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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.30 São Paulo June 2010

 

Por uma reconstrução do olhar em psicologia: a necessária mediação da cultura

 

For a reconstruction look on psychology: the necessary culture mediation

 

Por una reconstrucción del mirar en la psicologia: la necesaria mediación de la cultura

 

 

Carlos Henrique de Souza GerkenI; Lucas de Souza TeixeiraII

ILAPIP-UFSJ. www.ufsj.edu.br
IIBolsista FAPEMIG. E-mail: lucaspsicoufsj@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo desse texto é pensar em alguns conceitos importantes para o pesquisador no campo da psicologia que tem como tarefa o entendimento dos processos de escolarização e apropriação da escrita por parte de grupos indígenas brasileiros. Parte-se do pressuposto que o diálogo entre a psicologia e a antropologia é fundamental para tentar situar qual deve ser o papel da cultura no desenvolvimento cognitivo humano. Parte-se ainda do pressuposto de que a psicologia, apesar de todas as tentativas de incorporar o conceito de cultura em seus sistemas teóricos, possui uma dificuldade epistemológica central para a realização desta articulação. Para a realização dessa tarefa pretende-se discutir e articular os pressupostos teóricos de autores que defendem a necessidade de reconhecer a centralidade da cultura na compreensão dos processamentos cognitivos humanos.

Palavras-chave: cultura; Psicologia; processos cognitivos; letramento.


ABSTRACT

The objective of this text, is to think on certain important concepts for researcher in the Psychology field which has the task of understanding the schooling process and the writing appropriation of Brazilian Indian group. Stating from the assumption that the dialogue between Psychology and Anthropology is essential to state what should be the role of culture in the human cognitive development. Still using the assumption that psychology, despite all attempts to incorporate culture concept in its theoretical systems, has a central epistemological difficulty to carry out this articulation. To perform this task, we intend to discuss and articulate the theoretical assumptions of the authors who defend the necessity of recognizing the centrality of culture in understanding human cognitive processing.

Keywords: culture; Psychology; cognitive process; literacy.


RESUMEN

El propósito de este texto es plantear algunos conceptos importantes en el área de la psicología que parte de la comprensión de los procesos de escolaridad y de la escritura entre los grupos indígenas brasileños. Otro aspecto de relevancia indica que el diálogo entre la psicología es fundamental para ubicar que la psicología contiene una dificultad epistemológica central para la realización de esta articulación. Con respecto a este aspecto se busca examinar y articular los presupuestos teóricos de los investigadores que consideran la necesidad de reconocer la cultura como central para la comprensión de los procesos cognitivos humanos.

Palabras clave: cultura; Psicología; procesos cognitivos; letramiento.


 

 

A cultura é um viajante que ainda negocia
sua entrada na cidade murada da psicologia

Jaan Valsiner

 

I - Introdução

O objetivo desse texto é pensar em alguns conceitos importantes para o pesquisador no campo da psicologia que tem como tarefa o entendimento dos processos de escolarização e apropriação da escrita por parte de grupos indígenas brasileiros. Parte-se do pressuposto que o diálogo entre a psicologia e a antropologia é fundamental para tentar situar qual deve ser o papel da cultura no desenvolvimento cognitivo humano. Para a realização dessa tarefa pretende-se articular os pressupostos teóricos de alguns estudiosos da antropologia que têm se ocupado dessa temática, como Geertz (1989; 2001) Carneiro da Cunha (2009), Viveiros de Castro (2007) e da psicologia, como Bruner (1997, 2001), Bruner & Olson (2000), Kruger & Tomasello (2000), Matusov (2007), Rogoff (2005) e Valsiner (2009). O ponto de intercessão de todos esses autores é a defesa da necessidade de reconhecer a centralidade da cultura na compreensão dos processamentos cognitivos humanos. O problema central é que a cultura surge como uma palavra mágica positiva em conotações, mas difícil de ser operacionalizada por aqueles que tem por objetivo usá-la como um conceito central em seus empreendimentos acadêmicos.

