, onde se verifica que Hans supõe que todos os seres animados possuem pênis. O juízo atributivo de ser (ainda) pequeno contém o momento da recusa da realidade. De fato, ele não está se dirigindo a um interlocutor que possivelmente faria a crítica da universalidade do pênis. Para Hans, seu interlocutor compartilha dessa hipótese, e ele tenta convencê-lo não da existência, mas de que a dimensão pequena não é eterna, porém modificável pelo crescimento. A inexistência do pênis é recusada, enquanto sua condição de pequeno é negada pela idéia de crescimento.
Pode-se, então, pensar em clivagem do eu em Hans, tendo em conta os dois fatores: a não-admissão da ausência de pênis na mulher e, ao mesmo tempo, a angústia de castração, manifestada pela escolha do cavalo como animal fobígeno, substituto simbólico do pai, presumivelmente o castrador.
A clivagem do eu é encontrada de forma diversa, segundo Freud, na neurose e na psicose. Freud (1940/1980) afirma: “Que com respeito a uma determinada conduta subsistam, na vida psíquica da pessoa, duas posturas diversas, contrapostas e independentes entre si, eis um traço universal da neurose; só que, neste caso, uma pertence ao eu, e a contraposta, como recalcada, ao isso” (p.205). Na psicose, entretanto, haveria, após um momento em que a realidade objetiva teria se tornado insuportavelmente dolorosa, um desligamento do vínculo com a realidade. Esse desligamento não se dá sem deixar rastros. Os próprios pacientes, depois do restabelecimento, relatam que, em algum lugar, “em algum rincão de sua alma se escondia, naquele tempo, uma pessoa normal, a qual, como um observador não participante, deixava passear diante de si o espectro da doença” (p.203).
Vale ressaltar que a clivagem do eu, em Freud, deve ser distinguida da divisão do sujeito, em Lacan, para quem o sujeito fica reduzido a um corte, levando consigo sempre a idéia de divisão. A teorização de Freud, contudo, também não deixa de apresentar dificuldades para uma formalização. De fato, apesar de a teorização freudiana ter sido feita pela escuta dos pacientes, pouco resta de literal daquilo que foi dito. Freud utilizava, ao mesmo tempo, análises da fala (por exemplo, a frase do pequeno Hans), interpretações sobre o sintoma (é por meio de um ato de interpretação que Freud afirma que o cavalo é um símbolo do pai) e a reflexão teórica, como é o caso da discussão sobre o édipo e a castração a partir da qual Freud vai pensar em um eu clivado, como no caso do pequeno Hans.
Elemento importante, porém, do ponto de vista psicanalítico, é o fato de, para Freud, a “realidade” estar quase sempre equiparada à realidade da diferença dos sexos. Há poucos exemplos, na obra freudiana, de Verleugnung, em que o recusado é a morte do pai. É a recusa dessa realidade, junto com sua aceitação, que convivem, em doses maiores ou menores e de diferentes modos, na fobia, nas perversões e na psicose, e talvez na dita normalidade.
Uma caracterização psicanalítica da psicose
Apesar de não haver uma definição propriamente psicanalítica da psicose, foi a psicanálise que se ocupou de esclarecer os mecanismos psíquicos que levam a ela, reformulando, assim, o campo da teoria.
Freud começou estudando o mecanismo de projeção na paranóia, propondo, inicialmente, englobar, junto ao delírio de perseguição, a erotomania, o ciúme e a megalomania. Isso graças a um estudo lingüístico realizado por Freud, identificando, na formação do delírio, transformações gramaticais e baseando-se no fundamento sexual de toda psicopatologia. Segundo Nicole Anquetil (1995), no verbete psicose do Dicionário de Psicanálise de Roland Chemama, “o gênio de Freud foi o de enfatizar que, nos diferentes delírios que se constituem, tudo iria contradizer uma única proposição: ‘eu, um homem, amo ele, um homem’, esgotando as diferentes formas clínicas dos delírios, todas as maneiras possíveis de formular essa contradição” (p.174).
