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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
On-line version ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.36 no.30 Rio de Jeneiro June 2014
ARTIGOS
Revisitando o método freudiano de psicanálise: impasses e transformações ensejadas pelo Eu
Revisiting the Freudian method of psychoanalysis: impasses and transformations motivated by Ego
Luiz Augusto Monnerat Celes*
Universidade de Brasília - UnB - Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é delimitar mudanças no método freudiano de psicanálise que abordem as experiências primitivas ou arcaicas. Com base nas transformações da compreensão psicanalítica, a partir da inclusão do Eu como objeto de análise, busca-se estabelecer o papel das construções como método de psicanálise. Elas trazem autonomia para o analista em relação à ausência de recordações do analisando, privilegiando-se, assim, a atenção flutuante. Um modelo de constituição do Eu, a partir da paranoia, mostra a importância do autoerotismo na base do Eu. A análise de um exemplo freudiano de construção revela que as construções esclarecem as mudanças no objeto em sua relação com o sujeito e evidenciam destinos pulsionais; nisso, a atenção ao autoerotismo se constitui fundamental.
Palavras-chave: Eu, construções, experiências primitivas, autoerotismo.
ABSTRACT
The aim of this paper is to define changes in the Freudian method that address the primitive or archaic experiences. Based on the transformations in psychoanalytic understanding, and considering the inclusion of self as an object of analysis, we seek to establish the role of constructions as a method of psychoanalysis. They grant autonomy to the analyst who deals with the absence of memories, privileging thus the 'evenly-suspended attention'. A model of formation of ego from paranoia shows the importance of the autoeroticism in the base of ego. The analysis of a Freudian example reveals that constructions explain changes in the object in its relation to the subject, and highlight instinctual destinations; here, attention to autoeroticism becomes critical.
Keywords: Ego, constructions in analysis, early experiences, autoeroticism.
Introdução
Das mudanças de rumo ou de campo da psicanálise propostas por Freud, destaco duas que nos interessam para esta reflexão. A primeira, já anunciada no caso Schreber (Freud, 1911), diz respeito ao Eu. Freud considera que, até então, a psicanálise esteve tão dedicada ao estudo da sexualidade que desprezou os estudos sobre o Eu. Seria tempo, portanto, de a psicanálise se debruçar sobre este importante fator na economia e dinâmica psíquicas. Assim, se inaugura o interesse da psicanálise pelo Eu. A partir de então, em muitos textos freudianos seguintes, o Eu virá a se constituir objeto da análise (tanto objeto do conhecimento, objeto metapsicológico, como objeto a ser analisado, objeto da investigação psicanalítica, teórica e clínica). Freud dedica-se a sua constituição, suas funções e sua organização no psiquismo, chegando às suas subdivisões e fortes determinações sobre o sujeito.1
Outro momento em que Freud explicita mudança na psicanálise, aparece em texto publicado no fim de sua vida, Construções em análise (Freud, 1937a). Nesse momento tardio, motivo talvez pelo qual não encontramos em Freud maiores desenvolvimentos do tema, diz que percebe que pouco escreveu, falou ou se preocupou com o que faz o analista na análise, pois a atenção esteve principalmente voltada para o que faz o paciente da análise. Naquele momento, então, dedicar-se-ia, num único texto, a tratar de assunto tão grave, gravidade esta que toda psicanálise posterior veio a enfatizar. Mas Freud também sugere que, tal desatenção ao que faz o analista, se devia à condição de que parecia claro e óbvio seu papel, sua função, não precisando de maiores esclarecimentos. Assim, Freud tentava diminuir a gravidade do assunto, dando-o, o assunto, por sabido e supostamente derivado do que fazia o analisando.
O objetivo deste texto é o de estabelecer as relações entre a introdução do Eu como objeto da análise e as transformações metodológicas sugeridas em Construções. Com isso, quer-se discutir, sem abandonar os parâmetros freudianos de psicanálise, meios adequados de abordagem das experiências ditas primitivas ou arcaicas, isto é, aquelas constitutivas do Eu.