 

II - A complexidade do conceito de cultura e sua articulação com a psicologia

Bruner (1997) defende que a psicologia possui uma dificuldade epistemológica central que a impede de compreender claramente o lugar da cultura nos processos de constituição do psiquismo, impedindo o rápido alcance do seu significado para a plena realização da espécie. A cultura, nesse sentido, constitui o substrato que define as possibilidades de realização do processo de adaptação, realizado por meio da conquista do universo simbólico compartilhado pela sociedade, sendo essa conclusão óbvia para a antropologia, mas não para a psicologia.

Tal dificuldade relaciona-se às principais antinomias - natureza / cultura e indivíduo / sociedade - cujo dilema fundamental está em decidir se as relações entre os termos são de continuidade ou descontinuidade, ou seja, de uma dicotomia nos termos. Uma das convicções que tomam corpo entre os autores que assumiram como tarefa a sua superação é a idéia de que o cérebro não deve ser tomado como instância que possui funcionamento autônomo, independente da cultura. Usando os termos empregados por Geertz (2001, p 181):

Nosso cérebro não se encontra num tonel, mas em nosso corpo. Nossa mente não se encontra em nosso corpo, mas no mundo. E, quanto ao mundo, ele não está em nosso cérebro, nosso corpo ou nossa mente: estes é que, junto com os deuses, os verbos, as pedras e a política, estão nele.

No entanto, conforme defende o autor, a articulação entre a Antropologia e a Psicologia é problemática, uma vez que a união entre eles "está marcada por reduções complicadas e implausíveis ou por interações teoricamente intrincadas" (GEERTZ, 2001, p. 179). Além disso, dar à cultura papel central nos estudos psicológicos é uma tarefa difícil, em função das intensas discussões sobre a clareza, a pertinência, o poder de análise desse conceito no interior da Antropologia. Dessa forma, qualquer pesquisa que tenha a pretensão de colocar a cultura no centro de seus problemas de investigação deve levar em consideração a sua complexidade.

Segundo Carneiro da Cunha (2009), o termo cultura em seu uso antropológico surgiu na Alemanha setecentista e de início estava relacionado à noção de uma qualidade original, um espírito ou essência que aglutinaria as pessoas em nações e separaria as nações umas das outras. Relacionava-se também à idéia de que essa originalidade nasceria de distintas visões de mundo de diferentes povos. Concebia-se assim que os povos seriam autores dessas visões de mundo. Segundo a autora, esse sentido de autoria endógena permanece até hoje.

Sem buscar todos os desdobramentos nos trabalhos etnográficos contemporâneos, a autora propõe uma definição de cultura, assumindo um conceito escrito em Sinceridade e autenticidade de Lionel Trilling nos seguintes termos:

A cultura é "Um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por caminhos secretos e explícitos com os arranjos práticos de uma sociedade, e que, por não aflorarem à consciência, não encontram resistência à sua influência sobre as mentes dos homens". (CARNEIRO da CUNHA, 2009, p. 357)

No entanto, para discutir os conflitos provocados pelas situações interétnicas, a autora propõe uma novidade que tem consequências para todos aqueles que entram em contato com as culturas indígenas. Trata-se da distinção entre "Cultura" (com aspas) e Cultura (sem aspas). A distinção básica entre os dois conceitos é que a "Cultura" (com aspas) é produzida por meio do contato interétnico e é representada tanto pelos discursos construídos sobre os povos indígenas, quanto pelos discursos e formas de lidar com o mundo dos brancos pelos próprios povos indígenas. Trata-se de uma lógica, que segundo a autora, é produzida numa relação de conhecimento mútuo e que apresenta uma grande margem de conflitos, sobretudo os que dizem respeito, por exemplo, à propriedade intelectual de bens produzidos nas sociedades indígenas. A "Cultura" (com aspas) é reflexiva e tem a propriedade de uma metalinguagem e é resultado do esforço de interpretação produzido por especialistas nas situações de contato e pelo esforço de objetivação realizado pelos próprios indígenas para lidar com as categorias metropolitanas com as quais necessitam negociar permanentemente em situações de contato.