Conforme a contradição incida sobre o verbo, o objeto, ou o sujeito, tem-se, segundo Freud, que “Os delírios de ciúme contradizem o sujeito, os delírios de perseguição contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto. Na realidade, porém, é possível uma quarta contradição – a saber, aquele que rejeita a proposição como um todo” (1995: p.60). De modo sintético, tem-se a seguinte elaboração:
a) Eu não o amo, eu o odeio, passando a ele me odeia, na paranóia.
b) Não é ele, mas ela que amo, passando a ela me ama, na erotomania.
c) Não sou eu que o amo, é ela que o ama, passando a ele a ama, nos ciúmes.
d) Finalmente, na megalomania, eu não amo ninguém, mas apenas a mim mesmo.
Deste modo, ao ser reprimida uma percepção interna, que retorna do exterior, configura-se um mecanismo psíquico diferente do mecanismo da neurose: enquanto no recalque é rejeitado o acesso do representante da pulsão proibida ao consciente, completando-se o processo com a incidência do recalque sobre os derivados psíquicos do representante recalcado ou cadeias de idéias associadas; na psicose, aquilo que foi abolido do dentro retorna a partir de fora, ou seja, é sentido como percepção externa.
Com a elaboração da segunda tópica, Freud (1926/1974) estabelece como hipótese que, na neurose, há um conflito entre as instâncias do eu e o isso e, na psicose, haveria um conflito entre o eu e o muno exterior.
Lacan, a partir de releitura da questão do narcisismo, considera que o eu se constitui na fase do espelho por meio de uma identificação com sua própria imagem. Isso possibilita uma diferenciação em relação ao outro materno, mas, ainda sem a mediação do simbólico, as únicas relações possíveis são as de agressividade e erotismo, sem intermediários. A entrada de um terceiro em cena, com a aceitação do simbolismo pela criança, vai viabilizar seu acesso ao desejo: desejo ligado à linguagem, sempre relativo, em Lacan, a um objeto diferente da mãe. Isso significa que a mãe, ao desejar outras coisas, está submetida a uma outra ordem que não à da relação especular. Deste modo, ela poderá faltar e ser representada. A simbolização teorizada por Freud (1923/1974) no fort-da vai representar, ao mesmo tempo, a presença/ausência da mãe, assim como a própria separação: algo que cai, algo que vai embora, podendo também ser identificado ao próprio sujeito emergente.
Enfim, da perspectiva lacaniana, o que constitui o mecanismo da psicose é o fracasso do recalque originário, isto é, “a substituição dos significantes ligados ao desejo de ser o falo materno pelos significantes da lei e da ordem simbólica” (Anquetil, 1995, p.175). O que não entra no jogo da simbolização, retorna, para Lacan, a partir do real. Eis a leitura lacaniana da Verwerfung freudiana e que pode ser traduzida teoricamente por foraclusão.
A denegação
O acesso da criança ao simbólico depende dos mecanismos de introjeção e expulsão, identificadas por Freud com a afirmação (Bejahung) e a negação (Verneinung). A criação do símbolo da negação possibilita a realização da função do juízo, e é apenas pela fórmula negativa que o eu reconhece o inconsciente (Perin, 1995, p.41). O estudo da negação, por enfocar a origem do acesso à simbolização, constitui um domínio de extrema importância para um estudo interdisciplinar envolvendo a lingüística e a psicanálise.
Na neurose, o sujeito, apesar de não saber (não querer saber), pode ir a busca do saber; pode descobrir um impossível de saber. Assim, há a possibilidade, por exemplo, da (de)negação ser posta, ou seja, o inconsciente (o recalcado) pode vir à tona através da operação de (de)negação. Já na psicose, o sujeito estrutura-se de uma forma completamente diferente da neurose. Isso porque, apesar de o inconsciente estar presente na psicose, ele não funciona, existindo numa espécie de inércia. Em Lacan, há um deslocamento na relação do sujeito com a palavra falada. Diferentemente da neurose, onde o neurótico habita a linguagem e utiliza-se da negação como defesa, o psicótico é habitado, possuído pela linguagem e, conseqüentemente, a negação por ele utilizada não tem o sentido de defesa do neurótico, mas sim de uma erotomania.