1. Desenvolvimento da concepção do Eu na obra freudiana.
a) Eu da autoconservação
No que diz respeito à atenção da psicanálise sobre o Eu, tratar-se-ia, aparentemente, de uma simples extensão do campo psicanalítico, pois o Eu está presente desde as formulações freudianas sobre a sexualidade e suas determinações no psiquismo. O Eu, como se sabe, foi considerado pela psicanálise como mensageiro da autoconservação, tendo a função quase orgânica da adaptação, impedindo o livre curso dos impulsos que colocassem em risco o bem- estar e a sobrevivência do organismo. Muito caracteristicamente, então, o psiquismo é tomado como um aparelho, metáfora de outros aparelhos do organismo. Metáfora, mas realização de certa concepção organicista que parece, assim, determinar de fundo as elaborações e conquistas freudianas da psicanálise. Como se fosse permanente com olhos de fisiologista, embora nem sempre de modo explícito, que Freud investigava esse imenso campo que então se descortinava, qual seja, o psiquismo, muito cedo entendido por ele como realidade: realidade quase-orgânica, ou, nas palavras de Green (2000), metabiológica. Há, certamente, uma transferência da autoconservação do organismo como função vital para a concepção da autoconservação do Eu que zela pela vida psíquica, mas também, e não menos, pela vida do organismo em sua totalidade psicofísica. O Eu da psicanálise inicial é o que mais se aproxima da natureza, o evento mais natural do psiquismo e, com isso, carrega ou representa suas funções. Dos textos de Freud, pode-se entendê-lo, por princípio, como dado e unitário, embora profundamente moldado pela educação e ameaçado pelas moções pulsionais (p. ex., em Freud (1905/1989b).2
b) Duplicidade do Eu: personalidade e constituído pelas identificações
No caso Schreber, embora introduza ou inicie uma mudança fundamental da concepção de Eu, Freud (1911/2010), curiosamente, também alude à ideia de um Eu unidade, ainda representante da autoconservação - o que ele chama de personalidade de Schreber. O Eu personalidade, total e unitário, conservador da "identidade do sujeito", por assim dizer, é o que se opõe ao desejo inconsciente (no caso, o desejo homossexual que se apresenta na fantasia de transformação em uma mulher). O Eu-personalidade, embora possa ter a função representante da totalidade do sujeito (a que alude, afinal, o termo personalidade), é um Eu que se utiliza de processos defensivos, e se opõe a aspectos também fundamentais do sujeito. É, no caso citado, a oposição ferrenha à fantasia homossexual de Schreber. Também em Dora, vale retornar, é o Eu com aspectos de totalidade que a protege do amor incestuoso pelo pai, tendo sido este amor substituído pelo Sr. K.; é ele também que preserva de Freud o segredo que Dora mantém sobre a origem de seu conhecimento sobre a sexualidade, ainda que no caso se trate, neste nível, de uma ação consciente do Eu.
Do Eu-personalidade em Schreber, Freud distingue o Eu constituído pela síntese (mais ou menos completa) das identificações fragmentadas; Eu este que se desenvolve (isto é, se constitui, não é dado); Eu que se presta como objeto do investimento libidinal na megalomania, e que perece sob a força do conflito entre o Eu-personalidade e o desejo inconsciente. Esse Eu cujo estatuto em relação ao Eu da autoconservação ainda não está determinado no texto em referência, será a concepção que guiará Freud na transformação da psicanálise na década de 1920. Determinará a necessidade da segunda tópica (Freud, 1923a/2011), como é corrente nomear a metapsicologia freudiana que se estabelece a partir daí.
c) Eu objeto da análise
O caso Schreber, no entanto, inaugura a preocupação psicanalítica com a constituição do Eu, submetendo-o como objeto de análise. Tal análise, naquele momento, porém, não parece ir além, em seus resultados, da apreensão possível do Eu como síntese mais ou menos constituída das diversas identificações parciais com os objetos. Também se alcança entender que a síntese que se faz Eu pode, em casos específicos, ser desfeita, por meio da regressão a estados anteriores de dispersão. É o que mostra, segundo Freud, a análise do delírio de Schreber.
No entanto, nesse caso, aparece uma dificuldade específica para a compreensão do Eu. Se a "pulverização" do Eu-identificações em suas identificações originárias se realiza como efeito da forte disputa entre o desejo homossexual da fantasia de Schreber e o Eu-personalidade, que abomina sua realização, restará a ideia de que se tratam de dois eus, aparentemente independentes e com funções distintas - embora, por fim, ambos sejam prejudicados. Essa situação é o que fundamenta a questão freudiana dos efeitos da regressão da libido ao Eu (megalomania), quando Freud se pergunta se tal regressão seria suficiente para comprometer o interesse do Eu pela realidade. A regressão da libido, por que caminhos implica a regressão dos interesses do Eu? No caso em questão, Freud não tem a resposta, pois o "Eu" parece dois, não somente um que estivesse cindido. Estranha situação, na qual está implicada a manutenção do Eu da autoconservação, o Eu da adaptação (mesmo se considerando sua adaptação às condições sociais, culturais, psicológicas, e as consequentes necessárias acomodações adaptativas), e na qual se junta a descoberta da constituição do Eu, de seu desenvolvimento, o que quer dizer, de sua constituição em face da realidade.
No que diz respeito ao segundo aspecto indicado, o da constituição do Eu, o Eu se deixa analisar, chegar ao que o constituiu e o fez se desenvolver. Já em Schreber, revela-se que as partes do Eu, as que se mostram como resultado de sua análise, seriam restos das identificações com os objetos significativos que atenderam ao desamparo e às demandas pulsionais. Em verdade, o fato do desamparo que já era valioso para se compreender a instalação (por apoio) e o desenvolvimento da sexualidade, somente ganha sentido pleno na hipótese de um Eu ainda não constituído, que não é dado, cujas funções da adaptação e da conservação do "organismo" psíquico não estão presentes de imediato.
Com essas considerações, inicia-se a busca de integração conceitual da aparente duplicidade do Eu como objeto da análise. Introdução ao narcisismo (Freud, 1914/2010), como se sabe, é o texto original que objetiva estabelecer a integração das funções do Eu.
