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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.35-36 Canoas Dec. 2011

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Anormais, bárbaros e bárbaras: trajetórias de vida e homossexuais e clínica psicológica

 

Abnormal and barbarians: gay's life trajectories and psychological clinic

 

 

Daiane Maus MarquesI,II; Henrique Caetano NardiII,III

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex)
III Departamento e do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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RESUMO

O artigo aborda a forma como as práticas das clínicas psicológicas se confrontam com a diversidade sexual, a partir da análise das trajetórias de vida de cinco sujeitos homossexuais que passaram por atendimento psicológico. Como ferramenta de pesquisa empírica foram utilizadas entrevistas baseadas na perspectiva das trajetórias de vida. Nas entrevistas foi utilizada uma questão inicial: Como a questão da orientação sexual foi abordada durante o tratamento psicológico? O objetivo da pergunta inicial foi estimular o/a entrevistado/entrevistada a relatar impressões do atendimento psicológico em relação à homossexualidade. Utilizou-se para a análise os conceitos de formação discursiva e enunciado, oriundos da perspectiva arqueológica de Foucault, acoplada à abordagem genealógica apresentada pelo autor. O instrumental teórico foi embasado em Michel Foucault e Judith Butler. Nossa análise indica que o/a homossexual ainda ocupa, na clínica psicológica especificamente e na sociedade em geral, o lugar de anormal e de bárbaro/bárbara. A perspectiva teórica utilizada toma os conceitos de dispositivo da sexualidade e heteronormatividade como centrais para a compreensão da resistência conservadora das práticas clínicas frente aos avanços institucionais de reconhecimento social da homossexualidade.

Palavras-chave: Homossexualidade, Heteronormatividade, Trajetória de vida, Clínica psicológica.


ABSTRACT

This article discusses the way psychological clinical practice deals with sexual diversity, analyzing life trajectories of five homosexual subjects that went through psychological treatment. The research instrument used was interviews based on life history's approach. We proposed an initial question: How your sexual orientation was approached in your psychological treatment? The goal of this question was to stimulate the interviewed to describe his/hers comprehension of psychological therapy in relation to homosexuality. In the analysis we used the concepts of discursive formation and enunciation from Foucault's archeological perspective in combination of his genealogical approach. The theoretical frame was constructed based on Michel Foucault's and Judith Butler's contributions. Our analysis indicates that the homosexual is still considered in psychological practice as well in society in general as the abnormal, the barbarian. The theoretical perspective that guides the study takes heteronormativity and sexuality device (dispositif) as central concepts to understand clinical practice resistance to the institutional progress of homosexuality social recognition.

Keywords: Homosexuality, Heteronormativity, Life trajectory, Clinical psychology.


 

 

Introdução

O presente artigo é fruto de questões levantadas a partir de uma pesquisa realizada durante o mestrado em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que abordou a questão das clínicas psicológicas e a diversidade sexual, a partir da análise de trajetórias de vida. Foram entrevistados cinco sujeitos (três homens e duas mulheres) que se autodefiniam como homossexuais e que passaram por atendimento psicológico, não estando mais em atendimento há pelo menos seis meses.

Utilizou-se para a análise os conceitos de formação discursiva e enunciado1, oriundos da perspectiva arqueológica de Foucault (2007), acoplada à abordagem genealógica apresentada pelo autor, entendida aqui como a compreensão das condições políticas para a emergência dos discursos em um dado contexto histórico. A arqueologia permite compreender a configuração da rede enunciativa que confere inteligibilidade e coesão a uma formação discursiva (que podemos definir sucintamente como conjunto de enunciados, o qual pode assumir a forma de um discurso científico, por exemplo) a genealogia, por sua vez, permite compreender historicamente as condições políticas e as formas de legitimação para que determinada formação discursiva tenha efeito de verdade na maneira como os sujeitos fazem a experiência de si mesmos/as (sua autoconstituição), isto é, reflitam sobre a direção e o sentido atribuído às suas existências e suas ações. A partir dos relatos das trajetórias de vida buscou-se entender como as questões da sexualidade e da orientação sexual foram abordadas durante a terapia. As análises das entrevistas evidenciam que as práticas clínicas marcadas pela heteronormatividade são colaboradoras no processo de produção do sujeito homossexual como alguém anormal no interior do dispositivo da sexualidade. É importante salientar que a análise sustentada nos conceitos de enunciado e discurso diferencia-se de um estudo de caso específico, pois evidencia quais as condições de possibilidade para que os/as entrevistados/entrevistadas pudessem expressar-se de determinada forma.