Lacan observa que há uma exterioridade do psicótico em relação ao conjunto da linguagem – ele está foracluído da dimensão simbólica. Para Lacan, deriva daí a questão de saber se o psicótico entrou verdadeiramente na linguagem. Mesmo que sua linguagem seja articulada, nem por isso implica que ela seja reconhecida, ou seja, as frases usadas pelos psicóticos têm uma certa articulação lógica, mas o efeito de sentido que propiciam é de um estranhamento, ou seja, é como se falasse uma língua que é ignorada pelo interlocutor. Em outros termos, pode-se dizer que nas psicoses não há a simbolização do real – o sujeito não simboliza e, conseqüentemente, ele não consegue usar o não no sentido da (de)negação, como faz o neurótico. Diferente é o campo da neurose, no qual não há perda da relação simbólica: “Todo sintoma é uma palavra que se articula; a relação com a realidade não é obturada por uma foraclusão, mas por uma denegação (verneinung)” (Chemama, 1995, p.175).
Observa-se, pois, que o emprego do não assume sentido específico, caso se trate da neurose, ou da psicose. No discurso do psicótico, a posição defensiva não é possível de ser assumida. Assim, nesse discurso, encontramos o peso da palavra não dita, porque percluída pelo sujeito:
No caso da perclusão, não pode haver ‘não’, aparecendo o elemento expurgado no real. Por isso o que foi percluído não pode ser relembrado, falado ou denegado (posição defensiva), pois é o inexistente, que só pode surgir na manifestação de um real irreal ou de um imaginário realizado, que é a alucinação. A palavra do psicótico não está sustentada pelo sujeito, pois a distância não foi instituída e, portanto, não visa ao reconhecimento. O psicótico situa-se numa posição não dialética. (Castro, 1990, p.54)
Esse uso diferenciado do não pode ser explicado em termos psicanalíticos. Observe-se, primeiramente, que é possível postular certa dificuldade do sujeito psicótico em simbolizar, havendo o que Lacan denomina de um buraco no simbólico. Quando Lacan utiliza esse termo, está querendo dizer que alguma coisa não funcionou, não se completou no édipo. Diferentemente da neurose, já que não é possível falar nela sem fazer referência ao édipo.
Assim, na psicose, é o registro do pai que está em falta, ou seja, o sujeito está impossibilitado de assumir a realização do significante pai ao nível simbólico (Lacan, 1985, p.233). Há um aniquilamento do significante. Entretanto, muitos psicóticos, durante algum tempo, vivem compensados, tendo aparentemente comportamentos comuns considerados como viris. Só que, a um certo momento, se descompensam e suas muletas imaginárias, que os permitiam compensar a ausência do significante primordial, tornam-se insuficientes. É o que faz a entrada na psicose. Essas muletas imaginárias nada mais são do que identificações puramente conformistas a personagens que dão o sentido do que é preciso fazer para ser homem. São, na verdade, identificações com o desejo da mãe, em uma relação imaginária.
Nos quadros clínicos de psicose, encontram-se, nas mais variadas formas, elementos (ou estruturas) comuns, principalmente no que diz respeito à particularidade/peculiaridade do discurso desses sujeitos. Essas estruturas ou elementos comuns não se apresentam exatamente como sendo de uso normal na linguagem. Com base em Czermak (1991) é possível observar no discurso dos psicóticos: a)uso excessivo das negações (ser e não ser); b) aliado a isso, encontra-se um querer saber (eu não sei quem sou); um querer recuperar a palavra e recobrar o poder do juízo; um poder controlar-se; c) encontra-se, ainda, indicado nesses discursos a questão de não ter um lugar – o querer demarcar um lugar e não poder fazê-lo. (“...porque eu não tenho mais lugar; o meu não me agrada; eu quero um lugar muito grande.”) d) e, por fim, a dualidade (associada ao uso reiterado das negações) entre ser e não ser parece apresentar-se como uma síntese dessas patologias que surgem no discurso do psicótico.
Em síntese, há indicação de um núcleo estrutural que desencadeia a psicose, no qual falta o estabelecimento do terceiro termo, da lei. Há um buraco no simbólico, que não permite ao sujeito ter um lugar, ele está foracluído. O sujeito psicótico, na procura de aceder ao simbólico, busca um lugar e um saber quem é. A ocupação de um lugar dentro do quadro familiar e a falta de poder falar seu lugar na história familiar, apontam para a foraclusão do significante primordial, para a não instituição completa, nem do édipo, nem da instituição de um terceiro (o simbólico) que permitiria ao psicótico constituir o desejo de saber. O psicótico parece estar aprisionado a um real impossível de ser simbolizado.
