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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
On-line version ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro Dec. 2013
Artigos
O sujeito sindrômico e a infância eternizada: um modo de penhasco?
The subject sindromic and eternalized childhood: a cliff-like way?
Rose Gurski* ; Andrea Gabriela Ferrari** ; Milena da Rosa Silva***
Resumo
Fundamentado na contribuição da teoria lacaniana, o artigo discute a repercussão psíquica do dano orgânico na clínica com sujeitos sindrômicos. Com base em fragmentos de atendimentos, desdobram-se pontos nodais da direção da cura destes casos, dentre os quais, o estabelecimento do real, a importância da concepção interdisciplinar e o trabalho de elaboração do luto. A discussão lança luzes sobre o lugar do psicanalista nesses tratamentos, enriquecendo o debate acerca da ética psicanalítica na clinica com tais sujeitos.
Palavras-chaves: Clínica com sujeitos sindrômicos, Psicanálise, interdisciplinaridade.
Abstract
Based on Lacan's theoretical perspective, this paper discusses the psychical repercussion of organic damage observed in the treatment of syndromic subjects. By focusing fractions of clinical sessions, nodal points are unfolded towards the cure of those cases, such as the establishment of the real, the importance of an interdisciplinary conception and the effort towards the elaboration of mourning. The study enlightens the psychoanalyst's place in those treatments, thus enriching the discussion on the psychoanalytical ethics in treating those subjects.
Key-words: Clinical treatment of syndromic subjects, Psychoanalysis, interdisciplinarity.
Já houve tempo em que as crianças portadoras de diferenças eram jogadas dos penhascos, lançadas ao vazio (JERUSALINSK, 1989). O precipício para onde eram dirigidas, talvez, fosse uma bela metáfora do incompreendido que essas crianças carregavam no corpo. Portar a diferença era uma marca indigna, não reconhecível pelo grupo ou pela comunidade; em algumas culturas, inclusive, reveladora de maus presságios. Parece que acerca desses sujeitos nada se podia supor. Suas diferenças sempre interpelaram o saber de cada época de modo brutal, a ponto desses sujeitos, em alguns tempos, ficarem situados como perigosos portadores de um enigma indecifrável. Nas palavras de Jerusalinky (1989, p. 47):
(...) o destino de um deficiente, desde que foi engendrado no meio de uma cultura (seja qual for) não é em nada equivalente ao de um animal. A marca simbólica os afeta, seja para matá-los (os gregos no TAIGETO), seja para endeusá-los (os egipcíos), para considerá-los uma maldição (a Igreja Católica na Idade Média), para marcá-los como encarnação do demônio (Lutero), como representantes de uma raça inferior.
Atualmente, dada a dimensão benfazeja da pulsão escopofílica do sujeito moderno, não as jogamos mais dos penhascos, ao menos não dos reais. Passado o boom das teorias psicométricas e das medições de habilidades, pautadas por medidas estatísticas, nós os olhamos ainda vendo neles um enigma, porém um enigma passível de ser escutado. Tal modificação tornou-se possível, ao longo das últimas décadas, especialmente pela inserção da Psicanálise como concepção de sujeito na chamada clínica dos problemas de desenvolvimento (CORIAT, 1997).
Lembramos que Freud, em 1909, através do caso Pequeno Hans, inaugurou, com seu gesto de observar e comentar o infantil, um novo interesse em relação às crianças (FREUD, 1909/1980). A partir da escuta das histéricas, com o desmoronamento da teoria da sedução, ele percebeu que havia algo relativo à infância que precisava ser escutado de outro modo. Ao lançar essas questões na direção do infantil, no início do século XX, Freud, de alguma forma, também contribuiu com a construção do novo lugar da criança no cenário sócio- -histórico da época.
Assim, após adquirir um espaço de consistência social, ausente, por exemplo, até a Idade Média, as crianças, ao longo do século da ciência, acabaram presas de uma profunda atenção (ÀRIES, 1981). Embalados pelo furor do saber científico, surgiram uma porção de especialidades, ancoradas em matrizes de pensamentos, especialmente na psicologia, que buscavam medir habilidades e funções a fim de definir padrões de normalidade e de comportamento. Este eixo da funcionalidade e da adaptação foi abalado por um novo corte epistemológico nas matrizes do pensamento psicopatológico e clínico da época (JERUSALINSKY, 1998).