 

Resultados

Heteronormatividade e práticas clínicas psicológicas

"É melhor morrer do que ser veado", fala do pai de um dos entrevistados (Entrevistado 1) trazida por ele na entrevista. Vivemos em um contexto/cultura heteronormativo/a no/a qual os sistemas jurídicos, educacionais e médicos são constituídos dentro da lógica da existência de dois sexos, o masculino e o feminino, e dois respectivos gêneros também designados como o masculino e o feminino. Na conjugação destas dicotomias a heterossexualidade é a norma central que ordena a vida em sociedade e institui as hierarquias das possibilidades de exercício da sexualidade. A homossexualidade, por sua vez, dentro dessa cultura, é vista a partir da figura do/da homossexual como um sujeito anormal. A(s) psicoterapia(s) pode(m) ser construída(s) e estar dentro dessa cultura; muitas vezes ela(s) vê(em) o/a homossexual como alguém para ser tratado/tratada. Entretanto, o código de ética profissional da Psicologia estabelece que o/a psicólogo/psicóloga não pode agir de forma a tratar os sujeitos em função de sua homossexualidade:

Art. 2° – Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma refl exão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.
Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica. (Conselho Federal de Psicologia, 1999)

Apesar do que o código estabelece, existem muitos casos em que as ações contrariam o que nele está escrito. Um exemplo recentemente veiculado na mídia é o caso da psicóloga evangélica Rozângela Justino. A profissional afirma curar os/as homossexuais. Abaixo segue um trecho da entrevista que ela concedeu à revista Veja:

Revista Veja: "Há estudos que mostram que ser gay não é escolha, é uma questão constitutiva da sexualidade. A senhora acha mesmo possível mudar essa condição?".
Rozângela: "Cada um faz a mudança que deseja na sua vida. Não sou eu a responsável pela mudança. Conheço pessoas que deixaram as práticas homossexuais. E isso lhes trouxe conforto. Conheço gente que também perdeu a atração homossexual. Essa atração foi se minimizando ao longo dos anos. Essas pessoas deixaram de sentir o desejo por intermédio da psicoterapia e por outros meios também. A motivação é o principal fator para mudar o que quiser na vida". (Justino, 2009)

Rozângela foi apenas censurada publicamente pelo Conselho Federal de Psicologia, mas percebe-se, a partir de sua entrevista, que ela continua agindo de forma contrária ao que o código estabelece. Percebemos que sua fala é atravessada por enunciados heteronormativos de cunho religioso associados a uma reivindicação de filiação ao saber científico.

Revista Veja: "Isso não é discriminação contra os que são homossexuais e gostam de ser assim?".
Rozângela: "Isso é o que você está dizendo, não é o que a ciência diz. Não há tratados científicos que digam que eles existem. Eu não rotulo as pessoas, não chamo ninguém de neurótico, de esquizofrênico. Digo que estão esquizofrênicos, que estão depressivos. A homossexualidade é algo que pode passar". (Justino, 2009)

O exemplo de Rozângela Justino é um caso bastante divulgado na mídia e a psicóloga adota um posicionamento bem claro e sem nuances. Entretanto, o que pudemos perceber nas entrevistas é que muitos/muitas profissionais adotam uma postura impregnada pela heteronormatividade. Mesmo não falando abertamente em curar a homossexualidade, eles/elas fazem uma abordem inicial buscando detectar as causas da homossexualidade (geralmente ligando-as a algum tipo de trauma ou falha no processo de desenvolvimento) e muitas vezes questionando enfaticamente a orientação sexual. Além disso, em alguns casos, percebe-se que o/a profissional não toca no tema da sexualidade e tenta entender o comportamento por ele/ela considerado desviante a partir de outras atitudes do sujeito. Na fala de uma das entrevistas temos um exemplo de como a ideia da psicoterapia atravessava a forma como sua família pensava a correção da orientação sexual, o primeiro atendimento ocorreu no início da década de 1980:

"Aí ela (a mãe) disse: vou te mandar pro psicólogo pra te curar. Então a primeira noção que eu tive de psicoterapia era a ideia de um especialista que ia curar minha doença. Aí era um psiquiatra. Eu lembro que ele me perguntava muito sobre drogas, não falava direto sobre sexualidade. Parecia que ele tentava fazer uma ligação da queixa com o uso de drogas. A queixa que eu digo da minha mãe, que falou primeiro com ele. E a maconha, os amigos, lembro que eu dizia que não gostava do cheiro e ele insistia 'mas tu nunca experimentou?', isso pra mim ficou muito marcado. Tinha toda uma relação com um comportamento desviante. Isso que eu via. E da sexualidade ele nunca tocava direto no assunto". (Entrevistada 2)

Butler (2003) se apoia na História da Sexualidade I de Foucault ao afi rmar que o fato de a sexuação ser culturalmente um fator de definição identitária implica em estarmos submetidos a um engenhoso conjunto de regulamentações sociais. A autora acrescenta que a categoria sexo é sempre reguladora e que tomar essa categoria de forma naturalizada, sem pensá-la de forma crítica "amplia e legitima ainda mais essa estratégia de regulação como regime de poder/conhecimento" (Butler, 2003). Butler (2003) usa o termo matriz heterossexual ao falar da grade de inteligibilidade cultural que naturaliza o sexo, o gênero e o desejo. A autora busca referências em Monique Wittig e Adrienne Rich a fim de caracterizar o modelo hegemônico heterossexual como prática compulsória que implica na necessidade de um sexo estável com respectivo gênero estável, ao qual terá outro sexo em oposição e hierarquicamente distinto. É possível perceber em algumas das falas dos/das entrevistados/entrevistadas, por exemplo, a presença dessa matriz:

"Na verdade eu acho que não mudou nada na terapia. Quando eu tinha começado ela eu não tinha ficado ainda com meninas, mas eu sabia que eu gostava. Até um tempo anterior eu não tinha o costume de ficar com meninos e eu vivia rodeada de meninas e sentia mais atração de ver uma menina que ver um menino. Mas aí tem todo aquele negócio da sociedade que puxa pro lado do menino". (Entrevistada 3)

"Eu ficava, namorava quase. Eu já tinha ficado com meninas antes, mas foi uma coisa bem superficial, nunca cheguei a transar com mulher, porque eu não tive oportunidade assim, senão teria transado. Só que o desejo não vinha... o que já foi bem diferente de quando eu fiquei com meninos. Eu tinha que forçar muito, na adolescência eu forçava um desejo que eu não tinha. Era horrível. E com homem por mais que eu tentava fugir vinha, aflorava assim. Eu não podia ver homem bonito na televisão e pronto. Eu lembro que eu lutava, lutava, mas era só ver o Fábio Assunção na novela das oito e pronto (risos). Era triste, era uma luta assim, sabe..." (Entrevistado 1)

A entrevistada 3 fala de "todo aquele negócio da sociedade que puxa pro lado do menino", a tríade sexo/gênero/desejo, articulação tão bem descrita por Butler, é enunciada na fala ao dizer que de acordo com nossa sociedade uma menina tem que sentir atração por um menino. O mesmo enunciado de ter que buscar um desejo que não é o seu, percebe-se na fala do entrevistado 1. Ele afirma "eu forçava um desejo que eu não tinha", era uma batalha constante para se encaixar no padrão heteronormativo do desejo.

Ainda no que se refere a esta questão, na entrevista à revista Veja, Rozângela afirma que:

Revista Veja: "O que é não estar em sintonia com o seu eu, no caso dos homossexuais?"
Rozângela: "É não estar satisfeito, sentir-se sofrido com o estado homossexual. Normalmente, as pessoas que me procuram para alterar a orientação sexual homossexual são aquelas que estão insatisfeitas. Muitas, depois de uma relação homossexual, sentem-se mal consigo mesmas. Elas podem até sentir alguma forma de prazer no ato sexual, mas depois ficam incomodadas. Aí vão procurar tratamento. Além disso, transtornos sexuais nunca vêm de forma isolada. Muitas pessoas que têm sofrimento sexual também têm um transtorno obsessivo-compulsivo ou um transtorno de preferência sexual, como o sadomasoquismo, em que sentem prazer com uma dor que o outro provoca nelas e que elas provocam no outro. A própria pedofilia, o exibicionismo, o voyeurismo podem vir atrelados ao homossexualismo. E têm tratamento. Quando utilizamos as técnicas para minimizar esses problemas, a questão homossexual fica mínima, acaba regredindo". (Justino, 2009)

A fala da psicóloga Rozângela utiliza termos de caráter científico para legitimar enunciados ligados à moral. Se um/uma homossexual procura a profissional e diz se sentir incomodado/incomodada, ela não trabalha os efeitos do sofrimento produzidos pelo caráter moral e aprisionante da heteronormatividade. Ela, ao contrário, transforma a vítima em culpado e apresenta a homossexualidade como uma doença a ser tratada, a partir de uma terapêutica que busca a 'diminuição' do desejo desse/dessa paciente. Essa forma de pensamento/atitude coloca o saber/desejo do/da profissional acima do desejo do/da paciente. Esse tipo de ação não é isolado, é o reflexo do que ocorre em diferentes âmbitos, seja numa roda de amigos, no meio acadêmico, nas famílias.

O entrevistado 1 quando fala da relação com a família só consegue encontrar referências que remetam à família nuclear organizada a partir da normatividade heterossexual. Lembramos que a família nuclear monogâmica heterossexual é um componente do dispositivo da sexualidade, pois segundo Foucault (2006), a proliferação do discurso sobre o sexo seria uma forma de se afastar toda sexualidade que não fosse ligada à economia da reprodução. Todo sexo fora da família nuclear seria banido. Assim foi possível constituir a rede enunciativa que define um desenvolvimento normal da sexualidade e estabelece todos os desvios que poderiam ser amenizados com controles pedagógicos e médicos. Quando o pai do entrevistado percebe que o filho não obedecia completamente ao que a norma estabelece como padrão para um menino, ele, como um controlador pedagógico do filho, afirma que "é melhor morrer do que ser homossexual". A mãe do entrevistado, por sua vez, lamenta ao saber da orientação sexual dos filhos (o irmão do entrevistado 1 também é homossexual), afirma que sua maior tristeza é que jamais passará um natal com eles em família e que os mesmos terão que ter duas vidas, a vida de dentro de casa e lá de fora, já que nunca poderão trazer a vida de fora para dentro de casa. Abaixo um trecho da fala do entrevistado 1 que ilustra o medo do pai de que ele fosse homossexual e a tentativa do próprio entrevistado de tentar lutar contra seu desejo:

"Quando eu era pequeno eu pegava vestido e colocava. Engraçado, depois isso passou. Nunca mais tive essas manias, mas meu pai tinha muito medo que eu virasse gay. Ele falava assim: é melhor morrer do que ser veado. Eu tinha nove anos quando ele falou isso. Porque eu acho que eu era bem delicado. Mas depois eu redimi o máximo que eu pude". (Entrevistado 1)

O/A anormal

Como já foi detalhado acima, fica claro que a heteronormatividade organiza as diversas estruturas que dão sustentação a nossa sociedade. Perceber-se homossexual é experimentar o desvio da norma e as penalidades de viver aí. A norma atravessa/constitui a vida e, para o sujeito poder existir, o campo de identificação possível ainda é aquele de se ver como anormal. A família, na maioria das vezes, acentua essa posição e busca no trabalho do/da psicólogo/psicóloga uma forma de corrigir e trazer seu familiar para a norma. O/A psicólogo/psicóloga, por sua vez, conforme vários dos relatos, coloca o sujeito nesse mesmo lugar, reforçando a ideia de um ser errante. Os dois próximos trechos são da fala do entrevistado 4. Ele fala da dificuldade de se aceitar como homossexual e de como a terapia dificultou ainda mais essa aceitação:

"Em 1999, eu tive uma crise bem depressiva, de ficar 30 dias em casa. De não querer mais fazer nada. Que foi bem aquela parte de começar a se descobrir homossexual, também, foi bem complicado. Tipo, meio que me apaixonei por um amigo meu, e ele mexeu comigo, só que ele não sabia o que tava acontecendo". (Entrevistado 4)

"A única coisa que rolou foi um beijo, que pra mim aquilo foi muito maluco. Tipo, "o que tá acontecendo, eu não posso, sou homem". Então, aquelas várias perguntas que muitos quando estão começando a se descobrir, pra quando sai do armário, fazem pra si mesmos. Aí, eu me voltei mais pra psicóloga pra ela me ajudar tudo, e ela foi pra uma linha de raciocínio, tipo assim, pra ela, eu tava com conflitos sociais, o que realmente estava acontecendo lá em casa em função de alguns problemas com o meu avô, mas isso era outra coisa. Daí eu meio que comecei a não, eu acho que a terapia não é pra mim. (...) Porque, quando tu faz uma terapia, tu vai te abrir... Então, tem uma pessoa que te escuta, e ela te dá os caminhos que tu tem que seguir e tentar melhorar o que tu não ta conseguindo. Não, aí ela começou, tipo, não, que eu tinha que procurar uma menina. Ela começou com as probabilidades de eu ser homossexual ou não. Tipo vamos ter certeza que é mesmo... O que aconteceu? Pirou mais o meu pensamento. Eu já tava focado no que queria e começou meio que, tipo, daqui a pouco nem eu sabia o que eu queria". (Entrevistado 4)

Quando o entrevistado percebeu que estava gostando de um amigo ficou muito angustiado. Vindo de uma família conservadora e religiosa, ele não aceitava que aquilo estivesse acontecendo. Aos poucos foi percebendo que gostava de pessoas do mesmo sexo. Ao levar a questão para a psicóloga, depois de já estar "focado no que queria", ele conseguiu perceber o agenciamento heteronormativo das intervenções da profissional. Talvez seja possível pensar como a Psicologia se constitui e como tal constituição continua ecoando na prática dos/das profissionais da área. Serbena e Raffaelli (2003) ao abordar o caráter comportamentalista da Psicologia, ciência cujo surgimento data do final do século XIX, apontam para o fato de a Psicologia ser definida por "ciência do comportamento" e, nas suas aplicações, uma ciência do controle dos comportamentos. A Psicologia Científica buscava técnicas instrumentais capazes de dar dimensões objetivas e precisas sobre o problema do sujeito.

"A profissão de psicólogo esteve inicialmente ligada aos problemas de educação e trabalho. O psicólogo 'aplicava testes': para selecionar o 'funcionário certo' para o 'lugar certo', para classificar o escolar numa turma que lhe fosse adequada, para treinar o operário, para programar a aprendizagem, etc.". (Figueiredo e Santi, 2000)

Ao lado dessa Psicologia Científica, nasce também a Psicanálise. Na última década do século XIX, Freud propõe os alicerces fundamentais da psicanálise; esboça até 1900 as noções de "inconsciente, repressão, sexualidade infantil, relação entre sintomas neuróticos e fenômenos da vida psíquica 'normal', diretrizes básicas do pensamento psicanalítico" (Loureiro, 2006). A psicanálise, por conseguinte, apesar de estabelecer novos conceitos, ainda o faz com um olhar positivista e dicotômico. De acordo com Foucault (2006), a psicanálise mescla o dispositivo da sexualidade com o dispositivo da aliança e o seu surgimento foi possível graças às condições epistémicas da época.

