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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro Dec. 2012

 

Resenha

Psicanálise e psicoterapia

 

André Martins

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Lejarraga, Ana Lila. O amor em Winnicott. Rio de Janeiro: Garamond/ Faperj, 2012. 155 p.

 

 

Freud postulou, fortemente influenciado pelo pensamento de sua época, e sobretudo pela filosofia de Schopenhauer1, que toda pulsão é sexual. Com este "filósofo famoso"2, Freud partilha a ideia de que o sexo é a causa final de toda ação humana, entendendo que o homem segue uma teleologia e um automatismo animal que o leva a buscar descarregar suas tensões através do prazer sexual, como meio de realizar a reprodução da espécie ou lutar contra a morte. Em particular, todo amor seria derivado da pulsão sexual, segundo Freud e Schopenhauer, tendo-a como meta diretamente, ou senão, como resultado da inibição, sublimação ou recalque neurótico deste objetivo: seja o amor por amigos, filhos, bichinhos de estimação, arte, time de futebol, teoria freudiana ou psicanálise, etc. Entendeu, assim, que todo prazer é reativo ou negativo, dando-se pela descarga de um desprazer, de uma tensão ou agitação, de uma energia desprazerosamente contida, seguindo nisso, mais uma vez, o pensamento de Schopenhauer, para quem o prazer não se dá nunca por fruição, mas por alívio3.

Tendo a vista as concepções de que há sempre, e necessariamente, uma finalidade sexual envolvida nas relações entre os indivíduos e de que a busca do prazer visa à descarga, Freud não pôde considerar a afeição, a ternura, o cuidado pelo outro, senão na forma de uma culpa ou de uma dívida simbólica que gerariam a inibição do objetivo original do vínculo com o outro, estritamente sexual, o interesse artístico como uma sublimação desse objetivo e os objetivos da cultura como oriundos do recalque, sendo os sintomas neuróticos "satisfações substitutivas deformadas das forças pulsionais sexuais, das quais a satisfação direta foi frustrada"4, inconscientemente.

Ana Lila Lejarraga, em seu novo livro, O amor em Winnicott, escrito após Paixão e ternura, um estudo sobre a noção de amor na obra freudiana (de 2002), nos mostra que Winnicott entende, ao contrário de Freud, que a intimidade, o concernimento, a amizade, a ternura e a afeição são prazerosos, mas seu prazer não é negativo ou reativo, não se dá por uma descarga de um desprazer, e tampouco derivam da pulsão ou instinto sexual. Contudo, o livro não se restringe a demonstrar esta tese, que se contrapõe à freudiana. Ele desenvolve, sobretudo, uma convincente e lúcida apresentação da gênese do sentimento amoroso, em suas múltiplas facetas. É justamente a partir da compreensão do que constitui a experiência amorosa, que a tese freudiana se vê inevitavelmente contrariada e se apresenta como ideológica e limitadora.

O amor, mostra-nos Winnicott, pela lente de Lejarraga, depende das capacidades emocionais desenvolvidas pela pessoa desde quando bebê, a partir da maternagem, influenciado, portanto, pelas capacidades da própria mãe. As raízes do amor são duas, a pulsão sexual (que Winnicott, devido à tradução em língua inglesa, denomina instinto), própria de momentos excitados, e a intimidade entre mãe e bebê, que se dá nos momentos tranquilos.

A mãe, que se identifica prazerosamente com seu bebê, possibilita a este vivenciar uma união que, por sua vez, se constitui como uma experiência prazerosa de continuidade de ser, a partir do acolhimento de seus gestos espontâneos, criativos, não inibidos: "ter uma relação criativa com a realidade faz com quem a vida tenha valor" (p. 75). A primeira experiência de amor do bebê será esta, e sentir-se amado em seu próprio ser será fundamental para sua capacidade de se sentir vivo, de sentir que a vida vale a pena. À medida que o bebê descobre que existe e que existe um outro que sobrevive a seus gestos, à sua agressividade espontânea de descoberta do mundo, e também a seus instintos ou pulsões, desenvolverá sua capacidade de concernimento, de zelo para com este outro, seja a mãe ou o cuidador, e este concernimento gradualmente poderá se expandir para qualquer 'outro', tornando-se possível, assim, que o amor se expanda para a vida em geral.