Neste cenário, a Psicanálise, diferente da epistemologia genética de Piaget e das práticas psicométricas – que preconizavam os estágios de desenvolvimento e a medição de habilidades –, sublinhou a dimensão de que, se por um lado há uma pessoa se desenvolvendo, simultaneamente, há um sujeito em constituição. Tal acréscimo produziu importantes efeitos na abordagem dos sujeitos portadores de diferenças (CORIAT, 1997; JERUSALINSKY, 1989).
Na sequência deste escrito, propomos desdobrar a noção de que, apesar da dimensão do real do corpo, constituir, muitas vezes, uma via de compreensão dos sujeitos portadores de dano orgânico, será a constituição da dimensão do sujeito que determinará o destino psíquico do humano. A prematuridade do filhote do homem o coloca em uma condição inicial de deficiência instintiva, ou seja, nada em seu sistema filogenético oferece condições de humanização, caso não esteja sob a tutela de outro ser humano. Este outro, ao cuidar das necessidades do corpo e da nutrição simbólica do bebê, inscreve-o na dialética da demanda e do desejo, lançando a criança no chamado campo do Outro1, campo da alienação ao significante (LACAN, 1954/1955).
Este tempo da alienação ao significante, pode ser considerado como um período inicial da inscrição simbólica – operação que acontecerá em sucessivos momentos lógicos da constituição até a operação psíquica da adolescência (BERNARDINO, 2004). Ao longo da constituição psíquica, gradativamente, o corpo é inundado pelo que se denomina banho de linguagem, essa espécie de tatuagem simbólica inscrita, inicialmente, pelas funções parentais, especialmente, pela função materna. Além da Ordem Simbólica, da linguagem antecedendo a chegada da criança, será o enlace do olhar e do discurso materno acerca do recém-nascido, o responsável por ordenar o ponto mítico da constituição subjetiva.
Feitas essas breves considerações acerca das condições da constituição psíquica, passemos ao tema do impacto psíquico do dano orgânico.
Uma espécie de abismo: o impacto psíquico do dano orgânico
"[...] Até hoje, passados 24 anos, lembro das palavras daquela freira e da médica que no hospital disse que eu não me preocupasse, pois as crianças com down não viviam muito mais que 10 anos [...]".
A primeira questão posta a uma família que recebe uma criança sindrômica, ou portadora de dano orgânico, refere-se à elaboração do luto pela criança vinda no lugar da originalmente esperada. Coloca-se aos pais e à família um primeiro abismo, a distância cruel entre o bebê imaginado e aquele recém- -chegado, até mesmo porque nenhuma criança real corresponde à criança imaginada.
A pré-história do sujeito partilha de elementos do fantasma parental: os ideais acerca da criança gerada produzem mitos familiares nos quais o bebê é imerso (RUDOLFO, 1991). Mas, o que acontece quando se estabelecem dificuldades no enlace entre esta criança e os ideais parentais? Quando o corpo do sujeito aponta para traços em relação aos quais os pais não conseguem identificar- se e/ou reconhecer-se?
A fala da mãe no prefácio desta seção, que chegou ao tratamento quando o filho já contava com 24 anos, expressa a relatividade da passagem do tempo. O vaticínio feito pela enfermeira no nascimento de João2 parece ecoar na atualidade de seus dias, como se o tempo desde então não tivesse passado. A angústia diária, com a iminência da morte certa revelada nas palavras, com teor de oráculo, produz, nestes pais, uma dificuldade ainda presente, a de considerar que há uma vida pulsando em seu filho. O ódio pelo filho esperado, mas, não recebido e a dificuldade de dar lugar à alteridade, quando se trata do reconhecimento da diferença, levam a uma intensa problemática no campo da elaboração. Resulta muito difícil simbolizar este acontecimento em suas vidas e o destino, construído no dia a dia desta relação, torna-se algo muito próximo do que nominamos como certo "convite à psicose" na direção do filho (MANNONI, 1991).
O viés da incapacidade revela-se como o ponto forte da atenção destes pais. Eles não conseguem olhar para as produções singulares do filho, mas insistem na marca do que falha em suas funções. Além, é claro, da necessidade urgente de não poder perder nada, pois eles "tudo veem" e "tudo sabem" acerca do filho, como se a ausência de seus olhares significasse a morte imediata do rapaz. Ao longo do trabalho de escuta com eles, fica claro que o tempo da elaboração das palavras escutadas no berço do então bebê, não acompanhou a cronologia do relógio e colocou em estreita associação a vida e a morte desta criança, a qual, atualmente, assemelha-se, em muitos aspectos, a um menino – apesar de, cronologicamente, ser um jovem adulto.
