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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.41 Canoas Aug. 2013

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Automedicação e comportamento entre adolescentes em uma cidade do Rio Grande do Sul

 

Self-medication and behavior in adolescents from a city in Rio Grande do Sul

 

 

Rafaela Carvalho AbrahãoI; Julia Almeida GodoyI; Ricardo HalpernII

I Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
II Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre

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RESUMO

Objetivo: Estudar o consumo de medicamentos e associações com variáveis sociodemográficas e comportamentais, bem como, os fármacos mais utilizados. Métodos: Estudo transversal com escolares a partir da 5ª série. Os dados foram coletados através de um questionário com variáveis sociodemográficos e comportamentais, e a análise realizada utilizando-se o teste do qui-quadrado. Resultados: 11,9% utilizavam regularmente medicamentos. 35,9% utilizaram medicação na semana anterior à aplicação do questionário, nos dois grupos tinha predomínio de meninas e consumo maior de álcool, seguido de drogas ilícitas e tabaco. Conclusões: A automedicação mostrou-se prevalente nas meninas maiores de 16 anos. Observou-se relação familiar quanto à indicação da mesma. Existem relações significativas quando se associa automedicação com álcool e drogas. O grupo de uso regular apresenta nível de escolaridade superior dos alunos e dos pais. Anti-histamínicos e medicações para doenças respiratórias foram mais utilizados regularmente, enquanto analgésicos, anti-inflamatórios e antitérmicos foram mais utilizados no recordatório da última semana.

Palavras-chave: Automedicação, Escolares, Drogas.


ABSTRACT

Objective: To study the consumption of drugs and associations with sociodemographic and behavioral variables, as well as, the most frequently used drugs. Methods: Cross-sectional study with students from the 5th grade. Data were collected through a questionnaire with demographic and behavioral variables, the analysis was done by SPSS 18.0 and Chi – square test. Results: 11.9 % used drugs regularly. 35.9 % used medication in the previous week to the questionaire in both groups had a predominance of girls and higher alcohol consumption, followed by illicit drugs and tobacco. Conclusions: Self-medication was found to be prevalent among girls with 16 years old. In observed family relationship as the indication of the same. There are significant positive associations with self-medication with alcohol and drugs abuse. Students and their families with regular use has higher education in comparison with the other group. Antihistamines and drugs for respiratory diseases were used more regularly, but analgesic, antiinflammatory and antipyretic were more prevalente in the last week recordatory.

Keywords: Self-medication, School, Drugs.


 

 

Introdução

Consumir drogas é uma prática humana, milenar e universal. A partir dos anos 60, o consumo de drogas transformou-se em uma preocupação mundial, principalmente nos países industrializados, em função da sua alta frequência e dos riscos que pode acarretar à saúde (Tavares, Béria & De Lima, 2001).

A utilização de medicamentos é a forma mais comum de terapia em nossa sociedade, porém existem estudos demonstrando a existência de problemas de saúde cuja origem está relacionada ao uso de fármacos (Dall'agnol, 2004). É evidente que a possibilidade de receber o tratamento adequado, conforme e quando necessário, reduz a incidência de agravos à saúde, bem como a mortalidade para muitas doenças (Arrais et al., 2005).

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 50% dos medicamentos são receitados ou vendidos de forma inadequada, aproximadamente 40% da população não tem acesso a medicamentos essenciais e 50% dos pacientes não tomam corretamente seus medicamentos (Oliveira, Bertoldi, Domingues, Santos & Barros, 2010). A automedicação pode ser considerada uma forma de não adesão às orientações médicas e de saúde.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) (Sturkenboom, et al., 2008), a automedicação consiste na seleção e utilização de medicamentos isentos de prescrição (sem tarja) para tratar doenças autolimitadas ou os seus sintomas, estando inclusa no processo de autocuidado. O conceito de autocuidado, segundo a mesma, inclui cuidados básicos como: higiene pessoal, nutrição, condições ambientais, estilo de vida e situações socioeconômicas (renda e crenças culturais) (Beckhauser, Souza, Valgas, Piovezan, Galato, 2010).

