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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro July/Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Desamparo e laços sociais na escola: uma oficina com adolescentes da rede pública

 

Helplessness and social bonds at school: a group activity with adolescents from public school

 

 

Luciana Gageiro CoutinhoI, II*; Maria Manuela Dias Ramos de MacedoI, II**; Fernanda Mara da Silva LimaII***; João Francisco Pereira MarumII***

ICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
IIUniversidade Federal Fluminense - UFF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo é fruto de uma pesquisa em andamento, realizada na interface de psicanálise, educação e ciências sociais, a respeito do sofrimento psíquico na adolescência e suas expressões nas instituições educativas, interrogando-o naquilo que ele pode dizer sobre o estado do laço social no contemporâneo. Apresenta uma oficina realizada em duas escolas da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, apostando na construção de um dispositivo de escuta analítica no coletivo como instrumento clínico e político. A partir disso, o artigo tece algumas considerações sobre os impasses relativos aos laços sociais nas escolas e como isso se articula com o desamparo expresso em palavras e em atos pelos adolescentes.

Palavras-chave: Adolescência, Educação, Psicanálise, Desamparo, Laço social.


ABSTRACT

The present article is a result of an ongoing research, performed in the interface of psychoanalysis, education and social sciences, concerning psychic suffering in adolescence and its expressions in the educational institutions, interrogating it in what it has to reveal about the status of social bonding at the present time. The article presents a workshop that took place in two public schools of the state of Rio de Janeiro, focusing on the construction of an analytical hearing device in the collective as a clinical and political tool. From that, it weaves some considerations about the relative impasses of social bonding in schools and how it articulates with the helplessness expressed in words and actions by the adolescents.

Keywords: Adolescence, Education, Psychoanalysis, Helplessness, Social bond.


 

 

Introdução

Este artigo surge a partir de uma pesquisa em andamento na Universidade Federal Fluminense1, a partir da constatação do impacto que a problemática do sofrimento psíquico na adolescência vem trazendo para as instituições educativas e de saúde que atendem a essa população. O alto índice de suicídios e outros atos autolesivos, contexto já mapeado pelos órgãos de saúde nacionais e internacionais, expressa a gravidade desta situação que tem se tornado premente nos serviços de atendimento psicológico e psiquiátrico infanto-juvenil, bem como nas escolas e universidades que recebem jovens em todo o país.

A pesquisa busca se debruçar sobre essa situação e refletir sobre o que esse fenômeno pode dizer acerca do estado do laço social vigente. A partir da noção de desamparo fundamental postulada por Freud (1950[1895]/1996), reflete-se sobre a forma pela qual a dor atrelada aos impasses no viver dos adolescentes na contemporaneidade pode se articular com a condição de vulnerabilidade2 no laço social, que afeta particularmente os jovens brasileiros frequentadores de escolas públicas. Acredita-se que tal investigação possa contribuir no enfrentamento da questão do sofrimento psíquico na adolescência, marcado pela presença de tentativas de suicídio e de outras formas de autolesão, nas instituições educativas, tomando-as como instâncias de intermediação da relação ao espaço público, fundamentais na adolescência.

No artigo, serão apresentadas algumas reflexões a partir de uma oficina realizada com nove turmas de ensino fundamental e médio em duas escolas da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, em caráter exploratório, inserindo-se como parte do trabalho de pesquisa-intervenção planejado no âmbito do projeto de pesquisa em questão. Propõe-se aqui tecer algumas considerações a respeito dessa experiência e do que ela permitiu pensar a respeito dos impasses relativos aos laços sociais nas escolas em que se esteve, bem como sobre de que forma isso se articula com o desamparo expresso em palavras e em atos pelos adolescentes participantes da pesquisa.

 

Adolescência e desamparo: por uma educação para a vida

Vale a pena viver? Essa é a questão sempre presente, de forma explícita ou implícita, em toda adolescência. O tema é pensado através da psicanálise pela primeira vez em 1910, quando Freud participa em Viena de um Simpósio sobre o Suicídio, por conta de casos recorrentes entre alunos de escolas secundárias, e levanta algumas questões que ainda hoje podem servir de guia para abordá-lo. Naquela ocasião, na tentativa de explicar os casos de suicídio, Freud faz menção a uma "libido desiludida" (FREUD, 1910/1996, p. 246) e aponta para a necessidade de ter maiores conhecimentos acerca da melancolia, mas não vai muito adiante. Entretanto, no que diz respeito à implicação da escola no "desejo de viver", Freud é enfático e aponta que a escola secundária, por receber alunos adolescentes, não pode se furtar a refletir sobre tal situação.

Se é o caso que o suicídio de jovens ocorre não só entre os alunos de escolas secundárias, mas também entre aprendizes e outros, este fato não absolve as escolas secundárias; isto deve talvez ser interpretado como significando que no, concernente a seus alunos, a escola secundária toma o lugar dos traumas com que outros adolescentes se defrontam em outras condições de vida. Mas uma escola secundária deve conseguir mais do que não impelir seus alunos ao suicídio. Ela deve lhes dar o desejo de viver e devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e com a família. Parece-me indiscutível que as escolas falham nisso, e a muitos respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para a família e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior (...). A escola nunca deve esquecer que ela tem de lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um pouco desagradáveis. A escola não pode ajudicar-se o caráter de vida: ela não deve pretender ser mais do que uma maneira de vida (FREUD, 1910/1996, p. 245).

