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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.16 no.1 Ribeirão Preto June 2008

 

ARTIGOS

 

Transtorno de personalidade anti-social e transtornos por uso de substâncias: caracterização, comorbidades e desafios ao tratamentoI

 

Antisocial personality disorder and substance use disorder: characterization, comorbidities and challenges in treatment

 

 

Janelise Bergamaschi Paziani CostaI; Nelson Iguimar ValerioI-II

I Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
II Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar apontamentos da literatura a respeito do Transtorno de Personalidade Anti-Social e sua relação com o Transtorno por Uso de Substâncias. Os restritos dados indicam a coexistência de ambos em parcela significativa da população geral, clínica e penitenciária, entretanto, ainda não demonstram informações conclusivas sobre quais os tipos de associações. Indivíduos com Transtorno por Uso de Substâncias, geralmente são subdiagnosticados para o Transtorno de Personalidade Anti-Social; os tratamentos são realizados isoladamente e não consideram a co-ocorrência destes. Por suas características e campos de abrangência, o modelo baseado na teoria cognitivo-comportamental, que já contribui no tratamento de cada um, isoladamente, poderá ser um recurso relevante na abordagem simultânea de ambos os transtornos. Entretanto, há necessidade de mais pesquisas na área e atenção dos profissionais da saúde para a intervenção concomitante dos mesmos.

Palavras-chave: Personalidade, Transtorno de Personalidade Anti-Social, Drogas, Transtornos por Uso de Substâncias, Terapia Cognitivo-Comportamental.


ABSTRACT

The current work aims at presenting data from the literature in respect to Antisocial Personality Disorder and its relationship with Substance Use Disorder. The scarce data indicate coexistence in a significant percentage of the general, clinical and penitentiary public however conclusive information about which types of associations exist has not been demonstrated. Individuals with Substance Use Disorders are generally underdiagnosed for Antisocial Personality Disorders; patients are treated for these diseases in isolation and coexistence is not considered. Because of its characteristics and wide-ranging approach, the model based on the cognitive-behavioral theory, which already contributes to the individual treatment of disorder, may be a relevant resource in a simultaneous approach to both of them. However, further research in the area is necessary as it is the awareness of healthcare professionals to concomitant intervention for both diseases.

Keywords: Anti-social personality disorder, Drugs, Illegal substances disorder, Cognitive-behavioral theory.


 

 

Transtorno de Personalidade Anti-Social

Os Transtornos de Personalidade (TP) – incluindo o Transtorno de Personalidade Anti-Social (TPAS) - foram introduzidos como categorias diagnósticas na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-III), publicada nos anos 80, sendo, a partir desse momento, seu conceito ampliado e refinado (Pereira, Aparício, Felício, & Bassit, 2007). Entretanto, ainda hoje, os termos TPAS, psicopatia, sociopatia e transtorno de caráter se confundem, ora sendo utilizados como sinônimos, ora diferenciados no espectro dos comportamentos anti-sociais.

Faz-se necessário esclarecer que existem diferentes graus de conduta anti-social, variando desde: 1) comportamentos anti-sociais menos prejudiciais, por serem esporádicos e influenciados pelo ambiente; 2) comportamentos anti-sociais mal-adaptativos, demonstrados no TPAS ou em outros Transtornos de Exteriorização; e 3) condutas mais extremas observadas nas psicopatias. Desta maneira, pode ser dado a um indivíduo um diagnóstico de TPAS, sem que esse apresente psicopatia, da mesma forma que um psicopata pode não ter critérios suficientes para o diagnóstico de TPAS (Del-Ben, 2005; Gabbard, 2006)1.

Atualmente, o Transtorno de Personalidade Anti-Social (TPAS) caracteriza-se, segundo o DSM-IV-TR (APA, 2002), como um padrão global de desrespeito e violação dos direitos de outrem. Para o diagnóstico de TPAS, o indivíduo precisa ter, no mínimo, 18 anos de idade e preencher três dos seguintes critérios:

“(1) incapacidade de adequar-se às normas sociais com relação a comportamentos lícitos, indicada pela execução repetida de atos que constituem motivo de detenção;

(2) propensão para enganar, indicada por mentir repetidamente, usar nomes falsos ou ludibriar os outros para obter vantagens pessoais ou prazer;

(3) impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro;

(4) irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas;

(5) desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia;

(6) irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em manter um comportamento laboral consistente ou de honrar obrigações financeiras;

(7) ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido, maltratado ou roubado alguém” (APA, 2002, p. 660).

Além dos critérios apresentados, para que o diagnóstico seja validado, há necessidade de serem observadas evidências de Transtorno de Conduta (TC), com início antes dos 15 anos de idade e de ser excluída a possibilidade de que a ocorrência do comportamento anti-social não se dê exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou episódio maníaco (APA, 2002).

O Transtorno de Conduta (TC) é caracterizado como “um padrão repetitivo e persistente de comportamento no qual são violados os direitos individuais dos outros ou normas ou regras sociais importantes próprias da idade” (APA, 2002, p.124). Tais comportamentos desadaptativos são agrupados em quatro eixos: 1) agressão a pessoas e animais; 2) destruição de patrimônio; 3) defraudação ou furto; e 4) sérias violações de regras (APA, 2002).

Assim, as estratégias hiperdesenvolvidas (excessos comportamentais) em indivíduos com TPAS são: combatividade, exploração, predação, mentira, manipulação, ameaça, resistência ao controle dos outros e ação impulsiva, enquanto as subdesenvolvidas (déficits comportamentais) são: empatia, reciprocidade e sensibilidade social, bem como cooperação com os outros, seguimento de regras sociais e pensamentos sobre as conseqüências de seus atos (Baptista & Morais, 2003; Beck, 2007).

Desta maneira, pode-se dizer que, em indivíduos com TPAS, predomina a indiferença pelos sentimentos alheios - demonstrada por meio de comportamento cruel, cinismo, mentira – o desprezo por normas e obrigações, a baixa tolerância à frustração, a impulsividade e o baixo limiar para a manifestação de atos violentos (OMS, 1993). O TPAS também está associado ao suicídio e aos comportamentos de correr riscos (Guy, Poythress, Douglas, Skeem, & Edens, 2008).

Diversos estudos demonstram que o padrão anti-social é mais comum no sexo masculino (Pacheco, Alvarenga, Reppold, Piccinini, & Hutz, 2005; Gabbard, 2006; García & Junior, 2008). Pesquisas que abordam as diferenças de gêneros indicam maior probabilidade de violência para os homens, quando comparados às mulheres, sendo eles mais expostos ao uso perigoso de bebida alcoólica, dependência de substâncias e TPAS. Mulheres são mais expostas a riscos de transtornos de afetividade e ansiedade (Yang & Coid, 2007) e exibem altos níveis de internalização e baixos níveis de externalização, se comparadas aos homens (Kramer, Krueger, & Hicks 2008).

A possível prevalência do Transtorno de Personalidade Anti-Social, segundo o DSM-IV-TR, é de 3% em homens e 1% em mulheres em amostras comunitárias, sendo que, em situações clínicas, pode chegar a 30% (APA, 2002). Já em contextos penitenciários e de reabilitação de delinqüentes juvenis, TC e TPAS são uns dos transtornos mentais mais verificados entre a maioria dos que ali se encontram (Assadi et al., 2006; Chapman & Cellucci, 2007; Dembo et al., 2007; Elonheimo et al., 2007).

Várias pesquisas investigam influências genéticas e neurobiológicas no TPAS (Vanconcellos & Gauer, 2004; Del-Ben, 2005; Cordey et al., 2008; Oliveira-Souza et al., 2008; Pajer et al., 2008). Gabbard (2006) expressa, em seus escritos, que fatores biológicos - como baixos níveis de ácido 5-hidroxiindolacético (5-HIAA) e resposta diminuída do sistema nervoso autônomo - e genéticos - como o polimorfismo funcional no gene responsável pela enzima neurotransmissora metabolizada da enzima monoamina oxidase-A (MAO-A) - contribuem para a etiologia desse transtorno.

Já Kirisci, Tarter, Mezzich e Vanyukov (2007), em estudo longitudinal com garotos nas idades de 10-12 a 22 anos, demonstraram que características individuais (como comportamento neurológico desinibitório) em conjunto com fatores contextuais (como baixo status socioeconômico, transtornos por uso de substâncias por parte de seus pais e afiliação a amigos com condutas desviantes), promovem a anti-sociabilidade na adolescência e a alta taxa de transtornos por uso de substância por esses jovens na vida adulta.

Sobre essa visão desenvolvimentista do comportamento anti-social, pode-se também citar Pacheco et al. (2005) que confirmaram o risco aumentado de crianças com TC apresentarem TPAS no futuro. Observaram que práticas educativas e disciplinas ineficazes, em ambiente que permita a ocorrência de atos anti-sociais, são fatores importantes que favorecem a evolução de um transtorno para o outro.

Destarte, apesar de o TPAS ser o único transtorno de personalidade que não pode ser diagnosticado na infância, necessita de uma evolução durante a história de vida dessas pessoas (Burke, Loeber, & Lahey, 2007; Loney, Taylor, Butler, & Iacono, 2007).

Desta forma, evidencia-se que, apesar de a etiologia do TPAS não ter sido definitivamente esclarecida (Vanconcellos & Gauer, 2004), o aparecimento do transtorno não procede de um fator isolado e a ligação entre vulnerabilidade genética e aspectos psicossociais adversos é claramente favorável ao surgimento de condutas e transtornos anti-sociais (Del-Ben, 2005), sendo esses os preceptores para outros problemas, como o consumo de tabaco, álcool e drogas ilícitas e até mesmo a prisão, como demonstram Pacheco (2005), Gabbard (2006), Grekin, Sher e Wood (2006), Kaplan-Sadock (2007) e García e Junior (2008).

Transtornos por Uso de Substâncias

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV-TR (APA, 2002) utiliza a terminologia “Transtornos Relacionados a Substâncias” para designar tanto os efeitos de medicamentos e exposição de toxinas quanto os transtornos por consumo de drogas de abuso. Assim, essa ampla categoria é dividida em dois grupos: Transtornos Induzidos por Substância (que inclui Intoxicação com Substância, Abstinência de Substância, Delirium Induzido por Substância, Demência Persistente Induzida por Substância, Transtorno Amnéstico Persistente Induzido por Substância, Transtorno de Ansiedade Induzido por Substância, Disfunção Sexual Induzida por Substância e Transtorno do Sono Induzido por Substância) e Transtornos por Uso de Substâncias (é subdividido em Dependência de Substâncias e Abuso de Substâncias)2.

Pode-se observar, tanto na Dependência de Substâncias quanto no Abuso de Substâncias, um padrão de uso mal-adaptativo que gera prejuízos clinicamente relevantes, principalmente aos sistemas cognitivo, fisiológico e comportamental. A diferença essencial entre esses dois grupos está na manifestação da tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo da droga, apresentados exclusivamente no diagnóstico da Dependência de Substâncias, como demonstrado no Quadro 1.

 

Quadro 1: Critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-VI-TR para Dependência de Substância e Abuso de Substância.

 

Segundo pesquisadores da área, o consumo de drogas acarreta inúmeros danos físicos (como presença de vasculites, hemorragias subaracnóides, enfartes cerebrais, alterações no fluxo sangüíneo cerebral, perda de peso e desnutrição); cognitivos (como dificuldade de reter novas informações, prejuízo da memória de fixação, alterações na forma do pensamento) (Rangé & Marlatt, 2008); psicológicos; familiares; e sociais, estando, por vezes, associados à criminalidade, ao baixo rendimento escolar e aos prejuízos no trabalho e nas relações interpessoais (Castro, 2004; García & Junior, 2008).

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o consumo de substâncias psicoativas (p. ex.: álcool, opióides, canabinóides, sedativos, cocaína, anfetaminas e outros estimulantes, cafeína, alucinógenos, nicotina e inalantes) é um problema crescente em todo o mundo (Fontana, 2005; Rangé & Marlatt, 2008).

Estima-se que existam cerca de 40 milhões de usuários dependentes espalhados pelo planeta e que cerca de 20% das internações brasileiras em instituições de saúde mental ocorram por causa do uso de drogas (Castro, 2004). No II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005, foram encontrados os seguintes dados: 22,8% da população pesquisada já fizeram uso de alguma droga, exceto tabaco e álcool; 12,1% eram dependentes de álcool e 10,1% de tabaco, o que corresponde a uma população de aproximadamente seis e cinco milhões de pessoas, respectivamente (Carlini, 2006).

Em um dos estudos que confirma os dados de pesquisas anteriores, coordenado por Laranjeiras e colaboradores para o I Levantamento Nacional sobre o Padrão de Consumo de Álcool na População Brasileira, foram realizadas 3.007 entrevistas envolvendo adolescentes e adultos de 143 municípios de norte a sul do país. Os principais resultados indicam que, do total da amostra, 3% dos entrevistados apresentavam problemas de uso nocivo e 9% de dependência, perfazendo 12% da população com 18 anos ou mais (Secretaria Nacional Antidrogas, 2007).

Fatores internos (p. ex.: genéticos, ansiedade, depressão, tédio, raiva, frustração, solidão, dor, fome, fadiga, inexistência de repertórios alternativos, baixa auto-estima, estilo de personalidade, entre outros) e externos (p. ex.: experiências iniciais de vida significativas, modelo familiar de abuso de drogas, conflitos interpessoais, pressão social, situações difíceis e incontroláveis), podem constituir riscos para o consumo de drogas. As substâncias psicoativas fornecem também regulação imediata dos estados de humor, como redução da tensão e humor negativo e, em muitos casos, facilitação da sociabilidade (Liese & Frank, 2004; Rangé & Marlatt, 2008).

Pears, Capaldi e Owen (2007) estudaram a transmissão inter-geracional para abuso de substâncias e riscos de uso. Para a pesquisa, utilizaram três gerações em 21 anos de dados colhidos e descobriram que os mecanismos de transmissão para o uso de álcool diferem daqueles para uso de drogas ilícitas. O uso de álcool em uma geração parece estar diretamente relacionado ao uso de álcool na próxima geração, embora cuidados maternos/paternos e controle inibitório, que agem no padrão de comportamento de uso da próxima geração, não pareçam estar influenciados pelo uso de álcool por parte dos pais. Já para as drogas ilícitas, tanto um pobre controle inibitório quanto uma pobre disciplina parental representaram papel de mediação no uso entre gerações.

Portanto, como demonstram Silva e Serra (2004), os transtornos por uso de substância (TUS) são resultados de uma “interação complexa entre cognições (pensamentos, crenças, idéias, esquemas, valores, opiniões, expectativas e suposições); comportamentos; emoções; relacionamentos familiares e sociais; influências culturais e processos biológicos e fisiológicos” (p. 33).

Várias pesquisas indicam para a correlação entre dependência química e comorbidades psiquiátricas, tais como transtorno depressivo maior, transtorno bipolar, transtornos alimentares (Elberder, Laranjeira, Siqueira e Barbosa, 2008), transtornos de ansiedade, transtornos do humor (Compton, Thomas, Stinson, & Grant, 2007), transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (Biederman et al., 2006), transtorno de conduta (Biederman et al., 2008), e transtornos de personalidade – principalmente o transtorno da personalidade anti-social (Chapmam & Cellucci, 2007).

Transtorno de Personalidade Anti-Social e Uso de Substâncias

Os diversos estudos que demonstram a co-ocorrência entre o Transtorno de Personalidade Anti-Social e os Transtornos por Uso de Substância evidenciam fortes associações entre atitudes anti-sociais – como agressividade (Petras et al., 2008), impulsividade (Krueger, Markon, Patrick, Benning, & Kramer, 2007), irresponsabilidade (Walsh, Allen, & Kosson, 2007), delinqüência, alta propensão a ações criminais (Fontaine, 2006; Howard, Balster, Colttler, Wu, & Vaughn, 2008) - e inabilidade de enfrentamento de situações problemas, início precoce de abuso de drogas, reincidência (Fridell, Hesse, & Billsten, 2007; Gustavson et al., 2007), sérios danos psicológicos, mentais e de saúde (Goldstein et al., 2007), além de probabilidade aumentada para morte precoce (Cornelius et al., 2008).

Desta maneira, verifica-se que há fronteiras comuns entre traços de personalidade, processos cognitivos, emocionais, biológicos e contextuais para o risco de transtornos por uso de substância e TPAS (Bobadilla & Taylor, 2007).

Como exemplo desta associação pode-se citar o estudo realizado por Hicks et al. (2007), demonstrando que a Amplitude P3 reduzida é um marcador da vulnerabilidade biológica para transtornos de externalização, como TC, TPAS e dependência de álcool, nicotina e outras drogas. Resultados das investigações de Schlaepfer et al. (2007) sustentam o papel da enzima PKC-Gamma no comportamento impulsivo dos seres humanos com transtorno de conduta (TC), transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos por uso de substâncias (TUS). Na pesquisa de Joyal et al. (2007), durante execução de tarefa, foi observado que o córtex basal-frontal foi significativamente menos ativado em pessoas com esquizofrenia+TPAS+TUS do que em pessoas unicamente com esquizofrenia e em pessoas não violentas sem doença mental. Além disso, maior ativação na região frontal-motor, premotor e cingular anterior foi observada no primeiro grupo comparado ao grupo exclusivo de esquizofrenia.

Para Figlie, Fontes, Moraes, & Payá (2004), crianças que convivem com pais dependentes químicos demonstram maior agressividade e comportamentos anti-sociais, já que vivem em ambientes sem coesão familiar, cuidados básicos e orientações intelectuais e culturais, fatores que aumentam o risco do desenvolvimento de dependência química, associados ao distúrbio de personalidade anti-social.

Grekin et al. (2006), em pesquisa com uma amostra de 3.720 estudantes universitários, investigaram a relação entre características de personalidade e sintomas de dependência química. Os resultados revelaram que o fator anti-sociabilidade predisse múltiplos tipos de dependência química e que traços de personalidade severos foram relacionados diferencialmente à sintomatologia de álcool, drogas ilícitas e tabaco.

Com o objetivo de descrever a relação entre os transtornos de comportamento anti-social (tais como o TPAS e outros) e as características clínicas dos transtornos por uso de substâncias entre adultos da população geral dos EUA, Goldstein et al. (2007), baseando-se na Pesquisa Epidemiológica sobre Álcool e suas Condições Relacionadas do período de 2001-2002, demonstraram que as síndromes anti-sociais estão significativamente correlacionadas ao fenômeno do TUS, sendo que o TPAS está particularmente associado a quadros clínicos mais severos do TUS.

Pesquisa desenvolvida por Westermeyer e Thuras (2005), com 606 pacientes de idades iguais ou superiores a 18 anos, com a finalidade de comparar pacientes com TUS que se diferenciavam na presença e ausência de TPAS, demonstrou que os pacientes com TPAS apresentavam: a) mais problemas legais, familiares e relacionados a substâncias; b) maior tempo de uso de substâncias psicoativas, principalmente de drogas ilícitas e tabaco; c) idade menor para o primeiro uso de álcool e tabaco; e, d) maior extensão de tratamento (como número de admissões, modalidades dos cuidados, dias e custos).

Como podem ser observados, os dados indicam uma forte correlação entre transtornos por uso de substâncias e transtorno de personalidade anti-social, demonstrada por marcadores biológicos e fatores de riscos ambientais em comum, agravamento do quadro clínico, significativos prejuízos aos indivíduos em longo prazo e necessidade de tratamento em maior extensão. Assim, faz-se necessária uma atenção redobrada no momento da avaliação, do diagnóstico e da intervenção dos indivíduos. Se considerados apenas sintomas e queixas manifestadas espontaneamente, o TPAS e/ou o TUS podem ser sub-diagnosticados e não correlacionados, tornando o tratamento ineficaz.

Desafios aos tratamentos do TPAS e TUS

Os obstáculos para o tratamento do TPAS se dão, primeiramente, pelas próprias características do transtorno, que interferem direta e negativamente no tratamento (tais como desconfiança, fuga de intimidade, limitação na capacidade de formar aliança terapêutica de natureza colaborativa, desonestidade, dificuldade de trabalhar com metas a longo prazo e de pensar nas conseqüências de suas ações antes de agir) (Bieling, Mccbe, & Antony, 2008). Além do mais, há poucos estudos sistematizados sobre o tratamento de pacientes com TPAS que possam orientar a elaboração de programas mais efetivos.

Em segundo lugar, mesmo com a prevalência significativa do TPAS, é raro que os problemas relacionados à personalidade sejam a principal queixa dos pacientes que procuram tratamento, uma vez que não reconhecem que seus próprios comportamentos interferem nas dificuldades que enfrentam na vida (Beck et al., 2005).

A maioria dos portadores de transtornos de personalidade busca auxílio profissional devido a sintomas como depressão, ansiedade ou por forças externas, como por exemplo: pressão por parte de membros da família, empregadores, professores e até mesmo por imposição do sistema judiciário (Kaplan & Sadock, 2007). Muitos indivíduos com TPAS buscam tratamento para o transtorno por uso de substância sem reconhecer ou demonstrar interesse em tratar seu transtorno de personalidade.

Com relação ao tratamento do TUS, Liese e Franz (2004) demonstram que as complicações se dão, em parte, pelo fato de o transtorno ser de natureza crônica e, em parte, pelo fato de ser formado por um grupo variado e heterogêneo de pessoas que se envolvem freqüentemente com múltiplas substâncias, com conseqüentes e diversificadas mudanças psicológicas, fisiológicas e comportamentais, além do fato de coexistir, em muitos casos, com outros problemas psicológicos e psiquiátricos.

Informações do I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira (Secretaria Nacional Antidrogas, 2007), indicam que parte substancial das pessoas que faziam uso ou apresentavam dependência de álcool necessitavam de alguma forma de tratamento, uma vez que já apresentavam condição mórbida que requeria ação do sistema de saúde.

Assanangkornchai e Srisurapanont (2007), a partir de revisão da literatura, confirmam que houve progressos nas intervenções farmacológicas e psicossociais para indivíduos dependentes de álcool. No entanto, apontam para a necessidade de mais pesquisas no campo das intervenções em populações dependentes de álcool com comorbidades psiquiátricas, no intuito de melhorar as estratégias de envolvimento desses pacientes em seus tratamentos.

Desta maneira, a constatação da correlação entre TPAS e TUS e a observação das particularidades e dificuldades no tratamento de cada um reforçam a importância de se fazer uma abordagem integral que considere tanto o uso de substâncias quanto o diagnóstico e o tratamento de outros transtornos mentais associados. Na literatura consultada, foram encontrados poucos estudos que abordam o tratamento relacionando os dois problemas, além de não ter sido verificada nenhuma pesquisa que mencione concomitantemente o tratamento do TUS e do TPAS.

 

Terapia Cognitiva-Comportamental: TPAS e TUS

A terapia cognitiva (TC) surgiu, em meados de 1960, como uma resposta à insatisfação das propostas correntes na época para o tratamento de depressão. O principal idealizador da teoria, Aaron T. Beck, em suas primeiras pesquisas, observou que havia semelhanças na forma que pessoas deprimidas avaliavam os acontecimentos internos e externos, principalmente no que diz respeito a um estilo de pensamento negativo em três domínios: sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre o futuro. Com esses dados, Beck propôs uma abordagem terapêutica orientada para a cognição, objetivando identificar, examinar e reverter os pensamentos disfuncionais e os comportamentos relacionados, para obter um funcionamento mais adaptativo e satisfatório da personalidade (Wright, Basco, & Thase, 2008).

Desde o início, Beck defendeu a idéia de associar os métodos cognitivos aos comportamentais, já que reconhecia um relacionamento estreito entre cognição e comportamento (Neto, 2002). A teoria comportamental, desenvolvida a partir das idéias de Pavlov, Watson, Skinner e outros behavioristas experimentais, traz, em seu cerne, conceitos sobre os princípios da aprendizagem a partir de fundamentações baseadas no condicionamento respondente e no condicionamento operante, que auxiliam na compreensão das leis que regem o comportamento (Skinner, 1998; Baum, 1999).

Nessa abordagem, diz-se que o comportamento é função do “ambiente”, ou seja, todo e qualquer evento é capaz de afetar o organismo, sendo ele privado (sentimentos, emoções, sensações, pensamentos) ou público (Skinner, 1998).

Desta maneira, os princípios do modelo cognitivo-comportamental giram em torno da idéia de que o processamento cognitivo, ou seja, a interpretação dos fatos, a avaliação cognitiva sobre os acontecimentos vividos interna e externamente, tem papel fundamental nas reações emocionais e nos comportamentos apresentados pelo indivíduo. Pode-se dizer que as três áreas (cognição, emoção e comportamento) estão interligadas e, dependendo do formato dessa relação, haverá um funcionamento saudável ou desadaptado da personalidade (Falcone, 2001).

Com a evolução da teoria, sempre preconizando a utilização do método científico e de pesquisas controladas, os fundamentos e métodos descritos por Beck e por outros colaboradores do modelo cognitivo-comportamental estenderam-se tanto a uma variedade de quadros clínicos - p. ex.: depressão, transtornos de ansiedade, transtornos alimentares, esquizofrenia, transtorno bipolar, dor crônica, transtornos de personalidade e abuso de substâncias - quanto a vários ambientes, como hospitais, escolas e clínicas (Falcone, 2001; Wright et al., 2008).

Pesquisas com ênfase na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) (Falcone, 2001; Neto, 2002; Abreu, 2004; Pereira, 2004) demonstram que pessoas com transtornos psiquiátricos têm uma alta freqüência de pensamentos automáticos distorcidos, exagerados, equivocados e muito rígidos. Dessa maneira, os julgamentos tornam-se absolutos e generalizados, incorrendo em erros e distorções cognitivas com crenças fundamentais inflexíveis. Nesta linha de raciocínio, o que gera o comportamento problema - pensamentos disfuncionais, comportamentos desadaptativos e emoções negativas - é o processamento cognitivo da realidade pessoal do indivíduo.

Neste sentido, alguns dos objetivos da TCC são: ajudar os pacientes a desenvolver estilo acurado, racional e preciso de processamento de informações e auxiliá-los na aprendizagem de novas estratégias para atuar no ambiente, a fim de promover as mudanças necessárias. Assim, o maior impulso da Terapia Cognitivo-Comportamental é em direção à compreensão da natureza e do desenvolvimento do repertório comportamental de um indivíduo e dos processos cognitivos que o acompanham (Wright et al., 2008).

Entretanto, para que os objetivos terapêuticos sejam alcançados, é fundamental o estabelecimento de uma relação terapêutica satisfatória, segura, ativa, colaborativa, diretiva e estruturada, educativa, orientada para o presente e voltada para o problema (Falcone, 2001; Abreu, 2004; Pereira, 2004).

Para o tratamento do TPAS, o modelo de TCC dá ênfase às interações entre as crenças nucleares dos indivíduos, às estratégias interpessoais disfuncionais e caracteristicamente superdesenvolvidas e às influências ambientais (Beck, 2004). Desta maneira, no decorrer do tratamento, alguns objetivos são traçados, tais como: correlação entre pensamentos distorcidos e comportamentos desadaptativos; reestruturação cognitiva; desenvolvimento de habilidades de enfrentamento (como assunção da perspectiva, comunicação efetiva, regulação das emoções, auto-controle, tolerância à frustração, assertividade, pensamentos consequenciais e adiamento da resposta); automonitoramento; ampliação do leque de interesses e domínio interpessoal e habilidade de construção de escolhas construtivas (Beck et al., 2005).

Já para o tratamento das adições, o modelo de prevenção de recaída, o modelo cognitivo de abuso de substâncias e o modelo dos estágios de mudanças são os mais abordados por terapeutas e pesquisadores que atuam nesta área de conhecimento. São utilizadas nestas intervenções, estratégias como treinamento de habilidade social, treinamento do autocontrole e da assertividade, treinamento de relaxamento, entrevista motivacional breve, manejo do estresse, da depressão e da ansiedade, identificação de situações de alto risco e reestruturação cognitiva (Rangé & Marlatt, 2008).

Além disso, a TCC, utilizada tanto como prática psicoterápica individual quanto grupal, é aplicada concomitante a outros tratamentos (p.ex.: medicamentoso), nas várias modalidades de intervenção disponíveis para abuso e dependência de drogas, tais como a hospitalização para desintoxicação e reabilitação, a internação-dia em psiquiatria geral e o tratamento ambulatorial.

Todavia, mesmo com a evolução da TCC em sua prática e pesquisa, não há ainda estudos sobre intervenção cognitivo-comportamental para pacientes dependentes/ abusadores químicos com TPAS. Sugerem-se, assim, pesquisas futuras nesta área de atuação, as quais poderão ajudar na melhora do manejo da sintomatologia do TPAS, com conseqüente maior adesão ao tratamento do TUS.

 

Considerações Finais

Por razão da sintomatologia apresentada no TPAS, muitos consideram indivíduos com este transtorno incapazes de se beneficiar de um tratamento, principalmente por entenderem que problemas desse tipo são de natureza crônica, permanente e refratária. Da mesma forma, pesquisadores e terapeutas da área ponderam que os tratamentos para o TUS demonstram prognósticos pouco favoráveis.

Entretanto, aqueles que se baseiam nos modelos cognitivo e comportamental que focam, respectivamente, o composto de crenças e de comportamentos relacionados, exibidos com freqüência por pessoas com TPAS e TUS, têm como princípio o fato de que, apesar da intervenção desses pacientes representar desafios expressivos, os transtornos são tratáveis dependendo da motivação dos indivíduos para a mudança.

Desta maneira, esforços consideráveis em busca de tratamentos mais eficientes/eficazes, tanto para TPAS quanto para TUS, devem ser empreendidos, já que prejudicam severamente a vida dos indivíduos, como também a das pessoas próximas e a da sociedade como um todo.

Além do mais, a coexistência de ambos os transtornos em parcela significativa da população deve ser cuidadosamente avaliada para que o TPAS e/ou o TUS não sejam sub-diagnosticados e não correlacionados, tornando o tratamento limitado.

Na literatura, não foram encontrados estudos que abordam tratamentos para ambos os transtornos simultaneamente. As pesquisas estão voltadas mais para a etiologia, o desenvolvimento, as conseqüências e a prevalência em populações específicas, como também para a identificação das comorbidades presentes entre os transtornos.

Entretanto, os dados indicam que apenas estudos mais aprofundados, que consideram a relação entre TPAS e TUS, podem contribuir para a promoção de um trabalho mais eficaz e para a promoção de uma melhoria na qualidade de vida desta população.

Desta forma, apesar de os tratamentos para a TPAS e para o TUS constituírem-se de desafios expressivos e da necessidade de esforços consideráveis para obtenção de resultados positivos, pesquisas envolvendo modelos e técnicas de intervenção, como a terapia cognitivo-comportamental, poderão trazer informações relevantes que demonstrem possibilidades de abordagens conjuntas para ambos os transtornos.

 

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Endereço para correspondência
Janelise Bergamaschi Paziani Costa
Rua: Vitória, 244. Bairro: Higienópolis
Cidade: Catanduva – SP. Cep: 15.805-060
Tel: +55 17 3521-1322/ +55 17 9717-5541
E-mail: jpaziani@hotmail.com.

Enviado em Fevereiro de 2009
Revisado em Abril de 2009
Aceite final em Maio de 2009
Publicado em Dezembro de 2009

 

 

I Nota dos autores:Janelise Bergamaschi Paziani Costa/ Psicóloga; Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP. Nelson Iguimar Valerio/ Doutor em Psicologia pela PUCCampinas; Membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Saúde em instituições e na comunidade da ANPEPP; Docente, Orientador e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto – FAMERP.

1 O foco de atenção deste artigo é o TPAS.
2 O destaque no presente artigo é para o grupo Transtornos por Uso de Substâncias.

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