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Temas em Psicologia
Print version ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.2 no.3 Ribeirão Preto Dec. 1994
Notas sobre a criatividade em pesquisa
Cesar Ades1
Universidade de São Paulo
1. "O que realmente importa", escreve Lakatos, a respeito de ciência, "são previsões dramáticas, inesperadas, espetaculares; algumas destas previsões, apenas, bastam para inverter a balança. Quando a teoria se atrasa em relação aos fatos, estamos diante de um programa de pesquisa pobre e degenerativo"(1978, p. 6). A ciência, como outros campos criativos, valoriza o novo, mas um novo domado, capaz de ser codificado em termos teóricos.
Nem sempre as previsões da ciência ou suas descobertas são dramáticas, inesperadas e espetaculares. Nem precisam sê-lo, sempre. O que mais vemos é uma ciência bem comportada que vai acumulando, dentro de uma metodologia aprovada e dentro do contexto dos problemas de consenso, uma informação de alcance muitas vezes restrito. Isto pode ser necessário como forma de manter a estabilidade e a verificação do conhecimento. Não se deve, contudo, deixar para um segundo plano, para depois, uma discussão sobre a relevância e a novidade possíveis da pesquisa, nem deixar de considerar como seria possível incentivar formas criativas de fazer e ensinar ciência.
Num momento em que a universidade brasileira se preocupa tanto com a produção e com a avaliação da produção acadêmica, cabe perguntar: qual a produção desejada e desejável? O risco de que a pressão leve a uma produção apenas quantitativa está sempre presente. E a preocupação com o contexto e com o qualitativo traz a questão da criatividade em primeiro plano.
2. Em que medida pode ser incentivada a criatividade em pesquisa? Heider, em suas anotações particulares (ver mais adiante), questiona-se sobre a possibilidade de o treino ou a pressão externa de recompensas e deveres conseguirem gerar desempenhos criativos,
"Para influenciar o desenvolvimento da Psicologia (social)", escreve ele, "podem-se treinaras pessoas no método, usando exemplos. Mas, treinálos em ter idéias?... Será que alguém jamais mudou um paradigma intencionalmente, será que jamais alguém numa bela manhã, decidiu: Eu vou me empenhar em mudar este paradigma ? Não se pode ser criativo por um ato de vontade; a diferença entre crescer, deixar alguma coisa crescer e produzí-la por esforço... a transpiração não é um bom adubo (Heider, 1987, item 331, p. 423; item 334, p. 425).
Indo em direção ao novo e ao relevante, a tarefa criativa não pode ter resultados previsíveis e não pode ser programada, como se programa a construção de uma ponte (estou pensando na ponte recentemente lançada sobre o rio Pinheiros, em São Paulo, iniciada ao mesmo tempo das duas margens, seus arcos se juntando com precisão a meio caminho). O esforço puro não é garantia de originalidade.
Mas não se trata, em absoluto, de sentar-se e deixar que venham as idéias mas de propiciar seu crescimento através de práticas e contextos apropriados (Alencar, 1991). Um destes contextos é o da discussão informal, como a que às vezes segue palestras ou simpósios (nunca há tempo suficiente para que a discussão se estruture!) ou surge ao redor de uma mesa de seminário, em aula ou em lugares menos acadêmicos como uma mesa de bar.
Esta forma de buscar idéias recua em nosso passado cultural (Sócrates, etc), mas há exemplos mais recentes, como as discussões de Bohr e Einstein no café da manhã ou no jantar do hotel, fora dos simpósios oficiais do Congresso Solvay. Discutiam, aliás, Gedankenexperimente, ou experiências de pensamento, uma forma muito criativa de colocar problemas físicos (Brown, 1981). Um dos artigos mais originais que eu tenha lido recentemente, escrito por Sherry e por Schacter (1987), um deles interessado por comportamento animal, o outro por seres humanos, contendo uma hipótese evolutiva original sobre os fenômenos da memória, foi pensado (como indica uma nota de pé-de-página) na cafeteria da Universidade. A idéia da revista New Ideas in Psychology veio a Pierre Moesinger e a Richard Kitchener enquanto batiam papo num café de calçada, em Genebra (Kitchener, 1993).
Não importa, na verdade, o contexto, o contexto físico (não é caso de procurar o Rei das Batidas, à saida da USP, em São Paulo, para ter idéias...) mas, sim, a espontaneidade e a convicção do debate em que cada participante, de forma mais ou menos lúdica, toma partido, critica, faz avançar a discussão através de suas colocações. O pensamento sai da esfera individual, se torna cooperativo, um pensamento a duas, a quatro, a n mãos.