Garcia-Roza (1990), analisando o conceito de real na teoria psicanalítica, considera que “o real é aquilo que se encontra para além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem” (p.95). Para Chemama (1995), é “aquilo que, para um sujeito, é expulso da realidade pela intervenção do simbólico” (p.182). Citando Lacan, o autor diz que o real só pode ser definido em relação ao simbólico e ao imaginário.
Ele não é essa realidade ordenada pelo simbólico, que a filosofia chama de ‘representação do mundo exterior’. Mas, ele volta na realidade para um lugar no qual o sujeito não o encontra, a não ser sob forma de um encontro que desperta o sujeito de seu estado ordinário. Definido como o impossível, o real é aquilo que não pode ser simbolizado totalmente na palavra ou na escrita e, por conseqüência, não cessa de se escrever. (Chemana, 1995, p.182).
Devido à falta de simbolização, o psicótico parece sofrer de um esvaziamento das significações, no qual toda organização discursiva torna-se caduca. Na literatura existente, há referência à síndrome de Cotard (delírio das negações) que alguns psicóticos apresentam, a partir da qual é possível delimitar o que poderia significar essa caducidade do discurso: a) verifica-se uma possibilidade mínima de conectar os significantes (faculdade de aprender), pois o discurso é mínimo, e os significantes são antidiscursivos. Os exemplos são de Czermak (1991, p.154): “... não consigo mais aprender coisa alguma”; “... pois foi minha inteligência que sumiu...”; “... as palavras não significam mais nada, surpreendo-me até de conseguir falar...”; “... não consigo dar uma seqüência às coisas; há uma idéia que sai e não continua”. Para Czermak (1991), essa situação aponta para a “relação entre a gênese da inteligência com a negação, pois esta indica que sua impressão de ficar idiota instala-se à medida que não pode mais ser, precisamente, através da denegação. Quer dizer que para ela (a paciente acima) não mais existe a simbolização” (p.154); b) não existindo a capacidade de simbolização, o sujeito da enunciação está morto: o ser manifesta-se sob a forma de não-ser. O sujeito morto na enunciação busca por meio da negação o acesso à ordem simbólica. Para Lacan, o desaparecimento de sua enunciação é decorrente do desaparecimento de seu desejo – o desejo, o afeto, a dor, estão perdidos. Essa falta de falta faz com que o psicótico deseje fazer um com o outro; c) o sujeito parece não poder se organizar discursivamente – ele perde seu discurso e, portanto, alega distúrbios de fisiologia, insônia, etc: “seus órgãos não estão mais ligados em função de um discurso, discordam” (Czermak, 1991, p.159). A palavra se reveste de um caráter especialmente intolerável. Lacan (1985), ao falar sobre essa perda do discurso, na síndrome de Cotard, considera que o sujeito não advindo à luz do simbólico aparece no real sob a forma mais pura, de puro sujeito. O sujeito cotardizado diz: eu não existo. Esse não existir, para Czermak (1991), indica claramente a foraclusão do Nome do Pai. Assim, aquele que diz eu não existo, eu estou morto, nada funciona em mim encontra-se expulso, expelido, foracluído do mundo; não está em uma (de)negação. “Ele está como elemento suprimido, rejeitado no Real” (Czermak, 1991, p.162). Dizer eu estou morto, estando vivo, significa que o eu da enunciação desapareceu. Mas, para Czermak (1991), é também uma maneira de se afirmar mediante o uso da negação, que aí procura ser instituinte. No entanto, essa tentativa é praticamente nula e, por isso, o paciente se sente um idiota. Aliás, foi Jean Hyppolyte que demonstrou como a gênese da inteligência depende da (de)negação, cuja função verdadeira é engendrá-la.