De acordo com Maus-Marques e Pessin (2009), a psicologia2 ainda tem seu entendimento a partir do olhar cartesiano que caracteriza o seu surgimento. Em um de seus objetivos principais está a ideia da adaptação: o de adaptar o estudante, o funcionário ao seu lugar, o menino a brincar de carrinho e a menina de boneca. A base dessa clínica está ligada à recolocação das pessoas, da refuncionalização do sujeito. "Muito se estuda desde este início, mas alguns conceitos e padrões ainda estão intrínsecos tanto ao que é produzido hoje em Psicologia quanto à subjetivação dos pacientes e também dos terapeutas" (Maus-Marques e Pessin, 2009:138). Na fala da entrevistada 2, é possível perceber como a psicóloga é subjetivada pela cultura heteronormativa, o que fica claro na tentativa de resgatar o que ela considera normal e não vê na sua paciente. Ao mesmo tempo, como afirma a entrevistada, por passar por um momento difícil, ela permitia que a terapia fosse conduzida no sentido de uma busca por uma suposta normalidade.

"Aí quando minha irmã ficou doente, eu tinha recentemente me separado, eu fiquei muito deprimida. Procurei uma psicóloga. Nossa, ela nem disfarçava. Às vezes eu me sentia assim como alguém pra ser trabalhado e resgatar uma normalidade. Isso nem era adolescência, eu já era velha, era uma coisa brutal assim. Mas eu estava tão fragilizada que eu permiti isso". (Entrevistada 2)

Outra questão importante de destacar quanto à discursividade que demarca a normalidade é a forte associação dos enunciados loucura e anormalidade à psicologia, tanto no discurso dos/das entrevistados/entrevistadas, como na forma que eles/elas comentam as falas de seus/suas familiares e as ações dos/das terapeutas.

"Aí comecei a namorar o A., que era de Porto Alegre. Aí ele começou que "tu não é louco", que acha que eu não preciso fazer mais terapia. Aí ele me induziu que eu parasse. E eu levei ainda todo o janeiro, o resto de janeiro, né? Fevereiro eu fiz até o dia 6 ou 8 de março, não me lembro. Bem no começo de março, aí eu parei". (Entrevistado 4)

"Aí eu disse, eu não acredito mãe, eu não vou, eu não vou, eu não to louco, eu não quero, eu não quero, eu tinha vergonha" (Entrevistado 1 contando sobre quando ficou sabendo que sua mãe havia marcado um horário de terapia para ele).

É possível pensar na ideia do nascimento da Psicologia como ferramenta científica de adaptação dos indivíduos e, posteriormente, na sua apresentação clínica e na associação com a psiquiatria, para tratar a loucura, o desvio. Pensando-se na implantação da Psicanálise no Brasil, percebe-se que ela está associada aos representantes do saber médico/psiquiátrico, vinculada às práticas nos hospícios; há uma substituição da assistência religiosa por um saber 'cientifico' (Russo, 2006; Monteiro e Jacó-Vilela, 2006). Estes enunciados que ainda se fazem presentes nos efeitos de sentido produzidos quando se anuncia o termo Psicologia, ao atravessarem os relatos das entrevistas, evidenciam como este caráter corretivo/adaptativo ainda marca os procedimentos e/ou as percepções das práticas clínicas.

Dispositivo da sexualidade

Segundo Foucault (2006), percebemos que o sexo pode ser compreendido como produto do dispositivo da sexualidade. Por dispositivo, Foucault estabelece:

"Através deste termo tento demarcar (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos". (Foucault, 1988)

A sexualidade pode ser vista como um dispositivo de poder que, utilizando-se de técnicas de controle social, começa a ganhar força a partir do século XVIII. A ação da confissão embasada nas práticas da doutrina católica em que o pecado deve ser vigiado e o sacerdote tem a capacidade de analisar o certo e o errado, é expandida às ciências que começam a se formar, buscando essas também a verdade do sujeito. A sexualidade passou a ser um tema a ser exposto, fazer falar do sexo era/é uma ferramenta para as disciplinas que surgiram para controlá-lo (a pedagogia, a medicina, o direito, a psicologia). Apesar dessa incitação para se falar de sexo, promovendo talvez uma pseudo-ideia de liberação da sexualidade, o discurso produzido foi/é balizado pela lógica heteronormativa, ou seja, as disciplinas reafirmam um modelo de família e regras que impedem e tornam ininteligíveis as manifestações da sexualidade para além da heterossexual.