O que a discussão traz é uma decentração do pensamento, uma mudança necessária do ângulo de abordagem, uma vez que cada participante (mesmo que se mantendo fiel à sua perspectiva original) tem a oportunidade de encarar o problema como outro ou outros o vêem. O debate ínter-disciplinar é especialmente propício para decentrações: do esforço de cada parte "pensar como..." as outras surgem - como tento mostrar em outro trabalho - novos objetos epistemológicos.
3. Nunca sabemos dos experimentos em que HO foi aceita (isto é, em que não foi demonstrada uma diferença estatisticamente significativa) porque não são tidos como acrescentando uma informação relevante. Tampouco sabemos dos resultados secundários ou dos ensaios-e-erros que precedem a publicação de uma pesquisa, ou das idéias mais especulativas que os autores alimentam a respeito de seu trabalho ou das controvérsias que surgiram informalmente, enquanto estava sendo elaborado. Os veículos de publicação científica suprimem estes aspectos "colaterais" e padronizam, na forma e no conteúdo, os trabalhos que veiculam: há algo de admirável na homogeneidade dos artigos de uma determinada revista, parecem ter sido escritos pela mesma pessoa, o pensamento científico liberto da idiossincrasia assume a cumulatividade que constitui, de acordo com os filósofos, seu aspecto essencial.
Em paralelo com este modo formalizado de comunicação científica, importa cultivar um jeito mais pessoal e mais arriscado. A revista New Ideas in Psychology, à qual me referia mais acima, encoraja explicitamente o pensamento de ampla abrangência, as joint ventures em áreas normalmente apartadas, a teorização exploratória, as propostas heurísticas.
Outra revista para a qual vou sempre em busca de material estimulante é The Behavioral and Brain Sciences, cujo nome já trai a intenção interdisciplinar e sintetizadora. Artigos/alvo, trazendo propostas originais em que a especulação vai par a par com a referência à base empírica, são submetidos a debate: é o filósofo, é o cientista cognitivo, é o neurofisiólogo, é o etólogo etc a darem cada um seu elogio e sua ressalva. É o debate em forma de revista.
4. Falar em criatividade faz um pouco pensar num comportamento livre de regras e quase casual. Campbell, há alguns anos, comparando a resolução de problemas à evolução por seleção natural, postulava a existência de uma "variação às-cegas-e-sobrevivência-seletiva" das idéias. Numa primeira fase, as idéias seriam produzidas, aleatoriamente, sem crítica; à segunda fase somente sobreviveriam asmáis eficientes.
Não me parece plausível a suposição de que as idéias vêm assim, ao acaso, como se fossem (mantendo a metáfora evolutiva) mutações mentais. Quando abordamos um campo de estudo trazemos junto nossos esquemas ordenadores, nossas hipóteses, nossos desejos. O contato com um fenômeno logo traz à mente hipóteses explicativas, mesmo que provisórias, patamares de onde prosseguir observando e ordenando observações.
Não se trata então de fazer tabula rasa de todas as crenças prévias, mas de querer explicitamente confrontá-las com os dados e interpretações que a observação propicia e de, também explicitamente, criar uma disposição de "brincar com as idéias", transtornando-as de várias maneiras, fragmentando-as, tentando novas sínteses, pondo-as de cabeça para baixo, vendo a possível semelhança entre aspectos diferentes, as possíveis diferenças entre aspectos semelhantes, considerando a possibilidade de que as crenças estejam erradas... e de que estejam certas.
Em seu livro instigante sobre o fazer ciência, Bohm e Peat (1987) lembram que brincar carrega a conotação de fabo. As palavras ilusão, iludir, provêm da raiz latina ludere, que significa brincar. Em português, "de brincadeira" corresponde a "de mentirinha". Seria interessante, dizem Bohm e Peat, se, em contraposição ao "brincar falso", se considerasse, um "brincar verdadeiro" em que proposições fossem emitidas, numa liberdade de manipulação conceituai, como degraus para a descoberta, não como ilusões.
5. O pensamento produtivo precisa distanciar-se do "dado" para que possa haver manipulação conceituai. Amarrado a formas imediatas, perceptuais, de organização das coisas, o pensamento permanece numa confortável passividade empirista e mal sai do descritivo. A manipulação e a transformação da informação somente é possível se, após um período suficiente de contato com as coisas, houver a adoção de uma postura de "como se", se for criado um modelo do fenômeno para ser trabalhado.