No psicótico, a tentativa de se afirmar, mediante o uso das negações, falha. Isso pode ser percebido no uso que esse faz da língua, pela sua competência lingüística, ou seja, pelo sentido diferenciado que a negação assume no seu discurso. Ao fazer uma comparação entre a negação, no sentido freudiano, e a negação no sentido lingüístico, Castro (1990) afirma que a psicanálise e a lingüística emprestam o mesmo sentido à negação. A autora refere que, segundo Benveniste, a negação lingüística exige ser enunciada para ser anulada. Assim, a “negação implica uma admissão: a afirmação é condição de possibilidade para a negação”(p.27). Pela linguagem, institui-se uma distância do real, o qual “pode então ser simbolizado”(p.27). Ou seja: a linguagem torna presente algo que está ausente, enquanto a (de)negação procura transformar a presença numa ausência, numa presença negada. “Mas, pela fala, essa ausência se faz presença novamente. Se a linguagem exige uma negação da coisa como presença, a (de)negação implica uma admissão”. (p.27)
d) no delírio das negações, o sujeito encontra-se excluído da morte simbólica e, portanto, encontra-se propelido para desordem extrema – adiscursividade. O que esse sujeito sente é a dor maior de todas as dores: aquela de não faltar nada, senão uma falta. “Antes de morrer, porque já se está morto” (Czermak, 1991, p.196). Para o autor, a síndrome de Cotard poderia ser um dos aspectos que a psicose oferece de mais claro, ou seja, o que a foraclusão do Nome-do-Pai oferece de modo mais puro. Eis um dos motivos para se estudar mais detidamente os modos como o psicótico utiliza as negações no seu discurso.
Finalmente, Czermak (1991) salienta que o psicótico cotardizado não se abre a uma polivocidade de significações, “mas conduz sempre à mesma, unívoca. Ele reúne em uma só o conjunto das significações. Não há buraco – é um caso que faz Um com o outro” (p.162). Em suma, o que se pode observar é a ausência de uma história de ligamentos e de articulações: não havendo desejo de reconhecimento, é a sua vida inteira que se revela desarticulada simbolicamente, sem ligações simbólicas, sem outra significação, que senão o um e, sendo assim, é todo o movimento que desaparece – é um discurso indialectizável.
A psicanálise, principalmente a lacaniana, refere-se/utiliza-se, constantemente, da lingüística para analisar o discurso do neurótico e do psicótico. Dedica-se ao estudo dos fenômenos de linguagem, já que esses parecem se constituir em uma via de acesso ao mundo interno do doente. Aliás, é isso que Lacan prenuncia quando fala dos fenômenos de linguagem como o mais profundo dos ensinamentos e, parece ser isso que aparece, constantemente, nas colocações anteriores: há toda uma referência a questões de linguagem, nas suas mais diversas acepções.
Reunidos os pontos de vista psicanalítico e lingüístico, o discurso do psicótico pode, em suma, ter as seguintes características:
- ser adiscursivo, habitado pela linguagem (não habita a linguagem como o neurótico) e esvaziado de significações. O psicótico, encontrando-se foracluído da dimensão simbólica, parece não ter entrado verdadeiramente na linguagem e o sujeito da enunciação encontra-se morto;
- não é constituído pela (de)negação, deixando-se habitar pelas negações;
- reflete ausência do significante primordial, o que é evidenciado pelos problemas que apresenta em relação às concatenações significantes (com sentido);
- parece ser uma língua diferente, apesar de ter uma certa organização lógica (sintática);
- não se abre a uma polivocidade de significações (é um);
- enfim, observa-se uma significativa desorganização simbólica.
A negação na constituição da subjetividade do sujeito psicótico
Além das especificidades do discurso psicótico elencadas acima, proceder-se-á, a seguir, à discussão de um ponto de vista lingüístico stricto sensu de alguns enunciados, tendo em vista uma questão em especial: as diferenças enunciativas do funcionamento da negação na psicose. Tem-se em questão, aqui, não apenas as marcas formais de ocorrência da linguagem psicótica, mas os efeitos de sentido que o uso da negação tem na situação enunciativa em que o psicótico vê-se frente ao interlocutor.
Para abordar o fenômeno da negação na cena enunciativa em que estão frente-a-frente o psicótico e o clínico, toma-se por base a teoria polifônica de Oswald Ducrot ampliada para os propósitos deste trabalho.
A intenção, aqui, é indicar uma possibilidade de estudo do sentido, tomando por base algumas considerações advindas da teoria enunciativa de Ducrot. Vale, no entanto, lembrar que não objetivamos apresentar um modelo “ideal” de análise da língua o qual possibilitaria o estudo da (de)negação, de um ponto de vista lingüístico, na psicose. Nosso propósito é apenas buscar na lingüística – e neste caso trata-se da lingüística que enfoca os fenômenos de enunciação-elementos que possibilitem a formulação de uma concepção de sentido na linguagem que seja articulável à problemática da psicose.