A adolescência pensada como momento de reinscrição do e no laço social, de novo encontro com o Outro (ALBERTI, 2004), amplia e faz reverberar ainda mais a questão a respeito do lugar da escola nessa travessia. Travessia que implica deparar-se com a reedição da experiência de desamparo inaugural diante do excesso pulsional que então se dá e que exige novos modos de se representar como singular no coletivo, através de novas narrativas e novos endereçamentos discursivos.

Antes de dar seguimento à discussão a respeito da condição da adolescência nos contextos sociais e educativos contemporâneos, propõe-se o resgate do conceito de desamparo, bem como da sua relação com o trauma. O termo Hilflösigkeit, cuja tradução para o português é desamparo, surge na obra freudiana em seu texto Projeto para uma psicologia científica, especificando a característica humana de insuficiência e dependência ao nascer (FREUD, 1950[1895]/1996). Para ele, não somente a sobrevivência do bebê está atrelada à presença de um cuidador, como ainda a constituição da sua subjetividade. A essa figura, de papel fundamental, Freud dá o nome de Nebenmensch, que pode ser traduzido por "o próximo" ou "o homem que se situa ao lado", referindo-se àquele que faz a intermediação entre o recém-nascido e o mundo, auxiliando-o na regulação dos seus processos psíquicos.

Com o intuito de buscar fundamentos para a sua teoria, Freud (1950[1895]/1996) discorre sobre o funcionamento do aparelho psíquico que, regido pelos princípios de inércia e de constância, tende a buscar sempre a máxima redução da carga de excitação. Isto porque o acúmulo da tensão é percebido como desprazer, enquanto a sua descarga e o restabelecimento da homeostase são ligados à sensação de prazer. Retomando o momento do nascimento, o bebê na condição de desamparo não possui recursos possíveis para efetuar qualquer ação que alivie a excitação, necessitando que uma ação específica seja executada por meio de uma ajuda alheia, a fim de remover a tensão interna. Contudo, no decorrer da vida, o sentimento do desamparo é revivido quando o sujeito passa por situações em que o medo, atrelado a sensação de perigo, provoca o aumento da excitação de tal maneira, impossibilitando o seu controle (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Isso significa dizer que a vivência do desamparo não se esgota no suprimento das primeiras necessidades do bebê por parte do ambiente, ou do Nebenmensch.

Alguns anos depois, Freud (1926/1996) apresenta a relação entre o desamparo e o trauma em sua teoria sobre a angústia, compreendendo o estado de desamparo como protótipo da situação traumática. Para Freud (1920/1996), o trauma faz referência a uma situação que o sujeito experimenta como ameaçadora à sua vida, sendo traumático um acontecimento com tamanho impacto capaz de provocar um rompimento na capacidade de elaboração psíquica do que é vivido pelo sujeito. Entende-se que um evento externo de grande amplitude, percebido como situação real de perigo, pode ser capaz de romper o escudo protetor da psique e reatualizar no sujeito a sua experiência de desamparo inicial. Assim, em acontecimentos marcados pelo excesso e pela impossibilidade de processamento psíquico pela inscrição das marcas simbólicas, o que corresponde, de certa forma, à própria experiência da adolescência, é fundamental que o ambiente opere provendo, a partir do laço ao Outro3 e aos outros os recursos necessários para a elaboração da experiência. Configura-se, portanto, uma situação traumática quando o entorno falha, deixando de prover o amparo necessário para a elaboração psíquica de tal vivência.

Entretanto, frente ao avanço do neoliberalismo, o que se observa é o recuo por parte do Estado, através da constante retirada de garantias à população e a consequente insuficiência das redes de proteção aos sujeitos. Dessa maneira, deslocando o conceito freudiano do âmbito individual para o âmbito coletivo, o desamparo passa a ser também social, tendo no esgarçamento dos laços sociais uma fonte de mal-estar contemporâneo, que atinge especialmente a parcela da população mais vulnerável socialmente. Dentre os efeitos da situação de desamparo social, está o enfraquecimento da potência discursiva dos sujeitos, repercutindo em silêncio e angústia, o que Rosa (2013, 2015, 2016) tem trabalhado como desamparo discursivo.

As diferenças e a desigualdade de forças e de posição no campo social produzem enlaces que muitas vezes condicionam a pertença social à submissão sistemática aos parâmetros dominantes. Nessa medida, a naturalização do desamparo social apaga a força discursiva dos que estão submetidos. Aliado ao desamparo social, deparamo-nos com o desamparo discursivo (que lança o sujeito ao silenciamento que, muitas vezes, acomete alguns segmentos da população), que pode ser orientador na análise de vários fenômenos sociais e efeitos subjetivos (ROSA, 2016, p. 25).

Sem a possibilidade de serem reconhecidos como sujeitos, mas sim identificados a lugares predeterminados no discurso, abalam-se os sentidos de pertinência e de participação social. Tal situação afeta particularmente os adolescentes, que estão às voltas com a possibilidade de construir um discurso em nome próprio, a partir das referências familiares e sociais, discurso que lhes possibilite ocupar um novo lugar no laço social. Entretanto, a fragilização das estruturas discursivas nos sujeitos não sustenta a manutenção dos laços sociais, já que acarreta a perda do laço identificatório entre os semelhantes. Com isso, muitos sujeitos ficam desamparados e sem recursos subjetivos para a elaboração de saídas para as situações em que se encontram, acabam sendo silenciados, ficando sem lugar na sociedade e sendo lançados para fora da política.

