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PsicoUSF

Print version ISSN 1413-8271

PsicoUSF vol.14 no.1 Itatiba Apr. 2009

 

RESENHA

 

Piaget e os estudos contemporâneos sobre moral: interfaces ainda a discutir

 

 

Júlio César Castilho Razera*

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Jequié, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Faigenbaum, G., Castorina, J. A., Helman, M. & Clemente, F. (2007). El enfoque piagetiano en la investigación del juicio moral: alternativas frente al naturalismo y al relativismo. Em J. A. Castorina (Org.). Cultura y conocimientos sociales: desafíos a la psicología del desarrollo (pp. 89-116). Buenos Aires: Aique Educación. (ISBN 978-987-06-0096-1).

Podemos sem detença incluir O juízo moral na criança entre as principais obras científicas clássicas, ainda que o tempo tenha passado e o contexto se modificado desde 1932.

A importância ora exaltada a essa obra de J. Piaget não a isenta de críticas e igualmente não desmerece outros referenciais sobre a temática da moralidade que apareceram posteriormente. No entanto, encontramos em Piaget bases teóricas sólidas e relevantes que persistem no tempo, mesmo que muitas de suas ideias sejam deslocadas ou mal interpretadas em estudos contemporâneos. Essa apropriação equivocada que alguns fazem de ideias veiculadas por Piaget é relevante e merecedora de constantes discussões. Um dos trabalhos a contemplar de forma consistente e séria a esse propósito intitula-se El enfoque piagetiano en la investigación del juicio moral: alternativas frente al naturalismo y al relativismo, de Gustavo Faigenbaum, José Antonio Castorina, Mariela Helmam e Fernando Clemente. Tem o formato de um artigo e integra um dos capítulos do livro Cultura y conocimientos sociales: desafíos a la psicología del desarrollo, publicado em 2007 pela editora Aique Educación, de Buenos Aires, sob a organização do professor Castorina. O livro completo, por sua vez, ainda não traduzido para o português, divide-se em três partes: El análisis conceptual en la psicología del dessarrollo; Las relaciones entre el individuo y la sociedad, y el conocimiento social; e Análisis de los conceptos de cultura y representación social. O artigo focado nesta resenha está inserido na segunda parte, que aborda as questões conceituais referentes à influência do marco epistêmico relacional nos textos piagetianos sobre o juízo moral e sobre as interações entre o indivíduo e a sociedade (p. 14)1.

Tendo-se esclarecido brevemente o design estrutural da obra completa, podemos agora nos ater um pouco mais ao percurso do referido trabalho que nos interessa - um rico material para reflexão e debate. Vejamos alguns detalhes.

Logo de início os autores advertem que há qualificações simplistas sobre a visão piagetiana em diferentes trabalhos contemporâneos. Afirmam que "muitas dessas versões limitam-se a uma apresentação descritiva, ou a uma interpretação parcial e insuficientemente argumentada de suas teses centrais" (p. 89). Distanciando-se desse fenômeno, eles elaboram uma revisão de O juízo moral na criança à luz dos referenciais filosóficos, psicológicos, sociológicos e teológicos dialogados e/ou utilizados por Piaget. Nesse viés são discutidos alguns estudos mais atuais de correntes cognitivistas e contextualistas sobre a moralidade, fazendo-se referência aos enfoques dualistas entre "as condições sociais e o pensamento individual, as formas inatas e os conteúdos culturais" (p. 90).

No item intitulado "La teoría del desarrollo moral" há uma breve retomada crítica dos estudos de Piaget que, em síntese, apresentam a interação social como constitutiva da produção intelectual das crianças no domínio da moral. Ao questionar as atribuições relacionais entre a dimensão social e o desenvolvimento moral, os autores fazem conhecer dois sentidos utilizados para a palavra social na obra de Piaget: o social em sentido amplo e o social em sentido estrito fazem-no referindo-se à prática da regra e ao desenvolvimento da consciência infantil das regras morais. As regras derivadas do respeito unilateral são sociais no sentido amplo, enquanto as regras de respeito recíproco (de cooperação) são sociais no sentido estrito. Em resumo, "só quando há sociedade em sentido estrito (com cooperação) pode haver também um genuíno sentimento de obrigação" (p.94).

No item seguinte, "La relación entre acción y pensamiento en el dominio moral", os autores revisam as relações entre as práticas sociais e a construção de conhecimento nas investigações piagetianas sobre moralidade. As discussões recaem sobre as dimensões conceitual e prática do desenvolvimento moral, descartando-se logo de início "toda interpretação simplista e unilateral que afirme a determinação de uma dessas dimensões a partir da outra". Uma outra interpretação incorreta, segundo os autores, estaria na suposta vinculação que Piaget teria feito entre as etapas do desenvolvimento lógico e as respostas morais particulares (as estruturas lógicas gerais determinando as respostas morais particulares). Utilizando-se de seus dados empíricos e pressupostos filosóficos, psicológicos e sociológicos, Piaget "não tenta reduzir as respostas das crianças a uma lógica abstrata, mas identificar os níveis progressivos de racionalidade nas respostas". Sobre a palavra ação, que integra o título desse item, outra advertência é feita, pois no enfoque piagetiano os atos morais e as concepções das crianças não se diferenciam de forma nítida. Ao contrário de outros psicólogos da moral, Piaget não contrasta a atividade moral prática com a atividade moral teórica.