Dentre as formas pelas quais a automedicação pode ser praticada, citam-se a aquisição de medicamentos sem receita, o compartilhamento dos medicamentos com outros integrantes da família ou do círculo social, a reutilização de sobras de medicamentos de tratamentos anteriores e a utilização de antigas prescrições (Beckhauser et al., 2010). É importante ainda ressaltar, que a prática da automedicação, muitas vezes, é influenciada por amigos, balconistas de farmácias e até mesmo familiares. Foi observado que dos componentes das famílias as mães são as que mais contribuem para o consumo sem prescrição médica em crianças e adolescentes (Beckhauser et al., 2010).

Fatores econômicos, políticos e culturais têm contribuído para o crescimento e a difusão da automedicação no mundo, tornando-a um problema de saúde pública. Mais disponibilidade de produtos no mercado gera maior familiaridade do usuário leigo com os medicamentos (Filho et al., 2002). No Brasil pelo menos 35% dos medicamentos adquiridos são feitos através de automedicação (Aquino, 2008).

No Brasil a carência de trabalhos de investigação sobre a morbidade e mortalidade associada ao uso de medicamentos, bem como, a ainda recente implantação do Sistema Nacional de Farmacovigilância, compromete um diagnóstico preciso da situação no país. Apesar disso, dados alarmantes publicados pelo Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (SINITOX), demonstram que os medicamentos ocupam a primeira posição entre os três principais agentes causadores de intoxicações em seres humanos desde 1996, sendo que em 1999 foram responsáveis por 28,3 % dos casos registrados (Sinitox, 2000). Deve-se considerar que os dados do Sinitox referem-se somente a informações de intoxicação, não considerando os aspectos relativos à ineficácia terapêutica e a insegurança dos medicamentos utilizados (mesmo dentro de suas margens terapêuticas).

Sabe-se que a automedicação, de maneira inadequada, traz importantes danos à saúde dos pacientes. Erros de dose, intoxicações, agravo e mascaramento de doenças, efeitos indesejáveis e interações medicamentosas são exemplos de efeitos adversos que essa prática sem conhecimentos de um médico responsável pode acarretar (Carvalho, Trevisol & Menegali, 2008).

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, 29% dos óbitos ocorridos no Brasil são provocados por intoxicação medicamentosa. Além disso, 15% a 20% dos orçamentos hospitalares são utilizados para tratar complicações causadas pelo mal uso de medicamentos. Estes dados deixam claro que as ações realizadas até hoje em termos de prevenção e promoção do uso racional de medicamentos não foram suficientes. Embora deva ser veementemente combatida, não há nenhum gesto objetivo para o desestímulo à automedicação por parte das autoridades públicas no contexto nacional, o que faz pressupor não ser este assunto de relevância na visão dos órgãos responsáveis.

O objetivo desse projeto foi estudar o consumo de medicamentos regular (prática de consumir diversos tipos de medicações para tratamento de diferentes patologias, tanto agudas, como crônicas) e o consumo na última semana, bem como descrever os grupos farmacológicos mais utilizados por esses estudantes. Além disso, foram investigadas as associações entre o consumo de medicamentos, relatados pelos alunos, e as variáveis sociodemográficas e comportamentais dos escolares (sexo, idade, nível de escolaridade dos pais, repetência, uso de drogas, fumo, uso de álcool).

 

Método

Durante o ano de 2004, realizou-se um estudo transversal com escolares de 1º e 2º graus, a partir da 5ª série, do turno diurno, maiores de 8 anos e 11 meses, regularmente matriculados nas escolas públicas (municipais e estaduais) e particulares no município de Guaíba (RS).

Os dados utilizados nesse artigo são provenientes de um banco de dados secundários, coletados para outra finalidade de pesquisa. Foi utilizada uma listagem fornecida pela Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul (SEC) referentes ao 2º semestre de 2003, ano em que era constituída por cerca de 7.309 alunos. A Delegacia de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul (DEE) também forneceu uma listagem contendo 11.973 alunos. As escolas particulares apresentaram 305 alunos diurnos e a Escola do Ensino Fundamental municipal possuía cerca de 75 alunos para o presente estudo. Assim, o total da população de escolares era de 19.662 escolares. Considerando uma frequência esperada de 20%, um erro de mais ou menos 5% e uma confiança de 95%, foram necessários 480 escolares para que o estudo tivesse um poder de 80%. Considerando um efeito de delineamento 2 e possíveis perdas e recusas, foram examinadas 960 crianças, para garantir maior representatividade possível ao estudo. O cálculo da amostra foi realizado com Software Epi Info 6.

O processo de amostragem foi sistemático, no qual foram selecionadas as turmas escolares (conglômeros), e a proporcionalidade das turmas da população foi mantida na amostra.

Os dados foram coletados através de questionários autoaplicados em visitas nas escolas Estaduais, Municipais e Particulares. Os questionários foram revisados pela pesquisadora para confirmar se todas as questões haviam sido respondidas e, depois disso foi feita a codificação e preparação para o banco de dados. Após essa etapa o questionário foi digitado no banco de dados com uso do programa EPI-INFO.

Foi aplicado um questionário semiestruturado, contendo questões relacionadas a aspectos de consumo de medicamentos, aos cuidados com a saúde e a hábitos familiares. Os alunos responderam o questionário de forma anônima (Anexo A). Destaca-se que no presente estudo o questionário citado acima não foi utilizado em sua totalidade.

Os alunos preencheram o instrumento dentro de um período de 60 minutos, sendo que as dúvidas existentes foram respondidas para toda a turma pela pessoa responsável por coletar os dados.

Após a definição da amostra a pesquisadora visitou as escolas e foi entregue um ofício de apresentação e permissão para o desenvolvimento da pesquisa, fornecido pela secretaria de Educação e Cultura e uma cópia da resolução do Grupo de Pesquisa e Pós Graduação pela comissão específica.

A análise dos dados foi feita através do programa SPSS 18.0. Foi realizada uma análise descritiva e análise comparativa entre o consumo de medicamentos regular e na última semana com as variáveis escolaridade, repetência, sexo, álcool, drogas e fumo, foi realizada através do teste qui-quadrado. Nesse estudo foram avaliados somente os escolares que fizeram uso de medicação, tanto regular (128), quanto na última semana (385).

Este projeto foi aprovado em seus aspectos éticos e metodológicos, inclusive quanto ao seu termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com as Diretrizes e Normais Internacionais e Nacionais, inclusive a Resolução 196/96 (protocolo nª 204-268).

 

Resultados

Foram avaliados 1070 escolares matriculados em escolas estaduais, municipais e particulares no município de Guaíba, no ano de 2004. Desse total, 49,3% (528) eram escolares do sexo masculino e 50,7% (542) eram do sexo feminino. A idade média dos escolares foi 13,8 anos com o desvio padrão ± 2,1. A amostra foi dividida de acordo com o tipo de escola, como se segue: escolas particulares 71 (6,6 %) e os restantes divididos entre as escolas públicas, estaduais e municipais (93,4% – 999 escolares). Fazendo uma análise da idade dos estudantes e do consumo de medicamentos, tanto regular quanto na última semana, observa-se que o maior consumo de medicamentos encontra-se na fase da adolescência (Tabela 1).

 

 

A respeito do consumo familiar de medicamentos, foi observada uma influência estatisticamente significativa, tendo em vista que os escolares pertencentes às famílias com hábito de utilizar medicação, tanto regular quanto na ultima semana, apresentaram um consumo de fármacos duas vezes maior do que os escolares nas quais as famílias não tinham esse costume (Tabela 1).

Em relação ao nível de escolaridade dos pais, 64,9% (691) das mães tinham ensino fundamental completo, seguido de 24,9% (266) com ensino médio completo e apenas 8,9% (95) com ensino superior completo, as restantes, ou eram analfabetas ou os escolares não sabiam informar tal dado. Quanto à escolaridade dos pais, os resultados foram semelhantes, 62,5% (699) tinham ensino fundamental completo, seguido de 25,2% (270) com ensino médio completo e 9,3% (99) com ensino superior completo, os demais eram analfabetos, já haviam falecido, ou os escolares não sabiam responder a essa questão.