Talvez seja interessante prosseguirmos, desconstruindo alguns enunciados performativos e naturalizados como: "Qual o sexo do bebê? é menino ou menina?" "Homem ou mulher?" "Na ficha cadastral é feminino ou masculino?" Questões que abordam dois sexos, dois gêneros e uma possibilidade apenas de relacionar as duas variáveis: homem masculino; mulher feminina, de acordo com regras que ditam o que é ser feminino e o que é ser masculino.

A partir dos estudos de Laqueur (2001) podemos ser conduzidos a outros jogos de verdade no discurso da sexualidade. Tomando o autor, é possível dizer que o gênero é construído e, além disso, a divisão sexual também é uma construção historicamente datada. A partir do século XVIII a natureza sexual humana começa a ser vista de uma maneira mais dicotômica, antes disso havia a ideia de que a mulher tinha os mesmos órgãos sexuais dos homens, porém invertidos.

"Durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens, só que – como dizia Nemesius, bispo de Emesa, do século IV – 'a delas fica dentro do corpo e não fora'. Galeano, que no século II d.C. desenvolveu o mais poderoso e exuberante modelo da identidade estrutural, mas não espacial, dos órgãos reprodutivos do homem e da mulher, demonstrava com detalhes que as mulheres eram essencialmente homens, nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – resultara na retenção interna das estruturas que no homem são visíveis na parte externa". (Laqueur, 2001:16)

Se até o século XVIII o pensamento era esse – por que e como se construíram dois sexos? – é possível lançar uma perspectiva explicativa a partir da produção do gênero como prática divisória e de hierarquização da vida. De acordo com Butler (2004), o gênero é um aparato que produz e normaliza o masculino e o feminino. Tal norma se naturaliza e é difícil de ser percebida, assim, sendo o gênero uma norma, busca-se implicitamente um padrão que dê os contornos da norma, o gênero requer e institui o seu próprio regime disciplinar. O gênero, propõe a autora, poderia também ser pensado como um mecanismo para desconstruir e desnaturalizar essa ideia binária. O gênero é condicionado, mas isso não quer dizer que ele seja fadado a ser sempre determinado. A norma não é atemporal. Ao ser temporal, a norma se desterritorializa. Ela persiste ao ser repetida nas práticas sociais, ou seja, ela é reiterada, reinstituída a cada dia e, via o mecanismo de naturalização, acaba sendo instituída tal qual a anterior. A norma constitui a realidade e isso acontece na repetição das performances que dão materialidade à norma.

Na clínica percebe-se a tentativa de adequação à norma. A última psicóloga da entrevistada 2 sugere que ela adote um filho. Nas colocações dos/das psicólogos/psicólogas fica evidenciada a tentativa de adaptar o/a paciente ao que seja o mais próximo possível do padrão normal. O modelo de família nuclear ainda parece ser para muitos/muitas profissionais a única maneira possível de família.

A mãe da entrevistada 3, vinte anos depois, repete a mesma atitude da mãe da entrevistada 2: ao saber que a filha não está disposta a repetir a norma de gênero que estabelece que o sexo feminino tenha de ter um gênero feminino e, consequentemente, desejar o sexo oposto, ela conversa com uma psicóloga e marca um horário para a filha:

"Aí foi quando eu falei pra mãe que eu ia começar a sair e ver se era realmente isso que eu queria e aí foi que ela me mandou pra terapia. Porque ela (mãe) achava que eu tinha ficado traumatizada por causa do abuso que eu tinha, como é que eu vou te dizer, que a figura masculina... que eu tinha me fechado pra figura masculina, que tinha me traumatizado. (...) Aí quando eu comecei a fazer terapia, ela (psicóloga) perguntou tudo, de quando eu tinha sido abusada, como é que eu tratava isso, como era a questão da minha filha, tudo, eu disse assim: não comigo assim oh, eu quero é ficar longe dele. Eu perdoo ele, mas eu quero ficar longe dele". (Entrevistada 3)

A entrevistada 3 sofreu abuso sexual quando tinha 16 anos por um amigo da família e engravidou, foi a primeira relação sexual da jovem. Os pais dela eram separados e o pai vivia em outra cidade, ela tinha esse amigo quase como um pai. Quando estava com a barriga aparente a mãe a colocou num "lar de meninas" para que pudesse ter a filha e ficar longe do abusador e para os vizinhos não falarem da situação até o nascimento e os primeiros meses do bebê. Apesar de ela relutar, a mãe da entrevistada a convenceu a incluir no registro de nascimento da neta o nome do pai da criança para que tivesse garantido o direito à pensão alimentícia.

Aqui, a mulher bárbara3: a adolescente grávida torna-se reclusa num lar de meninas para ficar longe do abusador e para não ser falada no bairro. A entrevistada conta que muito ouviu que o abuso aconteceu porque ela quis, que ela já sabia das coisas com 16 anos, que o que um não quer dois não fazem, ou coisas do tipo: ele era um homem bom, até registrou a criança, ela sempre pareceu atirada... A história pode ser filtrada, contada de várias formas, mas é melhor esconder, como afirma Foucault (2005), por vezes só uma história acaba recebendo o título de verdade e o saber histórico busca a ordem e a paz.