No narcisismo, o Eu será constituído por outra força que não a da autoconservação, justamente a que foi sua antiga antagônica, pois o Eu se torna efeito do investimento libidinal. O narcisismo aponta para o fato de o Eu ser, ele também, sexual em sua origem. Assim, e em resumo, o Eu se constitui como integração entre as forças da sexualidade (do narcisismo) e as forças do mundo externo que se opõem inicialmente ao Id, o que quer dizer, mundo externo que se opõe ou que não é afável, não é necessariamente condizente com as forças pulsionais do Id. Entre as exigências do Id e a inospitalidade do mundo externo às realizações pulsionais, se formará o Eu que, curiosamente, representará para o mundo externo as exigências pulsionais do Id, e representará para o Id, a necessidade da adaptação. O conflito, então, vem à superfície, ou, parafraseando Freud, se mostra a céu aberto. Daí se justifica a representação gráfica proposta por Freud (1923a/2011, p. 30), na qual o Eu tem uma de suas extremidades mergulhada no Id, tornando-se dele indistinto e a outra extremidade como superfície de contato com o mundo externo.
d) Consequências do Eu para a psicanálise freudiana
Como se sabe, Freud privilegiou o pulsional como a base do psiquismo e o destino das pulsões como fundamento da arquitetura psíquica e desprezou em parte a função, tão cara à psicanálise contemporânea, da especificidade dos objetos como base e determinação do psiquismo. Freud estaria mais voltado para o mergulho do Eu no Id e a inconsciência parcial do Eu e, menos dedicado, à face do Eu voltada para o exterior, embora não a ignorasse. No entanto, ao invés de procurar em Freud aspectos que sustentem em sua teoria e clínica sua proximidade à função específica dos objetos, o que em muitos sentidos é possível de ser feito, aproximando, por assim dizer, a psicanálise freudiana da chamada psicanálise contemporânea no seu aspecto mais característico (o das relações de objeto), nos restará buscar em Freud e em sua primazia do pulsional a possibilidade de tratar o que se convencionou chamar de experiências arcaicas. Experiências arcaicas são as precisamente entendidas como as responsáveis pela constituição originária do Eu, ou da mínima e primeiríssima arquitetura do psiquismo. Tal entendimento de experiências arcaicas ganha sentido a partir da segunda tópica, exatamente porque nela, o primitivo pulsional fica legado à indiferenciação do Id. Neste sentido, distancia-se Freud do modelo do psiquismo traçado no sonho, para o qual modelo (por que não dizer, modelo neurótico) a pulsão, entendida como representante psíquico dos estímulos corporais, se constitui ela mesma uma representação, um mínimo de psíquico, como, aliás, bem o expressa a noção de Inconsciente da primeira tópica. O problema, que aqui se coloca em sua plenitude, é como se ter acesso às experiências arcaicas de constituição do psiquismo (e de constituição do Eu) pela via do privilégio pulsional da psicanálise freudiana.
Permanece, a meu ver, a questão do destino, por assim dizer, da psicanálise freudiana com a introdução da análise do Eu. Que proposta freudiana ou mudança efetiva por ele introduzida no método psicanalítico pode ser apreendida de seu texto ou esteve efetivamente nele expressa? Diferentemente do exemplo dos novos fundamentos dos teóricos das relações de objeto para sustentar a análise modificada (que, aliás, não desenvolveremos por não se constituir resposta ao problema aqui colocado), perguntamos pelo que se deu na psicanálise freudiana a partir do impasse produzido pela introdução do Eu, precisamente do Eu enraizado no Id, isto é, do Eu profundamente determinado pelo pulsional? Permaneceu toda a psicanálise freudiana clássica em seu método, voltada para o tratamento neurótico? Somente isso, nada se passou? O Eu na teoria freudiana constituiu-se como boa teoria, sem ligação com o tratamento, estéril, portanto, como psicanálise?
2. Desenvolvimentos do método: a construção em análise
a) Impossibilidade da rememoração e seu abandono no método
Segundo o entendimento de César e Sára Botella (2003), Construções em análise (Freud, 1937a/1986) trouxe para o analista uma autonomia, o que o torna relativamente independente da recordação do analisando para a condução da análise. Sugiro entender com Kristeva (1996) que a rememoração como clínica da psicanálise foi efetivamente abandonada por Freud desde a Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1987) e sabemos que a renúncia à rememoração se afirma de maneira explícita no Caso Dora (Freud, 1905a/1989), sendo ela, a partir de então, usada como objetivo teórico na condução regressiva da psicanálise, mantendo-se, Freud, num empreendimento do resgate genético das enfermidades em análise.
As construções completam o que não é lembrado. Tratar-se-iam, as construções, da composição de um quadro o mais completo possível da pré-história dos analisandos, embora sejam sempre provisórias e fragmentadas, aguardando complementos de construções e, o mais importante, reações do analisando que apontem para um movimento pulsional provocado pela construção. A construção é o que César e Sára Botella indicam como autonomia do analista diante da falta de lembrança ou de associações do analisando, justo a falta que mostra na análise o inalcançável da pré-história, o que não pode ser lembrado, pois jamais foi consciente, ou o que não recebe palavras associativas porque jamais as teve. Experiências arcaicas, sugeriria nomeá-las Roussillon (2012), pré-simbólicas, pré-históricas na terminologia freudiana, vivenciadas anteriormente à aquisição da linguagem. Melhor do que "anteriormente à aquisição", seria conveniente dizer, inclusive para nos livramos de aspectos da aprendizagem e do desenvolvimento (caras à psicologia e ao senso comum), que são vivências que estão fora da possibilidade de serem representadas a partir da linguagem e permanecem, por isso, não simbolizadas. Marcas das vivências de satisfação ou traumáticas que em casos bem sucedidos, por assim dizer, passaram posteriormente por longo trabalho psíquico para associar-se a representações verbais e ter, para o sujeito, algum sentido, alguma "significância", para dizer de modo menos técnico ou linguístico, acompanhando Kristeva (op. cit.).
