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Psicologia da Educação
Print version ISSN 1414-6975
Psicol. educ. no.29 São Paulo Dec. 2009
O lugar da escola pública na subjetividade de ex-alunos da Vila São Nazi
The role of São Nazi public school in the alumni subjectivity
El lugar de la escuela pública en la subjetividad de ex alumnos de la Vila São Nazi
Marcelo LouresI; Vera Lucia Trevisan de SouzaII
IDocente da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: marceloloures@terra.com.br
IIPUC-Campinas. E-mail: vera.trevisan@uol.com.br
RESUMO
Embora a literatura especializada aponte frequentemente para a inadequação da escola no atendimento à população marginalizada, não há consenso sobre seus efeitos na subjetividade de seus alunos. O objetivo deste artigo é compreender, a partir de entrevistas com ex-alunos de uma escola pública, a relação indissociável entre escola, contexto sociofamiliar e a construção da subjetividade. O conceito de subjetividade está fundado na teoria histórico-cultural de González Rey. Utilizando o método de história de vida foi possível reconstituir pelo relato dos entrevistados não apenas sua história na escola, mas a história da comunidade e o lugar da escola dentro dela. Como resultado pode-se constatar que, mesmo que em seus relatos as vivências subjetivas na escola fossem consideradas importantes pelos ex-alunos, em seu processo de aprendizagem, não há, por parte dos entrevistados ou da escola, a percepção de uma relação necessária entre esses elementos.
Palavras-chave: subjetividade; escolarização; história de vida; comunidade.
ABSTRACT
Although the specialized literature often indicates that the school system is inadequate concerning the service to the marginal population, there is no consensus about its effects on the subjectivity of their students. The objective of this article is to understand, through individual interviews with students and alumni of a Brazilian public school, the unbreakable bond between the school and the social-familiar context and the construction of subjectivity. The concept of subjectivity is based on the historical and cultural theory, specially on the González Rey's (2003). The main methodological tool was the life history method. By using this tool it was possible to reconstruct not only the student's history experienced in school but also the role the school played in the community history. Even though the identitary experiences appear as relevant details in the student's reports there is no perception of a predetermined or compulsory relationship between these elements by neither the student nor the school.
Keywords: subjectivity; schooling; life history; community.
RESUMEN
Aunque la literatura especializada sea señalada frecuentemente hacia la inadecuación de la escuela en la atención de la población marginada, no hay un consenso sobre sus efectos en la subjetividad de sus alumnos. El objetivo de esa investigación es comprender, a través de entrevistas con ex alumnos de una escuela pública, la relación indisociable entre escuela, contexto socio-familiar y la construcción de la subjetividad. El concepto de subjetividad está fundado en la teoría histórico-cultural de González Rey. El método de historia de vida nos permitió reconstituir a través de los entrevistados, no sólo su historia en la escuela, sino que la historia de toda la comunidad y el lugar de la escuela dentro de ella. Por lo tanto, aunque en sus relatos las vivencias de identidad sean consideradas importantes en su proceso de aprendizaje no hay, ni por parte de los entrevistados, ni por parte de la escuela, la percepción de una relación necesaria entre esos elementos.
Palabras clave: subjetividad; escolarización; historia de vida; comunidad.
As "marcas" da escola: da superação da ignorância ao determinismo cultural
Desde sua fundação, a escola se apresenta como uma das principais referências na formação dos cidadãos e sua capacitação para compreender e atuar sobre uma sociedade civilizada (PATTO, 1996; SAVIANI, 1999; PALUDO, 2001; WEBER, 2008). Uma grande variedade de propostas pedagógicas foi desenvolvida com o intuito de dar cabo desse desafio, vindo a alterar substancialmente a organização social a partir da modernidade. No entanto, esta tarefa levantou um grande número de propostas pedagógicas sem que a meta inicial de garantir uma formação que atendesse integralmente à humanidade e formasse cidadãos para uma cultura ilustrada fosse cumprida.
Nesse sentido, estudos sobre a influência da escolarização sobre os alunos, especialmente os alunos com histórico de fracasso escolar, ocuparam desde o século passado grande parte da atenção dos programas educacionais, evidenciando ser este um problema global. A este respeito é possível encontrar farta bibliografia na literatura especializada (CRAHAY, 2006).
No entanto, há uma grande disparidade de interpretações entre pesquisadores sobre como a escolarização atua sobre seus alunos, sem uma compreensão integrada dos diferentes universos relacionados ao processo de constituição de subjetividade1.
Nas décadas de 1980 e 1990, a literatura especializada discute o fracasso escolar influenciada, predominantemente, por um modelo de interpretação, que enfatiza uma relação excludente e, algumas vezes, até violenta da escola no trato com o aluno de classes populares. Nestas interpretações, os efeitos de tal tratamento sobre os alunos são diversos e até contraditórios.
De um lado, encontramos interpretações como as de Cruz (1997), que, ao se deparar com a arbitrariedade e o autoritarismo da professora na relação com seus alunos, conclui: "o grande saldo negativo da experiência escolar dessas crianças é a diminuição da sua autoestima, tanto como aprendizes quanto como pessoas" (CRUZ, 1997, p. 109).
Nas palavras de Mello (1991), a gravidade dos efeitos dessa escola é avaliada de forma ainda mais enfática:
Atrás desses números [das absurdas taxas de repetência (sic)], que dão a dimensão qualitativa da ineficiência do ensino fundamental, desenvolve-se um drama cotidiano, de centenas de milhares de crianças [...] que ano a ano se defrontam com o fracasso e acabam por incorporá-lo à sua vida. O efeito dizimador que isto causa na autoimagem e na autoestima é sem dúvida tão perverso quanto o puro e simples assassinato de crianças. [...] Acaba sendo normal, pela sociedade, a formação de gerações e gerações de jovens e adultos, que se consideram fracassados ou pelo menos incapazes de adquirir habilidades intelectuais básicas. (MELLO, 1991, p. 21, grifos meus.)