O desencontro produzido nesses momentos primordiais pode apresentar condições à pequena criança que a colocam em risco de estruturação psíquica (BERNARDINO, 2004). A fratura das funções parentais, especialmente a função materna, ao não enlaçar a criança no campo do Outro, pode vir a produzir uma suspensão de inscrição simbólica, ficando o filho fora do espaço narcísico dos pais.
Tais condições, em geral, nos confrontam com o estabelecimento de quadros psicopatológicos mais graves, que podem realmente levar à ausência de inscrição do significante primordial e consequentemente a um quadro de autismo. Porém, outros efeitos podem fazer-se presentes. Por exemplo, a literatura médica, da primeira metade do século XX, postulava vaticínios cruéis a esses sujeitos, dentre eles, a indicação do autismo e da psicose como psicopatologias patognomônicas da síndrome de down. Ora, ainda que os quadros de psicose, em crianças sindrômicas não sejam incomuns, na psicanálise trabalhamos com a hipótese de que a psicose associada a esses quadros tem origem na posição na qual o sujeito acaba situado nas relações com as funções parentais.
Apesar de reconhecer os limites impostos por algumas deficiências orgânicas, podemos sublinhar o fato de que os sintomas psíquicos são produzidos, muitas vezes, como efeito da ausência de elaboração das diferenças suscitadas pelos danos orgânicos. O próprio diagnóstico médico pode, muitas vezes, precipitar manifestações sintomáticas surgidas a partir de vaticínios apressados, os quais se antecipam à multiplicidade de experiências possíveis das famílias com seus bebês.
Conforme sugere Bernardino (2011), temos de questionar as condutas atuais de prescrições excessivas de medicamentos e/ou de indicações de tratamentos, baseados em treinamentos na direção de crianças que, por razões ditas orgânicas, nada mais se espera a não ser a submissão adaptativa.
Nesse sentido, a Psicanálise, ao associar-se à concepção interdisciplinar como uma forma de operar no trabalho clínico com crianças que apresentam problemas de desenvolvimento, busca economizar o efeito de implosão, de desmoronamento produzido pelo dano orgânico nas relações das famílias que apresentam tais condições. Esse efeito torna-se extremamente nocivo, pois, em muitas situações, impede os pais de articularem o espaço do "futuro anterior" à criança, dimensão que inscreve efetivamente a possibilidade de um devir (JERUSALINSKY, 2002). Quando nasce uma criança sindrômica, os pais ficam entregues a uma espécie de desamparo, sem saber como agir com o filho e sua diferença. Não raro, costumam buscar alguém que "saiba" e lhes "diga o que fazer" sobre a criança (GURSKI, 2008). Deste modo, inscreve-se no lugar do saber parental, o saber do especialista, como se os créditos da ciência e da suposta especialidade pudessem dar conta das questões do filho: "Com efeito, os pais pedem: diagnósticos, avaliações, indicações educativas, remédios, etc., demanda essa que se orienta, aparentemente no sentido que lhes seja arrumado o 'boneco estragado' de seu narcisismo" (JERUSALINSKY, 1989, p. 59).
Atualmente, vemos uma profusão de ofertas de intervenções médicas e pedagógicas na direção desta demanda. No intuito de estimular o bebê, partindo de uma noção desenvolvimentista e apostando nas funções motoras e cognitivas, muitas ofertas terapêuticas costumam objetalizar a criança, propondo trabalhar suas "partes danificadas".
No campo da clínica com bebês sindrômicos, frequentemente, as intervenções resultam em um relativo "progresso" nas atividades motoras ou cognitivas, mas, é claro, à custa de um alto preço subjetivo. Seguidamente, produzem-se efeitos sinistros: sintomas alienantes nos bebês, tais como, a perda da fala (quando já tem algo em construção), a fixidez no olhar, o desinteresse pelos objetos, etc. Ou seja, as intervenções pautadas pela minimização do dano orgânico, muitas vezes, acarretam prejuízos na subjetivação da criança e na qualidade da relação dos pais com o filho.
Uma das questões já citadas, anteriormente, refere-se aos efeitos gerados pela patologia orgânica na família. Tal situação pode colocar em risco o tempo fundador do futuro anterior, período das expectativas e dos desejos, tempo simbólico transformador do infans em um sujeito detentor de inúmeras realizações no imaginário parental (JERUSALINSKY, 1989). Dinâmica que viabiliza a construção do vir-a-ser.