A importância da vida criativa é ressaltada por Lejarraga de modo esclarecedor: criatividade significa espontaneidade, que permite "a sensação individual de estar pessoalmente presente" (p. 84), e não tem origem no prazer sexual: encontra-se na fruição, na capacidade de fruição do momento, que pode ser desde a fruição do respirar, ao prazer de uma invenção ou descoberta. Os bebês, ou futuramente os adultos, que, ou quando, têm dificuldade em viver criativamente, "têm dúvidas sobre o valor de viver" (Winnicott, O brincar e a realidade, p. 102). O brincar é sensório, mas não é sexual, e é prazeroso pela potência individual que se expressa e se realiza, e não pela descarga reativa de uma energia contida. "A característica do brincar é o prazer", afirma Winnicott (Explorações psicanalíticas, p. 49), prazer de interagir "com objetos do mundo real, experienciando a própria criatividade e o sentimento do si-mesmo" (p. 87).

Um ponto crucial para a teoria winnicottiana do amor, sublinhado no livro, consiste no entendimento de que o amor erótico está presente desde o início do estágio do concernimento vivenciado pelo bebê, e que mesmo antes disso, a sensorialidade, o prazer sensorial e a destrutividade espontânea do ruthlessness, são concomitantes ao amor tranquilo. Trata-se do "fazer", no sentido que Winnicott dá ao termo, e que é concomitante ao "ser". Na vida saudável, o erotismo do fazer é tão mais significativo quanto mais se dá sobre um fundo de "ser"; isto é, quando "é possível simplesmente existir e relaxar" (p. 85). E esta intimidade com o outro, graças à capacidade de "ser", tem origem em um momento em que o outro e o si mesmo ainda não existem; o momento de maternagem da união mãe-bebê, que é um momento sensório, mas anterior ao erotismo propriamente dito, uma vez que ainda não existem dois, mas apenas uma unidade. Em suma, ainda que concomitantes, inclusive em seu estágio anterior à divisão, o erotismo e a intimidade mãe-bebê, que permite a continuidade do ser, têm origens em raízes diversas: o erotismo nos instintos ou pulsões, a intimidade adulta na continuidade do ser, graças ao acolhimento do gesto criativo e portanto na mutualidade das identificações cruzadas entre mãe e bebê.

Trata-se, enfim, esclarece Lejarraga, "de duas modalidades de prazer, que correspondem a duas formas de troca com a mãe, e que podemos remeter às noções de mãe-objeto e mãe-ambiente" (p. 88), sendo que a diferença não reside na participação ou não do sensório, que sempre está presente, "mas nos modos em que o corpo participa" (p. 89). Uma sexualidade psiquicamente significativa, um erotismo no sentido forte do termo, somente se dá com os ingredientes e sobre a base de uma intimidade com o outro e uma confiança anteriormente introjetadas: "o fazer, sem ser, constitui um fazer adaptativo, impessoal e estranho ao si-mesmo" (p. 114), guiado por formas de comportamento trazidas pelo social, pelo simbólico, por uma submissão aos valores externos, apresentados de fora para dentro. Neste caso, as gratificações sexuais "tornam-se seduções, no sentido de não provir dos impulsos pessoais, de serem alheias ao si-mesmo" (p. 119). Sem a intimidade e a sensação de ser, a sexualidade "se torna patológica, podendo manifestar-se, como exemplo, numa masturbação compulsiva que, mais que prazer erógeno, revela angústias intoleráveis", ou, ao contrário, na total supressão de qualquer prazer que possa provir do uso do corpo (p. 118), quando então, aí sim, o prazer sexual se verá restrito a uma descarga de tensão. A excitação do ato sexual, aliás, já prazerosa em si (e não necessariamente tensa ou desprazerosa), se encerra com um clímax, mas mesmo após este, o sentimento prazeroso se mantém em seus vários outros aspectos, de prazer ainda sensório e erógeno, como também de momento calmo e confiante, de relaxamento, de empatia, de intimidade e união de diferentes.

A importância da criatividade no amor se reflete também no casamento, por exemplo, "quando a relação estável pode tolher a criatividade" (p. 90) de um ou dos dois parceiros, gerando um choque entre o impulso pessoal e os compromissos estabelecidos pela relação, de modo a empobrecer "ambos os membros", uma vez que ao renunciarmos a nosso impulso criativo pessoal não temos mais condição de nos "enriquecer com a diferença e singularidade do parceiro" (p. 91), e vice-versa. O tédio nas relações estáveis ou duradouras, assinala Winnicott, não é inerente ao amor, mas "resulta do tamponamento da vida criativa, que provém do indivíduo, e não da parceria" (Tudo começa em casa, p. 30). O indivíduo saudável é aquele que consegue sentir-se amado pelo outro e pela sociedade "sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais" (ibid., p. 9). Esclarece Lejarraga: "A confiança que o indivíduo carrega dentro de si lhe permite acreditar na existência do contato significativo com o mundo e nas trocas afetivas com outras pessoas", podendo, assim, "desfrutar da intimidade e da alteridade do parceiro" (p. 96) sem sentir-se inseguro, quando se desenvolveriam "modalidades patológicas de relação, que vão desde o banal tédio conjugal até as formas mais violentas de submissão e dominação" (p. 97). Afinal, "o apaixonado patológico procura no parceiro a mãe que falhou, na esperança de que ele possa corrigir as falhas ambientais de outrora, curando-o e salvando-o das agonias impensáveis que o assolam" (p. 145).