Para Ducrot (1987), a toda a negação subjaz um ponto de vista afirmativo que pode ser atribuído a um enunciador diferente daquele a quem se pode atribuir a negação. Em outras palavras, um locutor (L), quando enuncia uma negação, via de regra, coloca em cena dois enunciadores: E-1, responsável pelo conteúdo afirmado subjacente, e E-2, responsável pelo conteúdo negado. Esquematicamente, tem-se: L que coloca em cena, simultaneamente, E-1 (afirmação) e E-2 (negação).
Neste texto, parte-se da ampliação desse quadro a fim de propor a denegação como sendo um processo em que o ponto de vista subjacente afirmado é atribuído ao outro por um processo de antecipação. Assim, em termos de formalização, o esquema acima é reconfigurado da seguinte forma: L coloca em cena, simultaneamente, E-1’ (afirmação) e E-1’’ (afirmação antecipada ao outro) e E2 (negação). Ou ainda:
Nas entrevistas que constituem o corpus deste trabalho, foram encontradas duas situações:
a) Casos em que há ausência de denegação, portanto, sem tentativa de antecipação:
Exemplo A (29 anos, Masculino): Sim. Vim pra ver se me aliviava, mas não me adiantou nada. Eles vieram também. Eu não falei nada pra ninguém, não. Minha mãe acha que, que isso não é, não está acontecendo, né. Logo que anda muita polícia lá e ela acha que eles estejam atrás de outra pessoa...
Exemplo B (27 anos, Masculino): É só em vidro. E em parede também, quando eu fico nervoso. Quebro panela, quebro prato, não quero comer, quando eu não consigo comer eu quebro o prato. Quando eu não consigo. É que eu não consigo por causa dos nervos, né? E não desce, né? Parece que o corpo não ajudou a comer, né? [...} Daí vou nos bailão, tenho amiga, tenho amigo, tomo uma cervejinha, e não posso, né? Não posso mais beber. Metade do meu corpo é epiléptico. Daí se eu tomo álcool, né? Daí se torna aquela doença, né? É só isso que eu tenho pra falar. [...] Alguma voz eu ouvo. É que eu tinha uma namorada, né? Daí [...} eu ouço aquela voz, né?
São negações literais, em que se estabelece uma relação direta entre o locutor e o não. Percebe-se, em A e B, a ausência de antecipação, provocando um efeito de monofonia, ou seja, nessa situação o locutor (L) recusa instaurar o interlocutor como constitutivo do processo de enunciação. Nesse caso, reconfigura-se o esquema anterior, já que há uma espécie de relação direta do locutor com a negação. Pode-se propor uma interpretação em que L coloca em cena diretamente a negação (~), ou seja, L (~).
Em todas as falas destacadas acima, percebe-se a estrutura sintagmática canônica da negação. Na instância enunciativa desses casos, percebe-se a ausência de antecipação da perspectiva do outro. É isso que causa um efeito monofônico, ou seja, numa situação X o locutor L, ao enunciar a negação, recusa o diálogo interno comum à asserção negativa. A negação, no contexto de todas essas enunciações, embora tenha uma estrutura aparente normal, produz um efeito de estranhamento decorrente de recusa de acesso ao simbólico. Essa interpretação, do ponto de vista da lingüística, coincide com a psicanálise, quando esta considera que o psicótico foracluiu o não, já que faltou o operador de recalque, responsável pelo aparecimento do não da denegação.
Afirmar que o não foi foracluído pode provocar um certo estranhamento já que, em termos sintáticos, o não é empregado corretamente nos casos acima. Na verdade, o que se constituiu foi a forma da negação, ou seja: o não está presente – enquanto forma lingüística –, mas seu funcionamento parece não estar.
b) Casos em que há tentativa de estabelecimento de denegação, portanto, com tentativa de antecipação:
Exemplo C (43 anos, Masculino): Não quer dizer que a pessoa que tá em benefício não sabe que...Aí o que é. Então por que eu não ia levar uma garota pra baixo do meu lençol, num frio daqueles. Não que eu tenha o hábito de tomar cachaça. Daí eu tenho que arranjar mil e uma desculpa que ninguém viu que tava tonto e arranjou uma garota pra ir lá pra baixo do lençol, né? Viu, eu sou criativo pra essas coisas da cachaça porque não tinha hábito de tomar cachaça...