Mesmo sabendo que se tornar presa deste olhar pode, muitas vezes, significar o caminho de construção de uma psicose, a ausência deste laço tem o incômodo efeito de transformar a vida da criança em um grande vácuo, impossibilitando, no mesmo movimento, a construção de um lugar simbólico, para além do estatuto real e orgânico.
Conforme aponta Coriat (1997), quando não se deixa, por exemplo, o espaço da falta, da hiância na relação dos pais com o filho, não se constrói o que decanta sempre como a potência do sujeito, a possibilidade de a alteridade não ser imediatamente compreendida e nomeada. Isso porque a possibilidade de um saber não todo acerca da criança, é também o responsável por construir a via de sujeito:
[...] Algo que, sim, sabemos é que, se não oferecemos uma tal oportunidade aos corpinhos que nascem com 47 cromossomos, jamais terão a mais mínima possibilidade de aceder à condição de sujeitos de seu próprio desejo. Esse lugar vazio, esse ponto obscuro de ignorância no saber de uma mãe é o que acende a faísca da vida própria do filho (CORIAT, 1997, p. 35).
Quando os pais decidem apostar nas inúmeras técnicas de aprendizagem que podem "ajudar" o filho a se desenvolver nos padrões de "normalidade", não resta lugar para o desejo do sujeito. Se é permitido ao especialista tamponar o saber parental, dizendo sobre aquilo que convém ou não à criança, devemos nos perguntar como fica o gozo na relação com o filho (CORIAT, 1997). Estes são casos, nos quais se estabelece uma dificuldade em supor no filho um sujeito passível de se constituir em meio a sua patologia orgânica.
Ao tratarmos do impacto psíquico dos diferentes danos do corpo, também precisamos sublinhar a possibilidade de algumas condições de subjetivação serem alteradas, a partir de aspectos orgânicos e funcionais que fazem limite ao significante obstruindo, por vezes, as vias de relação com o outro. Tais dificuldades produzem pouca articulação e mobilidade do significante, ao que se denomina, muitas vezes, pobreza simbólica.
Sabemos que essas situações tornam-se, especialmente, complexas na infância em função mesmo de algumas condições próprias a este momento da subjetivação. Jerusalinsky (1989) sugere, por exemplo, que a "duplicação da borda do real" é um movimento presente na infância, seja ela qual for. Ou seja, a antecipação é uma variável própria à infância, tanto pela prematuridade orgânica, quanto simbólica do infans. Lembramos que a antecipação trás junto à condição de sujeição aos ideais parentais. Deste modo, se estabelece uma extrema dependência do adulto – a esse movimento se denomina duplicação da borda do real –, pois a criança fica confrontada a uma dupla demanda por parte das funções parentais: que seja realizadora dos ideais dos adultos, ensaiando no vir-a-ser a simbolização da demanda do Outro e, ao mesmo tempo, que seja criança. Com o sujeito portador de um dano orgânico, a supracitada dependência com o Outro tende a ganhar uma nova volta, sobretudo pelas múltiplas necessidades que se estabelecem por conta das dificuldades reais.
Segundo Jerusalinsky (1989, p. 55),
(...) a dupla borda se congela, se solidifica e tende a permanecer indefinidamente, sem chegar a se dissolver em uma única borda. Aparecem assim, a submissão e a dependência prolongada [...] é pela via desta dilatação do real que irrompe a cada instante, entrecortando a cadeia simbólica, que se abre uma brecha para a psicose.
Essas variáveis dificultam a extensão da cadeia de significantes, até porque as condições reais e fantasmáticas prejudicam o deslocamento do sujeito na via de sua subjetivação, dificultando o movimento de dissolução da dupla borda. As versões possíveis, a partir da metaforização dos significantes primordiais acabam, muitas vezes, impedidas de acontecer. Disso pode decorrer um cotidiano pautado pela colagem do sujeito aos seus Outros reais3, revelando também um laço pouco elástico nesta relação. Em muitas situações, apresenta-se uma dose insuficiente de alteridade para realizar minimamente os deslocamentos necessários nas atividades diárias. Tal condição parece, em alguma medida, eternizar, do ponto de vista simbólico, a posição da infância e produzir quadros que se assemelham muito ao funcionamento psicótico.