Na mesma esteira de Carneiro da Cunha, Viveiros de Castro (2004), em A inconstância da Alma Selvagem, discute a identificação da cultura com a essência, e propõe no lugar do jardim clássico cheio de estátuas de "mármore" a idéia do jardim barroco, constituído de murtas, que são permanentemente esculpidas, como metáfora para compreender a cultura indígena. A esse propósito afirma que:

Nossa idéia antropológica de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de murta: museu clássico, antes que jardim barroco. Entendemos que toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessária uma pressão violenta, maciça para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Estimamos, por fim que uma vez convertidas em outras que si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm volta. Não há retroceder, a forma anterior foi ferida de morte, o máximo que se pode esperar é a emergência de um simulacro inautêntico de memória, onde a etnicidade e a má consciência partilham o espaço da cultura extinta. (p. 195)

Ao contrário, se pergunta se a identidade de uma cultura não pode estar associada justamente por uma abertura para o outro, que faz das situações de contato, em que existe um processo de mútua interpretação, e profundas transformações nos modos de ser, mediados pela presença do outro, momentos constitutivos do próprio ser da cultura.

Valsiner (2009), por sua vez, chama atenção para a possibilidade de a Psicologia construir os seus referenciais com base nos referências culturais de outras culturas, construindo o que poderia ser chamado de uma verdadeira "Psicologia indígena". Para o autor toda a Psicologia está assentada nos princípios eurocêntricos sobre o desenvolvimento humano. Deste modo seria necessário que a Psicologia fizesse um esforço de descentramento de suas próprias categorias, para formular conceitos a partir do referencial simbólico de outras culturas, fazendo um esforço de compreender como outras culturas estabelecem os parâmetros, os valores, os rituais e os símbolos compartilhados que definem as diferentes trajetórias de desenvolvimento possíveis. Para o autor, a construção de uma Psicologia indígena baseada na cultura hindu, por exemplo, pode representar a superação de dicotomias tão típicas da cultura ocidental, como a relação entre processos cognitivos internos e a herança cultural (Valsiner, 2009, p. 16).

Minha intenção aqui não é dar prosseguimento a este debate, mas apenas mostrar a complexidade que envolve o uso e a definição do conceito de cultura, por parte da Antropologia e da Psicologia.

Contemporaneamente o problema da centralidade da cultura surge como um dos resultados do processo de globalização, com o aumento do contato, quase sempre conflituoso, entre diferentes grupos humanos com tradições e referências simbólicas e culturais inteiramente diferentes. A importância da questão da cultura é acentuada pelos termos em voga como: multiculturalismo, raízes culturais, práticas culturais, etc.

Ainda para Valsiner (2009), a Psicologia cultural usando o termo cultura como um termo genérico em várias versões, continua sendo uma arena em que a inovação pode ocorrer. Campos de pesquisas independentes como o "self dialógico", "processos de representações sociais", "mediação semiótica" e outros, têm sido co-participantes nesse novo avanço das idéias. No entanto, o autor advoga que o problema central da inovação da pesquisa empírica que pode capturar o ser humano ativo construtor de significados, ainda não foi resolvido. Por essa razão, a pertinência da metáfora do viajante que ainda negocia sua entrada e permanência numa cidade murada, fechada, que é a Psicologia.

A problemática da unidade de análise é crucial para a Psicologia sociocultural. Num esforço de resolver esse problema Matusov (2007) sugeriu a noção de uma unidade de análise aberta, uma vez que estas são sempre determinadas pelas questões apresentadas pelo pesquisador e pelo conjunto de dados de que dispõe (MATUSOV, 2007, p. 13). Do ponto de vista deste autor a disciplina não precisa definir previamente uma unidade de análise como têm feito vários autores, mas deve adequar sua unidade de análise ao objeto de pesquisa, que, por sua vez, não deve necessariamente representar uma solução universal para toda a Psicologia sociocultural.