Com o intuito de se opor à alienação do sujeito frente aos discursos hegemônicos da sociedade, a abordagem psicanalítica clínico-política nas instituições, incluindo as educacionais, é defendida por Rosa (2013), ressaltando as especificidades desse campo de atuação. Segundo a autora, nessa prática comumente o sujeito não tem uma resposta metafórica ou um sintoma através do qual possa falar de seu sofrimento e endereçar uma demanda, sendo o trabalho, portanto, efetuado no sentido de contraposição aos mecanismos de individuação e de homogeneização ou ainda de criminalização ou patologização, tão frequente nas adolescências brasileiras.

Sabe-se que, no contexto brasileiro de precariedades da escola pública, tem prevalecido o mal-estar e o desamparo do professor diante da perda de referências sociais para a sustentação de seu trabalho. O que ocorre então nas escolas quando o desamparo dos adolescentes encontra eco também no desamparo dos professores? Em que pese todo este contexto, como pensar a configuração dos laços sociais dos adolescentes na escola? O estudo exploratório proposto visou construir um dispositivo de escuta para os adolescentes na escola partindo dessas questões.

 

Compartilhar segredos na escola: a oficina ofertada aos adolescentes

A referência metodológica utilizada foi a pesquisa-intervenção aliada aos pressupostos da psicanálise. Na primeira, o pesquisador está inserido no seu campo de estudo e, ao mesmo tempo que o transforma, pode também ser transformado pelo seu objeto de estudo (LIMA; DIMENSTEIN, 2016). Nesse sentido, a experiência do pesquisador no momento da ida ao campo também foi levada em conta, bem como o laço transferencial que se instaurou em relação aos pesquisadores a partir da entrada em cada escola. Toma-se o desejo do analista, sustentado pelo pesquisador, como aquele que instaura a possibilidade de uma fala na qual o sujeito tenha lugar, levando em conta as transferências e resistências que podem surgir em contextos sociais e institucionais (ROSA; DOMINGUES, 2010). A partir destas coordenadas, é que este trabalho pode ser definido como um estudo exploratório, nos moldes da pesquisa-intervenção inspirada pelos princípios da ética da escuta psicanalítica.

A fonte de inspiração para a atividade proposta foi o guia produzido pela FLACSO - Brasil, desenvolvido a partir da experiência do programa O papel da educação para os jovens afetados pela violência e outros riscos no Ceará e Rio Grande do Sul. Tal material é composto por diversas propostas de atuação na escola junto a jovens em situação de vulnerabilidade social, no sentido de construir um caminho possível para o debate sobre a realidade cotidiana. Dentre o leque de sugestões, foi escolhida a dinâmica "Troca de um segredo" (ABRAMOVAY; SILVA; FIGUEIREDO, 2018, p. 71). A partir dessa proposta, a atividade realizada com os estudantes foi composta por quatro etapas. Na primeira delas, a cada aluno foi entregue um pedaço de papel em branco e foi solicitado que, anonimamente, escrevesse um segredo. Após esse momento, os segredos foram recolhidos e redistribuídos entre os participantes. Em posse dos segredos de outros, foi solicitado que cada jovem lesse em voz alta o segredo retirado e comentasse a respeito, com o intuito de encontrar uma saída, um conselho ou uma opinião ao vivenciado pelo colega. Por último, discutiu-se a respeito da atividade, a partir de reflexões sobre a experiência de falar e escutar alguém falando sobre seu segredo.

Conhecendo a realidade de muitas escolas brasileiras, a escolha pela construção de um dispositivo de escuta analítica no coletivo se justifica com base na crença de que esses espaços podem operar em oposição à fragilização dos laços sociais, afrouxados pela lógica individualizante e excludente da sociedade contemporânea. Em contextos de vulnerabilidade social, tais estruturas têm se mostrado um potente instrumento clínico e político, tendo na coletividade a força para o resgate e para a manutenção dos laços sociais. Diversos são os psicanalistas que estão se debruçando sobre os efeitos positivos da escuta psicanalítica no âmbito coletivo. Especialmente em contextos marcados pela precariedade social, a criação de espaços que têm como ferramenta principal a escuta do inconsciente faz parte da estratégia de ação quando se desenvolvem atividades grupais (ROSA, 2015; BROIDE; BROIDE, 2016; CASTANHO, 2018). No que se refere à função dos grupos, Broide e Broide (2016) defendem que a finalidade desse trabalho faz referência à oportunidade de descristalização de circuitos fixados pelo traumático, por meio de espaços de escuta analítica como condição-suporte para o processo de singularização do sujeito. Assim, o sujeito pode encontrar no grupo um espaço de escuta e identificações que possa promover o acolhimento para o seu desamparo, tendo no relato das suas experiências a potência para transformação dos laços sociais e discursivos.