O tempo da eterna infância
A eternização da infância do portador de dano orgânico ou do sujeito sindrômico parece funcionar como uma estratégia de defesa em relação ao luto não elaborado dos pais. Frente ao vazio do penhasco e os pontos cegos do caminho, a extensão no lugar da infância forja um arrimo simbólico.
Voltemos a tratar do espaço da construção do infantil, o tempo do futuro anterior, tempo fundador da infância. O brincar na infância é o que articula os diferentes tempos com os quais a criança tem de lidar. Trata-se, na infância, de brincar para recobrir o buraco entre a insuficiência de seu ser, o real e o ideal. Através do brincar, a criança tenta realizar o impossível da antecipação demandada na sua direção. As crianças brincam com os significantes ofertados desde o Outro familiar e social e, através das diferentes tramas e composições desses significantes, vão delicadamente tecendo os fios de sua constituição psíquica (GURSKI, 2010).
Será, portanto através do faz-de-conta, no vir-a-ser, que a criança poderá construir pontes entre a sua insuficiência atual e o ideal de futuro demandado desde o Outro. Costumamos observar, na clínica com crianças e adolescentes, que apresentam diferenças em seu desenvolvimento, uma intensa dificuldade em operar o que denominamos de polissemia na relação com os significantes recebidos desde o Outro. Nessas situações, a literalidade na leitura da demanda do Outro faz com que o brincar perca sua principal função, qual seja, articular metaforicamente, na cena simbólica, o convite à antecipação do sujeito, questão própria à subjetivação na infância (GURSKI, 2010). O constrangimento a responder, de modo real, ao imperativo desta demanda rompe com a possibilidade da criança fazer metáfora do que lhe é endereçado. É através das diferentes nuances do "agora eu era" que a criança irá armar suas significações futuras, deslizando os sentidos, de modo simbólico, a partir do que recebe do Outro.
Entretanto, quando se tratam de crianças e jovens, em relação aos quais, os pais, como representantes do Outro simbólico, pouco ou nada esperam, supomos ocorrer um estado de suspensão com relação à tessitura da inscrição simbólica e mesmo da inscrição das marcas do sujeito. Nesse sentido, esses sujeitos ficariam jogados no abismo da ausência de significação e de uma perspectiva de vir-a-ser.
O interessante é que tal fechamento não ocorre somente com a criança ao nascer; Jerusalinsky (1989) sublinha a ocorrência desta configuração também na chegada da adolescência, quando o apagamento da dimensão da sexualidade, por exemplo, obtura o futuro do sujeito e induz a família a antecipar um bebê mesmo quando se trata de um jovem adulto.
Na clínica, um dos efeitos dessa configuração é a captura do sujeito em um estado de infantilização eternizada, especialmente quando se refere às duas questões identificadas desde Freud como sinais da adultez: a possibilidade de amar e trabalhar. São sujeitos cujas vidas ficam marcadas, muitas vezes, por um silêncio absoluto em relação à própria sexualidade e à potência laboral. Tal silêncio produz a ausência da curiosidade que, geralmente, as crianças e os adolescentes apresentam com relação ao tema. Então, interessa- -nos problematizar tal apagamento simbólico como mote da eternização no espaço da infância.
Ora, o exercício do amor e da sexualidade e a capacidade de trabalho realmente servem como uma espécie de passaporte simbólico, demarcando o ingresso de todo e qualquer sujeito no mundo dos adultos. O caráter da adultez, algo, aliás, cada vez mais fugidio em nosso laço social, parece se estabelecer muito por conta desses movimentos (GURSKI, 2012). No cenário social, a importância da sexualidade é tal que, bem antes de as crianças conseguirem responder pelas questões da sexualidade, já são convocadas a se posicionar como menino ou menina. Dada a relevância do tema, perguntamos: o que se produz em um sujeito deixado à margem desses processos? O quanto de sua vida acaba sacrificado?
Roberta4, uma paciente de 12 anos, nascida com síndrome de down, foi trazida ao atendimento pelos pais, em função das dificuldades de aprendizagem já exaustivamente trabalhadas por uma psicopedagoga, sem sucesso, durante um par de anos.
Na primeira entrevista, os pais relatam momentos difíceis passados na época do nascimento de Roberta, especialmente pelo modo como o prognóstico foi transmitido. Segundo eles, teria restado pouco espaço para certa "licença poética", pois ao falar intensamente das limitações que a filha teria no futuro em função da síndrome, os profissionais da saúde envolvidos, não teriam deixado qualquer vazio para ser preenchido por sonhos, desejos ou ainda para a imaginarização de um futuro de possibilidades.