Acredito que não nos encontramos assim muito distantes das concepções freudianas expressas em Construção em análise. Em 1937, Freud afirma que, das experiências primitivas, muitas vivências não são recuperadas na forma de lembranças pelos analisandos. Para se concluir o quadro genético de uma neurose, o analista precisa preencher essas antigas lacunas com suas construções. Seus efeitos de convicção, para resumir, terão o mesmo valor terapêutico de uma lembrança recuperada, assevera ele. Ora, mas como se figuram para o analista as construções?
b) A figuração das construções
Embora Construções em análise tenha o objetivo explícito de expor o trabalho do analista, dado que a psicanálise, segundo o entendimento de Freud, esteve muito mais voltada para a compreensão do que faz o analisando em análise, embora, repito, esse objetivo explícito, o processo de figuração das construções é complexo e não aparece imediatamente apreensível. Acompanhando o texto de Freud, verifica-se que Freud se inicia reafirmando a posição de atenção livremente flutuante para terminar com ilações sobre pensamentos, alucinações e delírios, assemelhados às das psicoses, que acometeriam o analista.
A atenção flutuante permanece como a atitude que caracteriza a função do analista. É ela a mesma, já estabelecida desde a Interpretação dos sonhos (1900), e que pode ser compreendida como atitude suplementar à do analisando que é a da associação livre. São, portanto, a associação livre e a atenção flutuante que permitem a interpretação. Embora a atenção flutuante, complemento da regra fundamental da associação livre, permaneça basal na elaboração do método de psicanálise que no texto citado está sob questão, e, com isso, Freud esteja reafirmando o inconsciente como a conquista fundamental da psicanálise, ele, no texto, vai além. Pergunta-se, como se sabe, pelo que não se apresenta na forma da lembrança e que nem mesmo pode ser alcançado como tal. Como ter acesso às experiências ou fragmentos de experiências (constitutivas do Eu, por suposto) que não foram propriamente recalcadas, mas que, na pré-história do sujeito, foram determinantes para a constituição e "formatação", por assim dizer, do psiquismo?
É precisamente aí que o analista ganha autonomia, segundo expressa César e Sára Botella (op. cit.). Autonomia essa que se realiza nas construções que ele propõe em análise para a compreensão e a reconstrução da pré-história do sujeito da análise. As construções são iniciativas do analista, embora ele permaneça alicerçado no que diz o analisando. Mas não completamente na espera, em atenção flutuante, das cadeias associativas, a que, como na interpretação, o analista sugira pequenos e pontuais complementos. As construções não são complementos às associações do analisando e nem o analista restritivamente trata de ouvir (o que já seria muito) a associação que o discurso narrativo do analisando possa revelar. Elas não são revelações de complementos associativos ou sentidos latentes (inconscientes reprimidos). Diferentemente disso, nas construções trata-se de apresentar ao analisando um fragmento de sua pré-história esquecida. Uma construção se assemelha, no exemplo dado por Freud (1937a/1986, p. 262-263), a uma pequena história da pré-história esquecida. No entanto, não são, nem por isso, histórias definitivas. Não é sem razão que Freud, no texto de 1937, insiste que tais construções são fragmentos preliminares, que vão se complementando, com abandonos e acréscimos, com novos fragmentos de construções que se fazem possíveis após as reações dos analisandos ou os efeitos de cada construção sobre ele.
c) Reafirmação do inconsciente como base da reflexão psicanalítica - incluindo o Eu
Assim, em Construções em análise, Freud não parece se desvencilhar dos fundamentos que validaram a descoberta e a exploração do inconsciente. Convém, então, frisar o óbvio, entretanto, facilmente esquecido em muitas das discussões e apreensões da psicanálise no sentido teórico e prático, qual seja, a ideia de que o inconsciente define o psiquismo, mas também a ideia de que ele sustenta e dá legitimidade ao que a psicanálise introduziu e desenvolveu como método original de tratamento psíquico. É o inconsciente o que se visa na psicanálise, ou dizendo de modo bastante conhecido, o inconsciente é o objeto da psicanálise. Até mesmo o Eu, ele somente se torna objeto da psicanálise, como acima discutido, quando é inconsciente. Para distinguir o inconsciente que se verifica no Eu dos outros dois já definidos, quais sejam, o latente no sentido pré-consciente e o inconsciente recalcado, Freud introduz um terceiro inconsciente, tão sistemático ou processual como o recalcado, mas que desse se distingue por não ser recalcado.