Fala-se muito mal da metáfora (os modelos são tipos de metáforas), em psicologia, ao mesmo tempo em que se usa e abusa dela. De Descartes e seus arquétipos mecânicos até a ciência cognitiva e o conexionismo de hoje com seu forte teor informático, passando pelas representações "psico-hidráulicas" de Lorenz e pelos modelos econômicos da teoria do forrageamento ótimo e muitos outros ainda, a ciência do comportamento, de forma mais ou menos explícita, tem recorrido a representações de algo por outro algo, mais simples, ou mais concatenado. O medo é que se possa confundir modelo com objeto modelado, que o não-psicológico possa indevidamente invadir a definição de psicológico.
O uso de um modelo não implica identificar os termos em jogo (a identificação trai um modo ingênuo de uso), mas sim estabelecer entre eles uma relação de equivalência, de mapeamento recíproco. Por mais que estejam envolvidas em sua brincadeira imaginativa, as crianças sempre podem pular para fora do círculo de giz do "como se". Do mesmo jeito, o cientista que sua metáfora preferida de uma forma instrumental, deve estar pronto para pular fora dela quando a pressão das discrepâncias o exigir.
A metáfora cria uma tensão entre seu conteúdo próprio e as características do domínio que ela pretende mapear. Ela é incongruente e, portanto, desafiadora. O cérebro não é um computador, mas a transmutação de um no outro ajuda a notar os aspectos do funcionamento neural que, sem esta base comparativa e sem este desafio, deixariam de ser percebidos.
6. Pensando no prazer que eu tenho sempre em observar o comportamento, seja em situação de laboratório, seja em condições de estudo de campo, verifico que ele tem a ver com o sentimento de estar em contato com algo novo acontecendo diante de mim, com o sentimento de que eu não sei o quanto eu gostaria de saber e que o indivíduo ou os indivíduos observados teimam em escapar aos meus esquemas explicativos.
A percepção dos limites do conhecimento e da capacidade de prever instaura surpresa e desejo de assimilar e fornece uma forte intuição da existência autônoma das coisas. Ao invés de laçar os fenômenos com os conceitos que já possuo, aceito abrir-me para sua novidade e deixar que me ensinem algo.
7. Se há alguma tendência forte em qualquer cientista é a de defender as idéias nas quais acrecita. A comunidade científica, do mesmo jeito, tende a proteger suas conquistas conceituais de novas propostas e mesmo de dados que impliquem discrepâncias de interpretação. As idéias correntes são as que, de uma forma ou de outra, funcionaram no passado e ainda prestam algum serviço: entende-se que não se queira mexer nelas. Há também motivos de prestígio e de espírito de grupo que fazem com que sejam preservadas estruturas de pensamento. Este saber oficial constitui uma matriz normativa, em grande parte implícita (Bohm e Peat e chamam, com felicidade, "estrutura tácita das idéias científicas") que serve de crivo para separar os problemas investigáveis dos problemas irrelevantes.
O conflito entre o status quo, a "ciência normal" (Kuhn, 1970) e as idéias novas e perturbadoras têm sido muitas vezes discutido no plano das ciências bem constituídas, como a física. Um dos exemplos clássicos da tendência inercial do pensamento é o episódio da teoria do éter, na virada do século. O físico Lorentz planejou experimentos para por à prova uma hipótese - nascida dos pressupostos newtonianos, segundo a qual a velocidade da luz deveria variar em função da velocidade do instrumento de medida em relação à fonte. Não obtendo resultados que confirmassem esta hipótese e querendo preservar os conceitos newtonianos, Lorentz (teoria do eter) imaginou que fossem devidos a um artefato, à mudança do próprio instrumento de medida em sua trajetória no éter. Aceitando, ao contrário, os resultados como válidos, e postulando a constância da velocidade da luz, Einstein conseguiu sacudir a estrutura newtoniana inercial.
Um exemplo equivalente, em psicologia, é o da descoberta de Garcia acerca do condicionamento de aversões alimentares (Garcia e Ervin, 1968). Garcia verificou que ratos que tinham lambido uma solução de sacarina de um tubo passavam a evitá-la, se, mesmo horas depois, fossem submetidos a um mal estar intenso. O intervalo entre CS (sacarina) e US (mal-estar) era longo demais - do ponto de vista da teoria vigente, formulada em termos de contiguidade -, para que o fenômeno fosse aceito como válido. O artigo de Garcia foi rejeitado pela prestigiosa revista Jornal of Comparative and Physiological Psychology, cujo editor, William K. Estes, anos mais tarde, confessou ter sido este um dos lapsos que lastimava: tinha então sido publicada uma enxurrada de trabalhos na linha desbravada por Garcia. Mas nem esta enxurrada, nem outros estudos muito relevantes evidenciando a existência de aprendizagens especializadas, típicas-da-espécie (como a aprendizagem do canto ou a memória da localização do alimento armazenado), conseguiram abalar os defensores de uma teoria geral da aprendizagem: os dados discrepantes foram assimilados, através de ajustes da teoria (Domjan, 1983). E tudo permaneceu (aparentemente) estável.
Eu até acharia positivo se casos de conflitos entre teorias fossem mais freqüentes: indicariam que, finalmente, a psicologia possui teorias. As controvérsias em psicologia se dão muitas vezes em torno de questões epistemológicas, põem em confronto atitudes diante da ciência, metodologias, e até linguagens diferentes. Não se discutem dados, mas os pressupostos que embasam estes dados e a discussão, ao invés de gerar sínteses criativas, desemboca na constatação da incomensurabilidade.
8. Tendo sempre sentido desconforto em aceitar um sistema teórico em sua inteireza (em psicologia, centram-se estes sistemas geralmente no pensamento de um estudioso ilustre). Não sou um bom seguidor. Parece-me que eu trairia o espírito de pesquisa e liberdade de criação se eu aceitasse as propostas de um cientista, por profundas que fossem, em bloco e como paradigma.
De outro lado, estabeleço uma relação muito produtiva com as idéias dos grandes teóricos, justamente a partir da não-aceitação de algumas de suas propostas. Episódios para mim marcantes, dentro desta minha trajetória de pesquisa, nasceram deste espírito de oposição. Pensar contra, acho, é um escelente exercício criativo: leva a uma dentre duas conseqüências: (1) concordar com a proposta que se quis criticar, talvez a contra gosto, mas por força de indícios colhidos; (2) encontrar pontos em que a proposta precise ser modificada ou rejeitada. Leva também às vezes a descobertas que nada têm a ver com a polêmica, mas, tanto melhor!
Um ponto de instigação meu teve a ver com o papel do reforço ou da recompensa como fator de aprendizagem. Sempre achei de uma enorme simplificação a idéia de uma ação automática da recompensa sobre o comportamento do qual é conseqüência e sempre achei importante levar em cortiãfatores contextuais, capazes de até inverter sua influência. Numa pesquisa feita numa pré-escola, em condições muito próximas do "natural", Paula Gomide (Gomide e Ades, 1991) ofereceu uma recompensa tangível - um confeite de chocolate - a crianças pequenas, para que brincassem com os brinquedos do pátio (escorregador, gira-gira etc:), comportamento este que já executavam em nível bastante elevado. Recompensadas por executarem algo de que já gostavam, as crianças demonstraram, subsequentemente, brincar menos do que na linha de base. O resultado, que vai na linha de uma série de pesquisas na área de motivação intrínseca, não constitui necessariamente um desmentido à idéia de que a recompensa é importante como elemento organizador do desempenho, simplesmente a relativiza. No artigo sobre a pesquisa, interpretamos o decréscimo da brincadeira como um efeito de contraste de incentivo. Outro ponto instigador nasceu de minha reação à insistência com que a etologia clássica atribuía fixidez aos padrões fixos de resposta. Também me incomodava o caráter totalmente estereotipado, segundo Lorenz uma característica da parte consumatório do comportamento instintivo. Vários trabalhos meus, tal como os interpreto a posteriori, foram uma anti-demonstração, a descoberta de flexibilidade no seio do desempenho rígido. O último e talvez o mais espetacular, apresentado na XXIII Congresso Internacional de Etologia (Ades, Cunha e Tiedemann, 1993) é o trabalho de Selene Cunha em que se descobrem indícios de efeitos da experiência passada na construção da teia geométrica da aranha.
Mas acho que também pensar a favor pode ser um excelente exercício criativo.
9. A criatividade se desenvolve num contexto de identificação do cientista com o problema que o preocupa. Poucas vezes é mencionada esta subjetivização necessária: o cientista efetua uma busca dentro de seu próprio conhecimento, examina as noções que já possui e as combina e organiza de muitas maneiras, chegando, através desta manipulação, não necessariamente lógica, a novas perspectivas. Os problemas examinados se tomam tão presentes e prementes quanto os da vida pessoal.
A esta espécie de diálogo interno correspondem os "diários científicos", anotações provisórias que o cientista lança em seu caminho de tentar compreender. Entre estes, cito as anotações de Darwin que revelam o quanto ele podia ser arrojado em certas questões, em comparação com suas posições públicas, e o diário científico do antropólogo Lévy-Bruhl em que podemos seguir suas mudanças de pensamento acerca da lógica "primitiva".
No campo psicológico, temos dois exemplos notáveis: o de Skinner (1981), anotador contumaz (dizem que chegava a deixar um gravador do lado de sua cama, para registrar as idéias que por ventura lhe ocorressem, no meio da noite) e o de Heider (1987), psicólogo social influente, cujas idéias sobre relações interpessoais Dante Moreira Leite foi o primeiro a divulgar entre nós. A partir de suas relexões e Denkoersuche, ou seja, experimentos mentais, Heider tirava idéias que ele lançava em pedaços de papel ou em cadernos, em forma de aforismos, recortando depois as anotações e classificando-as, elaborando às vezes um pequeno ensaio a respeito que ia inserido entre as outras notas. A Marijana Benesh-Weiner que se empenhou em editá-las, ele escreveu a respeito das anotações: "Eu digo de cada uma delas" sim, sim, isto é verdade", e tenho uma vaga idéia do que poderia ser feito com ela. Para mim são como tijolinhos que ganham sua importância da visão vaga dos prédios que ainda não estão construídos... Mas será que uma pessoa que não tenha vivido com elas... as tomaria seriamente como pertencentes à ciência?" (Heider, 198, XXV-XXVI).
Esta epistemologia "introspectiva", que faz continuidade com as discussões informais de corredor de departamento ou de saguão de congresso, tem mais liberdade (as notas lançadas estão à salvo da crítica alheia) e mais rigor (mas não estão à salvo da crítica do próprio estudioso). Ela não se aliena dos conceitos e teorias da ciência formal, ao contrário, os retoma sempre, mas de uma forma mais solta, permitindo que se formem associações diversas, indo além.
Nos notebooks de Skinner, por exemplo, a idéia de reforço é retomada a cada passo, não em simples enunciação mas como instrumento de questionamento. "Por que têm as pessoas feito estátuas e pinturas do corpo humano por milhares de anos? ", escreve Skinner, "Presumivelmente porque o corpo humano é bonito no sentido de ser reforçador. Olhar para o corpo humano é reforçado pelo que agente vê. Mas por quê? É o valor de sobrevivência a explicação? Alguns aspectos da beleza feminina em nossa cultura parecem não ter relação alguma com a sobrevivência. Como pode uma pele pálida e delicada, sujeita e machucados, vulnerável ao vento e ao sol, ter valor de sobrevivência?" Skinner, 1981, p. 69). Lembro-me ter justamente discutido, há alguns anos, a questão do valor biológico da beleza, com um colega zoólogo da Costa Rica, William Eberhard. A uma observação minha, de que a beleza estaria relacionada com vigor e juventude, ele me fez lembrar que havia mulheres pálidas e frágeis e encantadoras. Estávamos, sem o saber, nas pegadas de Skinner.
É interessante que tanto Skinner como Heider tenham procurado, embora de modo diferente, resgatar a experiência psicológica corriqueira. Ambos questionam-se acerca do comportamento de pessoas comuns (às vezes, eles próprios) em ambientes comuns e ambos tiram de pequenas anotações à margem da vida material para suas teorias. Este retorno ao comportamento "natural" me parece fundamental como fonte de idéias psicológicas. Nós simplesmente não vimos tudo o que tem a ver, em matéria de comportamento individual e de interações, aí nos contextos mais comuns. Talvez tenha a física progredido a ponto de quase não depender tanto da observação corriqueira, talvez esteja num nível em que só contem os registros precisos feitos sob controle experimental. Como psicólogos, ainda estamos longe, contudo, de ter esgotado o campo descritivo e, mesmo quando construímos modelos teóricos (abstratos e necessariamente afastados do senso comum) temos de sempre calibrar nossas idéias em confronto com o nível dos fenômenos sociais imediatos.
Era a convicção de Heider que, nas concepções corriqueiras acerca dos fenômenos interpessoais, há uma psicologia implícita, a ser desvendada antes (ou pari passu com) a análise propriamente científica. "A Psicologia", escreve ele em 1958, "deveria desenvolver-se gradual e organicamente a partir de sua base de teoria implícita e não deveria liberar-se prematuramente da forma intuitiva e implícita de pensar o comportamento"(p. 295).
Referencias Bibliográficas
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