Ainda para Valsiner (2009), a raiz metafórica do problema da unidade de análise foi estabelecida por Vygotski, seguindo Marx, que afirmava que a propriedade da água não era redutível a seus elementos componentes. A água tem a propriedade de apagar o fogo enquanto o hidrogênio e o oxigênio são combustíveis. Essa observação foi construída com o objetivo de mostrar que era necessário encontrar uma unidade de análise que desse conta da complexidade humana e não a reduzisse em processos elementares e imediatos. A solução apresentada por Vygotski foi o estudo do significado da palavra, que, do seu ponto de vista, seria a menor totalidade passível de estudo, que continha, ao mesmo tempo, uma variedade de versões do sentido pessoal (smysl) por meio de oposições e contradições entre subunidades (sentido pessoal) do significado (znachinie) (Valsiner, 2009, p. 13).

Do mesmo modo, outros autores definiram suas unidades de análise conforme exemplos de Matusov (2007) que se seguem: ação mediada (WERTSCH, 1994; ZINCHENKO, 1985); atividade (DAVIDOV & RADZIKHOVSKI, 1989; sistema de atividades (ENGESTRÖM, 1999); pessoa no mundo (BRUSHINSKY, 1990; LAVE & WENGER, 1991); participação em comunidades em processo de transformação (ROGOFF, 2005); enunciação (BAKHTIN, 1986); ou comunidade de prática (WENGER, 1998).

Como afirmamos, para Matusov (2007) os pesquisadores socioculturais deveriam ter cuidado em suas pesquisas em procurar por unidades de análises gerais, ou até mesmo universais, na medida em que a totalidade das análises é construída a partir dos problemas formulados pelo autor e por seu material de pesquisa. (MATUSOV, 2007, p. 308).

A perspectiva de análise que adotamos pretende compreender o processo de desenvolvimento procurando mostrar de que forma o sujeito se constitui a partir do outro e, ao mesmo tempo, constrói e ressignifica seu lugar nas relações sociais. A questão central está na interação que se estabelece entre o sujeito e seu mundo, que é ao mesmo tempo marcado pela história e pela cultura (WERTSCH, 1998).

Por sua vez, autores como Bruner (1997; 2001), Kruger & Tomasello (2000) e Geertz (1989; 2001), Rogoff (2005) defendem que a evolução do homem deve ser concebida como o desenvolvimento dos poderes de internalização dos modos de agir, imaginar e simbolizar existentes em determinada cultura. Nessa perspectiva, o uso das ferramentas culturais é essencial na concretização da cognição humana. O objeto central de análise deve ser a interação do indivíduo com os sistemas estabelecidos de significados, crenças e valores instalados na sociedade, cujo quadro de testagem crucial é a educação. A questão fundamental está em tentar responder qual deve ser a função da educação no interior de um grupo, qual é o seu papel na vida das pessoas, porque essa educação está situada no interior de relações sociais complexas e da cultura.

Esse movimento é importante, uma vez que é por meio da educação que a cultura se enraíza no sujeito, sendo resultante da forma como os atores sociais a assimilam em seu cotidiano. Portanto, cada momento de realização cultural é também um momento de armazenamento, transmissão e re-significação dos conteúdos e das práticas constitutivas da cultura (Bruner, 2001).

Os estudos desenvolvidos por Kruger & Tomasello (2000) e Tomasello (2003) a respeito das relações entre educação, sociedade e cultura permitem avançar nas discussões. Esses autores ressaltam que a aprendizagem cultural humana possui a particularidade de reservar às crianças ambientes com características, atividades sociais e instituições culturais que as levam a ter experiências de aprendizagem específicas, de forma que elas internalizariam não apenas as práticas externas, mas também, por inferência, os valores e atitudes de seu grupo. A instrução intencional, por outro lado, pode ser considerada um componente fundamental ao desenvolvimento humano por possibilitar a aquisição e aperfeiçoamento pela criança de muitas habilidades culturalmente relevantes e também por permitir a experiência da aprendizagem instruída, o que implica, necessariamente, desenvolvimento cognitivo.