Embora verifique que a introdução de nova forma de inconsciente acarrete certa diluição da sua importância na teoria e prática da psicanálise, dificultando o uso abrangente que dele pretendia fazer Freud, afirma que, no entanto, o inconsciente é a única "luz na escuridão da psicologia das profundezas" (Freud, 1923a/2011, p. 22). O inconsciente é o que distingue a psicanálise de outras modalidades de tratamento psíquico (de psicoterapias), mas também a distingue do modo filosófico do pensamento.3
Seguindo último texto citado, O Eu e o Id, verifica-se que o terceiro inconsciente, introduzido para justificar o Eu como inconsciente em sua maior porção, parece, por contiguidade do argumento freudiano, se caracterizar pelo que Freud nomeia de forças do recalcamento e da resistência. De fato, as defesas inconscientes do Eu não podem ser propriamente entendidas como recalcadas e nem mesmo como inconscientes, no sentido latente, que é característico do pré-consciente. São o que se opõem aos investimentos objetais do Id e, como tais, próprias do Eu, por definição, portanto, não são recalcadas, mas forças do recalcamento.
No que pese a contiguidade apontada, a afirmação de Freud, que se vê conduzido a postular um terceiro inconsciente (distinto do pré-consciente e do recalcado), permitiu e permite a justificação de bastante outras interpretações que estão além da simples assunção das defesas como inconscientes. O inconsciente do Eu não se resume às formas (ainda que variadas) das defesas. Pode-se sugerir, como se o faz regularmente, que o inconsciente não recalcado do Eu se entenda também como o que não é ou não foi simbolizado. Experiências constitutivas do Eu que não foram associadas às representações verbais, o que teria se dado, conforme sugere entender Roussillon (2012), por exemplo, por motivo de alguma falha na síntese narcísica (ideia que ele, Roussillon, teria tirado de Freud ele mesmo). É precisamente para abordar a inalcançável "lembrança" da experiência não simbolizada e, no entanto, constitutiva do Eu que s e justifica a elasticidade da clínica psicanalítica contemporânea (Figueiredo; Savieto ; Souza, 2013).
d) Freud também se afasta da psicanálise chamada padrão
Mas Freud, em Construções em análise, também está se afastando do que se convencionou chamar de psicanálise padrão, que tem no sonho (na Interpretação do sonho) o seu modelo. É o motivo, por suposto, para que Freud, nesse texto tardio de sua obra, empenhe-se sobre a questão: "O que faz o analista?"
A "palavra do paciente" (Freud, 1937a/1986, p. 263) permanece sendo, nessa espécie de psicanálise modificada pelas construções, o crivo das intervenções do analista. Colocamos entre aspas "palavra do paciente" não somente porque se trata de uma citação de Freud, mas também para dar à "palavra" um sentido metafórico. Como Freud amplamente discute na sessão II do texto em foco, são muito diversas as reações do analisando que se juntam, muitas indiretamente, à construção do analista. Até mesmo se consideram reações que não são palavras, tais como silêncios, ocorrência repentina de angústia, atuação de caráter transferencial e, até mesmo, reação terapêutica negativa. Não estamos nos melhores dos mundos, pois cada reação (palavra ou não) se anuncia como reinício de trabalho, até que, é a esperança de Freud (talvez questionável), se chegue ao final. Não vamos, no momento, discutir esse "final" de que fala Freud, e que se assemelha à crença na possibilidade de uma construção completa e inequívoca da pré-história esquecida do paciente, que produza nele um sentimento de convicção, a partir do qual nada mais se tenha a fazer. No entanto, o caso não parece ser bem esse.
Alguns meses antes de Construções em análise, em Análise terminável e interminável (1937b/1986), Freud sugeria intransponíveis dificuldades para o fim da análise: intensidade da libido, conflitos que não emergem na transferência e dificuldades do Eu que pode se alterar profundamente em consequência de suas atividades defensivas contra as pulsões ou que se encontra insuficientemente constituído diante de intensidade pulsional irresoluta. Todas trariam como consequência uma "fraqueza da síntese", como se expressa Freud (1941 [1938]/1986, p. 301) em Conclusões, ideias e problemas. A anotação de Freud é a seguinte: "Fraqueza da síntese: conservação do caráter dos processos primários" (idem, idem). Essa seria a explicação para a conservação de todas as diferentes reações das vivências primitivas, em oposição ao que acontece com as experiências posteriores.
Roussillon, como já indicamos acima, sugere entender que se trata de falha na síntese do Eu, o que é razoável admitir, a partir de Introdução ao narcisismo (Freud, 1914/2010), pois é o Eu que se sintetiza e que promove a síntese. Mas, não podemos nos esquecer de que - desde o Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905b/1989) - a genitalidade é a responsável pela síntese das pulsões parciais que caracterizam a sexualidade infantil, que caracterizam as experiências primitivas da sexualidade. Após diminuir o peso da maturidade orgânica para esse fim, o complexo de Édipo se constitui, em Freud, o núcleo da síntese das experiências primitivas e seus destinos, com mais intensa (neurose) ou menos intensa conservação das fixações que se estabeleceram no curso do desenvolvimento. A tardia interpolação da organização genital infantil (Freud, 1923b/2011) não muda a ideia do papel da genitalidade na síntese da experiência primitiva, mas a reafirma, agora sob a égide do complexo de castração que se processa em referência ao complexo de Édipo. O Eu como síntese corporal - portanto, das zonas erógenas da sexualidade infantil - e como primeiro e privilegiado "objeto", capaz de reunir a dispersa libido da sexualidade infantil, coroa, assim, as forças sintéticas para a efetivação dos investimentos unitários de objetos completos (caricaturalmente dizendo, claro!).