Sobre o funcionamento das intervenções em instituições e em coletivos, o seu elemento propulsor está nos mecanismos de identificação e de projeção, ao mesmo tempo que o dispositivo possibilita ao sujeito múltiplos processos de subjetivação e diversas maneiras de se posicionar. Em outras palavras, é por meio da oferta de um espaço de livre circulação da palavra que se instaura o fluxo de projeções e identificações, gerando aos participantes possibilidades tanto de se identificarem, nos processos de socialização, quanto de se distinguirem dos seus pares, nos processos de individuação (KLAUTAU, 2017). Cabe ainda destacar o que sublinha Carreteiro (2003), no que tange aos desdobramentos de experiências que deixam marcas psíquicas com pouca ou nenhuma visibilidade social, causadas por desigualdades sociais que não reconhecem as potencialidades dos sujeitos. Segundo a autora, embora esses sofrimentos, que possuem a sua origem nas condições sociais vividas por alguns grupos, tenham efeitos na dimensão comunitária, os impactos nas subjetividades estão associados ao silenciamento, impedindo o seu compartilhamento na esfera coletiva.

A partir da experiência obtida, um diário de campo foi construído pelos pesquisadores que conduziram os encontros. Essa forma de registro se constitui como importante ferramenta de sistematização das experiências para análise de resultados a posteriori, considerando a percepção do pesquisador no momento da ida ao campo. Assim, os diários levaram em conta o campo transferencial dos pesquisadores e dos participantes incluindo aí a maneira como os pesquisadores foram recebidos pelos representantes da escola e pelos alunos, além da maneira como se desenrolou a dinâmica com os alunos. Os desdobramentos do trabalho de campo serão mais bem abordados na sequência.

 

Zoar, ouvir e falar: algumas respostas possíveis à oferta da oficina

Para relatar o que se deu no trabalho com os jovens, primeiramente é fundamental contextualizar as instituições, bem como as suas relações com os pesquisadores. Como mencionado anteriormente, a atividade foi realizada em duas escolas da rede estadual do Rio de Janeiro: uma no município do Rio de Janeiro e uma em Niterói, que aqui serão chamadas de escola 1 e escola 2, respectivamente. Na primeira, uma pesquisadora havia feito um trabalho prévio, portanto já existia um vínculo com a mesma. Além disso, a demanda partiu da própria diretora, que não somente solicitou a intervenção como também participou do seu planejamento, incluindo ainda professores e coordenadores, enquanto na outra instituição não houve demanda prévia por parte da escola tampouco havia qualquer proximidade entre pesquisadores e escola, tendo sido a oferta da atividade o primeiro contato com a sua direção. Nesta escola, houve muitas dificuldades em organizar e implantar as oficinas, os pesquisadores tiveram que falar com várias pessoas e as atividades foram remarcadas diversas vezes, sem um planejamento possível. É interessante refletir que, diante de tamanha dificuldade, não somente para a execução da proposta propriamente dita, mas ainda na comunicação, a equipe se sentiu desamparada na escola 2, de modo que o desamparo dos adolescentes, situado como objeto de pesquisa, passou a ser também o afeto presente nos pesquisadores. Enquanto na escola 1, durante todo o tempo os pesquisadores estiveram em contato com os profissionais da própria instituição, os quais se disponibilizaram para ajudar, na escola 2 o grupo se encontrou sem qualquer rede de amparo para qualquer tipo de apoio, mesmo para questões simples, como a localização das salas. Embora o contato tenha sido muito breve, levanta-se a hipótese de que tal experiência possa ser um indicativo de como se dão os laços em cada uma das escolas.

Independentemente do local, o desenvolvimento da atividade teve vários destinos diferentes entre as turmas. Enquanto em algumas a oficina instaurou a oportunidade para discussões importantes entre os participantes, também houve grupos em que a resistência operou fortemente, dificultando a circulação da palavra. Apesar das especificidades de cada turma, é possível apontar uma semelhança: o fato de cada oficina ter sido marcada por um momento inicial de desconfiança por parte dos jovens em relação aos pesquisadores e à proposta de compartilhamento dos segredos. Após essa etapa, cada intervenção pôde ter seus diferentes desdobramentos. Nas turmas em que houve melhor receptividade aos pesquisadores e à atividade por parte dos alunos foi constatado maior envolvimento com a atividade. Levantou-se a hipótese de que a relação dos alunos com profissionais da escola, com a escola em si, bem como os laços horizontais entre eles próprios podem ter correlação com as diferenças observadas. Considerando o exposto, o relacionamento dos alunos com os pesquisadores em diferentes turmas e o movimento coletivo é explorado na sequência.

Dentre as nove turmas, houve apenas uma em que pouco se observou a oposição inicial por parte dos alunos em relação à atividade. A partir do compartilhamento dos segredos, a palavra circulou, com os colegas demonstrando interesse nas questões levantadas por seus pares. Nesta turma, é importante destacar que antes de expor a proposta, os pesquisadores foram apresentados ao grupo por uma das suas professoras, que reiterou a importância da tarefa, dado esse que pode ter contribuído para a receptividade percebida. Tal introdução parece ter gerado efeito entre os estudantes, que atentamente ouviram a profissional. Seria essa uma demonstração de um laço transferencial já estabelecido entre essa professora e a classe? Teriam os pesquisadores tomado o seu lugar na transferência quando a mesma se ausentou da sala de aula?