No sentido contrário às interpretações anteriores sobre a responsabilidade da escolarização na subjetividade dos alunos, outros estudos interpretam-na como um lugar secundário na sua formação (CARRAHER, 1982; DAUSTER, 1992). Mesmo que inicialmente seja considerada importante pelos alunos, a escola passa a não sê-lo, à medida que não contribui para seu desenvolvimento e para suas necessidades cotidianas. A epígrafe do artigo de Carraher (1982, p. 79) representa o que é a escola para o ex-aluno evadido: "[saí] porque eles não tava me ensinando nada". Já em Dauster, a fala de um aluno de 11 anos, ajudante de mecânico, evidencia a dissociação entre a escola e seu cotidiano: "a escola nem ajuda, nem atrapalha no trabalho" (DAUSTER, 1992, p. 35).
A proposta deste artigo é, a partir da análise de entrevistas com ex-alunos de uma escola pública municipal, construir uma interpretação sobre o papel da escola na produção da subjetividade dessas pessoas.
A construção da subjetividade segundo González Rey
Ao construir sua teoria da subjetividade sobre os alicerces da psicologia soviética, González Rey (2003) parte do contexto em que tal pensamento foi produzido para caracterizá-la. Assim, a maior dificuldade enfrentada pelos autores deste período foi superar o determinismo mecanicista do marxismo no pensamento soviético, que colocava o primado da matéria sobre a consciência. A dificuldade na interpretação da subjetividade para estes pensadores era, então, encontrar um meio termo entre ontogênese e contexto social.
Segundo González Rey (1995, 2003, 2004), Vygotski se opôs a este modelo de interpretação, avançando significativamente em relação às concepções deterministas do comportamento que vigoravam na URSS. Mas é preciso compreender sua obra como um processo de construção no qual Vygotski se confronta paulatinamente com as influências históricas que atravessaram seu modo de pensar a psicologia.
O primeiro momento dessa obra pode ser identificado, segundo González Rey (2004), nos Tratados de Defectologia2, em que Vygotski já apresenta uma compreensão sistêmica da psique. As funções psíquicas superiores são organizadas segundo um permanente processo de desenvolvimento, comprometidas com a ação de um sujeito em um determinado contexto social. É um avanço significativo para um modelo psicológico em vigor pautado em categorias objetivas e causais em relação ao comportamento. Emerge, nesse momento de sua obra, a importância do conceito de funções psíquicas superiores. Na forma como Vygotski o concebia, o desenvolvimento subjetivo, ancorado na palavra como sua condição, abre possibilidades para a particularização dos processos psíquicos e para a compreensão da subjetividade. Embora apontasse para um sujeito particularizado por sua deficiência, em sua relação com o ambiente social, ainda não era possível a Vygotski superar as dicotomias que balizavam a psicologia soviética. A linguagem como função de comunicação social caracteriza uma dessas dicotomias mencionadas acima, privilegiando as experiências sociais na constituição psíquica (GONZÁLEZ REY, 2004).
Será pelo conceito de sistema de sentidos que Vygotski avançará em relação a essas dicotomias e em relação às intenções de representar a psicologia humana como um sistema complexo e dinâmico. Rompe com as noções cognitivas e organizadas que caracterizavam as funções psíquicas superiores para uma caracterização do psiquismo como "um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual" (VYGOTSKY, 2005, p. 181).
A entrada em cena do conceito de sentido mantém os aspectos singulares apresentados por Vygotski nos estudos sobre a defectologia e acrescenta a estes uma percepção mais complexa do psiquismo e distantes da dicotomia que a marcava anteriormente.
Recuperando o conceito histórico-cultural de necessidade, não em sua dimensão primária, biológica, mas em sua dimensão subjetiva, emocional e social, compreende-se como ele está intrinsecamente relacionado ao conceito de sentido. Seja ao falar do brincar, ou da aprendizagem da escrita (VYGOTSKY, 2005), todas essas atividades estão estreitamente ligadas às necessidades, em alguns casos, função do interesse da criança.
Estava aberta, portanto, a possibilidade de desenvolvimento de uma teoria da subjetividade a partir da perspectiva histórico-cultural, ainda que incipiente em Vygotski, bem como uma concepção do desenvolvimento. É a partir dessa construção que González Rey desenvolverá sua teoria. Por um lado, evidenciando a função atribuída à relação indissociável entre cognição e afeto na constituição da subjetividade. Por outro, apropriando-se do conceito de necessidade para caracterizar o desenvolvimento humano na interação entre contexto social e sua capacidade de produzir uma postura reflexiva e volitiva por parte do sujeito. O conceito de sentido traz em si a possibilidade de sintetizar a dinâmica inerente a esse processo.
Mas González Rey (1995) amplia o lugar dos afetos no desenvolvimento humano, atribuindo a estes um papel predominante. Em Comunicación, personalidad y desarrollo (1995), ele afirma que o contato estabelecido entre sujeitos, em que se realizam "comunicações verdadeiras", aparece como elemento fundamental para o desenvolvimento infantil, ancorado nas vivências estabelecidas nessas relações interpessoais significativas. Afirma, portanto, que "a não-comunicação cria danos irreparáveis em todas as esferas de expressão do homem, e se manifesta como um dos fatores etiológicos do processo de enfermidade" (GONZÁLEZ REY, 1995, p. 6). As relações afetivas entre pais e filhos, bem como professores e alunos ocupam papel essencial na aprendizagem e no desenvolvimento humano.