Tantas são as forças da síntese! No entanto, derrotadas, mais ou menos gravemente, pela força da pulsão sexual das experiências primitivas e pela força da sexualidade infantil. Aliás, convém lembrar que "sexualidade infantil" é o conceito de sexualidade na psicanálise. Isso quer dizer que a sexualidade é essencialmente perversa polimorfa, não se tratando de uma condição datada na história ontogenética dos sujeitos. Em outras palavras, o conceito de sexualidade na psicanálise afirma que ela permanece infantil. Está aí a constatação psicanalítica de que jamais será o caso de se cumprir de maneira plena a síntese nomeada por Freud em 1938. A falha ou fraqueza da síntese é condição essencial do humano, fazendo valer a máxima freudiana de que o grau, a intensidade ou a exclusividade dos aspectos sintéticos e dos não sintetizados é que serão responsáveis pelas enfermidades (termo freudiano) sobre as quais a psicanálise se debruça tratando e compreendendo. É o que expressa a comparação que Freud faz entre a fragmentação dos cristais e a fragmentação do psiquismo nas patologias: ambas as fragmentações não seriam aleatórias, mas estão submetidas a estruturas pré-existentes e invisíveis (Freud, 1933/2010c). Mas, em resumo, o que determina a fraqueza da síntese do Eu, síntese esta que parece ser a mais decisiva nos casos graves da patologia, e cuja síntese do Eu parece ser decisiva para a confluência das outras forças sintéticas?
3. A construção e seus componentes
a) O exemplo freudiano de construção: legitimidade de seu uso
Vou tomar o exemplo de construção oferecido por Freud (1937a/1986) a título ilustrativo. Não encontro nenhum obstáculo para usar ilustrações de Freud para desenvolvimentos teóricos, ou para nos ajudar a compreender o alcance de seu desenvolvimento. Caso contrário, teríamos que supor uma absoluta aleatoriedade das ilustrações de Freud. Elas são, em verdade, como no caso, alicerçadas na experiência clínica de Freud. Ele mesmo nos ensinou que, na clínica psicanalítica, o exemplo é a coisa mesma que se procura. Nada nos impede de legitimamente procurar o que Freud nos diz com seus exemplos; nada nos impede de analisá-los em suas facetas.4
Às páginas 262-3, da edição consultada, Freud exemplifica uma construção que proporia a um analisando imaginado:
«Até sua idade x, você se considerou o único e irrestrito possuidor de sua mãe. Veio então um segundo filho e, com ele, uma séria desilusão. A mãe o abandonou por um tempo e nunca mais voltou a consagrar-se com exclusividade a você. Seus sentimentos com respeito a ela se tornaram ambivalentes, e o seu pai ganhou um novo significado para você», etc. (tradução nossa).
Dois aspectos estão presentes nesse exemplo, embora não nomeados: a castração e o Édipo. O primeiro se subentende como: 'Perdi a posse de mamãe, portanto não sou tudo para ela, não sou sua satisfação ou, mais radicalmente dito, não sou seu falo'. Esta talvez possa ser entendida como a experiência mais originária (e mesmo primitiva) da relação do sujeito com o outro, isto é, a experiência de não ser sua majestade o bebê! Tal experiência simultaneamente introduz e supõe alguma separação entre o Eu e o outro e alguma autonomia do Eu. Melhor dizendo: supõe alguma autonomia mínima que seja do Eu (um esboço do Eu, se se pode falar assim) e a mesma experiência de separação introduz a distinção Eu-não-Eu. O segundo aspecto é que essa distinção não se completa sem a presença de um terceiro - trata-se, então, do Édipo.
b) Duas perspectivas que fundamentam a construção
Duas perspectivas, inicialmente antagônicas, podem guiar o olhar e a compreensão do psicanalista sobre a construção freudiana e seus efeitos ou virtuais consequências para o sujeito. A primeira (mais tardia na constituição do movimento psicanalítico) pode tomar as malévolas consequências do fragmento de pré-história sugerido por Freud a partir das influências do mundo externo sobre a constituição do Eu, o que sugerimos acontecer naquilo que se convencionou chamar de psicanálise contemporânea. Nem tão contemporânea assim, se considerarmos sua primeira abordagem em meados do século passado, com Fairbairn (1952/1980), por exemplo. Os malefícios para o sujeito adviriam das falhas maternas em seu necessário afastamento e na inadequada apresentação do pai. Uma falha ou uma insuficiência do objeto estariam em primeiro plano na compreensão da patologia que de tal história teria advindo. Estaríamos novamente diante do já famigerado "tribunal de mães!".