Sabe-se que a desilusão com relação aos pais e mestres faz parte da adolescência. Enquanto as crianças têm a ilusão necessária de que seus pais, e mais tarde seus professores, são figuras superpoderosas, com a chegada da adolescência o sujeito confronta-se com uma decepção, quando percebe que seus pais, mestres, os adultos responsáveis, não são tão grandiosos quanto pareciam (FREUD, 1914/1996). Tal posição de importância que os pais ocupam no psiquismo de uma criança pequena corresponde ao estatuto do Outro na psicanálise desenvolvida por Lacan (1949/1998). Contudo, como destacam Santos e Sadala (2003), durante a travessia da adolescência, há a desilusão com o Outro da infância. Por conta dessa mudança de percepção da figura dos adultos, diferentemente dos alunos ainda crianças, os alunos adolescentes não obedecem aos professores pelo simples fato de eles serem professores. Ocupar um lugar de destaque entre adolescentes exige mais do que apenas tentativas de imposição de ordem. Durante a infância, as crianças se relacionavam com essas figuras de uma posição de autoridade e, por vezes, por temor ao percebê-las como superpoderosas e capazes de lhes auxiliar em quaisquer circunstâncias. Nesse sentido, durante a infância, o desejo dos pais e dos mestres guia as crianças, ao passo que na adolescência é o trabalho psíquico que permite "ao adolescente ser autor de seu próprio destino e não mais a satisfação das demandas dos pais" (SANTOS; SADALA, 2003, p. 565). Antes que o adolescente possa definir o que quer para si, muitas vezes o caminho encontrado é se opor a seguir aquilo que o outro lhe impõe.

No que se refere especificamente à adolescência, Gutierra (2003) sustenta que não é possível que o professor/a consiga desempenhar seu papel se não conquistar uma posição de importância na relação com os alunos. Os alunos só poderão estabelecer uma relação de saber, se o professor estiver posicionado como mestre, ainda que com um mestre não-todo. "Assim, tem-se que, para aprender algo com alguém, este alguém tem de ocupar uma posição especial, deve ser possuidor de certo poder e deve ser suposto, inconscientemente, como alguém que comporta os traços ideais, ou seja, que está no lugar de Ideal do Eu" (p. 83). Nesse sentido, supõe-se que o lugar de referência ocupado pela referida professora para tais alunos possa corresponder à posição de ideal do eu apontado por Freud (1914/1996), que constitui um lugar transferencial presente nas relações com os professores na escola. Em outras palavras, poder-se-ia pensar que a posição privilegiada da professora teria sido deslocada para os coordenadores da intervenção.

Retomando a relação da professora com a turma apresentada, diferentemente do comumente encontrado, não havia indícios de imposição da sua parte, mas que a troca se dava de forma atenta e facultativa. Por inferência, parece que, para ser ouvida, o movimento da mesma tenha sido trilhar caminhos junto dos jovens, em vez de fazer uso da autoridade da sua posição. Ao escrever sobre a transferência que há nas relações em sala de aula, Kupfer (2009) faz a comparação com a situação de análise, onde o analista parte de uma demanda de amor para promover uma transferência que leve ao trabalho de análise. Já na relação da sala de aula, quem fala é o professor, de modo que ele também transfere para seus alunos suas expectativas de amor e reconhecimento. No entanto, nessa relação dual entre o professor e o aluno, para além do eixo imaginário, entra em cena como um terceiro elemento o desejo do professor/educador pelo seu trabalho, bem como sobre o conteúdo da disciplina que ensina. O professor, ao falar para seus alunos a partir do seu desejo de saber acaba contagiando seus alunos. Nesse sentido, o que o professor transmite aos alunos é o seu desejo, que pode ser capaz de produzir aprendizagem a partir do desejo do aluno em construir um saber próprio. Com isso, de modo análogo ao que se dá em uma análise, quando o desejo de saber pode intervir como um terceiro e ser partilhado, é possível transformar uma transferência de amor em uma transferência de trabalho.

De modo mais abrangente, pode-se pensar que o investimento dos educadores, da escola e da totalidade do sistema de ensino tem efeitos nos laços que os adolescentes estabelecerão com a instituição e com o que lhes é oferecido naquele espaço. Tais investimentos não se esgotam na simples transmissão do conteúdo, nem seus impactos estão apenas no processo de aprendizagem de cada aluno, mas nas relações interpessoais e comunitárias. Assim, é importante ressaltar que a sustentação do desejo de educar, marcado pelos impossíveis que lhe atravessam, é parte fundamental nos laços que os alunos irão estabelecer com e na escola.

Considerando a relevância do apontado, é válido salientar que em diversas turmas não houve qualquer profissional da instituição para apresentar os pesquisadores e introduzir a realização da tarefa. Em outras, o professor esteve presente durante todo o decorrer da oficina, intervindo de forma autoritária e proibitiva, por meio do uso de um microfone. Mesmo em sua presença, dificuldades no desenvolvimento da atividade foram colocadas e o encontro foi marcado por conversas paralelas e piadas. Apenas quando os próprios alunos se interessaram pela proposta e, entre eles, passaram a chamar a atenção é que o clima de "zoação" e provocação pôde cessar, abrindo espaço para o engajamento na dinâmica. O interesse em tal situação se dá no sentido de que a convocação dos pesquisadores e dos professores para que os adolescentes participassem da atividade caiu no vazio. No entanto, quando vindo de um dos alunos produziu outro efeito, convocando os demais à participação na tarefa. Somente a partir da escuta do colega, situado como semelhante, seja no pedido de silêncio e atenção, seja no relato dos segredos, é que o trabalho ganhou legitimidade e o objetivo de circular a palavra se cumpriu.

Em determinada turma, o estranhamento emergiu já na chegada dos adolescentes, quando, ao entrarem na sala, depararam-se com as cadeiras organizadas em círculo e os pesquisadores à frente, no espaço ocupado pelos professores. Sob olhares apreensivos e ariscos, houve quem questionasse se "a aula é mesmo aqui?" (DIÁRIO DE CAMPO, ESCOLA 2, 10/06/19). Novamente, o início foi marcado por provocações e brincadeiras. Entretanto, a partir do momento em que os primeiros segredos foram lidos, as distrações passaram a ser cada vez menos frequentes e os alunos começaram a se envolver com a proposta, ao mesmo tempo em que faziam comentários sobre estarem surpreendidos ao ficarem sabendo do sofrimento de seus colegas. O conteúdo dos segredos era pesado, um reportava que a pessoa pensava em suicídio, outro denunciava a vivência de um abuso sexual. A dinâmica da atividade ficou intensa a partir de segredos tão duros como esses. A mobilização entre os jovens era evidente, bem como a rede de apoio que ali entrelaçavam, e havia palavras de incentivo e sugestões de meios para ajuda. Independentemente da ausência prévia de uma figura com posição transferencial privilegiada, isto é, de alguém para fazer o movimento de empréstimo de legitimidade, as relações horizontais parecem ter sido suficientes para sustentar o engajamento na atividade.

A análise do diário de campo permitiu assimilar que o movimento narrado foi testemunhado em diversas salas, de ambas as escolas. Nesses casos, à medida que os segredos eram revelados, instauravam-se demonstrações de interesse e reflexões acerca de como ultrapassar as adversidades que ali se apresentavam. No compartilhamento de situações difíceis, algumas vezes, o silêncio acontecia, permitindo a eles não só o exercício da escuta mútua, mas, principalmente, o surgimento de possibilidades que individualmente eles não encontravam. Em outras palavras, pode-se dizer que naquele momento a potência da coletividade era apreendida, os laços sociais fortalecidos e que os jovens encontravam em seus pares o suporte para fazer frente ao desamparo experienciado cotidianamente e narrado naquele momento por eles quando falaram sobre a ausência de relações de acolhimento na escola, seja por parte dos professores, seja entre os próprios alunos.

Entende-se, portanto, que o movimento evidenciado faz referência ao início do estabelecimento de uma aliança fraterna, sustentada pelo eixo horizontal das identificações em um grupo. Desse modo, a importância da função do semelhante na sustentação do laço social é o que estaria em cena, podendo ser reportado ao "sentido de fratria" (KEHL, 2000, p. 96) como fundamental na instauração da identificação vertical ao ideal do eu. O termo fratria foi equivocadamente aproximado à ideia de massa presente no texto freudiano Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1921/1996). Por isso é preciso marcar uma separação entre igualdade e fraternidade. Kehl (2000) enfatiza que é preciso diferenciar fratria da identificação total que se dá nas massas regidas pelo eu ideal e exigindo a igualdade absoluta entre seus membros. Já a fratria põe em cena a experiência da semelhança na diferença. Trata-se de um coletivo onde a falta tem seu lugar, na medida em que todos podem se identificar na horizontalidade ao outro como semelhante, mas também se situam na verticalidade em relação ao Outro/ideal do eu que marca uma dissimetria na relação de cada um a seu eu.

Escrever um segredo no papel, mesmo sem se identificar, é tornar público um ponto de vulnerabilidade, de falta. Pode-se pensar que a pactuação entre eles, de que todos tenham tido que expor algo de si, um segredo, pôde engendrar condições de possibilidade para o estabelecimento da horizontalidade fraternal. E quando um deles não participou dessa aliança, foi imediatamente interrogado quanto à sua postura. Uma situação interessante revelou claramente a convocação dos adolescentes a uma das colegas que aparentemente não estava cumprindo o acordo. Foi quando uma pessoa escreveu seu segredo e depois pediu para retirá-lo do recipiente, pois acreditou que seria reconhecida pela caligrafia e, também, por sua história ser íntima e pessoal. Os pesquisadores consentiram que ela retirasse o seu papel. E durante a continuidade da dinâmica, a mesma foi bastante participativa, chegando a ser interpelada "Ah, você é engraçada... na hora de dividir o seu segredo com a gente não quer, mas na hora de dar palpite naquilo que os outros escreveram você quer" (DIÁRIO DE CAMPO, ESCOLA 1, 10/06/19).

O fenômeno citado, relativo ao estabelecimento do pacto fraternal, pode também ser destacado quando observado o movimento coletivo recorrente em diversas turmas, que partiu do desinteresse inicial por parte dos jovens, mas foi modificado para um estado de implicação e mobilização coletiva diante da revelação dos segredos à medida que as relações horizontais emergiam e se tornava possível a construção de uma rede de amparo. Como exemplo, pode-se apresentar a turma em que a primeira palavra lida foi "fome" (DIÁRIO DE CAMPO, ESCOLA 1, 07/06/19). O que se observou foi que a vulnerabilidade de quem escreveu "fome" talvez tenha ecoado frente ao desamparo dos demais, instaurando o início da atividade propriamente dito. Foi a partir do desamparo revelado que a tarefa passou a ser levada a sério e, entre os pares, diversas preocupações a respeito de como ajudar foram manifestadas.

As experiências compartilhadas fraternalmente na adolescência são importantes, pois permitem a relativização de verdades absolutas, sejam elas familiares ou culturais, o que abre um campo de possibilidades para a criação. Assim, é possível afirmar que a função do semelhante corrobora com o trabalho subjetivo do adolescente que busca a separação dos pais e construção de novos laços sociais. Além disso, é também preciso apontar a importância da fratria na constituição do pacto civilizatório. A ideia de fraternidade na origem do pacto civilizatório é defendida por alguns psicanalistas, entre eles Kehl (2000) e Birman (2014). Ambos evocam o escrito de Freud (1913/1996) Totem e tabu para apresentar o mito sobre o surgimento da civilização quando a Lei simbólica foi instituída a partir do pacto civilizatório entre os irmãos, após o assassinato do pai tirano. Assim, a fratria toma parte fundamental na instauração de um referencial simbólico para uma dada cultura e sociedade, o que possibilita o pacto civilizatório.

No entanto, nem todas as experiências foram enlaçadas pelo sentido de fratria, o que reforça a ideia de que o trabalho com adolescentes é favorecido por uma figura de autoridade, que tenha conquistado uma posição transferencial privilegiada, mas pode ser inviabilizado se esse lugar de referência compartilhada, que promova uma transferência de trabalho, não puder ser construído. Vale relatar umas das intervenções que foi realizada em um horário vago para os alunos. Sem qualquer introdução por parte da instituição, os pesquisadores entraram sozinhos na sala. À medida que os jovens chegavam e entendiam que haveria uma atividade em seu tempo livre, a refutação à proposta já se fazia presente. Contrariados e até indignados, grande parte dos alunos da turma se opôs à escrita de um segredo. Nessa turma, especificamente, mesmo o compartilhamento de algo íntimo e doloroso não repercutiu de forma positiva nos demais. Pelo contrário, presenciou-se o ataque à vulnerabilidade exposta, quando surgiu o segredo "estou com depressão" e o próprio leitor rebateu "que morra" (DIÁRIO DE CAMPO, ESCOLA 2, 29/08/19). Nesse sentido, parece que não só faltou uma figura de autoridade que pudesse legitimar a atividade perante os alunos, como também os laços existentes entre os alunos se apresentaram esgarçados e permeados por muitos conflitos. Apesar de outros alunos terem se disposto a se abrir e falar sobre temas difíceis, não foram escutados pela maioria da turma que manteve conversas durante toda a atividade. Agressividade, deboche, tumulto, conversas paralelas e barulho estiveram presentes o tempo todo, dando a impressão de que a vigência de laços narcísicos totalitários nos moldes das massas predominava, ecoando os discursos sociais excludentes que atravessam a lógica escolar, em detrimento de uma fraternidade possível.

Da experiência obtida, algumas questões se apresentaram aos pesquisadores: em que se sustentam os laços dos adolescentes com e nas instituições de ensino? Até que ponto as relações institucionais e sociais mais amplas, no tocante à situação de desamparo social e discursivo vivida por eles, marcam as possibilidades de esses jovens se situarem, tanto em relação à escola e aos professores, quanto em relação aos seus pares como semelhantes?

Foi interessante presenciar a organização coletiva que ocorria nas salas quando, ao longo da atividade, alguns comentavam não ter com quem conversar sobre questões íntimas e angústias e outros ofertavam escuta. A identificação horizontal a partir do ponto de vulnerabilidade possibilitou o estabelecimento do laço entre os participantes da dinâmica. Em muitas turmas os alunos conseguiram compartilhar com os colegas estratégias para melhorar a autoestima, conviver melhor com seus pares, sair do isolamento, e aproveitaram para destacar a importância de espaços para falar de modo que podiam desta forma conhecer melhor a si mesmos e aos outros. Uma das falas interessantes nesse debate foi "Nossa! eu não sabia que tinha gente sofrendo aqui" (DIÁRIO DE CAMPO, ESCOLA 2, 10/06/19), o que pode indicar a instauração da formação fraterna a partir dos atos de solidariedade. Entretanto, diante dos discursos neoliberais e tecnicistas que marcam o estado atual do laço social e assim também comparecem no campo da educação, como fica a possibilidade de construção e manutenção dos laços alteritários e solidários?

Por fim, cabe destacar que em diferentes turmas houve o pedido de retorno dos pesquisadores e de continuidade do trabalho junto a eles. É importante frisar que o intuito era o de promover a aproximação entre a universidade e as instituições escolares, para posterior construção de uma atividade regular, de acordo com as demandas surgidas, o que ainda não pôde se concretizar em função da pandemia do Coronavírus. Mesmo que a intervenção tenha sido de apenas um encontro, foi possível supor que o trabalho coletivo promoveu conversas, discussões e reflexões proveitosas, nas quais os adolescentes puderam manifestar um apelo por serem ouvidos e se sentirem amparados por uma rede de proteção e cuidado na qual a escola não deixa de estar incluída.