Exemplo D (40 anos, Masculino): Tinha dez paranga de cinco. De cinco. Não sou muito, nada de beber. Não vou tar mentido pra vocês se eu to um, um doutor, né? Eu não vou ta mentindo. Eu fumei. Mas eu fumei mas eu sou assim: eu sou de fumar e, e não incomodar, me dá reação de querer assaltar, pegar coisa da mãe, o dinheiro da bolsa, pega dinheiro, me atucanar. Não. [...] Não. Mas a mãe sabe que eu fumo, ele sabe que eu fumo, ele sabe que eu fumo. Ele sabe que eu sou viciado. Eu disse pra ele: eu to fumando, mas é o seguinte, eu não sou de ta roubando de vocês. Eu disse pra ele: eu não sou da ta indo na bolsa, nos bolsos de vocês, de se atucanar por causa que não tem...
São casos em que a situação de enunciação permite inferir que o locutor tenta instaurar um processo de antecipação, mesmo que este não se concretize na íntegra, já que não tem continuidade no discurso.
No que diz respeito ao que estamos denominando de tentativa de denegação, percebe-se que o locutor tenta colocar em cena o outro em antecipação. Verifique-se, por exemplo, em C, 43 anos, que o enunciado não que eu tenha o hábito de tomar cachaça não está de acordo com a temática que o precede e, conseqüentemente, sua ocorrência espaço-temporal é inadequada, produzindo uma falha na antecipação da voz atribuída ao outro.
Em linhas gerais, pode-se dizer que de acordo com os dados acima há uma tentativa de estabelecimento de sujeito na psicose e isso pode ser atestado na frustração do processo antecipatório da denegação. A negação no discurso do psicótico parece estar destituída de sua função ordenadora de significantes – há aí uma falha estrutural, o que permite uma diferenciação no funcionamento da negação na psicose. Importa, porém ressaltar que se um significante foi foracluído, o ordenador, isso não significa que o sujeito está fora da linguagem. O psicótico está na linguagem, mas de uma forma estruturalmente diferente.
Conclusão
Para além das contribuições pontuadas durante o texto, tanto em termos de clínica com a patologia, como em termos de análise do discurso do psicótico, é necessário enfatizar, de forma mais incisiva, a existência de um sujeito nas psicoses. Os resultados das investigações aqui expostas apontam para a possibilidade de um sujeito psicótico poder se nomear e poder ser nomeado.
Falar em sujeito nas psicoses significa, em primeiro lugar, abalar a dualidade razão/desrazão. Em segundo lugar, significa marcar uma ruptura com determinados estudos lingüísticos existentes na psiquiatria, que tratam de forma casual os distúrbios de linguagem específicos como sendo indícios claros da loucura, da desrazão. No que concerne ao psicótico, trata-se de abalar os estudos que tratam o delírio como se este fosse o sinal inequívoco, a marca crucial da desventura subjetiva, quando o mais provável fosse tratá-lo como uma tentativa de articulação discursiva de uma determinada posição subjetiva, uma determinada forma de entrar na linguagem, uma possibilidade de existência.
Demarcar a existência de um sujeito que tenta se articular através de sua desrazão, de seu delírio, remete necessariamente à discussão acerca da possibilidade, ou não, de esse sujeito circular no espaço social. Na tradição, o louco, na sua desrazão, tem suas verdades desautorizadas e seu dizer confinado a campos discursivos periféricos. Na contemporaneidade, em que pesem os progressos acerca de uma nova visão da loucura, tem-se, ainda um sujeito destituído de autoria, de existência.
Enfatiza-se, aqui, que, com as considerações acima feitas, é determinado um campo de subjetivação para o psicótico, o qual funda-se, eminentemente, em uma ética/estética da existência.
Está-se falando, assim, de uma afirmação do saber, do discurso e da existência do psicótico, desatrelando-o de uma concepção idealizada de sujeito. Tal posição implica o deslocamento da discussão do sujeito para o estudo dos processos de subjetivação, acentuando-se a positividade de os psicóticos fazerem laço social.
Finalmente, cabe acentuar que se defende uma outra posição para o psicótico: a de poder ocupar um lugar no campo da existência, da linguagem e do saber, portanto, um lugar afirmativo.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: marga@edu.ufrgs.br; valdirnf@ yahoo.com.br
Recebido em junho de 2005
Aceito em setembro de 2005
Autores. 1 Margareth Shäaffer Professora Titular de psicologia da Faculdade de Educação e do Programa de pós-graduação em Educação da UFRGS.
2 Valdir do Nascimento Flores Professor Adjunto do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS.