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Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.8 no.15 São Paulo June 2003

 

ARTIGOS

 

Considerações acerca dasobredeterminação do sintoma fóbico no caso Hans

 

Considerations on the over-determination of phobic symptom in Hans’ case

 

 

Maria Nadeje Pereira BarbosaI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho trata do fenômeno da sobredeterminação no sintoma fóbico, tomando como referência o texto Análise da fobia de um menino de cinco anos, de S. Freud. Situando-o em um contexto caracterizado pela confirmação das hipóteses freudianas sobre a sexualidade infantil, busca-se refletir sobre a sobredeterminação do sintoma fóbico da Hans a partir de uma multiplicidade de vias de associação que se entrecruzam, seja por semelhança, seja por contigüidade. O resultado é o deslocamento da significação do sintoma sobre cada um dos protagonistas da novela familiar de Hans (pai, mãe e irmã), inclusive o próprio Freud, e a formação de um complexo sintomático ligado a elementos mais ou menos inconscientes. Analisa-se detidamente os diversos momentos de engendramento e consolidação do sintoma fóbico do menino, assim como seu vínculo com as figuras parentais. Finalmente, são rastreadas as vicissitudes de Hans na busca de sentido de uma problemática sexual, em particular a origem e o desenvolvimento da pulsão de saber, os obstáculos que se interpõem no seu livre curso, assim como o processo de reconhecimento da diferença entre os sexos.

Palavras-chave: Freud, Psicanálise, Fobia, Sobredeterminação, Teorias sexuais infantis.


ABSTRACT

The present work discuss the over-determination of phobic symptom, according to S. Freud’s study “Analysis of a Phobia in a Fiver-Year-Old Boy”. Understanding such work as an attempt to confirm the Freudian hypothesis regarding to the infant sexuality, the aim of this work is to comprehend the over-determination of Hans’ phobic symptom originated from multiple association paths that reciprocally intersect, either by resemblance or contiguity. It results in the displacement of the meaning of the symptom to each one of Hans’s family story protagonists (mother, father and sister), even including Freud himself, and in the configuration of a symptomatic complex bounded to elements more or less unconscious. Some particular moments of engendering and consolidation of Hans’s phobic symptom are analyzed, as well as his bound with parental figures. Finally, it is traced the vicissitudes of Hans’ search for meaning in a sexual matter, especially the origin of the knowledge drive development, the impairments that obstruct its free course, as well as the process of sex differences recognition.

Keyword: Freud, Psychoanalysis, Phobia, Over-determination, Sexual theories of children.


 

 

Texto e contexto

Efetuar a leitura de um texto – no caso Análise da fobia de um menino de cinco anos1, de 1909 – a partir da perspectiva da “sobredeterminação” (Überdeterminierung) do sintoma fóbico, supõe situá-lo no contexto dos descobrimentos de Freud em um momento temporal específico. Nesse período, o conjunto das hipóteses que constituem a teoria psicanalítica encontra-se em plena efervescência pela introdução do conceito de “pulsão sexual” (Sexualtrieb) em uma das obras pilares do pensamento freudiano – os Três ensaios para uma teoria sexual (1905) –, com a finalidade de ampliar o conhecimento sobre a sexualidade humana. Com efeito, a introdução desse “conceito fundamental” (Grundbegriff) como uma das bases em que se assenta a reflexão freudiana sobre a sexualidade, juntamente com os conceitos de fantasia e de desejo, produz não somente uma complexa trama conceitual que caracterizou o pensamento psicanalítico, mas também um relativo distanciamento do pensamento freudiano em relação ao psiquiátrico2. Nessa época, Freud ainda não contava com estudos de casos clínicos de crianças para comprovar suas hipóteses sobre a gênese e a evolução da sexualidade infantil, fato que ocorreu anos mais tarde, precisamente com o estudo sobre a fobia de Hans. Longe de subestimar seus descobrimentos, essas conjecturas iniciais confirmam a genialidade de Freud ao estabelecer uma conseqüente teorização sobre o funcionamento sexual infantil a partir da sexualidade adulta. Com isso, o conceito de pulsão constituise como parte integrante desse novo ordenamento do funcionamento psíquico, produzindo uma ruptura em relação ao que se concebia por sexualidade humana e, portanto, convertendo-se em uma questão polêmica. Contudo, como assinala Bercherie (1983, p. 355), as resistências em admitir a existência de uma sexualidade inconsciente derivam menos das formulações sobre a sexualidade infantil do que da sua relação de continuidade com a sexualidade adulta, visto que essa hipótese fundamental de Freud situa a sexualidade na série que dará origem às perversões adultas.

Com efeito, suas idéias não estavam livres de críticas, sobretudo as que concebiam as formulações sobre a sexualidade infantil como inferências feitas a partir do estudo de pacientes neuróticos adultos. Por isso, um dos empenhos de Freud foi o de encontrar, mediante a observação de crianças, a confirmação de suas teorias sobre a sexualidade infantil. A observação de Hans, realizada em 1908 e publicada em 1909, é o resultado dessa tarefa, lograda pela colaboração de Max Graft, pai de Hans e um dos integrantes da “Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras”.

Além de confirmar os pressupostos sobre a sexualidade infantil, unindo as perspectivas clínica e teórica, esse estudo oferece os elementos para a construção das chamadas teorias sexuais infantis, e o complexo de castração é nele mencionado pela primeira vez. No contexto do caso Hans, Freud o concebe como patológico, significando que não apresenta o caráter estruturante e universal que anos mais tarde seria seu emblema. No estudo sobre a fobia de Hans perfila-se um dos avatares da distribuição nosográfica dos sintomas, com o estabelecimento de uma nova entidade clínica, a “histeria de angústia” (Angsthysterie), cuja característica fundamental é a de encontrar na fobia seu sintoma central. Assim, a fobia torna-se acessível à psicanálise, dado que se desprende do marco das obsessões e das neuroses atuais, e passa a ser concebida como um sintoma neurótico específico. Destacam-se as relações entre angústia e libido reprimida, com a finalidade de distinguir a angústia das neuroses de angústia, da angústia das psiconeuroses3, e de revelar a semelhança estrutural entre a histeria de angústia e a histeria de conversão4. Nesse sentido, o estudo sobre a fobia de Hans aponta para o retoque descritivo, do qual a teoria da angústia foi objeto nos trabalhos metapsicológicos de 1915. Contudo, foi apenas em 1926 que Freud reformulou sua teoria da angústia, tendo em vista que as contribuições da primeira tópica eram insuficientes para uma abordagem metapsicológica desse problema.

Um longo período separa a publicação da observação da fobia de Hans de sua visita a Freud, ocorrida em 1922, e reflete como Freud foi traçando o percurso que consolidaria definitivamente seu pensamento. O encontro, relatado no “Apêndice” de Análise da fobia de um menino de cinco anos (1909), ocorreu depois de dez anos, sem que Freud tivesse tido notícias de Hans. Nesse apêndice, ele comenta que Hans, aos 19 anos de idade, era “um forte rapaz”, sem nenhum indício de padecimentos e inibições, apesar da difícil prova anímica que lhe impôs a separação de seus pais. Em relação à análise, Freud comenta que Hans não se lembrava de nada, e somente demonstrava uma hesitante lembrança da viagem a Gmunden. “Então a análise não tinha preservado os acontecimentos da amnésia, mas tinha sido superada pela própria amnésia” (1909, p. 153).

A menção do termo Überdeterminiert (“sobredeterminado”) aparece inicialmente na obra freudiana nos Estudos sobre a histeria (Freud e Breuer, 1893-1895, p. 278), a propósito da pluralidade de fatores encontrados na etiologia das neuroses5. Em uma nota de rodapé, Strachey comenta que é provável que a noção de causação múltipla tenha sido expressa por outros autores – significando que não se trata de uma noção inaugurada por Freud.

Parece lícito assinalar que a introdução de um termo no pensamento freudiano não implica que ele esteja desenvolvido como um conceito psicanalítico propriamente dito. Tanto é assim que nos Estudos sobre a histeria (1893-1895) é possível conceber a sobredeterminação do sintoma histérico como o resultado de uma predisposição constitucional e de uma pluralidade de acontecimentos traumáticos. Essa operação de transmudação de um termo em conceito psicanalítico somente ocorre a partir do estabelecimento da hipótese estrutural sobre o inconsciente, ou seja, mesmo reconhecendo que parte considerável das idéias de Freud já havia sido desenvolvida nos Estudos sobre a histeria, estas não estão ainda traduzidas em uma linguagemmetapsicológica. É a partir do estabelecimento da hipótese estrutural sobre o inconsciente que a sobredeterminação se converte em um conceito psicanalítico, excedendo a dimensão fenomênica e tornando-se um articulador conceitual.

No Vocabulário da psicanálise (1967), Laplanche e Pontalis atribuem dois sentidos ao conceito de sobredeterminação na obra de Freud. Primeiro: a explicação de uma determinada formação do inconsciente (sonho, sintoma etc) a partir de uma diversidade de causas. Segundo: a explicação de uma determinada formação do inconsciente a partir de elementos inconscientes múltiplos, que podem se organizar no aparelho psíquico de acordo com seqüências significativas diferentes, cada qual com uma coerência que lhe é própria. Ambos autores assinalam que, mesmo sendo o segundo sentido o mais aceito, isso não implica desestimar possíveis vias de passagem entre um sentido e o outro.

A sobredeterminação aparece como uma das características do sintoma, revelando que cada sintoma apresenta mais de um significado, e que representa simultânea e sucessivamente diversos cursos inconscientes de pensamento ou de realizações de desejo. Esses diversos significados não necessariamente se complementam em um todo articulado; é necessário apenas que a interarticulação seja constituída pelo tema que deu origem aos diversos pensamentos. Nessa ordem de considerações, o que caracteriza a sobredeterminação do sintoma é que os elementos do complexo sintomático apresentam inúmeras ligações com os elementos inconscientes. Isto significa que tanto os elementos do complexo sintomático são repetidamente determinados pelos elementos inconscientes, como são representados no complexo sintomático por diversos elementos.É precisamente essa multiplicidade de vias associativas que atribui vários sentidos na interpretação dos sintomas. Assim, a “superinterpretação” (Überdeutung) encontra a sua razão de ser essencialmente na sobredeterminação.

Como apresentado adiante, a sobredeterminação do sintoma fóbico de Hans conduz a uma multiplicidade de vias de associação que se entrecruzam, seja por semelhança, seja por contigüidade, até o ponto em que a totalidade do sintoma possa ser tomada, por si mesma, como elemento. Associações que, como sublinha Laplanche (1980a, p. 105), podem também ser realizadas de acordo com duas classes de vias – associações de coisas e associações de palavras. Essa multiplicidade inclui cada um dos protagonistas da novela familiar de Hans (pai, mãe e irmã), o próprio “professor” (Freud), e forma um complexo sintomático ligado a elementos mais ou menos inconscientes.

 

Da angústia à fobia

A primeira formação da angústia em Hans ocorre antes da fobia: uma certa disposição emotiva expressa em algumas ocasiões, unida à ocorrência de um sonho de angústia, cujo conteúdo se refere à partida da mãe. Diz o pequeno para a mãe: “Quando eu estava dormindo, pensei que você tinha ido embora e eu ficava sem a Mamãe para mimarmos juntos” (1909, p. 34). Esse estado culmina com uma crise de choro quando Hans passeia pela rua com sua babá: o menino pede para regressar à casa para estar com a mãe.

O caráter indeterminado da angústia relaciona-se com a falta de ligação de determinadas representações; Hans não explica o motivo do choro, por desconhecimento. A série correspondente aos termos mãe, perda, ausência e ir para a rua oferecem os indícios de um excesso de excitação que a mãe desperta no menino. A análise do sonho revela a punição pelo desejo de estar com a mãe, discernido como proibido, e cuja repressão transmuda em angústia. Essa inundação energética é saciada em geral com a atividade onanista, assim como com as tentativas de seduzir a mãe, não sem angústia. Uma das cenas registradas pelo pai, antes do surgimento da angústia, revela esse ensaio:

Hans: Por que é que você não põe seu dedo aí?
Mãe: Porque seria porcaria.
Hans: Que é isso? Porcaria? Por quê?
Mãe: Porque não é correto.
Hans: (rindo) Mas é muito divertido (1909, p. 29).

Assim, é o alagamento energético produzido pela hiper-ternura de Hans em relação à mãe que, ao ser reprimido, transforma-se em angústia. A angústia somente torna-se representável ao se ligar a um objeto – nesse caso, não é mais “angústia” (Angst), mas “medo” (Fürcht). Isto é o que ocorre a Hans, apesar de suprir o desejo de estar com seu primeiro objeto sexual, a mãe. E encontra em um animal, o cavalo, o objeto para fixar sua angústia e transmudá-la em fobia. Seu conteúdo: o medo de que o cavalo lhe morda. Freud postula que essa eleição é sinal das conjecturas de Hans sobre os genitais do cavalo e da mãe, mostrando indícios de uma série associativa que inclui a ambos – seja por reconhecer a falta de pênis na mãe, seja por deduzir que o genital de ambos é do mesmo tamanho.

 

Da fobia aos cavalos ao desejo de ver o genital materno:a temática do onanismo

Em um relato posterior, Hans especifica ao pai que teme os cavalos brancos. Lembra um episódio de verão em que um pai proíbe uma filha de tocar com os dedos um cavalo branco, pois caso contrário seria mordida por este. Diz Hans: “O pai dela estava parado perto do cavalo, e o cavalo virou a cabeça (para tocá-lo), e ele disse para Lizzi: ‘Não estenda seu dedo para o cavalo branco senão ele te morde [beisst]’” (1909, p. 40 – colchetes da autora).

A esse propósito, convém sublinhar que no Langenscheidts Handwörterbuch (1987), o verbo alemão beissem apresenta duas acepções: “morder” e “picar”. Por um lado, esses atos cotejados entre si revelam a ambivalência de determinadas representações – ambivalência que aparece estratificada na palavra alemã beissen, que evoca tanto a significação de morder quanto a de picar. Por outro lado, a temática do onanismo, que Hans se esforça por eliminar, é manifesta: a excitação erógena sugere mordedura e evoca algo que pinica. O prazer obtido pela masturbação traduz-se pelo medo de Hans de que o cavalo o morda – satisfação não sem angústia, já que nesse momento ele distingue, por meio da orientação parental, uma certa relação entre o permitido e o proibido. A punição, resultado fantasmático da transgressão à norma, personifica o medo de ser devorado pelo cavalo. Norma que introduz a mãe na mesma série de componentes que constituem o proibido. Isto se confirma na fantasia de Hans, cujo conteúdo consiste em ver o genital materno, unido à angústia por ser levado a tocar seus genitais.

Pus o dedo no meu pipi [Wiwimacher], só um pouquinho, vi a mamãe despida, de camisa, e ela me deixou ver o seu pipi. Mostrei a Grete, a minha Grete, o que a mamãe estava fazendo, e mostrei meu pipi para ela. Então tirei depressa a mão do meu pipi. (...) Ela [a mãe] estava de camisa, mas a camisa era tão pequena que eu vi o seu pipi (1909, p. 42 – colchetes da autora).

De modo que o medo do cavalo mascara, segundo Freud, o desejo de ver o genital da mãe ou das figuras que representam a série materna, como a doméstica. Desejo de ver, que por estar associado com a transgressão, revela o medo de Hans em relação ao genital materno.

 

Do desejo pela mãe ao horror frente à potência da mãe

Em sua investigação, antes do surgimento da fobia, Hans comprova que o pênis dos cavalos é grande e deduz o mesmo acerca do genital materno. Isso se depreende em uma das conversas de Hans com a mãe, quando a vê desnudando-se:

Mãe: Para que você está olhando para mim desse modo?
Hans: Eu só estava olhando para ver se você também tem um pipi.
Mãe: Claro. Você não sabia?
Hans: Não. Pensei que você era tão grande que tinha um pipi igual ao de
um cavalo (1909, p. 19-20).

A pergunta sobre o sexo, movida pela pulsão, surge na criança segundo a forma de um problema em busca de esclarecimento, de acordo com os recursos simbólicos disponíveis no momento do seu desenvolvimento psico-fisiológico. Segundo Freud, em Sobre as teorias sexuais das crianças (1908), o pênis, como principal zona erógena, é o “mais importante objeto sexual auto-erótico. O alto valor que o menino lhe concede reflete-se naturalmente em sua incapacidade de imaginar uma pessoa semelhante a ele que seja desprovida desse constituinte essencial” (1908, p. 219).

Ao discernir que o tamanho do pênis é signo de potência, de virilidade, a pergunta sobre o seu sexo expressa um dos avatares da constituição do seu ser no que se refere ao desejo de saber o que ele representa para o desejo do outro. Isso se evidencia na conversa mantida com o pai a propósito da visita ao zoológico, versando sobre os genitais dos animais grandes, em específico os da girafa e do cavalo.

Pai: Você sabe por que está com medo dos animais grandes? Os animai s
grandes têm pipis grandes, e na verdade você tem medo de pipis grandes.
Hans: Mas eu ainda não vi até agora os pipis dos animais grandes.
Pai: Mas você viu o do cavalo, e o cavalo é um animal grande.
Hans: Do cavalo, sim, muitas vezes. Uma vez em Gmunden, quando a carroç a
estava parada à porta, e uma vez em frente da Agência Central da Alfândega.
Pai: Quando você era pequeno, é muito provável que tenha entrado nu m
estábulo, em Gmunden...
Hans (interrompendo): Sim, eu estava todo o dia no estábulo em Gmunden,
quando os cavalos vinham recolher-se.
Pai:...e é bem provável que você tenha ficado assustado ao ver, certa vez,
o grande pipi do cavalo. Os animais grandes têm pipis grandes e os animai s
pequenos têm pipis pequenos.
Hans: E todo mundo tem um pipi. E o meu pipi vai ficar maior quando e u
crescer; ele está preso no mesmo lugar, é claro (1909, p. 44).

Na medida em que se encontram confrontadas a premissa universal do falo (que atribui um único sexo a todos) e a percepção do genital materno, Hans apresenta um conhecimento contraditório acerca do seu próprio sexo – o que lhe produz angústia. Encontra, assim, no objeto-cavalo, o representante substitutivo daquilo que não pode serligado libidinalmente. É o temor à castração que retroage como dúvida em relação a seu próprio sexo, e que o conduz reciprocamente à dúvida em relação ao sexo da mãe.

Contudo, além de expressar o medo de ser mordido pelo cavalo, Hans afirma: “O cavalo vai entrar no quarto” (1909, p. 35). Como explicar o medo de que o cavalo entre no dormitório? Em Sobre as teorias sexuais das crianças, Freud menciona que a representação da mulher com pênis retorna no sonhar adulto, e produz tanto o fim do sonho, como da excitação unida a ele. E agrega:

Se um indivíduo na infância “fixa” essa idéia da mulher com um pênis, tornar-se-á, resistindo a todas as influências dos anos posteriores, incapaz de prescindir de um pênis no seu objeto sexual, e embora em outros aspectos tenha uma vida sexual normal, está fadado a tornar-se um homossexual, indo buscar seu objeto sexual entre os homens, que devido a características físicas e mentais, lembram a mulher (1908, p. 219-220).

O estabelecimento das teorias sexuais infantis que governam as atividades sexuais da criança perfila-se desde o ponto de vista da “origem” e da “diferença dos sexos”. Assim, o menino desmente a diferença anatômica dos sexos por ser inconciliável com o suposto sobre a aparente igualdade dos genitais. Por isso, é possível dizer que Hans é homossexual, no sentido de que não conhece a diferença entre os sexos. Nesse momento de seu desenvolvimento, é inconciliável com os desígnios de seu ego-pênis reconhecer o não-pênis, a castração e, por conseguinte, a diferença naquele ser por quem nutre uma ternura incondicional, e que exerce uma considerável influência sobre ele. Com efeito, no narcisismo fálico de Hans, o pênis aparece como uma insígnia que permite manter sua integridade corporal. Segundo Laplanche (1980b, p. 70), essa integridade fálica-narcisista, que inclui o pênis como zona privilegiada, apresenta uma noção correlativa, a saber, a de ferida (narcisista): ante a ameaça de castração, a imagem totalizada que o sujeito tem de si mesmo desestruturase, produzindo angústia.

Talvez o fato de representar a mãe como portadora do pênis tenha produzido em Hans um certo horror, na medida em que atribui a ela uma potência que supera o entendimento do menino sobre a função que a mãe exerce frente a ele, e pelo discernimento propria-mente dito acerca das funções do gênero feminino.

A ameaça de castração proferida pela mãe, quando o viu tocar com a mão o pênis, assinala um discurso que Hans desconhece: a mãe, além de tutelá-lo, é potencialmente capaz de despojar-lhe de sua identidade. A mãe diz: “Se fizer isso de novo, vou chamar o Dr. A. para cortar fora seu pipi. Aí, com o que você vai fazer pipi?”. O menino responde: “Com o meu traseiro” (1909, p. 17).

De modo que o medo do cavalo entrar no dormitório pode ser traduzido pela possível invasão dessa mãe castradora em seu ego. Essa influência ameaçadora e excitante da mãe deve ser situada na mesma série dos aspectos não traduzidos da própria pulsão de Hans, que busca alcançar a satisfação. Ocorre que a mãe deixou de ser familiar para ele e, se era objeto de desejo, passa a ser objeto de angústia.

Revela-se, então, que todas as ilações realizadas por Hans remetem à ameaça de castração proferida pela mãe, re-significada a posteriori como “medo [Angst] de ter de perder essa preciosa parte do seu ego” (1909, p. 45 – colchetes da autora), bem como aos significantes que compõem o complexo de castração, como a comparação entre o animado e o inanimado, ou entre o pênis dos animais grandes e dos pequenos.

 

O lugar que ocupa o pai e a função que cumpre o “professor”

A relação entre transgressão e proibição não se limita à angústia produzida pela ternura incondicional de Hans em relação à mãe, mas denota o caráter sobredeterminado do sintoma. Dito em outros termos, é possível reunir no sintoma do cavalo duas séries de pensamentos inconscientes diferentes entre si: um relacionado com a figura materna (tal como assinalado anteriormente), e o outro relacionado com a figura paterna (como analisado nas próximas linhas).

O fato de Hans freqüentar o quarto dos pais todos os dias personifica a situação edípica: o pai funciona como interditor do desejo do menino em permanecer na cama com a mãe, proibição nem sempre levada a sério, dado que a mãe permite a aproximação do menino.

Desta forma, Hans confronta-se com outro elemento reprimido, ao especificar que o tipo de cavalo que lhe desperta medo é aquele que leva algo negro na boca, e que Freud relaciona com o bigode do pai. Estes são os elementos que deslocam a significação do sintoma do cavalo à figura paterna. Isso não significa que o sintoma fóbico seja caracterizado por uma infinidade de interpretações; tampouco implica conceber a sobredeterminação como uma independência das diversas significações de um mesmo elemento do complexo sintomático. De modo que a angústia frente ao pai traduz-se pela angústia diante dos cavalos e pelo desejo edípico de Hans de dormir com a mãe – angústia com ambivalência de sentimentos.

Revela-se então outra série associativa inaugurada pelo medo dos cavalos, que inclui um novo componente – o pai, temido e amado –, perfilando-se a situação edípica clássica: Hans teme ao pai por amar a mãe. Freud, por sua vez, exerce uma função estruturante para o menino, na medida em que é a partir do encontro com o “professor” que a fobia de Hans se desprende de uma única representação e encontra diversos elementos para se fixar. Se antes Hans era conduzido pelo pai e por Freud, agora dirige o tratamento e menciona outros detalhes da sua fobia, que até o momento estavam obscurecidos.

Depois da visita a Freud, Hans mantém uma conversa com o pai, em que revela toda a ambivalência de sentimentos em relação a este, unido a uma corrente de ternura de traço homossexual. Pela manhã, Hans aproxima-se do quarto dos pais. O pai pergunta:

Pai: Então por que hoje você veio?
Hans: Quando não tiver mais medo não virei mais.
Pai: Então você vem para junto de mim porque está assustado?
Hans: Quando não estou com você eu fico assustado; quando não estou
na cama junto com você, então fico assustado. Quando eu não estiver
mais assustado eu não venho mais.
Pai: Então você gosta de mim e se sente aflito quando está na sua cama,
de manhã? E por isso é que você vem para junto de mim?
Hans: Sim. Por que é que você me disse que eu gosto da mamãe e por isso
é que fico com medo, quando eu gosto é de você? (1909, p. 53).

Segundo Freud (1909, p. 54), por um lado observa-se o medo de seu pai, dada a hostilidade que Hans nutre por ele, o interditor de seu desejo em relação à mãe; por outro, observa-se o medo por seu pai, devido à ambivalência de sentimentos. Assim, parece lícito deter-se na função que cumpre o pai de Hans na situação edípica. Em virtude de sua hostilidade em relação ao pai, e do desejo de que este vá embora, Hans sente angústia por desejar eliminar o pai para ficar com a mãe.

A fantasia da girafa mostra que Hans pode defrontar-se, pelo menos parcialmente, com o complexo de castração.

De noite havia uma girafa grande no quarto, e uma outra, toda amarrotada; e a grande gritou porque eu levei a amarrotada para longe dela. Aí ela parou de gritar; então eu me sentei em cima da amarrotada (1909, p. 47).

Essa fantasia expressa as moções pulsionais de Hans em relação aos pais, representadas pelas girafas. O pai relaciona corretamente essa fantasia com os episódios em que Hans vai à cama parental para mimar a mãe e ser mimado por ela, apesar da oposição paterna. O que, em outros termos, revela que Hans não foi totalmente excluído do circuito parental.

O relato de duas fantasias de transgressão (1909, p. 51) – uma que consiste em ultrapassar os limites de um espaço proibido, e outra em romper a janela do trem – confirma esta hipótese. Pai e filho apresentam-se como transgressores e cúmplices, detidos pela ação de um terceiro componente que representa a autoridade. Revela que o pai de Hans exerce mais a função de um companheiro de jogos, de fantasias, do que de um representante da norma que profere a proibição do incesto. De tal forma que, em ambos os casos, existe sempre um terceiro, a autoridade, para exercer a função do pai. Outra cena, cujo conteúdo consiste em agredir o pai (1909, p. 52), mostra em Hans a necessidade de ajustar a figura paterna além da figura de cumplicidade. Na medida em que o pai não se ajusta ao mito, a formação do sintoma aparece como o substituto que busca completar e dar um sentido a essa função cumprida somente em parte, ou seja, a esse pai pouco temível, deslocando esta demanda ao animal. Como Freud menciona, antes não havia enfermidade; esta aparece somente quando se efetua o deslocamento de investimento, do pai ao cavalo. A partir dessa perspectiva, o encontro com Freud permite, tanto ao pai quanto ao menino, organizar os elementos que estavam dispersos em busca de significação.

 

O desprendimento da atividade associativa

A partir daí, o menino pode estabelecer uma série de associações sobre sua fobia. Hans tem medo das carroças, de carroças de mudanças, do ônibus, dos cavalos grandes que têm uma coisa preta na boca, que mordem e caem. Diz que pegou a “bobagem” (Dummheit; 1909, p. 59), palavra com a qual nomeia sua fobia, ao ver um cavalo cair, o que representa o desejo de que o pai caia e morra. Os cavalos de carga pesada e os que se colocam em movimento também são objetos de medo. Este aspecto relaciona-se com a separação: do medo frente à perda dos pais; do desejo, não sem culpa, de que o pai vá embora e deixe-o sozinho com a mãe; da angústia de se ver levado a abandonara relação dual com a mãe, pela do Édipo; e por renunciar à sua primeira eleição de objeto e ao amor parental, para escolher outro objeto sexual. Perfilam-se os elementos que revelam a sobredeterminação do sintoma, a saber, o entrecruzamento das significações em determinados pontos, tal como revelam as associações. O sintoma fóbico ofereceria, assim, os sinais do cruzamento de diversas significações.

Tal como Freud assinala na Interpretação dos sonhos, o sintoma histérico “só se desenvolve quando as realizações de dois desejos opostos [o desejo do ego, o repressor, e o desejo do inconsciente, o reprimido], cada qual proveniente de um sistema psíquico diferente, conseguem convergir numa única expressão” – ou seja, mediante uma formação de compromisso (1900 [1899], p. 598 – colchetes da autora).

Hans sintetiza, a posteriori, o motivo pelo qual parece ter contraído a enfermidade com outra cena, a da caída de Fritzl, seu companheiro, quando brincava de cavalos.

Hans: Os cavalos estão tão orgulhosos que eu tenho medo de que eles caiam.
Perguntei-lhe [pai] quem é que era realmente tão orgulhoso.
Hans: É você, quando eu venho para a cama com mamãe.
Pai: De modo que você quer que eu caia?
Hans: Sim. Você teria que estar nu (significando “descalço”, como Fritz l
estava) e ferir-se contra uma pedra e sangrar, e então eu poderei fica r
sozinho com a mamãe um pouquinho pelo menos. Quando você volta r
ao nosso apartamento eu poderei fugir rápido para que você não veja.
Pai: Você se lembra quem foi que se feriu contra a pedra?
Hans: Sim, foi Fritzl.
Pai: Quando Fritzl caiu, o que foi que você pensou?
Hans: Que você deveria bater na pedra e cair.
Pai: Então você gostaria de ir ficar com a mamãe?
Hans: Sim.
Pai: A respeito de que eu realmente repreendo você?
Hans: Não sei. (!!)
Pai: Por quê?
Hans: Porque você está zangado.
Pai: Mas isso não é verdade.
Hans: Sim, é verdade. Você está zangado. Eu sei que você está. Isso te m
que ser verdade (1909, p. 90-91 – colchetes da autora).

A relação entre a cena da caída de Fritzl com a cena da queda do cavalo (1909, p. 58-60) se une com o desejo verbalizado de que o pai seja ferido para que Hans fique com a mãe.

Os cavalos grandes, de carga pesada, de carroças ou de ônibus, e que também esperneiam com os pés, remetem ao tema do complexo excrementício ou do Lumpf, tal como Hans costuma nomear seus excrementos. Assim como o jogo dos cavalos, que anteriormente lhe produzia prazer e agora é motivo de angústia, tudo o que lhe faz lembrar os excrementos lhe produz asco. As calcinhas negras da mãe, o negro na boca dos cavalos, que Freud associa ao bigode do pai, se enlaçam com este complexo.

Nesta mesma ordem de considerações, o tema da gravidez da mãe e do nascimento de Hanna reflete suas dúvidas sobre a fábula da cegonha. Tanto o complexo do Lumpf como o tema do nascimento se entrecruzam, visto que uma das teorias, que não somente Hans como também as demais crianças sustentam, consiste em conceber o nascimento do mesmo modo que a defecação. Por outro lado, os cavalos que caem remetem não somente ao desejo de eliminar o pai, mas também Hanna, pela qual mostra uma ternura exagerada: o medo de tomar banho na banheira grande substitui o desejo de que sua irmã caia na banheira; desejo não sem culpa e discernido como algo proibido. Unindo o tema do nascimento com o complexo excrementício, aparece Hanna como um Lumpf, de tal modo que as diversas séries entre o cavalo, o pai, a mãe e a irmã conduzem ao enigma do nascimento, objeto de preocupação de Hans, e nutrido antes do aparecimento da fobia. As carroças, as carroças de mudanças, os ônibus, e em todos os casos, os que levam uma carga pesada, representam a cesta da cegonha, ou seja, simbolizam a mãe deitada no momento do parto.

A partir dessa perspectiva, Hans busca ajustar os componentes desta trama – o pai, a mãe e a irmã –, de acordo com o papel que cada um deles exerce na procriação e no nascimento, para então dar conta da sua nova posição como sujeito. Apesar de trilhar o caminho que o levará ao reconhecimento da diferença dos sexos, desconhece a existência da vagina. Por isso, inclui-se na série dos que podem parir, mas ao mesmo tempo apresenta dúvidas quanto à função do pai.

 

Obstáculos ao livre curso da pulsão de saber

O corpo da criança como fonte de diversas excitações erógenas sustenta-se no auto-erotismo, de tal maneira que o circuito da pulsão fecha-se aos outros objetos. Por um lado, os meios que a pulsão sexual busca para alcançar sua meta, definida como prazer de órgão, revela que a criança carece de uma imagem totalizada do seu próprio corpo. Por outro, as possibilidades que a criança tem para se auto-abastecersão limitadas: o período que precede a entrada no complexo de Édipo dá ênfase não somente ao descobrimento já consolidado das zonas erógenas da boca e do ânus, mas também a uma certa escassez de zonas erógenas por descobrir.

A pulsão de saber vai se perfilar como complemento da atividade sexual da criança, dado que irá impulsioná-la a se dirigir a outras pessoas na qualidade de objetos. Essa pulsão, considerada por Freud nos Três ensaios (1905, p. 183) como a sublimação da pulsão de domínio, não surge de modo espontâneo ou de uma necessidade inata; segundo Freud, talvez seja despertada pelos problemas sexuais, mantendo-se latente até o encontro com um determinado acontecimento desestabilizador – como o nascimento de um irmão.

Esse acontecimento, inédito para a criança, altera sua segurança em relação ao amor parental, mobilizando-a a estabelecer uma série de interrogantes vinculados com a nova posição que ocupará frente aos pais. O ciúme destaca-se dentre os sentimentos convocados, pois é a partir de seu estabelecimento que a pulsão dar-se-á por conhecer. Na presente observação, a gravidez da mãe e o nascimento da irmã impulsionam Hans no momento de seu desenvolvimento psíquico em que as pulsões genitais estão no seu apogeu, tal como nos lembra Guignard (1993, p. 1694)6, estabelecendo alguns interrogantes que, longe de encontrar uma resolução imediata, são utilizados como defesa frente à perda do amor parental, e refletem uma forte ambivalência de sentimentos. Dessa maneira, produz-se um conflito psíquico centrado na noção de saber, que o conduz a questionar a tutela parental e o lugar específico que ocupa em relação ao desejo dos pais.

Por um lado, esse conflito traduz-se com a introdução de um discurso que não satisfaz sua demanda, já que Hans percebe a natureza inverossímil em comparação às suas vivências. Por outro lado, esse discurso sugere que algo lhe foi ocultado, delimitando a fronteira entre o saber dos adultos e o da criança, tal como revela a explicação sobre a gravidez da mãe frente à percepção da realidade dos fatos, assim como o esclarecimento dado pelos pais sobre o nascimento de Hanna – a fábula da cegonha.

Com efeito, um dos obstáculos de Hans para dar livre curso à pulsão de saber está nos esclarecimentos parciais dados pelos pais, que em lugar de ajudá-lo a conter e elaborar sua excitação sexual, parecem incitar a manutenção da falta de sentido. Talvez porque eles fossem os que verdadeiramente viviam uma problemática sexual, tal como conjectura Bercheret (1983, p. 903). A ameaça de castração proferida pela mãe apresenta-se como um ataque contra o desejo de pensar de Hans, “desejo colocado em equação simbólica inconsciente com o desejo sexual deste”, tal como assinala Guignard (1993, p. 1697 – tradução da autora).

Como conseqüência, produz-se um vazio que ele deverá completar com suas suposições. Afinal, é ele que demanda conhecimento acerca das funções genital e reprodutora, mesmo que o explicado seja muito distinto daquilo que deseja saber. Mas, ao mesmo tempo em que deseja conhecer, desconhece a princípio qual é sua nova posição em relação ao desejo dos pais e ao nascimento da irmã.

Por outro lado, segue de acordo com seu desenvolvimento psíquico a operação lógica de dicotomizar o que observa (presença e ausência de pênis), mas também busca submeter à prova da percepção os aspectos conceituais que não necessariamente se reduzem a uma lógica perceptiva, tal como assinala E. D. Bleichmar (1997, p. 97). As teorias sexuais infantis surgem nesse contexto, não sem confusões e ambigüidades, apresentando um certo grau de conhecimento pré-consciente das diferenças sexuais: “Estas confusões são usadas por ele [Hans] defensivamente cada vez que seu desejo entra em conflito com a realidade exterior e com as exigências dos seus objetos externos, sendo o primeiro destes o superego” (Guignard, 1993, p. 1694 – tradução e colchetes da autora).

Existe ainda um componente que não se diz, que evoca um plus incluído no que tramita pela via do narcisismo – a excitação sexual dos pais, em específico a da mãe –, e que Hans tem trabalho em metabolizar. Guignard assinala que a atmosfera de excitação sexual dos adultos deve ter representado para o menino um perigo considerável na consecução das suas investigações epistemofílicas (p. 1694). Nesta mesma ordem de considerações, um autor como Bercheret (1983, p. 903) interroga-se sobre a natureza da excitação sexual em Hans, e sustenta que ele não recebeu a excitação no registro sexual, mas no registro violento da imago materna.

O não-traduzido converte-se em obstáculo. A intimidade corporal entre mãe e menino reforça não somente o desejo do segundo pela primeira, mas também castra-lhe toda possibilidade de conhecimento. Esse obstáculo de tradução conduz paulatinamente a uma dificuldade de comunicação entre a criança e os pais, a qual Hans entende em termos de perda do amor. Como adverte Guignard (1993, p. 1695), a necessidade de amor tem prioridade sobre qualquer pulsão, a partir do momento em que a criança sente que perdeu a comunicação com seus objetos primordiais.

 

A percepção da diferença

De um modo geral, é interessante assinalar que a questão sobre a diferença entre os sexos ocorreu em um segundo momento, pois o menino a considera como já sabida; pelo menos no que se refere aos traços mais perceptíveis dessa diferença, como as roupas e os costumes de cada sexo em particular; o menino a considera como um fato, além de qualquer dúvida. Sobre esse aspecto, Freud assinala, em Sobre as teorias sexuais das crianças:

Se pudéssemos despojar-nos de nossa existência corpórea e observar as coisas da Terra com uma nova perspectiva, como seres puramente pensantes, de outro planeta, por exemplo, talvez nada despertasse tanto a nossa atenção como o fato de existência de dois sexos entre os seres humanos, que, embora tão semelhantes em outros aspectos, assinalam suas diferenças com sinais externos muito óbvios. No entanto, não me parece que as crianças também tomem esse fato fundamental como ponto de partida de suas pesquisas sobre os problemas sexuais. Como suas lembranças mais antigas já incluem um pai e uma mãe, aceitam a existência destes como uma realidade indiscutível, e um menino adotará a mesma atitude em relação com a uma irmãzinha da qual separam apenas um ou dois anos (1908, p. 215).

Entretanto, é necessário considerar que no caso Hans o nascimento da irmã contribui decisivamente no processo de reconhecimento da diferença entre os sexos, na medida em que repercute em nível pulsional, produzindo ciúmes. Assim, a pulsão somente se dará por conhecer quando a criança descobrir o pênis como zona erógena, que lhe permite transpassar os limites impostos pelo seu narcisismo, para daí estabelecer um intercâmbio com o conjunto de pessoas, animais e objetos que a cercam. Nesse momento, é possível discernir que além dos costumes e das roupas, o atributo que lhe permite distinguir o sexo masculino do feminino é a presença ou a ausência de pênis. O que, em outros termos, significa encontrar no sexo a marca da sua identidade.

Hans investiga o mundo que o rodeia: os animais, os seres humanos e os objetos inanimados. Baseando-se na percepção do pênis, pode distinguir os objetos animados dos inanimados, mas recusa aplicar esse critério aos seres humanos. Formula a teoria de que todos os seres humanos têm pênis, inclusive as mulheres. Observa o genital de Hanna, mas desmente a ausência de pênis. Com efeito, não apresenta recursos simbólicos para reconhecer que a ausência de pênis deriva de uma diferença sexual. Essa parte do corpo – a última das zonas erógenas que explorou no seu período auto-erótico, e por meio da qual deixou de se auto-abastecer para dirigir-se ao mundo exterior em busca de intercâmbio – é extremamente valorizada. Tal como menciona Freud (1909, p. 17), o interesse sobre o “pipi”, não é meramente teórico, visto que conduz Hans a tocar em seu órgão genital.

Como um resto de sua excitação erógena, ele ainda mantém com seu genital um vínculo narcisista, como se sua identidade se refletisse no pênis – reconhecer a ausência de pênis implicaria em uma automutilação da própria identidade. Assim, reconhece que o “pipi” – modo pelo qual nomeia os órgãos genitais – de Hanna é pequeno, mas crescerá, na medida em que a menina cresça. Trata-se de uma forma de assegurar que seu pênis também passará pelo mesmo desenvolvimento. Em todos os momentos, a investigação funciona como comparação de seu próprio pênis com os dos animais e dos pais. Ele mesmo se agrupa entre os que têm pênis, o que mostra o começo do reconhecimento dadiferença. À medida que esse reconhecimento ocorre, o prazer de ver e de ser visto sucumbe à repressão: o prazeroso converte-se em desprazer e, mais tarde, em angústia.

Cabe ater-se, uma vez mais, ao papel que a mãe de Hans cumpre no desencadeamento da fobia. A ameaça da castração proferida por ela produz no menino um efeito desestruturador, na medida em que impossibilita o livre curso de seu pensamento. A recusa da mãe em tocar Hans genitalmente inaugura para o menino uma mãe com função ambígua, pois ao mesmo tempo em que o seduz com seus cuidados, introduz a proibição. O que, em outros termos, significa a repercussão de um discurso que Hans desconhece, que vai além daquilo que ele entende que a mãe lhe representa. Discerne, então, que as ausências da mãe referem-se ao fato de que esta deixa de ser mãe, passando a ser algo mais para alguém além dele, o pai. A partir do momento em que a mãe atua de modo distinto à expectativa de Hans, surge outro discurso, que rompe não somente com sua imagem frente ao menino, mas também com a própria imagem do menino, introduzindo-lhe a pergunta sobre si mesmo e sobre o outro. O sonho de angústia, cujo conteúdo refere-se à partida da mãe, ajusta-se com a idéia de que algo não simbolizado entrou na vida do sujeito como uma representação que insiste em existir. É nesse contexto que uma angústia de caráter mais primitivo é elaborada em angústia de castração.

É lícito assinalar que a angústia de castração sobrevém em todos os meninos, independente da constelação familiar. Vincula-se com a passagem de uma relação narcisista a uma relação de intercâmbio com o outro, precisamente em um momento caracterizado por uma certa escassez de zonas erógenas por descobrir. Em Hans, isto ocorre quando percebe que seu genital – que antes permitia se auto-abastecer sexualmente de acordo com a influência materna – agora não se ajusta mais a esta função, uma vez que a proibição da mãe sugere outras vias para satisfazer a pulsão.

Introduz-se, assim, um novo discurso para o menino, inicialmente não simbolizado, mas em vias de chegar a sê-lo. A angústia, ao mesmo tempo em que revela o encontro do menino com o novo, mostra a ausência de recursos simbólicos disponíveis para sua elaboração. Nesse sentido, fica suspensa, à espera de que a função paterna lhe possibilite uma significação. Contudo, Hans, ao mesmo tempo que não dispõe de recursos para metabolizar o clima de excitação sexual dos adultos, especialmente o que deriva da mãe, não conta com um pai que possa sustentá-lo – de modo que a dúvida frente ao que ele representa para o outro dirige-se tanto para a mãe como para o pai.

Entre os antigos recursos simbólicos disponíveis nesse momento de seu desenvolvimento psico-fisiológico – ou seja, recursos que oferecem a possibilidade de elaborar situações psíquicas até então desconhecidas (como a conflitiva edípica), e que permitem tolerar a descontinuidade provocada pela falta de significação – Hans encontrará no brincar a função curativa do seu padecimento. Trata-se de uma função não regulada por critérios de vencimento. Hans começa a brincar em todos os momentos, não como um modo explícito de dar um sentido ao não-simbolizado, mas como a forma que encontrapara circundar o vazio produzido pela falta de significação. É com a repetição no brincar que o menino entrará no mundo humano, marcado pelo reconhecimento da diferença dos sexos e das gerações. Mundo que perfila-se como móbil de intercâmbios.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Maria Nadeje Pereira Barbosa
Rua Juventus, 591 – Parque da Moóca
03124-020 São Paulo - SP
Tel.: +55-11 273-6193
E-mail: mnpbarbosa@hotmail.com

Recebido em 23/07/02
Aprovado em 07/05/03

 

 

Notas

I Doutora em Psicologia pela Universidad Complutense de Madrid; Bolsista pelo CNPq no Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP/Ribeirão Preto.
1 As citações de Freud referem-se à versão em português das Obras completas (1996), dirigida por Jayme Salomão. Contudo, quando esta apresentou alguma discordância com a versão alemã, preferiu-se traduzir entre colchetes o termo mais apropriado em português, seguido do termo alemão.
2 Nesse período, mesmo divergindo do pensamento de Havelock Ellis e Krafft-Ebing, que consideravam as perversões como aberrações do “instinto sexual”, e introduzindo a significativa tese sobre a contingência do objeto da pulsão, Freud deu início a uma frutífera relação com a Escola de Zurich, particularmente com Jung e Bleuler.
3 À diferença da neurose de angústia, o conflito que desencadeia a histeria de angústia é psíquico, e a escolha do sintoma apresenta um mecanismo elucidável.
4 Visto que em ambas a repressão consiste em separar o afeto da representação. Mas, se na histeria de angústia a libido é descarregada sob a forma de angústia, ligando-se secundariamente a um objeto, na histeria de conversão a libido é convertida em sintomas corporais.
5 Considerando que um termo sinônimo, Überbestimmt, aparece no estudo sobre as afasias, tal como menciona Strachey em Estudos sobre a histeria (Freud e Breuer, 1893-1895, p. 232, n. 1).
6 Tendo realizado pesquisas interdisciplinares sobre crianças que padecem de deficiências intelectuais, Guignard (1993) expõe duas ordens de reflexões. Primeira: “A debilidade mental leve pode ser um escudo, às vezes frágil, contra uma psicopatologia transbordante de tipo esquizofrênico (...). Em outras palavras, algumas crianças ‘são tontas para não serem loucas’”. Segunda: “A carência fantasmática [em crianças que apresentam um coeficiente intelectual normal] no período de latência é a expressão do embasamento defensivo das neuroses infantis graves que posteriormente podem se observar no adulto. Algo ocorreu, algo que castrou nestas crianças o desejo de conhecer” (1993, p. 1692 – tradução e colchetes da autora). Pois bem, Guignard se propõe a analisar estas duas ordens de reflexões no contexto do caso Hans, de modo que suas afirmações sobre o caso devem ser tomadas neste contexto peculiar.