De todo modo, a queixa motivadora da consulta era realmente a preocupação com a escrita estagnada apresentada pela menina nos últimos três anos. Pela avaliação realizada junto à psicopedagoga que lhe acompanhava na época, a deficiência mental leve, efeito da síndrome, não era seu maior impedimento. Roberta tinha, do ponto de vista da cognição, ferramentas suficientes para construir os conhecimentos exigidos e, efetivamente, fazia algumas aquisições. Entretanto, estas aquisições não lhe traziam retorno, pois não estavam ligadas a nenhum interesse maior em sua vida. Ela escrevia sempre as mesmas palavras, mergulhando qualquer aquisição em um mar de repetições que a impregnavam desde a escrita até a circulação social. Esta aprendizagem mecanizada acontecia por treinamento e, diferente de um problema intelectual, revelava o pouco sentido da aprendizagem em sua vida.
O interessante deste caso é que, de um modo quase dissociado, aparecia também a queixa da família acerca de sua "sexualidade precoce, no sentido corporal" (sic), como costumavam dizer. Falavam da absoluta "ausência de noção" (sic) da filha quando o assunto era a sexualidade. Ela, facilmente, abordava rapazes na rua e até mesmo familiares, com propostas diretas de namoro, sexo e casamento. É como se entre os impulsos sexuais, o desejo e a expressão deles não houvesse nenhuma possibilidade de mediação, não lhe era possível circunscrever simbolicamente tais desejos, pois não passavam por qualquer tradução, eram tacitamente expressos em estado bruto.
Inicialmente, a família atribuía tais dificuldades à deficiência mental decorrente da síndrome, como se a razão e a inteligência fossem as responsáveis pelo saber que nos habilita a circular socialmente e compartilhar códigos de comportamentos sociais e sexuais. Ora, afora os casos de extrema gravidade, a deficiência mental leve ou moderada em si, não acarreta maiores impedimentos na elaboração das nuances da sexualidade ou mesmo sociais, desde que, é claro, haja a transmissão destas questões ao sujeito.
Segundo Schimidt (1996), a adequação sexual e social são regidas pelo ordenamento simbólico-cultural, introduzido pela função paterna, não se tratando de uma construção cognitiva. Para o psiquiatra, toda a elaboração edípica, responsável por estas construções, ocorre entre os 3-5 anos, quando a criança, em termos de pensamento, é regida pela intuição e não pela lógica.
Nas sessões com Roberta, desde o inicio, as questões surgidas faziam pensar que sua demanda era diferente das queixas da família. Tínhamos, portanto, de um lado, a demanda da família, fortemente dirigida ao fracasso na aprendizagem, e, por outro, a angústia de Roberta frente à impossibilidade de viver a sexualidade, ou, de poder falar dela como algo estruturante de uma posição que, ao menos, pontilhasse as bordas de uma promessa de futuro.
O hiato de simbolização operava neste campo do sexual, obturando qualquer condição de possibilidade e acabava por levá-la à compulsão de falar sem limites de seu desejo sexual. Em função disto, ocupava posições muito bizarras do ponto de vista social, era, por exemplo, chamada de "doida" por alguns vizinhos e familiares. Todo esse colorido, produzia um terreno simbólico empobrecido do ponto de vista das expectativas da família na sua direção, era difícil para eles, imaginá-la com autonomia; seu desejo de namorar e um dia casar não eram vistos como viáveis, pelo contrário, eram inicialmente impensáveis e dados como efeito do estado de "loucura".
Então, em uma sessão, na qual encenávamos as figuras de bandida e mocinha, brincadeira que a fascinava, ela prendeu a analista e disse: "agora tu vai vê sua cachorra o que eu vou fazer, tu só quer pensar em namorado, então eu vou comer teus miolos, tu não vai mais pensar". Neste recorte, Roberta revelava saber muito bem das impossibilidades colocadas em sua vida. Enunciava, no seu dito, a sobreposição das duas questões: se não podia pensar em namorados, então, literalmente, não podia pensar, não podia ter miolos!
Interessante interpretação essa, pois, para Freud, as primeiras investigações são sempre sexuais, isso porque a criança necessita definir seu lugar no mundo – e esse lugar é, a princípio, um lugar sexual –, referido ao tema das origens do bebê (FREUD, 1905/1980).
Nesse sentido, a fala de Roberta, em transferência, construiu o caminho das questões articuladas aqui. Ora, se o acesso ao saber sobre o sexual lhe estava negado, não é de admirar que suas inquietações e curiosidades intelectuais restassem obturadas. Qual motivo teria para crescer, para se responsabilizar e se esforçar na escola? Se não podia sonhar com um futuro como mulher, marca simbólica com grande valor em nosso laço social, qual estímulo teria para postergar o prazer imediato exigido pelo esforço intelectual?
O desejo de aprender e a curiosidade pelo conhecimento encobrem e revelam a inquietação sobre os grandes enigmas da vida e, principalmente, acerca das curiosidades quando o tema é a sexualidade (FREUD, 1910/1980). Logo, para Roberta, a não autorização do exercício de sua sexualidade e a falta de perspectiva de um futuro, faziam um buraco em sua vida. Saber delicado sobre si, o qual, ela foi, aos poucos, tecendo através das mais variadas narrativas encenadas nas sessões. Roberta representava, através do sintoma escolar de não se autorizar a "saber", o sentido que tem o apreender na vida de todos nós. Apreender, no presente, vale à pena para quem pode sonhar com o futuro. Mas, qual a razão teria aquele que tem seu amanhã interditado?
À guisa de discussão
Conforme Maud Mannoni (1991), em A criança atrasada e a mãe, para condenar um sujeito nunca é tarde demais. Poderíamos dar sequência a esta noção dizendo que o sujeito, pelo necessário banho de linguagem que o humaniza, é sempre presa de uma rede de significantes anteriores a ele e será a partir desses significantes que tomará um lugar na cadeia de significações. Assim, apesar dos diagnósticos médicos, a rede de sentidos na qual a deficiência acaba tomada não está condicionada ao real, é sempre uma questão de linguagem. Gostaríamos, portanto, de comentar essa colocação de Mannoni, refletindo sobre o lugar do analista nesta clínica, ou melhor, sobre a escuta de dois âmbitos presentes nesta clínica: o sujeito e a família.
Parece-nos que, no trabalho com a clínica dos problemas de desenvolvimento, coloca-se uma interrogação semelhante aquela, tantas vezes, presente na psicanálise com crianças: é realmente Psicanálise o que se faz? (PORGE, 1998).
Apesar de algumas especificidades desta clínica, dentre elas a necessidade tácita do diálogo interdisciplinar e o trabalho com os pais, a escuta do sujeito parte dos mesmos pressupostos fundamentais da Psicanálise, as produções do inconsciente e a transferência, portanto, não se pode deixar de lado o trabalho com o próprio sujeito, a criança e/ou adolescente. Entendemos que para esses sujeitos, é fundamental, por exemplo, que o tratamento apresente as melhores condições a fim de poderem desdobrar seus discursos e seus significantes através da fala. Algo como trabalhar aquilo que puderam construir, a partir do ofertado desde o Outro.
Também se faz necessário, tanto com o sujeito, quanto com os pais, trabalhar o denominado de estabelecimento do real, ou seja, circunscrever os limites do dano orgânico, a fim dos mesmos não se estenderem para além dos prejuízos efetivamente produzidos pelo dano real e, simultaneamente, para que não se construam demandas impossíveis na direção do sujeito. Costumamos denominar esta operação de um movimento pendular entre, denegar a dimensão mórbida do problema buscando viabilizar um sujeito e amparar os pais e o próprio paciente para não ficarem à espera de um milagre. Esta operação, denominada pendular, muitas vezes, excede o campo da psicanálise, fazendo-se necessária a busca de outros saberes e intervenções a partir do conceito de interdisciplina.
Além do estabelecimento do real é preciso ainda lidar com a denegação do desejo de morte por parte dos pais. Falar sobre a profunda tristeza produzida pelo dano e a repercussão dele, propicia uma desmistificação do trauma e a possibilidade de simbolizar a situação a ponto do sujeito e da família poder enunciar: "sim, ele é diferente, mas..." A necessidade de colocar palavras nesse luto ainda se refere ao fato de a cada situação de socialização, todos se encontrarem com o olhar de estranhamento e hostilidade no social. Esta questão produz mal-estar e, não raro, encena desarranjos nocivos para a subjetivação de crianças e/ou adolescentes e para as diferentes relações familiares e sociais.
Para arrematar as considerações feitas até aqui, não podemos deixar de evocar a importância da psicanalista francesa Maud Mannoni na constituição de um caminho psicanalítico para o tratamento dos casos de deficiência. Se Lacan, através de seu ensino, conseguiu dar um estatuto psicanalítico ao tratamento das psicoses, foi Mannoni quem inaugurou a clínica psicanalítica com os sujeitos sindrômicos. Em seu consagrado livro da década de 60, A criança atrasada e a mãe (1991), acima citado, Mannoni propôs uma semelhança entre a posição do sujeito na psicose e na deficiência, no que se refere à relação com o outro materno. Deste modo, protagonizou a abertura dos benefícios da escuta psicanalítica aos sujeitos deficientes. A partir de Mannoni, foi possível escutar a dimensão fantasmática da deficiência orgânica. A noção de que o dano real não encerra a experiência com a deficiência, pois esta está inscrita no campo da linguagem, no campo do significante (LACAN, 1988) alargou as possibilidades subjetivas desses sujeitos.
Neste sentido, não é demais lembrar que a ética psicanalítica, a ética do bem dizer – que posiciona o desejo de analista como o azimute na direção do tratamento e situa a sustentação da dimensão da falta –, segue sendo o aspecto mais caro e relevante também na escuta desses casos. Como lembra Quinet (2000, p. 9), o que caracteriza uma psicanálise não é a técnica, tampouco as regras, mas, sim a ética da psicanálise, regida pelo desejo de5 analista. Importa destacar que apesar da sabida importância em conhecer as delimitações do real na escuta das diferentes deficiências, não se trata de fazer outra clínica. Trata-se, também com estes pacientes, de recusar qualquer posição de domínio na relação com o saber, sempre privilegiando a escuta de como a deficiência repercute no fantasma de cada um que chega até nós.
É neste sentido que o analista não deve se abster de lidar com a dimensão da "cura do que não se cura" (JERUSALINSKY, 1989), tão presente nesta clínica; dimensão, aliás, que se sustenta em algo muito importante na formação analítica em geral e que está relacionado ao tema da ética psicanalítica, qual seja, a possibilidade de lidar com aquilo que falha, com o que há de mais caro para o sujeito, a falta. Isso, também, como um modo de o analista não ser mais um a temer a dimensão indecifrável do portador do dano orgânico, podendo acompanhá-lo, através de sua escuta, na construção de um lugar desejante para si; isso sem precisar jogar o sujeito de algum "tipo" de penhasco.
Referências
ARIÈS, Philippe. A história social da infância e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. [ Links ]
BERNARDINO, Leda Marisa Fischer. As psicoses não-decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. [ Links ]
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Endereço para correspondência:
Rose Gurski
e-mail: rosegurski@ufrgs.br
Andrea Gabriela Ferrari
e-mail: ferrari.ag@hotmail.com
Milena da Rosa Silva
e-mail: milenarsilva@hotmail.com
Tramitação: Recebido em 11/06/2013
Aprovado em 09/09/2013
* Psicanalista, membro praticante/APPOA, doutora em Educação/UFRGS, profa. Departamento de Psicanálise e Psicopatologia/Instituto de Psicologia-UFRGS, coordenadora NEPEIA/ UFRGS (CNPq), membro pesquisadora/NUPPEC (CNPq), autora dos livros Três ensaios sobre juventude e violência (Escuta, 2012) e Debates sobre adolescência contemporânea e o laço social (Juruá, 2012)
** Profa. Departamento de Psicanálise e Psicopatologia/ Instituto de Psicologia-Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora NEPEIA - Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Infância e Adolescência (CNPq), coordenadora Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Clínica Interdisciplinar da Infância/Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
*** Profa. Departamento de Psicanálise e Psicopatologia/Instituto de Psicologia-Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Membro NEPÉIA - Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Infância e Adolescência (CNPq) e do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Clínica Interdisciplinar da Infância/ ínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
1 Para tratar da constituição psíquica, Lacan diferencia duas instâncias: o chamado "pequeno outro", que seria o semelhante, o parceiro imaginário, e o "Outro" (grande Outro), que ele conceitualiza como a instância simbólica e, portanto, da linguagem, que determina o sujeito, sendo de natureza anterior e exterior a ele. Lugar da palavra, do tesouro dos significantes (ver LACAN, 1954/55, p. 297)
2 Nome fictício do paciente
3 Denomina-se Outro real, os adultos que encarnam a função do cuidado, ficando como representantes do Outro simbólico na infância
4 Nome fictício do paciente
5 Grifo das autoras