É possível pensar um pouco mais sobre ordem e verdade, a partir da aula de 25 de fevereiro de 1976 do Seminário em Defesa da Sociedade, quando Foucault (2005) redefine a ideia do poder. Ele afirma, a partir de Boulanvilliers, que o poder não é propriedade, não é potência, é sempre uma relação que só se estuda com os termos que atuam nessa relação, sendo assim não se pode fazer a história dos reis e a história dos povos, mas o que constitui uma em relação às outras. Talvez possamos pensar em duas histórias em relação à sexualidade: a história da heterossexualidade e a história das outras sexualidades; como se constituem as verdades sobre elas? A história da heterossexualidade se apresenta como a mais verdadeira, a mais completa, a mais legítima, a normal. Talvez isso ocorra porque, como foi afirmado acima, o saber histórico busca a ordem e a paz e, por todo um conjunto historicamente construído em torno da heterossexualidade, ela seja produzida hoje como modelo de ordem. De acordo com Foucault, retomando Boulanvilliers, o Bárbaro foi filtrado da história para acontecer a história (Foucault, 2005:243).

Quando Foucault nos fala do bárbaro, a partir de Boulanvilliers, apresenta-o como aquele que se opõe ao selvagem. O selvagem numa relação social deixa de ser selvagem, já o bárbaro só pode ser definido fora da civilização, ele é um ponto de hostilidade permanente. O bárbaro funda uma sociedade, mas destrói uma civilização. Perguntamos, então, se o/a homossexual não seria considerado/considerada por muitos/muitas uma espécie de bárbaro/bárbara do século XX? Aquele/aquela que talvez funde uma sociedade, uma vez que o termo homossexual precede o termo heterossexual, a definição da doença precede a definição da normalidade, mas que antes destrua uma civilização? Se tomarmos a perspectiva foucaultiana, o/a homossexual inaugura a era da sexualidade materializada como espécie (e hoje como identidade) e permanece ali como ameaça ao mundo construído a partir do acontecimento de sua emergência. Muitas vezes é isso que se escuta, como emerge na fala da entrevistada 3 relatando o que já ouviu em relação aos homossexuais: "Nossa sociedade vai terminar, imagina casais de dois homens? Como terão filhos? É antinatural, é contra Deus" (Entrevistada 3).

A entrevistada 3 conta como foi o início da terapia, sendo possível evidenciar a postura heteronormativa da terapeuta:

"Eu fui na terapia e já na primeira sessão ela queria me mudar. Daí ela falou que foi por causa do abuso, aí quando o abuso não teve mais jeito ela disse que era a falta da figura materna. Falta da mãe, falta de carinho da mãe, ausência da mãe. Isso a psicóloga me falou, tipo tu não tá trocando um pouco a figura materna da tua mãe e materializando ela em outra pessoa, e que essa pessoa seja uma menina né, no caso essa falta de carinho, esse companheirismo, essa amizade que tu queria ter com ela no caso, tu tá colocando nessa menina. Aí eu disse não, porque o que eu sinto não são só atrações emocionais, são atrações físicas também. E nunca que eu ia sentir atração física pela minha mãe. Então não tem como, sabe. Mas aí se tu for avaliar eles vão colocar também no caso da violência. Aí ela tentou contornar de tudo quanto foi jeito. Mas o foco era minha homossexualidade. Só da minha homossexualidade que ela queria falar. Foi pra isso que minha mãe marcou a terapia. Aí ela colocava essas opções: mas tu não acha assim que foi por causa que tu bloqueou a figura masculina, mais isso... Aí ela começou a puxar, começou a puxar o assunto no caso da Bruna. Como foi que eu tive ela, puxando por aí. E aí chegou no assunto da sexualidade. Que foi o assunto da sexualidade o mais falado. Parecia que quando eu cheguei lá ela já tinha um questionário pronto. Ela só foi puxando uma maneira de eu falar. Aí ela perguntava se eu tinha visto a guria, conversado com a guria. Perguntava o que eu conversava com ela, aí eu entrava em algum detalhe. Mas era focado. É porque se fosse pela violência sexual pra ser tratada, ela teria até o final do tratamento ter puxado aquilo. Mas não depois que ela viu que eu tinha um namorado, que eu tinha praticamente descartado essa possibilidade que ela tinha me dado, começou a colocar outras. Ah porque foi a figura materna ou por causa disso, disso ou disso. Tu vê que o foco principal era a sexualidade. Ela ia vencer no tratamento se eu chegasse e dissesse pra ela arrumei um namorado, virei hetero. Aquilo ia ser só uma fase momentânea da minha vida e passou". (Entrevistada 3)