 

 

Levando em conta à repetência, 43% dos alunos repetiu algum ano letivo. Desses, vários alunos repetiram mais de uma série. Dentre as séries, a 5ª foi a que apresentou maior número de repetências com 5,8% (62), seguida da 1ª série do ensino fundamental 4,9% (52), 6ª série 4,6% (49), 4ª série 3,5% (37) e a 7ª série 3,3% (35).

As comparações e análises que seguem foram feitas somente com os alunos que fizeram uso de medicação, tanto regular, quanto na última semana.

Em relação ao consumo regular de medicação 11,9% (128) alunos, respondeu sim a essa pergunta. Ao relacionar o consumo regular de medicamentos com a escolaridade e características comportamentais dos alunos, obtivemos os seguintes resultados; 39% (50) cursavam o ensino fundamental e 60,9% (78) o ensino médio. Em relação à repetência 32% (41) já repetiu, pelo menos uma vez, alguma série. É importante observar que a maior parte do grupo que usa medicação regularmente apresentava grau mais elevado de escolaridade (Tabela 3). Avaliando o uso de substâncias nesses escolares 21,1% (27) fumava tabaco, 67,9% (87) usava bebida alcoólica e 62,5% (80) fazia uso de alguma outra droga ilícita (Tabela 3).

 

 

Correlacionando o consumo regular de medicamentos e as variáveis sociodemográficas desses estudantes; 27,3% (35) eram do sexo masculino e 72,7% (93) eram do sexo feminino. Em relação ao nível de escolaridade paterno dos escolares a amostra apresentava um total de 126 pais, 1,5% (2) analfabetos, 57,1% (72) com ensino fundamental completo, 26,1% (33) com ensino médio completo e 15% (19) com ensino superior completo. Analisando o nível de escolaridade materno o n total era de 123, sendo dessas 0,7% (1) analfabeta, 55,9% (71) com ensino fundamental completo, 23,6% (30) com ensino médio completo e 16,5% (21) com ensino superior completo (Tabela 4).

 

 

Já ao analisar o consumo de medicamentos dos escolares na última semana, dos 1070 estudantes entrevistados, 35,9% (385) responderam que fizeram uso de medicamento na semana anterior à aplicação do questionário. Correlacionando esse dado com as características de escolaridade e comportamentais desses estudantes, tem-se que 57,1% (220) destes cursavam o ensino fundamental e 42,8% (165) o ensino médio. Em relação à repetência, 38,1% (147) já tinham repetido, pelo menos uma vez, alguma série. Sobre o consumo de substâncias, 19,5% (75) deles consumiam cigarro, 62,5% (241) faziam uso de bebida alcoólica, sobre o uso de drogas ilícitas 54,2% (209) responderam sim ao uso das mesmas (Tabela 5).

 

 

É válido ressaltar que houve uma associação significativamente estatística entre a automedicação e o consumo de álcool e drogas (Tabela 2, 3 e 5).

Por fim, correlacionando o uso de medicamentos na última semana e as variáveis sócio demográficas desses estudantes, 34,5% (133) eram do sexo masculino e 65,4% (252) eram do sexo feminino. Sobre a escolaridade paterna, de um n de 377 pais, 1,5% (6) eram analfabetos, 62,3% (235) tinham ensino fundamental completo, 25,4% (96) com ensino médio completo e 10,6% (40) possuíam ensino superior completo. Na avaliação do nível escolar materno, de um total de 383 mães, 1,3% (5) eram analfabetas, 60% (230) tinham ensino fundamental completo, 27,1% (104) ensino médio completo e 11,4% (44) possuíam ensino superior completo (Tabela 6).

 

 

Discussão

A automedicação é uma prática amplamente difundida e que pode levar a inúmeros prejuízos à saúde da população, sobretudo em crianças. Os medicamentos constituem um insumo essencial na moderna intervenção terapêutica, sendo empregado na cura e controle de doenças, com grande custo-efetividade quando usados racionalmente, afetando decisivamente os cuidados de saúde (Leite, Vieira & Veber, 2008). Os resultados do presente estudo, à semelhança de outros, confirmam que a prevalência da automedicação em crianças e adolescentes é uma prática real e frequente, independente do nível socioeconômico, o que representa um risco para a saúde (Loyola, Uchoa & Guerra, 2002 e Pereira, et al., 2007).

No presente estudo, houve 2.481 declarações de consumo de medicamentos, o que corresponde a 2,3 declarações de uso por aluno. O relato de consumo regular foi de 128 sujeitos (12%) e de consumo na última semana foi de 385 sujeitos (36%). A alta prevalência da utilização de medicação entre as crianças indica a necessidade da promoção do uso racional dessas drogas, levando-se em consideração as relações risco-benefício. O conhecimento sobre o perfil da utilização de medicamentos pode contribuir com a construção de políticas públicas na área do medicamento, a fim de garantir acesso às medicações realmente necessárias e a diminuição do uso indevido de outros medicamentos (Rousounidis et al., 2011).

Estudos realizados com escolares sobre o consumo de medicamentos, indicam que o uso de medicamentos na infância é elevado (Spellberg et al., 2008), especialmente entre crianças menores de 2 anos. Na Espanha e na Argentina mostram que o consumo de medicamentos entre adolescentes é prevalente, iniciando na infância (Rajmil et al., 2000). Rajmil (2000) em estudo com 330 crianças abaixo de 15 anos evidenciaram entre elas consumo de medicamentos de 25,4%. Também analisando a utilização de medicamentos em crianças de 0 a 16 anos, estudo realizado na Holanda, mostrou que na primeira infância o consumo foi elevado, diminuindo na idade escolar e novamente aumentando na adolescência, aproximadamente 60% da população em estudo haviam consumido pelo menos, um medicamento, naquele ano (Schirm, Van Der Berg, Gebben, Sauer & De Jong-Van Berg 2000). O presente estudo foi ao encontro dos achados da literatura internacional, levando em consideração a idade e a automedicação. Observou-se que a automedicação aumentou consideravelmente na adolescência em comparação com o período escolar. É valido destacar que nesse estudo não foi analisada a automedicação na primeira infância.

Correlacionando características comportamentais desses escolares, observou-se que o álcool era a droga mais utilizada por essa população de estudantes, seguido de drogas ilícitas e depois o cigarro. No presente estudo encontrou-se uma associação significativa entre uso de álcool, drogas e automedicação (principalmente no grupo que usava medicação regularmente). No entanto, tal associação pode ser explicada pelo fato de que o grupo que realiza automedicação apresenta média de idade superior à média geral. Na literatura não foi encontrado estudos que mostravam associação entre uso de drogas e automedicação. O achado mais frequente foi que entre escolares de 1º e 2º graus e estudantes universitários o álcool era a droga mais utilizada, seguido pelo tabaco (Tavares, Béria, De Lima, 2001). O relato de reprovações escolares mostrou-se significativamente associado ao uso de drogas, com prevalência de uso duas vezes maior em quem teve três ou mais reprovações, comparado aos que nunca foram reprovados.

Sobre a relação entre a automedicação e o nível de escolaridade, observa-se que entre os alunos houve maior nível de escolaridade no grupo que usava medicamentos regularmente em relação ao grupo que usou medicação na última semana. Relacionando o nível de escolaridade dos pais dos alunos, também se observou maior nível escolar no grupo que utilizava medicação regularmente (por volta de 16% dos pais com ensino superior completo) em relação ao grupo que utilizou medicamentos na última semana (por volta de 11%) e em relação à amostra total de escolares (por volta de 9% com ensino superior). Tais achados são concordantes com a literatura pesquisada. Penna referiu que indivíduos com ensino superior completo têm maior contato com o sistema de saúde privado e/ou maior envolvimento nas decisões terapêuticas prévias, o que os torna capazes de sentirem-se seguros para se automedicar. Um grau de envolvimento elevado nessas decisões pressupõe maior e melhor informação e, portanto, maior probabilidade de utilização adequada dos medicamentos (Penna, 2004).

Houve uma importante prevalência do sexo feminino no uso de medicações, bem como na pesquisa de Da Silva e Giuliani (2004). Estudos reafirmam a existência de uma forte relação do gênero feminino e o consumo de medicamentos, com a finalidade de contornar o estresse e a ansiedade gerados pelos múltiplos papéis intra e extradomiciliares assumidos pelas mulheres, muitas vezes já na adolescência (Da Silva & Giuliani, 2004 e Rosenfeld, 2003). Além disso, sabe-se que as mulheres procuram mais os serviços de saúde, expõem mais seus sentimentos e têm mais sintomas depressivos e internações hospitalares que os homens (Lessa & Bochner, 2008). É importante salientar que os anticoncepcionais, de uso diário feminino, não foram incluídos nessa análise, mas tinham um percentual considerável, 38,3% das meninas faziam uso regular.

A automedicação é praticada em todas as idades, e estudos revelam que, no Brasil 75% dos responsáveis por crianças têm exercido a prática, sendo que, em 95% desses casos, as mães são as principais responsáveis (Lessa & Bochner, 2008). As causas que levam uma mãe a praticar a automedicação são a carência de orientação médica, praticidade e, principalmente, a busca pelo alívio dos sintomas apresentados pela criança, como dor, febre e resfriado (Lessa & Bochner, 2008). Esses achados da literatura foram ao encontro dos resultados desse estudo, no qual mostrou importante influência das famílias na automedicação dos escolares. Urbano confirmou esses achados, citando que os pais ao verem a criança com uma simples indisposição, já se sentem estimulados a comprar um medicamento para tratá-las, sendo que a maioria deles ao notarem que a criança já se encontra melhor, anula o tratamento por conta própria, levando muitas vezes ao agravo do quadro (Urbano, et al., 2010). Estratégias educativas devem ocorrer no âmbito familiar, uma vez que a influência da família sobre o uso indiscriminado de medicamentos mostrou-se relevante. Contudo, a escola, os profissionais e os gestores de saúde também têm responsabilidade sobre o quadro observado. Uma atitude de mudança e de transformação torna todos os segmentos da sociedade responsáveis pelo processo de reavaliação, conscientização, educação e racionalização do uso do medicamento e suas relações com as questões de saúde.

O acúmulo de medicamentos nas residências, constituindo por vezes um verdadeiro arsenal terapêutico, é também fator de risco (Ferreira et al., 2005). Além de favorecer a prática da automedicação, facilitar a ocorrência de um equívoco entre medicamentos, e do risco de intoxicação por ingestão acidental, a falta de cuidados com a farmácia caseira pode afetar a eficiência e a segurança no uso de medicamentos de diversas maneiras, por exemplo, a ingestão acidental dos medicamentos pelas crianças, causando intoxicações e a perda da eficiência do medicamento pelo mau armazenamento ou até mesmo por vencimento (Zamuner, 2006).

A respeito dos grupos farmacológicos mais utilizados regularmente, os antihistamínicos e as medicações para tratamento de doenças do aparelho respiratório foram os mais usados, seguidos dos antibióticos, antifúngicos e antissépticos. Já no grupo que fez uso de medicamentos na última semana, os analgésicos, anti-inflamatórios e antitérmicos foram as drogas mais usadas, seguido pelos anti-histamínicos e medicações para afecções respiratórias. Os resultados obtidos nesse estudo corroboram com os apresentados na pesquisa de Carvalho et al., (2005), da mesma forma que no estudo de Pereira et al., (2008) assim os analgésicos, antipiréticos e anti-inflamatórios lideram a lista dos mais consumidos (Carvalho et al., 2005, Pereira et al., 2008). Já no estudo de Pfaffenbach, as classes de medicamentos que mais se destacaram para a prática da automedicação em crianças foram nessa ordem; antibióticos, anti-inflamatórios não esteroides e analgésicos (Pfaffenbach, 2010). No estudo de Beckhauser o analgésico paracetamol foi o fármaco mais utilizado pelas crianças, seguido pela dipirona (Beckhauser, Souza, Valgas, Piovezan & Galato, 2010).

Entre as doenças que são tratadas por meio da automedicação, destaca-se a rinofaringite aguda, por não ser uma patologia com quadro clínico grave, e, na maioria das vezes, ter como melhor opção o tratamento dos sintomas. Dessa forma, as pessoas fazem uso de medicamentos por conta própria, sendo muitos deles contraindicados, como é o caso dos antibióticos usados frequentemente em infecções virais (Cancelier, Cubo & Pizzol, 2006).

Quando o sistema de saúde não fornece um cuidado adequado às crianças, a automedicação na população pediátrica torna-se um agravante, uma vez que o cuidado necessário fica limitado às determinações do responsável. Uma estratégia válida é a conscientização de toda a população sobre os riscos da automedicação (Rosenfeld, 2003, Pfaffenbach, 2010). Campanhas educativas devem ser elaboradas no âmbito da saúde coletiva para alertar sobre os perigos de usar indiscriminadamente os medicamentos. Todas as faixas etárias devem ser alertadas, de modo que as informações necessárias devam ser disponibilizadas em todos os níveis escolares, para que, desde cedo, as crianças tomem conhecimento do risco a que estão expostas ao usar produtos sem a orientação adequada.

Os resultados de estudos sobre medicamentos apresentam uma situação grave no que se refere às consequências do uso irracional, como o grande número de intoxicações (Bortoletto & Bochner, 1999), a baixa resolutividade dos tratamentos (Villa et al., 2008), o uso abusivo (Raymundo et al., 2003) e ainda, a necessidade de novos tratamentos, geralmente mais complexos como consequência dessa lógica, com um aumento nos custos correspondentes.

Os achados desse estudo são de suma importância para saber qual o perfil dos jovens que praticam a automedicação e quem os auxilia ou incentiva para tal prática. Através desse estudo foi possível delinear a população alvo com o objetivo de criar campanhas educativas e novas políticas de prescrição e aquisição de medicamentos. Às pressões sociais as quais estão submetidos os prescritores, a estrutura do sistema de saúde e o marketing farmacêutico são habitualmente citados como fatores envolvidos nessa problemática.

O presente estudo apresenta como limitações o fato de que os dados foram coletados há 10 anos e, provavelmente, o perfil desses usuários, bem como algumas mudanças em normas de prescrições, sofreram algumas alterações nesse período de tempo. Há 10 anos os antibióticos não necessitavam de receita médica controlada para seu uso. Essa mudança no padrão da venda de antimicrobianos trouxe uma melhora na resistência a determinados antibióticos, deixando suas prescrições reservas ao médico e, assim, diminuindo a necessidade de buscar outros medicamentos mais potentes e até mais caros para tratar afecções cotidianas. Também é importante destacar que por ser um questionário semiestruturado, no qual os alunos mesmos respondiam as questões (sem a ajuda dos responsáveis), pode ter tido muitos dados omitidos a respeito dos hábitos de vida, das variáveis sociodemográficas e do consumo de medicamentos. Muitos dos escolares também não sabiam especificar o nome do medicamento usado, dificuldade a análise de um dos objetivos do estudo que inclui estudar os grupos farmacológicos mais utilizados pelos participantes.

Tem-se como um aspecto relevante o número de participantes da pesquisa, assim foi possível inferir a carência de informações da população atendida pelo projeto e a necessidade da difusão permanente de conhecimento consistente sobre o uso racional de medicamentos. A disseminação do uso de drogas de abuso em nossa sociedade tem encontrado nos medicamentos uma fonte de acesso fácil, problema que precisa ser efetivamente encarado.

 

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Endereço para contato
E-mail: rafabrahao@hotmail.com

Recebido em novembro de 2013
Aceito em abril de 2014

 

 

Rafaela Carvalho Abrahão: Médica graduada pela Universidade Luterana do Brasil e realizando pós-graduação em Clínica Médica pelo Hospital São Lucas da PUCRS.
Julia Almeida Godoy: Médica graduada pela Universidade Luterana do Brasil e realizando pós-graduação em Psiquiatria pelo Hospital São Lucas da PUCRS.
Ricardo Halpern: Professor Associado de Pediatria, Universidade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. Pediatra especialista em Desenvolvimento e Comportamento, Center for Development and Learning, University of North Carolina at Chapel Hill.

 

Anexo A: CONSUMO DE MEDICAMENTOS EM ESCOLARES DE GUAÍBA/RS

 

 

 

 

 

 

 

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