Nesse sentido, a cultura apresenta-se como um espaço totalizante de socialização, uma vez que possibilita à criança aprender por meio de relações livres e crescentemente complexas de trocas de condutas, símbolos e significados com o próprio meio social; por meio da inserção diferenciada em práticas sociais cotidianas; e também, de forma intensa e inapagável, nos ritos de passagem, quando símbolos poderosos do grupo marcam na pessoa a regra do saber necessário, ao mesmo tempo em que, coletivamente, a constituem como um novo tipo de ser social no interior da cultura (BRANDÃO, 2002).

Nosso trabalho está imbuído desta perspectiva uma vez que busca apreender os determinantes culturais da experiência com a escrita, com uma abordagem que nos permita apreender o trabalho do sujeito necessário à apropriação deste instrumento de mediação simbólica. "O domínio da língua escrita requer a compreensão do sentido cultural dos diversos desenvolvimentos da prática da escrita e requer, por outro lado, a participação nas atividades de escrita e leitura, que conservem sua essência complexa e não se diluam em seus componentes, as ações e operações necessárias para seu desdobramento" (BAQUERO, 1998, p. 110).

Partindo deste pressuposto, nossa pesquisa adquire uma complexidade teórica singular. Em primeiro lugar, precisamos compreender os processos de criação, acumulação e transmissão dos conhecimentos tradicionais que fazem parte da cultura Xakriabá. A existência de rituais e fórmulas orais fixas transmitidas em forma de narrativas ou parte de momentos específicos de interação é importante para identificar os processos de reflexão sobre a própria linguagem existente na cultura. Vários relatos antropológicos contemporâneos têm demonstrado a existência deste tipo de conhecimento metalinguístico construído nesta modalidade de exercício da oralidade.1

Por outro lado, temos que desenvolver um esforço de descrição analítica do contexto de aprendizagem e uso da escrita, na escola e fora dela, demarcando o tipo de interação entre os sujeitos usuários, bem como o tipo de textos e a natureza das atividades nas quais os discursos escritos são concretamente utilizados, a interação entre a oralidade e a escrita e os valores associados a seu uso cotidiano.

Parte-se do modelo de análise proposto por Street (1984, 1995, 2003) que define que letramento é construído a partir de práticas e eventos cujo sentido só pode ser apreendido a partir do estudo das relações sociais e culturais nas quais os sujeitos estão concretamente inseridos.

 

III - As consequências metodológicas dessa perspectiva teórica: a necessária reconstrução do olhar

O trabalho de campo dentro desta perspectiva consiste numa re-educação do olhar e da intuição por meio da busca de referenciais que nos permitam uma abertura para elementos específicos da cultura do outro a partir da conscientização e questionamento de nossa própria cultura, bem como do olhar que esta nos condiciona a lançar sobre este outro. Portanto, a apropriação do método de inspiração etnográfica mostra-se essencial para estudar como sujeitos pertencentes a culturas em que predominam as trocas simbólicas por meio da linguagem oral podem construir sua própria cultura escrita.

Oliveira (1998) aponta os limites da linguagem para a objetivação da realidade a partir de um instrumento central: o diário de campo. O autor, além de sintetizar o fazer antropológico na tríade: olhar, ouvir, escrever, aponta para a prática com os excedentes de significação e o fazer reflexivo como elemento diferenciador entre os paradigmas da pesquisa naturalista e o da pesquisa participante.

Ezpeleta e Rockwell (1989), Fonseca (1998) apontam um foco maior nas questões metodológicas apresentando a pesquisa no cotidiano de modo a desmistificar a etnografia e o relativismo cultural como propostas a - metódicas e imprecisas, demonstrando que o fazer reflexivo deve ir além do subjetivismo e do relativismo. Afinal, o dado qualitativo se constrói no tensionamento entre o particular e o geral, na triangulação entre diários de campo, gravações e filmagens e da circunstanciação dos pesquisados e pesquisadores por meio de dados históricos, sociológicos e antropológicos. Um dos fatores determinantes para o surgimento e desenvolvimento de tais discussões é a apropriação dos conceitos bakhtinianos de compromisso ético, dialogicidade e intertextualidade, conforme Freitas, Souza e Kramer (2003).

Partindo destes pressupostos, temos buscado nas jornadas de campo fazer a descrição das formas específicas de divisão do trabalho e do saber. Atentando para como as práticas e eventos de letramento estão inseridos no cotidiano da Aldeia do Barreiro Preto e, mais recentemente, da Aldeia do Itapecurú da Terra Indígena Xakriabá, refletindo sobre como os diferentes sujeitos indígenas participam das diferentes atividades cotidianas e quais os processos de socialização privilegiados. Desta forma, busca-se reconhecer a existência de momentos específicos de produção e transmissão do conhecimento entre os sujeitos e como se dão tais relações.

Tratando especificamente do contato com a população estudada, o importante é que haja sensibilidade para ouvir os sujeitos em situações diversas de contato, em visitas domiciliares, nas reuniões políticas, nos encontros festivos, nas rezas, sem a preocupação imediata com registro dos dados. Isso é extremamente significativo quando se remete às análises das entrevistas. É muito difícil realizar uma boa entrevista com o informante privilegiado já no primeiro encontro. O ideal é a construção de um reconhecimento mútuo entre investigadores e sujeitos investigados a partir de diversas conversas ao longo do tempo, de forma que alguns dados possam ser acumulados progressivamente e, no momento oportuno, a entrevista se torne uma troca aberta, de caráter informal e amigável, cujo contexto favoreça a emergência de histórias e memórias que podem constituir valiosos materiais de análise, uma vez que expressam formas de significação e interpretação da realidade sociocultural.

Esperamos com estas breves reflexões apontar caminhos para a pesquisa de campo junto a populações que nos propomos a conhecer em sua totalidade.

Em se tratando da pesquisa sobre o processo de letramento outra dimensão é fundamental. Acreditamos que para compreendermos os processos de apropriação cultural e individual da linguagem escrita, bem como suas consequências cognitivas e culturais, precisamos compreender como se dão as relações entre as formas de uso da oralidade e da escrita. Compreender como se dão os processos de construção e transmissão do conhecimento e como eles estão articulados às atividades produtivas e às divisões do trabalho e do poder é tarefa urgente para os que almejam contribuir para a preservação e para a autodeterminação dos povos indígenas brasileiros.

Acredita-se, por outro lado, que o estudo das culturas indígenas deve partir da superação da noção primitivista etnocêntrica direcionada à cultura indígena, referindo-se ao que Silva (2001) chama de "acolhimento não problemático da contradição". Segundo a autora, a partir da década de 70 as abordagens etnográficas começam a questionar o etnocentrismo presente nas teorias antropológicas sobre o pensamento dos povos ditos "primitivos", promovendo a ampliação do debate sobre a universalidade e diversidade, propondo a introdução da noção de historicidade e singularidade no trato com os conceitos de cognição e simbolismo nos estudos sobre os grupos indígenas.

Por essas razões, defendemos a possibilidade de articulação dos pressupostos contemporâneos da antropologia com a teoria histórico-cultural, uma vez que as noções de historicidade e singularidade, bem como a atenção aos aspectos simbólicos e cognitivos dos fenômenos humanos se encontram presentes no método dialético concebido por Vygotski que pressupõe a concepção do homem como produtor-intérprete de sistemas semióticos que o inserem numa cultura e num período histórico determinado.

Por todas as razões teóricas e metodológicas explicitadas acreditamos estar trilhando um caminho rico de possibilidades de produção de um conhecimento coletivo, interdisciplinar, pois o desenho de nossa pesquisa está articulado à abordagem antropológica, sobre uma dimensão simbólica fundamental para a vida contemporânea de uma categoria de sujeitos que se encontra ainda muito afastada de nossa convivência acadêmica: os Povos Indígenas.

 

Referências

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1 A este respeito remetemos o leitor para as contribuições de Carol Fleisher Feldman num texto intitulado Metalinguagem oral In: OLSON, David & TORRANCE, Nancy. Cultura, escrita e oralidade. São Paulo, Ática, 1995, em que a autora sustenta a existência de processos de reflexão sobre a linguagem desenvolvido no interior de culturas de oralidade puras.

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