A forma como os enunciados que constituem a clínica do ponto de vista de quem a procura, evidentes na fala da mãe da entrevistada 3, encontram rapidamente eco nos enunciados do consultório e presentes no relato durante a entrevista, demonstra que ambos fazem parte da mesma formação discursiva, baseada no discurso psiquiátrico/psicanalítico que ainda produz a homossexualidade como anomalia. Assim a "paciente" acaba ficando imersa nesse contexto, em que ela só tem como existir na perspectiva da anormalidade, não há outro espaço possível. Sobre a homossexualidade como doença Foucault nos coloca:

"Ora, o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre as espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e 'hermafroditismo psíquico' permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de 'perversidade'; mas também, possibilitou a constituição de um discurso de 'reação': a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua 'naturalidade' e muitas vezes dentro do vocabulário e com categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico". (Foucault, 2006)

Saberes que se legitimam no interior do jogo de verdades da Psicologia estabelecem que se tenha que encontrar a causa da homossexualidade da entrevistada 3, por exemplo, o que possibilita pensar esta forma de sexualidade como desvio. Mesmo que o código de ética profissional determine que o/a psicólogo/psicóloga não possa contribuir com a estigmatização e patologização da homossexualidade, no contexto da clínica a investigação das causas da orientação sexual, algo que não aconteceria se ela fosse heterossexual, emerge insistentemente. Fica evidente no relato da entrevistada 3 que a fala da psicóloga faz parte de uma rede enunciativa que relaciona a prática sexual da paciente ao abuso sofrido ou também a falhas da figura materna e/ou paterna (homossexualidade como desvio da norma).

 

Considerações finais

A partir das análises das entrevistas pôde ser problematizada a forma como o/a homossexual ocupa, na clínica psicológica experienciada pelas/os entrevistadas/os, o lugar de anormal e de bárbaro/bárbara, à luz dos conceitos de heteronormatividade e do dispositivo da sexualidade. A construção do corpo homossexual para alguns/algumas psicólogos/psicólogas parece ser inteligível apenas na ordem da falha ou do trauma, aspecto muitas vezes tido por verdade no discurso de algumas psicologias que se construíram no contexto do dispositivo da sexualidade a partir da lógica heteronormativa. A ideia de barbárie, por sua vez, vem, a partir de Foucault (2005) tomando Boulanvilliers, de aquilo que destrói uma civilização. Perguntamos, então, se entendermos o sujeito homossexual como bárbaro, não estaríamos pensando na possibilidade da destruição dessa e consequente criação de uma nova civilização? Talvez fosse interessante pensar uma clínica psicológica que não tenha o/a homossexual como o selvagem, ou seja, aquele que pode ser domesticado e trazido para os padrões da civilização atual e sim, pensarmos o/a homossexual como o bárbaro/a que seja capaz de romper com alguns conceitos petrificados dessa clínica e dar possibilidades para a construção de uma concepção psicológica diferente a partir de uma nova civilização. Talvez aí seja possível uma clínica que produza outros efeitos no campo da sexualidade, que não repita a adaptação à heterossexualidade compulsória ou que pelo menos seja capaz de acreditar na manifestação de um desejo legítimo e que não o considere como inferior ou fruto de uma falha no desenvolvimento.

 

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Endereço para contato
E-mail: daianemaus@gmail.com

Recebido em setembro de 2011
Aceito em setembro de 2012

 

 

Daiane Maus Marques: Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex).
Henrique Caetano Nardi: Professor do Departamento e do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex).
1 Para Foucault, a partir da Arqueologia do Saber (2007), o discurso é visto pelo discurso e não pelo o que há por trás dele como forma de explicá-lo ou interpretá-lo. É preciso entender o jogo de relações, ou seja, a ordem do discurso, e ter clara a ideia de que ao se falar do objeto, constrói-se esse objeto. O enunciado pode ser entendido como uma função, como algo que se expressa e faz funcionar toda uma rede. A formação discursiva é constituída pelos enunciados, os quais produzem/formam discursos e, nesse sentido, o enunciado também nunca é algo em si, mas sempre em relação. Assim, para fazer uma análise da formação discursiva é necessário sair da representação, no sentido de pensar o que determinada palavra quer dizer, e ouvir o que está sendo dito, perceber como e de que lugar é falado, de modo a evidenciar como aquela rede enunciativa (fala/texto) marca o tempo em que é dito/escrito e qual a posição que ocupa o sujeito ao enunciar.
2 Entendemos que existam múltiplas psicologias, uso o termo de forma generalizada no contexto acima, no sentido da sua apresentação como bloco, como efeito de verdade no social.
3 Bárbara no sentido de estar fora da civilização e ser um ponto permanente de hostilidade (Foucault, 2005). Logo abaixo no texto exploramos um pouco mais a ideia de bárbaro e selvagem, a partir de Boulanvilliers, que Foucault apresenta na aula de 03 de março de 1976 no Seminário Em Defesa da Sociedade.