 

Palavras finais...

O trabalho realizado nas duas escolas indica a dimensão da importância dos laços sociais na escola no atravessamento das adolescências que ali se dão. Em ambas as escolas, mesmo que de modos diferentes, vários impasses se fizeram presentes ao longo do planejamento e realização da atividade que propõe pensar justamente nos impasses que se colocam na relação dos adolescentes com a escola, com os professores e com colegas, para muitos jovens. O primeiro impasse se situa no que diz respeito à própria forma pela qual os pesquisadores foram acolhidos por algumas turmas, que resistiram ao trabalho e se uniram em torno de posturas desafiantes e agressivas tanto em relação aos membros da pesquisa quanto em relação aos seus pares. Em algumas dessas turmas, foi possível perceber que esse impasse inicial em relação ao eixo vertical de identificação que sustenta um coletivo - que corresponde ao lugar do ideal do eu como suporte de uma transferência de trabalho - pôde ser vencido a partir das identificações horizontais que puderam se estabelecer entre os alunos a partir do compartilhar de seu próprio desamparo como segredo que foi desvelado. Entretanto, em outras turmas, tais impasses não puderam ser superados, já que as relações entre eles não puderam sustentar a construção de um pacto coletivo pelo trabalho. Qual o estatuto desses laços ou dos desenlaces que parecem vigorar em muitos momentos/turmas durante a realização da atividade? Nesses casos, testemunharam-se talvez muito mais o desalento (BIRMAN, 2014) e a impossibilidade de laços alteritários de solidariedade, prevalecendo o excessivo da pulsão seja em forma de atos agressivos e desafiadores, seja em forma do choro ou da angústia que comparece em revelações a respeito da falta de desejo pela vida.

Refletindo sobre a questão "o que é uma vida?", Butler (2018, p. 14) apresenta uma diferenciação da precariedade para a condição precária. Para fundamentar a sua argumentação, a autora parte do ponto de vista de que a vida não está dada de antemão. Ou seja, para ser, ou para se tornar sujeito, não basta a existência de um corpo vivo, sendo necessárias redes de apoio dos seus semelhantes. Nesse sentido, a precariedade é concebida como condição existencial para toda a humanidade, já que todos dependem de redes de sociabilidade. Diferenciando-se da precariedade, a condição precária tem como traço primordial o fato de ser socialmente fabricada, designando "a condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes" (Ibid., p. 46). Propõe-se, aqui, uma aproximação de precariedade e de condição precária às noções de desamparo fundamental e de desamparo social, respectivamente, sendo o primeiro deles inescapável à condição humana, enquanto o outro é produzido socialmente.

Quando o desamparo estrutural da adolescência se sobrepõe ao desamparo social reproduzido pela escola e os laços sociais não permitem novos enlaçamentos discursivos que o trabalho da adolescência exige, a experiência escolar para muitos jovens apenas reforça o desamparo social e discursivo no qual se situam. Como pensar em outras possibilidades interventivas dentro da escola que colaborem para mudanças nesses impasses a um só tempo educativos, clínicos e políticos que assolam as adolescências brasileiras nas escolas? A compreensão de que o contexto de vulnerabilidade social é fruto de uma lógica perversa e excludente incita à reflexão de como atuar em oposição a tal construção. Nesse sentido, defende-se a aposta da psicanálise no âmbito coletivo como potente alternativa, pautada na constituição de discursos que sustentem novas possibilidades de laços sociais para esses sujeitos.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 24/09/2020
Aprovado para publicação em: 03/11/2020

Endereço para correspondência
Luciana Gageiro Coutinho
E-mail: lugageiro@uol.com.br
Maria Manuela Dias Ramos de Macedo
E-mail: mariamanuelarm@gmail.com
Fernanda Mara da Silva Lima
E-mail: fernandamaralima@yahoo.com.br
João Francisco Pereira Marum
E-mail: joao_marum@hotmail.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professora Associada da Faculdade de Educação - Universidade Federal Fluminense (FEUFF)/Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Coordenadora do LAPSE/UFF (Grupo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Laço Social). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro Associado em Formação do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
***Professora substituta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
****Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Curitiba, PR, Brasil.
1O artigo é proveniente de uma pesquisa em andamento na Faculdade de Educação/Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) em parceria com o SPIA/IPUB-UFRJ intitulada Educação para a vida: adolescência, suicídio e vulnerabilidades sociais, coordenado por Luciana Gageiro Coutinho. Os demais autores fazem parte da equipe do projeto.
2O termo vulnerabilidade se refere às noções de insegurança e de exposição a riscos, sendo aqui utilizado para indicar a hipossuficiência de aspectos de ordem social e econômica. No âmbito jurídico, trata-se de pessoas "de escassos recursos econômicos, de pobreza constatada, que devem ser auxiliadas pelo Estado, incluindo a assistência jurídica" (LUZ, 1999, p. 610), enquanto o termo desamparo refere-se ao campo psicanalítico, e diz respeito a um estado psíquico originário de dependência ao outro.
3Referência aqui ao Outro como instância simbólica diante da qual se constitui o sujeito, teorizada por Lacan (1949/1998, 1954-55/1998) e distinta do outro como o semelhante, imaginário e passível de ser encarnados nas relações sociais.

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