Penso que há outra maneira de abordar a questão, mesmo considerando a perspectiva anterior de maneira mais adequada e elegante como a história da psicanálise após Freud testemunha. A outra maneira diz respeito ao que se passa com o sujeito - irrestrito possuidor, desilusão, sentir-se abandonado, novo significado do pai, etc. - que, embora expresse o estado emocional e afetivo do sujeito, aponta na verdade para as vicissitudes dos seus investimentos de objeto. Seríamos fiéis a Freud, ao dizer que apontam para as mudanças dos investimentos do Id sobre os objetos cujos efeitos pesam sobre o Eu. Afinal, quando se propõe uma construção como tal ao sujeito da análise, o que é que se tem como alvo? Os movimentos dos objetos (mãe, irmão, pai) ou as repetidas necessidades de soluções (deslocamentos, condensações, regressões, sublimações etc.) para os investimentos pulsionais, diante de repetidas insatisfações? Está-se privilegiando, assim, a questão econômica dos investimentos libidinais, embora estejam subjacentes as determinações dinâmicas impostas pelas frustrações dos objetos, para o dizer de forma resumida. Assim, também são abordadas as modificações do Eu devido aos inves-
timentos de objetos e seus abandonos relativos ou absolutos. Freud já alertara que não somente o investimento do Id no objeto modifica o Eu (uma vez que este, o Eu, faz a mediação), mas também o modifica profundamente, porque o abandono de um objeto se dá às custas de uma identificação do Eu com o objeto, ficando o Eu como objeto substituto, com o fim de facilitar a mobilidade libidinal e a busca, se tudo correr bem, de novo objeto de investimento (Freud, 1923a/2011).
Vê-se que estamos diante do modelo da melancolia, que parece ser, desde Freud (1917/2010) até Green (1988), o parâmetro privilegiado em psicanálise para pensar o Eu e suas dificuldades de constituição e síntese. No entanto, as questões das identificações e sua força na constituição do Eu, particularmente no que diz respeito a seus estádios mais primitivos, aqueles próximos do autoerotismo e da fragmentação do corpo, podem ser abordadas sob um outro modelo, também presente na obra freudiana, qual seja, o da paranoia.
c) O autoerotismo e o modelo da paranoia
O autoerotismo possui algo de uma condição autorreferente, de identidade corporal erótica, embora fragmentada. É o que nos parece ser possível apreender das considerações de Freud nos estudos sobre a paranoia. Destaca-se o caso Schreber (Freud, 1911/2010), no qual o estado fragmentado do Eu aparece no delírio como subdivisões do perseguidor, o pai e seus substitutos (Flechisig e Deus). Freud observa que, diferentemente da histeria, a paranoia reduz as identificações a seus componentes básicos, sugerindo certa fraqueza de sua síntese. A Memória de um doente dos nervos (S chreber, 1903/1984) está repleta de narrativas de atividades voluptuosas, a que Schreber está obrigado a repetir. Prazeres sensoriais destacados em zonas erógenas, como a anal, que revelam, pelo seu caráter de repetição compulsiva, tentativas de apoderamento das atividades autoeróticas e de posse do próprio corpo ainda que de maneira parcial. César e Sára Botella (2003) sugerem que a carência autoerótica (das vivências autoeróticas) tem por significação o desprovimento de um verdadeiro corpo erógeno. Essa carência busca ser resolvida através de uma identidade com um duplo homossexual, o que constituiria uma homossexualidade de identidade. Essa homossexualidade, posteriormente - seguindo a análise de Freud em Schreber -, seria tratada como desejo homossexual pelo Eu, Eu este modificado pelos diversos investimentos do Id nos objetos e seus abandonos. Isso expressa o conflito mais aparente da paranoia. Conflito que, afinal, encobriria as questões mais primitivas da formação de uma identidade corporal erógena. Seria assim que o conflito e suas derivações deixariam à margem da emergência transferencial e contratransferencial as experiências arcaicas autoeróticas.
A paranoia analisada por Freud traz duplo ensinamento sobre as experiências primitivas ou arcaicas: 1) a presença das identificações fragmentadas como pré-condição para a síntese do Eu em identificações mais ou menos totalizadoras (síntese que o paranoico não teria feito senão de forma falha, o que o conduz a uma "homossexualidade de identificação" (C eles, 2005), e 2) a anterioridade do autoerotismo para a constituição das identificações do Eu.
d) Autoerotismo e autonomia
O autoerotismo seria, conforme entendimento de Botella & Botella, primeiríssimo indício de autonomia do sujeito (não encontro outra palavra). Mas um sujeito corpo, melhor dizendo, um Eu corporal pré-Eu, destaques corporais de autoerotismo fragmentado que indicam certa autonomia para a satisfação na forma do prazer de órgão (satisfação sexual, portanto). Chuchar o polegar (atividade mais elementar do autoerotismo) torna a satisfação pulsional independente do objeto, da presença efetiva do seio materno. Embora se possa e se deva pensar o autoerotismo como experiências arcaicas (pré-históricas) da constituição do Eu e de sua síntese, o que se torna mais marcante no autoerotismo é a autonomia da pulsão na busca de satisfação. Desta maneira, sugiro entender a autonomia pulsional do autoerotismo como condição para a formação do Eu mais ou menos sintetizado com suas identificações, mas também, é o complemento que sugerimos fundamental, como antecipação do Eu como objeto total do investimento libidinal, para a unificação do corpo, que é o que se expressa no narcisismo. Enfim, pode-se afirmar que é através do Eu e das condições prévias de seu lugar e valor na cadeia de satisfação pulsional - na "cadeia de Eros", sugeriria dizer Green (2000) -, que se alcança o objeto. Seja o objeto ainda muito indiferenciado como nas primeiríssimas experiências de satisfação (mãe primitiva e objetos parciais); sejam objetos mais diferenciados até a constituição do objeto como terceiro (mãe, irmão, pai, objetos da escolha amorosa, etc.). Também será, então, através do lugar e do valor do Eu na cadeia de satisfação pulsional, que se podem formular construções transformadoras, que tenham valor terapêutico.
e) O que ouve o analista para as construções
Voltemos então às nossas questões mais iniciais. A primeira delas: o que ouve o analista ao coligir rastros do infantil deixados pela fala do analisando, particularmente quando sua fala não é associativa e que permite ao analista construir fragmentos da pré-história (fragmentos das experiências arcaicas) do sujeito da análise? O que ele "ouve", na forma de pensamentos que lhe são espontâneos e autônomos, quase como delírios (reafirma Freud, na parte final de Construções em análise), são os destinos da pulsão emergente em sua forma mais primitiva, os destinos autoeróticos e os primeiros investimentos de objetos, bem como as modificações que esses investimentos do Id nos objetos produzem no Eu.