Mas González Rey (1995) reafirma a noção de que o processo de desenvolvimento não é espontâneo, e exige uma postura ativa do sujeito no processo. Evidentemente, o meio tem uma função decisiva, pois deve favorecer a correlação entre situação de desenvolvimento e interesse.
Esta concepção tem papel fundamental nesta pesquisa, diante da capacidade de concentrar em si a unidade entre o indivíduo e a sociedade, bem como entre passado e futuro possível, construído como um projeto pessoal. O conceito de sujeito representa a condição subjetiva de posicionamento, reflexão e desejo de transformação em um dado contexto social, ultrapassando qualquer automatismo ou determinismo de base psíquica ou sociológica.
No entanto, torna-se fundamental estabelecer a relação entre sujeito e personalidade, base para a compreensão do conceito de subjetividade. Assim, enquanto a personalidade reúne em si as experiências subjetivas e as organiza, o sujeito se posiciona diante delas e procura provocar as situações necessárias para efetivar seu projeto pessoal. Embora também seja constituinte destas, não pode ignorá-las, sendo a base em torno da qual se tornou sujeito, orientando seus motivos e seu projeto.
Contudo, González Rey (1995) apresenta uma importante contribuição para se pensar a forma recursiva como indivíduo e sociedade interagem e se modificam no processo de desenvolvimento humano. Evidencia-se nesta concepção que o contexto se apresenta como um existente compreendido a partir dos significados que lhe são associados. Assim, embora a subjetividade seja constituída pela peculiaridade das vivências de cada indivíduo e os sentidos que lhes são atribuídos, ela está crivada por interpretações comuns que possibilitam a troca de informações e experiências entre os membros de uma sociedade. Enfim, González Rey evidencia a necessidade de se caracterizar a relação deste sujeito com a sociedade não como uma externalidade, mas como uma apreensão dela, a partir de suas experiências. Fundamenta, assim, o conceito de subjetividade social.
O conceito de subjetividade social, portanto, comporta significados que não dependem das intenções do indivíduo simplesmente. Elas o antecedem e o constituem historicamente, a partir das suas vivências em contextos sociais diversos. À medida que este processo ocorre, as diferenças individuais, produzidas pela peculiaridade dessas vivências, se confrontarão em busca de um entendimento possível entre os integrantes da sociedade e, talvez, com os modelos dominantes de subjetividade social. São essas diferenças que, ao sugerirem novas interpretações, produzem tensões entre o individual e o social.
Toda a discussão desenvolvida nesse capítulo envolveu uma multiplicidade de conceitos que encontram estreita relação com o conceito de subjetividade. Desde o conceito de sentido que apresenta uma interpretação singular do sujeito a partir de suas diferentes vivências em constantes reencontros com a subjetividade social e a realidade concreta, até o conceito de configurações de sentidos, que permitem organizar tais experiências sob a forma de sistemas mais ou menos coerentes, percebe-se que o conceito de subjetividade representa essa tentativa de construir uma forma particular de o sujeito compreender a si próprio em relação ao universo em que se insere.
Embora a particularidade de cada sujeito garanta respostas singulares, o indivíduo diante dessas situações se depara com duas possibilidades: submeter-se à subjetividade social hegemônica ou gerar alternativas que estejam em acordo com seus interesses e suas necessidades. Em ambas as situações a subjetividade servirá de parâmetro, mas cumprindo funções muito diferentes para o desenvolvimento do sujeito. Assim, a relação que cada indivíduo estabelece com estes parâmetros dependerá de sua capacidade analítico-reflexiva (GONZÁLEZ REY, 2004). Essa autonomia caracteriza a condição de sujeito
O sujeito representa a possibilidade de particularização dentro dos processos normativos de toda a sociedade e, nesse sentido, está associado ao caráter processual e à tensão que caracterizam a vida social, marcando um processo suscetível de mudanças permanentes e inesperadas, e não um sistema submetido a leis supra-individuais que decidem o destino da história. (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 149)
A identidade, nesse caso, está estreitamente relacionada ao sentimento de autenticidade do sujeito em relação a suas configurações subjetivas. Mas essa identidade encontra outras formas de expressão nas manifestações patológicas do sujeito. Nestas, segundo González Rey, "o sujeito perde a capacidade de assumir posições próprias diante das situações sociais que enfrenta, ou seja, perde a capacidade de ação como sujeito, transformando-se em vítima das circunstâncias" (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 162). Nesse sentido, a subjetividade passa a circunscrever as possibilidades de interação, interpretação e intervenção dos sujeitos.
Para a superação dessa condição, como foi dito anteriormente, pais e educadores têm um papel fundamental na ruptura desse modo de funcionamento, estabelecendo uma comunicação autêntica e uma retomada do processo reflexivo nos sujeitos (GONZÁLEZ REY, 1995).
Uma vez que a proposta desenvolvida por este artigo é encontrar formas de identificar o papel de instituições sociais no desenvolvimento dos sujeitos humanos (escola, família e comunidade), estes conceitos passam a servir como elementos significativos para interpretar a relação dos indivíduos com as instituições nas quais participa.
Metodologia
Ao assumir a epistemologia qualitativa3 (GONZÁLEZ REY, 2002), essa pesquisa se configura levando em consideração a diversidade de contextos envolvidos neste processo. Concebe-se, portanto, que a escola, considerada como um espaço institucional multifacetado, não pode ser compreendida de forma unidimensional. Nesse sentido, deve considerar como ela é interpretada pelo aluno a partir de suas experiências sociofamiliares, do contexto no qual ele e a escola estão inseridos, das vivências ali construídas, das expectativas investidas pelo aluno, bem como os canais para sua expressão.