"Uma relação amorosa saudável, enriquecedora para os dois integrantes do par" (p. 128), implica um amor que necessita dos seguintes ingredientes, que Lejarraga enumera a partir de Winnicott: existir e ser amado; apetite espontâneo sem concernimento; contato afetuoso; integração do objeto, que se relaciona com o receber; afirmar-se criativamente; ter concernimento pela afirmação criativa do outro. Ou, em outras palavras: "impulso sexual, intimidade, transicionalidade, reconhecimento da alteridade, afeição ou ternura, concernimento, capacidade de estar só" (p. 131). Quanto mais estas diferentes "capacidades para amar" estejam desenvolvidas em cada um dos integrantes do casal, "mais saudável e enriquecedor será esse relacionamento" (p. 132). O amor é uma conjunção de elementos heterogêneos que podem se fazer mais ou menos intensos, dependendo de cada relação, mas também do tipo de relação – erótica, de amizade, de afeição, etc. Esses elementos se combinam e se entrelaçam "das mais variadas formas", e estas combinações diversas e suas intensidades nos permitem "pensar sobre a vida afetiva em geral", sobre tudo o que é chamado "de amor num sentido amplo", e também no amor erótico, "quando a experiência sexual se integra com os mais variados significados da palavra amor" (p. 134). Estes elementos, sintetiza brilhantemente Lejarraga, são oriundos de duas raízes distintas, cujos desenvolvimentos são concomitantes: a sexualidade e a intimidade. "Enquanto o primeiro remete à excitação das zonas erógenas e ao clímax, o segundo remete à experiência incipiente de ser do bebê, a momentos calmos e confiantes, ao reconhecimento pelo outro humano e à identificação primária" (p. 135).

O belo livro de Lejarraga, cuja apresentação é extremamente conscienciosa, por vezes didática, organizando com múltiplos detalhes o pensamento de Winnicott, com propriedade e ao mesmo tempo criatividade, reúne criteriosamente, de toda a sua obra, os trechos e os elementos teóricos necessários para uma rigorosa e convincente construção de uma teoria winnicottiana do amor. Mas vai mais longe. A concepção do amor como composição, de autoria própria de Lejarraga, em sua cuidadosa análise dos textos de Winnicott, é um instrumento potente e verdadeiramente inestimável para a compreensão do amor real em suas várias facetas e versões, precioso para a clínica e para a vida, merecendo toda a atenção de analistas, de estudiosos e de leigos.

O amor em Winnicott nos conduz e nos prende por propiciar uma leitura elucidativa, com passagens de excelência, explicações precisas, extremamente lúcidas; presenteia-nos com um forte capítulo final, em que tudo o que foi visto, em particular os diversos ingredientes do amor, para que, por fim, a autora teça considerações esclarecedoras e profícuas sobre os vários tipos de amor que todos vivenciamos. Indo muito além da concepção extremamente redutora e patologizante de Freud, alarga nossa compreensão e auto-compreensão sobre esse tema vivido e vívido para todos, que tanto contribui, como lembra Lejarraga, "para o encantamento do viver" (p. 148).

 

 

1 Cf. Freud, Uma dificuldade no caminho da psicanálise, de 1917, ou Ansiedade e vida instintual (Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise, 32ª conf.), de 1932; de Schopenhauer, em particular os capítulos 41 a 44 dos Suplementos a 'O mundo como vontade e como representação', de 1844, e os capítulos 4 e 14 de Parerga et Paralipomena, de 1851.

2 "Há filósofos famosos que podem ser citados como precursores [da psicanálise]– acima de todos, o grande pensador Schopenhauer, cuja 'Vontade' inconsciente equivale às pulsões mentais da psicanálise" (Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: ESB, vol. 17, p.153). Em 1920, Freud esclarece ainda que "a pulsão sexual é a corporificação da vontade de viver" (Além do princípio de prazer. In: ESB, vol. 18, p. 60).

3 Ver Schopenhauer, de 1819, O mundo como vontade e como representação, §38 passim; e seus "Suplementos", em especial o capítulo 30.

4 FREUD, S. As resistências à psicanálise. In: ESB, vol.19, p.243.