Em "La naturaleza de la experiencia moral", os autores resgatam o lugar ocupado pela experiência no contexto do desenvolvimento moral. Experiência moral entendida "cada vez que os sujeitos interpretam as situações e, eventualmente, atuam em conseqüência, formulando juízos morais - verbalizados, pensados ou simplesmente atuados - baseados em certas regras". Com base nessa experiência, em respostas a ela, obtêm-se os resultados de heteronomia ou autonomia.

Em "El inmanentismo y su relación con la problemática religiosa", discutem-se as possíveis influências teológicas, filosóficas e culturais do jovem Piaget à época de O juízo moral na criança. Nesse contexto, há uma aproximação dele com o imanentismo, em oposição ao transcendentalismo. Isso "permite a Piaget postular o ideal moral, não já num contexto exclusivamente metafísico, mas também com um derivado da experiência mundana". Por fim, os autores traçam algumas das possíveis vinculações entre Piaget e Kant, afirmando-se que Piaget teria aderido "a um kantismo associado às tradições intelectuais, protestantes, de origem mais religiosa que acadêmica". Isso explicaria, em parte, as diferenças entre dois kantismos - de Piaget e de Kohlberg. "O primeiro enfatizou a moral imanente à consciência, fortemente altruísta e centrada em obrigações (...), o segundo desenvolveu uma perspectiva formalista que priorizava princípios morais transcendentais e impessoais".

Na sequência, o item intitulado "Méritos y limitaciones del enfoque piagetiano" mostra aproximações e distanciamentos entre os pressupostos piagetianos e durkheimianos. Para Durkheim, a moral nunca deixa de ser heterônoma. Isso traz significativos reflexos, por exemplo, no âmbito de um processo de educação formal disciplinado pela submissão do indivíduo ao social. Piaget se distancia notadamente em dois aspectos: a) o social não é homogêneo, já que a cooperação constitui outro tipo de relação social; b) é contra a moral da submissão aos valores transcendentes, já que as interações explicam a superação da moral heterônoma. No entanto, Piaget "parece passar por alto pela complexidade dos diferentes tipos de heteronomia que têm lugar no interior do processo histórico e psicogenético. No marco teórico piagetiano, as restrições institucionais não são visíveis" e, assim, a idealidade epistêmica não pode ser identificada com a realidade efetiva.

Em "El dualismo en los enfoques contemporáneos", os autores recorrem à revisão da literatura para "mostrar como certas premissas da obra de Piaget, tais como sua perspectiva dialético-imanentista e seu afastamento dos dualismos individual-social e pensamento-ação parecem estar ausentes em muitos dos trabalhos contemporâneos". Para a respectiva discussão são apresentados dois trabalhos: um com enfoque inatista e outro contextualista. No primeiro, Premack e Premack (1994)2 defendem que "a origem da moral deve ser rastreada a partir de certas expectativas perceptivas e cognitivas inatas, presentes nos bebês, as quais se denominam primitivos biológicos". Postulam, portanto, "um dualismo taxativo entre os fatores internos e inatos (primitivos) e os fatores externos e culturais". No segundo, a versão contextualista é extraída de Walker (2000)3, que coloca a reflexão moral como um diálogo "entre discursos sociais, intuições e modos alternativos de ver uma situação'. Em ambos os casos, a presença de aspectos dicotômicos contrasta com a versão piagetiana, que admite a importância das estruturas biológica e social, mas não em processo de disjunção.

Por fim, nesse percurso argumentativo construído com consistência, os autores retomaram no trabalho de Piaget sobre a moral "os efeitos da participação das crianças nas práticas sociais" ou, como os próprios afirmam no texto, se propuseram a "resgatar a atividade construtiva e os esforços de abstração dos agentes, numa interação com um mundo heterogêneo de práticas e representações sociais". Em suma, um trabalho sólido e provocativo de muitas reflexões para diversas áreas de conhecimento.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: juliorazera@uesb.br

Recebido em dezembro de 2009
Reformulado em janeiro de 2009
Aprovado em fevereiro de 2009

 

 

Sobre o autor:

* Júlio César Castilho Razera é professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Departamento de Ciências Biológicas, Área de Educação, Campus de Jequié, BA. Doutorando em Educação para a Ciência (UNESP). Membro do Grupo de Pesquisa em Educação para a Ciência (UNESP)
1 Citações diretas com nossa tradução.
2 Premack, D. & Premack, A. J. (1994). Moral belief: form versus content. Em L. Hirschfeld & S. Gelman (comps.). Mapping the mind: domain specfiity in cognition and culture (pp. 149-168). Cambridge: Cambridge University Press.
3 Walker, L. J. (1994). Chosing biasis, using power and practing resitance: moral development in a world without certainty, Human Development, 43 (3), 135-156.