Para tanto foram realizadas entrevistas individuais com ex-alunos, orientadas por um roteiro semiestruturado com temáticas predominantes, envolvendo suas lembranças pessoais sobre família, infância, escolarização, juventude, envolvimento com projetos sociais e trabalho. As entrevistas passavam a enfatizar, portanto, a história dos entrevistados, e a partir daí, o lugar da escola.
Foram entrevistadas três ex-alunas da escola, sendo todas de uma mesma família. Uma delas, a tia, com quase 50 anos, pertence a uma geração mais antiga da escola. Suas sobrinhas, com cerca de 20 anos, se escolarizaram mais recentemente. De acordo com a epistemologia qualitativa de González Rey (2002), a trajetória de qualquer sujeito traz em si elementos de uma dada situação histórica e cultural. Nesse sentido, os integrantes de uma mesma família revelam elementos de uma subjetividade social em relação à escola e em relação à vida familiar, mas também evidenciam como a subjetividade individual ultrapassa qualquer pretensão determinista em relação ao contexto social. Em outras palavras os estudos de caso revelam não apenas mudanças pelas quais passou a escola, bem como a persistência de seus vícios, como a dificuldade de se pensar os alunos em sua integralidade.
Análise dos casos
SER SUJEITO, SER HISTÓRIA: O CASO DE MARINA
Marina é uma mulher negra, separada e, na época da entrevista, mãe de dois filhos (11 e 7 anos) e moradora da Vila São Nazi. Filha de pai negro e mãe branca, sua família mudou-se para o lugar onde ainda hoje mora desde a década de 1940.
Na época da mudança para a vila, o pai de Marina trabalhava nos Correios e a mãe era faxineira. Por iniciativa da mãe, iniciaram um pequeno comércio local, onde vendiam leite e pão, recebendo apoio do Sr. Jorge e da esposa dele - donos da única venda do local - para que conseguissem se manter no negócio. O local, ainda pouco povoado, com pequenas casas espalhadas na região, tinha na venda do Sr. Jorge e dos pais de Marina a referência espacial do que se desenvolveria com as características de uma favela. Aos poucos, novos moradores - principalmente encaminhados de outras regiões pela prefeitura - foram construindo seus barracos naquele lugar sem saneamento, sem luz, sem transporte, sem qualquer infraestrutura.
A mercearia funcionava a partir do trabalho do casal, com o auxílio dos 12 filhos, revezando-se de acordo com os horários de escola. Os irmãos não demonstravam afinidade com as atividades comunitárias, mas sempre se envolviam com atividades esportivas - especialmente o futebol - e culturais, com ênfase no teatro.
Sobre a infância, Marina evidencia que viver em um local sem recursos e com fortes laços comunitários teria tido alguma vantagem, considerando que essa condição tinha propiciado maior liberdade, uma vez que podiam brincar até tarde na rua. Marina não frequentou a escola infantil, indo diretamente para o ensino básico e ali aprendeu a ler e a escrever. No quinto ano de escolarização, ao entrar para uma boa escola particular como bolsista, a diferença racial e social são percebidas de forma consistente por Marina, interferindo significativamente em seu rendimento escolar naquele período. Ela não evidencia qualquer tratamento discriminatório ou falta de respeito, mas a ausência de uma atenção como aluna foi considerada por ela nitidamente prejudicial.
Tendo sido reprovada, Marina passará a outra escola, onde se sente acolhida e estabelece significativas relações de amizade, que nortearão toda sua trajetória posterior. A retomada da possibilidade de exercitar uma posição de liderança na escola para a qual foi encaminhada alterou seu empenho, rendimento e, principalmente, reconhecimento. Marina considera-se "com sorte" por estar sempre respaldada institucionalmente não apenas por seu bom desempenho, mas também por ser reconhecida nessas escolas pelas relações estabelecidas da família com a escola (no caso da Escola Municipal São Jorge) e dela com a nova escola através dos trabalhos que fora convidada a executar na catequese de seu bairro.
Com isso, Marina foi inserida precocemente nos movimentos comunitários, tendo sido convidada, por volta dos 12 anos, a dar catecismo e a cuidar de crianças na pré-escola. Nos próximos anos de sua juventude, Marina passaria a ser convidada a participar de diferentes atividades, integrando-se ao movimento comunitário estabelecido pelas diferentes instituições da vila. Em sua juventude, sua história pessoal estaria estreitamente relacionada à da vila. Diferentemente das lembranças fugidias da escola, recupera com evidente frescor suas lembranças relativas às primeiras experiências nas atividades comunitárias, apresentando com fidelidade o sentimento de entusiasmo e ingenuidade que pareciam marcar este período. Marina evidencia o quanto sua aprendizagem ocorreu principalmente fora da escola, por meio do contato com uma pedagogia diferente da tradicional, na qual passava a ocupar um lugar ativo no processo de aprendizagem.
O engajamento inicialmente juvenil de Marina no movimento comunitário cede espaço para um posicionamento compatível com as novas exigências e responsabilidades que a função passa a exigir. O volume de necessidades existentes na comunidade faz com que toda proposta emergente tome rapidamente proporções grandiosas. As transformações e conquistas na comunidade trazem a marca de um projeto e de sua participação pessoal.
Mas Marina começa a enfrentar atritos com a família. Tendo sido demitida do emprego, envolve-se integralmente nas atividades da creche e da associação comunitária. A disponibilidade e interesse para trabalhar na venda da família já diminuíam. No entanto, as cobranças da mãe por um maior interesse de Marina pela família evidenciam um descontentamento que começa a se avultar.
Esses atritos, que marcaram um corte nas relações com a mãe, representam de forma fidedigna como as relações de solidariedade, pautadas em um envolvimento integral dos sujeitos, caracterizavam as relações comunitárias.
Sobre a importância da Escola Municipal São Jorge, Marina reforça uma impressão que será repetida por outros entrevistados: a familiaridade com a escola, com os que a frequentam e com os que nela trabalham. A escola seria marcada para Marina, portanto, por essas relações vicinais e de amizade. A escola é percebida por ela, principalmente, como uma instituição social voltada para o desenvolvimento da comunidade e não por uma experiência pessoal de formação escolar.
O episódio desfavorável ocorrido na outra escola por onde passou parece irrelevante, e é a escola onde iniciou suas relações com o movimento de catequese que permitiu a Marina iniciar a construção de seu projeto de vida. Enquanto a escola Municipal São Jorge era vista muitas vezes como restritiva à possibilidade de efetivamente vir a conhecer, o movimento de catequese apresentou para ela uma possibilidade real de aprender.
Nas entrevistas que sucederão, tentaremos verificar como essa subjetividade social influencia a forma como as gerações percebem seu contexto e constroem sua subjetividade.
SER SUJEITO DA MINHA HISTÓRIA: O CASO DE SANDRA
Sandra é sobrinha de Marina, mora na Vila São Nazi desde que nasceu, no mesmo lote dos avós maternos. Foi aluna da Escola Municipal São Jorge na primeira metade da década de 1990. No período da entrevista, estava com pouco mais de 20 anos de idade e fazia graduação em uma faculdade particular na área de humanas. Sandra tem uma irmã, Laura, cerca de cinco anos mais nova - que também foi entrevistada - e um irmão cerca de oito anos mais novo.
O relato de Sandra sobre seu processo de escolarização apresenta suas principais zonas de sentido em torno das atividades desenvolvidas coletivamente. O interesse pela participação em atividades coletivas coaduna com uma relação cooperativa com os professores - com algumas exceções - em um movimento favorável à aprendizagem.
Contudo, essa familiaridade nem sempre é propiciada a partir da iniciativa dos professores, mas da organização da própria turma que, por fim, é acolhida pelo professor. Evidencia-se que a escola, portanto, embora cumpra um de seus principais papéis na socialização dos alunos, não parece fazê-lo como um projeto intencional e planejado. Os relatos de Sandra mostram o potencial educativo da escola, subutilizado pelos professores e pela escola em geral.
É possível identificar na configuração subjetiva de Sandra uma subjetividade social encontrada em outros entrevistados, formulada em torno da figura do professor. Ou seja, a expectativa sobre seu papel integral como educador, não apenas lecionando, mas agindo como árbitro diante dos conflitos entre alunos e garantindo um ambiente de segurança e justiça. Assim, a relação com os professores está marcada por elementos de sentido extremamente importantes, despertando nos alunos um sentimento de identidade. É possível identificar o sentido subjetivo que a atenção do professor tem para o aluno: "Lembro, na 1º série foi D. Lídia Inês. Até hoje eu a vejo e ela me cumprimenta, maior legal" (SANDRA, 2006).
Por outro lado, a manifestação de indiferença dos professores em relação aos alunos produz sentidos subjetivos marcantes, pois incongruentes com a configuração subjetiva construída em torno deste profissional.
Embora não tenha dúvidas quanto à função socializadora da escola, a avaliação quanto à qualidade do ensino na escola é ambígua. Embora a avalie positivamente a partir de uma pergunta direta, no decorrer da entrevista, Sandra evidenciará outra avaliação. Menciona que não apenas ela, mas ambos os irmãos tiveram dificuldades diante dos conteúdos da quinta série na outra escola.
Para Sandra, a segurança estabelecida por essa relação com o conhecimento parece ter favorecido sua participação e iniciativa nas atividades escolares. O espaço de convivência escolar é favorável ao aprofundamento das amizades, que perduram na vida de Sandra além da escola. Estabelece-se, assim, um movimento de recursividade entre as relações escolares e as relações na comunidade.
A ruptura dessas relações, no entanto, colocou Sandra em uma situação crítica, em função da mudança de escola, dessa vez para fora da comunidade. Dois fatores parecem estar envolvidos nessa crise na nova escola: (1) a importância atribuída ao estabelecimento de novos grupos de amigos, não apenas porque a amizade é um dos principais elementos de sua configuração familiar, mas porque também nesse novo espaço os amigos são considerados como um importante suporte diante de uma situação desconhecida; (2) e diante dessa "necessidade" de filiação a grupos de amigos, Sandra consegue reconhecer apenas duas opções: os CDF e os rebeldes. A forma como Sandra interpreta suas opções de filiação - e de certa forma, o que a escola lhe apresenta - não permite uma síntese, mas uma antinomia.
Diante de uma situação na qual não encontra correspondência em sua subjetividade individual, cabe ao sujeito buscar os ajustes necessários para compreender e atuar sobre a situação que se apresenta. No caso de Sandra, pré-adolescente, o imperativo era a adequação de sua subjetividade individual a um grupo de filiação.
Neste momento, Sandra "escolhe" o grupo "rebelde" e passa a faltar às aulas, cometer pequenos atos de vandalismo e acompanhar colegas em suas incursões amorosas sigilosas. Nesse sentido, Sandra justifica seus atos: "Era bom, era divertido, eu não me arrependo, não... não me arrependo mesmo".
A experimentação se revela como um importante sinal de que a subjetividade individual não é um impedimento, mas uma referência para as ações do sujeito, podendo ser reconstituída, modificada, e até negada - com o ônus subjetivo que tal escolha possa produzir para cada indivíduo. Assim, é possível - e desejável, no sentido de que é um indício de flexibilidade - que o próprio indivíduo, especialmente na adolescência, venha a questionar suas referências na medida em que entra em outro universo de relações.
Embora o relato de Sandra não esconda o enaltecimento de atos de vandalismo, ela menciona o estranhamento ao comportamento de seus amigos. Considera, enfim, que comportamentos antissociais também fazem parte da vida, mas os sentidos subjetivos diante de tais atitudes revelam alguma incongruência. Esse incômodo em relação ao comportamento de suas colegas provavelmente evidenciaria a impossibilidade de perseverar nos atos de vandalismo, mas Sandra só foi capaz de romper com essa filiação diante da intervenção violenta do pai. Os atritos anteriores com o pai deixaram Sandra em uma situação de conflito. Nesse sentido, nega a validade da ação do pai. Sandra não pretende alterar as configurações anteriores em relação a seu pai, evitando o contato com os novos sentidos subjetivos que essa nova situação lhe apresenta. Com isso, a configuração construída revela uma perda significativa de seu dinamismo, evitando o conflito. Quais são as consequências de se construir um projeto ancorado na manutenção acrítica de uma configuração subjetiva?
Muitas vezes, a escola poderá se colocar como um espaço de confrontação do indivíduo com sua subjetividade, favorecendo o processo de reflexão. Os conflitos provocados por uma (des)organização das políticas de educação, não comprometeram a trajetória de Sandra, que manteve seu processo de escolarização. No entanto, parte significativa dos sentidos tão vivos e enfáticos atribuídos à escolarização tornou-se secundária em relação ao conflito provocado.
SER SUJEITO É OUTRA HISTÓRIA: O CASO DE LAURA
Há grande riqueza quando confrontamos os relatos de Laura com os de Sandra. Por um lado, pela coincidência nos relatos sobre a família materna e a família nuclear. Eles provocam uma nítida impressão de complementaridade, o que evidencia o caráter concreto da subjetividade social. Por outro lado, as peculiaridades envolvidas no relato de cada uma das irmãs evidenciam como a subjetividade se organiza segundo as experiências pessoais.
Os relatos de Laura, quando confrontados aos de Sandra, são marcados por uma visível facilidade ao verbalizar seus sentimentos, as diferentes situações familiares, para falar de si e mesmo de situações difíceis em sua vida. Sua espontaneidade ao falar evidencia, de forma mais nítida, indicadores dos sentidos subjetivos que permeiam suas configurações.
O reconhecimento e a valorização da família materna pela comunidade, tal como manifestos por Laura, são indicadores dos sentidos subjetivos nela mobilizados, identificando-se com ela e com seu papel histórico na comunidade.
No entanto, Laura apresenta claros indicadores de zonas de sentidos conflituosas em relação à sua identidade familiar. Esses indicadores apontam para sua insegurança em relação ao amor de seus familiares, através de uma necessidade de autoafirmação ao mencionar repetidamente o amor recebido por eles, buscando comprová-lo em diferentes formas de manifestação.
Há uma nítida valorização da educação dada pela avó a seus filhos e netos. Tem como referência a importância atribuída à educação pela família materna, que influenciará a percepção que Laura tem sobre os tios e sobre sua mãe, enaltecidos pela participação em eventos culturais e esportivos da comunidade ou fora dela. Os indicadores de sentidos subjetivos presentes nestes relatos evidenciam a valorização de Laura em relação à formação educacional recebida pela família materna.
Desde o início de seus relatos sobre sua escolarização, Laura apresenta afinidade com a escola. Pelos sentidos subjetivos mobilizados, a escola primária se apresentou como o período mais gratificante de sua vida. Descreve com muita satisfação o lugar de destaque que ocupava na turma ao estudar na Escola Municipal São Jorge. Por um lado, vivenciava tal lugar com orgulho por ser uma referência significativa na produção da turma, arregimentando os colegas, orientando-os e destacando-se por suas habilidades e intelecto. Laura evidencia grande satisfação ao assumir uma postura privilegiada em relação aos demais e por sentir-se integrada àquele universo.
Reconhece a importância da escola em mais de uma passagem pela potencialidade produtiva que suscita nela como aluna, valorizando modelos alternativos de educação e o exercício de atividades artísticas.
A mudança de escola, no entanto, traz para ela uma funesta impressão. Ao transferir-se para outra escola, perceberá que sua condição "superior" seria inferior ao exigido pela nova escola. Laura argumenta assim que suas dificuldades na nova escola não decorreram de seu relacionamento com os demais, mas exclusivamente da defasagem diante dos conteúdos.
Diante desse déficit - agravado pelas características anteriormente descritas sobre sua subjetividade individual - Laura não pareceu sentir-se legitimada, envolvendo-se frequentemente em formas de socialização que exacerbaram sua rebeldia e, de certa forma, atribuíram-lhe algum sentido ao integrar o grupo. Laura passará a não frequentar mais as aulas, optando por acompanhar colegas cotidianamente para atividades fora da escola, dentre elas o uso de drogas.
Em função das dificuldades enfrentadas com a mudança de escola, agravada pela falta de acompanhamento dos pais, Laura constrói, portanto, uma trajetória escolar tortuosa. Após ter se retirado da cidade, sob ameaças por ter se envolvido com jovens do tráfico de drogas, tentou estudar novamente, mas não deu sequência. No período em que foi entrevistada, havia voltado a estudar no turno noturno da escola pesquisada. Demonstrava entusiasmo e elogiava frequentemente a escola tanto em termos de organização, qualidade do ensino e atividades desenvolvidas.
Essa situação foi seguida de uma crise que parece ter sido desencadeada por ciúmes em relação a Sandra. Essa crise exigiu uma intervenção e posterior acompanhamento psiquiátrico, bem como acompanhamento psicoterápico. Quando foi realizada a entrevista, Laura estava sob tratamento psiquiátrico e psicológico.
O sentido subjetivo da escola tem feito com que Laura retornasse a ela com certo entusiasmo. Torna-se evidente que embora tenha prazer diante do conhecimento, da possibilidade de produzir e uma postura aberta para as novidades, Laura manifesta uma excessiva dependência em relação ao meio circundante. Isso pode ser observado em sua avaliação do curso noturno da Escola Municipal São Jorge. Ao responder sobre o clima da escola, aponta novamente para a importância do grupo e principalmente para a postura dos professores: "... achei as atividades muito legais e eram atividades que cativavam as pessoas, que te atraíam pra você estudar".
Em comparação a Sandra ou mesmo Marina, Laura não demonstra ter constituído ainda um projeto pessoal que organize sua trajetória, privilegiando uma relação experimental com o conhecimento e com a vida, na qual não demonstra ter um papel ativo. É possível compreender tal configuração subjetiva a partir de sua trajetória de vida, sempre marcada por uma necessidade de aprovação e afeto como motor para seus empreendimentos. As reações dos adultos (pais e professores) diante dessa configuração oscilam, portanto, entre a conivência que legitima essa configuração, e posturas reativas a ela, recriminando-a, de forma não dialogal, sem fazer com que se demova dessa situação.
Torna-se assim evidente a importância desse universo subjetivo nas relações interpessoais, especialmente para aquelas pessoas que ocupam o lugar de autoridade.
Tal situação demonstra o despreparo da escola e dos pais para lidar com as situações de crise dos adolescentes, seriamente agravada pela própria escola que não soube incluir uma aluna advinda da mesma rede municipal de ensino. Assim, a subjetividade social em torno da culpabilização do aluno por seu fracasso ou pelo abandono da escola orienta não apenas a escola, como a família e o próprio aluno, que pela evasão evita ser caracterizado dessa forma.
A relação de Laura com a escola parece ter se associado de forma recorrente às relações estabelecidas na família e com as amizades. Assim, encontraremos momentos produtivos e momentos críticos a partir da escola. Mas não é possível pensar a escola apenas como um reflexo das vivências de Laura fora desse contexto. Como as demais relações estabelecidas, também a escola teve responsabilidade sobre tais situações, evidenciando sua fragilidade por não reconhecer e considerar o papel da subjetividade no desenvolvimento e na aprendizagem do aluno.
Considerações finais
Ao final da análise dos estudos de caso, norteados pela compreensão da escola a partir das relações sociofamiliares de seus ex-alunos, um universo de possibilidades se abre diante das temáticas produzidas. A interação entre subjetividade individual e subjetividade social merece especial destaque pela possibilidade que os estudos de caso oferecem para a compreensão dos aspectos singulares. Eles influenciarão no curso dos acontecimentos em um grupo ou coletividade e, portanto, a importância que assumem na sua interpretação.
Observamos que mesmo a convivência de sujeitos em universos a princípio semelhantes depende de uma série de fatores relacionados ao sujeito, suas relações e o contexto histórico-cultural em que se encontra. Mas não pretendemos conduzir nossa interpretação para um relativismo extremo e o conceito de subjetividade individual e subjetividade social nos auxiliou nesse sentido.
Por um lado, a similaridade com que estes universos se apresentaram para os diferentes sujeitos que deles tomaram parte nos permitiu compreender, por meio de uma subjetividade social estabelecida, os aspectos concretos da realidade histórico-cultural. As características de cada sujeito, por sua vez, presentes na constituição de sua subjetividade individual, nos permitiram verificar como os indivíduos reagiram às diferentes situações - ou mesmo a situações similares de forma particular.
Ao buscar compreender o lugar da escola pública na subjetividade dos entrevistados, e assim identificar seu papel na constituição dos mesmos como sujeitos, vimos que ainda que a escola pareça assumir um lugar periférico no relato dos entrevistados, um olhar atento nos permitirá compreender que a educação familiar tem um impacto significativo na relação que o indivíduo estabelecerá com a escola - positiva ou negativamente. É nesse ponto que a escola se revela potencialmente relevante na constituição da subjetividade.
Vemos, assim, como para Marina sua primeira escola - aquela por nós pesquisada - não assume lugar significativo em sua identidade, uma vez que ela própria dirá que será em outra instituição que ela de fato aprenderá. Assim, à impressão negativa passada pelos cadernos velhos da professora, Marina opõe o vigor e a dinamicidade demandados pela catequese para que preparasse suas aulas. Nessa atividade considera ter, de fato, aprendido. A escola representa a reprodução, enquanto a catequese a construção, a produção. Da sua primeira experiência escolar Marina se lembra pouco, apresentando como aluna apenas um sentimento difuso de familiaridade.
Seu projeto pessoal e, concomitantemente, sua subjetividade se constituem nesse universo comunitário da Vila São Nazi no qual participa ativamente na produção de conhecimento e de ações sobre a realidade concreta. Será esse universo, inclusive, que permitirá a Marina atribuir novos sentidos para a escola, a partir da parceria que esta estabeleceu com as demais instituições comunitárias das quais fez parte.
Para Sandra, por sua vez, suas primeiras experiências escolares não colocaram em crise uma subjetividade constituída no espaço familiar. Feliz coincidência de uma turma, com uma professora, que permitiram construir memórias que sobrevivem de forma orgulhosa aos diversos momentos de uma trajetória ainda que tão curta. Sandra se identifica com o lugar de liderança, que ocupará também na escola. A escola fortalece a assunção desse modelo, permitindo-lhe a coordenação de atividades letivas junto ao seu grupo de trabalho.
Assim, a escola seria uma instituição capaz de reconhecer e fortalecer comportamentos até certo ponto autônomos de Sandra. As mudanças em sua configuração subjetiva ocorrerão ao se confrontar com seu pai. Essa configuração apresenta elementos contraditórios que não facilitam uma construção equilibrada de seu projeto pessoal. Percebe-se, portanto, que sua autonomia está comprometida com configurações de sentido que impedem a atualização e revisão dos sentidos subjetivos. Nenhuma instituição até o momento da entrevista havia provocado em Sandra uma percepção que tornasse necessária ou viável qualquer mudança.
A trajetória de Laura é ainda distinta em relação a Marina e Sandra. Embora apresente lembranças carregadas de sentidos sobre as experiências familiares, nenhuma delas revela tamanha ênfase quanto aquelas relatadas sobre sua trajetória escolar na Escola Municipal São Jorge. A frágil identidade familiar, assolada pelas dúvidas quanto ao lugar e ao seu pertencimento na família, faz da escola um espaço capaz de produzir nela um sentimento de identidade. Não se trata de uma identidade com a escola, mas uma possibilidade de manifestação de sua subjetividade, ainda que confusa entre a liderança e a burla. Tal subjetivação produziu em Laura o grato sentimento de reconhecimento na instituição. Mas vimos que a ausência desse apoio familiar influencia significativamente a subjetividade de Laura, cujo projeto pessoal não pode ser vislumbrado e, como dissemos anteriormente, parece estar sempre a mercê de um terceiro que o legitime.
Mas apesar de diferentes nuances na forma como cada entrevistada relata sua vivência, sua trajetória escolar e seu papel na sua subjetividade, uma subjetividade social da escola pode ser identificada. Afinal, a escola em questão é considerada por todas as entrevistadas como um universo familiar, uma extensão da comunidade. Conhecer o ambiente no qual se constituiu a escola foi de fundamental importância para compreender esse sentimento de familiaridade, erigido a partir de relações comunitárias entre a família das entrevistadas e demais famílias de alunos.
No entanto, observamos nas entrevistas que a subjetividade social em torno da escola está configurada sobre uma concepção tradicional de ensino voltada para a competência cognitiva. Em outras palavras, a avaliação da escola apresentada pelas entrevistadas tende a dicotomizar os universos da aprendizagem e da subjetividade, ignorando que as relações de subjetivação do aluno a partir de sua relação com a escola têm um papel central no desenvolvimento de sua aprendizagem, como citamos acima nos estudos de caso. Mesmo que os alunos relatem suas experiências na escola como uma vivência subjetiva, não conseguem vislumbrar sua relação com a aprendizagem. O que é mais grave nessa situação é que, longe de ser uma impressão dos entrevistados, tal subjetividade social tem efeitos concretos no funcionamento institucional.
Essa situação foi percebida por Sandra, ao relatar sua dificuldade e a de seus irmãos para prosseguirem os estudos em uma nova escola, um universo menos familiar. Assim, Marina percebe um preconceito mal disfarçado no tratamento frio e impessoal de uma escola que tradicionalmente atendia alunos brancos de classe média e média-alta. Será apenas ao transferir-se para outra escola, na qual sua cor favorece sua identificação com outras alunas e, assim, expande suas relações a partir de outras de suas características pessoais. Essa construção foi o ponto de partida para a construção de uma subjetividade cujos traços podem ainda hoje ser observados nela. Foi nessa escola que estabeleceu os primeiros contatos para realizar a catequese em sua comunidade.
Em suma, as dificuldades enfrentadas pelos alunos nesse período de transição entre instituições são consideradas como problemas particulares, lançando alunos e famílias em situações para as quais nem sempre estão preparados para enfrentar. Em uma mesma família, considerada pelos entrevistados como uma família atenta à educação, vimos respostas muito distintas - e no caso de Sandra e Laura, inadequadas - sobre o problema, com consequências também muito diferentes. Um momento potencialmente frutífero, no qual as novas experiências poderiam se constituir como desafios, questionamentos e revisão das subjetividades sociais erigidas no universo familiar, perdem-se em função de um modelo educacional institucionalizado.
Ao retomarmos as questões que balizaram essa discussão, vale lembrar, sobre a relação entre subjetividade e escolarização, que os relatos dos entrevistados oferecem elementos significativos para compreender que a situação por eles vivenciada é o reflexo não de uma escola, ou dos problemas com a formação de determinados professores, mas de uma concepção de escola. Assim como argumentou Patto (1996), a escola ainda reproduz a confusão que reina no universo acadêmico em torno de dicotomias arcaicas. Essas confusões, que têm em sua base as dicotomias entre conhecimento e afetividade e entre indivíduo e grupo social, atravessam a subjetividade social da escola e, por consequência, as ações de pais, professores, alunos e diretores.
Referências
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1 De acordo com González Rey (2003), subjetividade significa a organização complexa do sistema de sentidos e significações que caracteriza a psique humana individual e os cenários sociais nos quais o sujeito atua.
2 Vygotsky, L.S. Obras Completas - Fundamentos de Defectologia. Vol. 5. Havana, Pueblo y Educación.
3 Segundo González Rey (1997, 2002, 2005), a epistemologia qualitativa está baseada em uma lógica construtiva-interpretativa, na qual a construção de indicadores é a peça-chave para a elaboração de uma interpretação das informações segundo uma lógica configuracional.