Seguindo-se essas três etapas, estaria formulada uma construção completa, o que não é o caso de acontecer (a não ser numa tentativa de síntese da análise posterior à sua conclusão, como o fez Freud (1909/1988) no caso Homem dos Lobos). As construções também são fragmentos de sínteses, ora privilegiando um aspecto, ora outro. Aqueles exatamente preliminares e necessários à constituição do Eu no narcisismo. De qualquer modo, as construções tratam de destinos pulsionais, da pulsão emergente no analisando no momento de sua fala, daquela emergente que não encontra palavras adequadas ou sequer palavras, pois seriam investimentos pulsionais não simbolizados e que, por motivos diversos, carecem de representações verbais. As vivências pré-simbólicas manter-se-iam na análise paralelamente às imposições transferenciais e contratransferenciais, e, para os Botellas, surgiriam como figurações que "representariam" (as aspas são nossas) as vivências autoeróticas. Primeiros momentos dos investimentos pulsionais e das identificações provocadas como reações do Eu à perda de objeto do Id.
f) O fundamento da figuração no analista das construções
A segunda das questões: como se figura no analista as primeiras cenas do investimento pulsional, incluindo as autoeróticas? A resposta freudiana em Construções em análise, como acima observado, é bastante curiosa, pois Freud aproxima a atividade (interna, elaborativa, por assim dizer) do analista à alucinação e ao delírio psicóticos. Como se espera, por saudável, o analista não psicotizar, podemos supor que algo como uma identificação profunda se passe no analista, como uma identificação de identidade (se é que posso falar assim), que se faz possível pela similaridade universal das possibilidades dos primeiros investimentos pulsionais. Assim, as fantasias primitivas seriam âncoras da universalidade dos primeiros investimentos pulsionais. É também o que podemos entender quando Freud sugere marcas ou modificações do Eu na dinâmica dos investimentos do Id nos objetos e seus abandonos, como discute de maneira bastante complexa e não propriamente linear e evidente em O Eu e o Id (Freud, 1923a/2011), e que ele supõe sejam transmitidas filogeneticamente. Se não bem a experiência singular de cada um, os traços restantes da história da humanidade em cada um, traços que podem ser transmitidos pela linguagem (F orrester, 1983), herança elementar do processo civilizatório, seriam a base para a identificação identitária do analista de que estamos falando. Por este meio, narrativas incertas do analisando podem fazer acontecer no analista pensamentos que completem ou preencham o vazio das experiências para as quais faltam representações verbais.
Para concluir, verificamos que o texto freudiano se atém à construção que visa às relações do Eu com o Id. Nota-se a preocupação de cuidado com o Eu que se encontra mergulhado no Id e dele indiferenciado. A outra extremidade do Eu, oposta, por assim dizer, volta-se para o mundo externo. A vinculação que Freud faz, em O Eu e o Id, entre o investimento pulsional de objeto do Id, que não somente passa pelo Eu, mas que também o modifica como representação do objeto escolhido (investido) e como identificação do objeto abandonado, não permite que o analista se esqueça ou menospreze o papel das pulsões na constituição do psiquismo e nem o seu valor no tratamento. Além, é claro, da função do objeto que tem sido largamente investigada e proposta pela psicanálise após Freud.
Referências
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Artigo recebido em: 08/11/2013
Aprovado para publicação em: 09/01/2014
Endereço para correspondência
Luiz Augusto Monnerat Celes
E-mail: lamceles@gmail.com
*Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), pesquisador-colaborador do Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura/UnB (Brasília-DF-Brasil).
1Adotamos a sugestão de termos e a grafia da tradução de Paulo César de Souza, em O Eu e o Id, Freud, 1923a.
2Não é exatamente no sentido aqui sugerido que Green emprega na obra citada o termo. Faço dele uma extensão, pois o julgo profundamente apropriado para o caso.
3A psicanálise tomada como pensamento, como filosofia, é aspecto que não discutirei. Embora modo infrequente de a tomar, e até mesmo privilegiado em alguns setores, no caso, corre-se o risco de segundar sua origem e função principais, a de um trabalho de tratamento singular das afecções neuróticas. Risco percebido por Freud (que, no entanto, abriu sua possibilidade), quando a recusa como visão de mundo (Freud, 1933/1989e, p. 146-168, En torno de una cosmovisión ['Weltanschauung'].
4Além de tudo, o exemplo a seguir transcrito remonta ao caso Homem dos Ratos, embora no texto Construções em análise não se encontre essa referencia e nem considerações em face do caso.