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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.43 São Paulo Dec. 2016

https://doi.org/10.5935/2175-3520.20160002 

ARTIGOS

 

Você é feliz? A autopercepção da felicidade em crianças1

 

Are you happy? Self-perception of happiness in children

 

¿Eres feliz? Autopercepción de la felicidad en niños y niñas

 

 

Claudia Hofheinz Giacomoni; Luciana Karine de Souza; Claudio Simon Hutz

Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. giacomonich@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo do presente estudo foi investigar a autopercepção da felicidade em crianças escolares. Participaram 200 crianças de escolas públicas e privadas da cidade de Porto Alegre, com idade entre 5 e 12 anos. Foram realizadas entrevistas individuais sobre a autopercepção da felicidade, crenças e causas atribuídas a ela, e descrição da sua origem. A maioria das crianças se considera feliz, sem distinção de gênero ou de tipo de escola. A própria felicidade foi mais atribuída à família, ao self positivo e ao lazer. Diferenças etárias significativas mostraram que as crianças mais novas admitem sentirem-se mais felizes. Os meninos associaram mais o lazer à felicidade do que as meninas, bem como eventos com atividades físicas. Para as crianças em geral, a origem da felicidade está no coração, na própria pessoa, e nos afetos/emoções. Estudos dessa natureza fornecem diretrizes para a identificação de indicadores de bem-estar subjetivo e satisfação de vida infantil.

Palavras-chave: felicidade, satisfação, crianças.


ABSTRACT

The aim of the present research was to study the self-perception of happiness in school children. Two-hundred children aged from 5 to 12 years-old, from public or private schools located in the city of Porto Alegre (southern Brazil), participated. Individual interviews were conducted about self-perception of happiness, beliefs and causes related to it, and their origin. Most children consider themselves happy, without distinction of gender or type of school. Personal happiness was attributed to family, to a sense of positive self, and to leisure. Significant age differences showed that younger children consider themselves happier. Boys associated leisure to happiness more than girls, as well as events with physical activities. In general, to children, the origin of happiness is in the heart, in themselves, and in positive affection/emotions. Studies like the present one suggest directions to identify signs of subjective well-being and life satisfaction in childhood.

Keywords: happiness, satisfaction, children.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue investigar la percepción de la felicidad en niños y niñas escolares. Participaron 200 niños y niñas, con edades entre 5 y 12 años, de escuelas públicas y privadas situadas en Porto Alegre, sur del Brasil. Se realizaron entrevistas individuales sobre la percepción de la felicidad, creencias y causas que se le atribuyen, y una descripción de su origen. La mayoría de los niños se consideró feliz, sin importar género o tipo de escuela. La felicidad propia estuvo más atribuida a la familia, al self positivo y al ocio. Los niños menores afirmaron sentirse más felices al compararlos con los mayores. Los niños asociaron más ocio a felicidad que las niñas, así como a eventos con actividades físicas. Para los niños, la fuente de felicidad está en el corazón, en la propia persona, y en los afectos/emociones. Estos estudios pueden proporcionar directrices para la identificación de indicadores de bienestar subjetivo y satisfacción de vida en la niñez.

Palabras clave: felicidad, satisfacción, niños.


 

 

Ser feliz é, direta ou indiretamente, objetivo de todo ser humano. Esforços científicos nesse tema se concentram desde o início da década de 2000 no movimento de estudiosos denominado Psicologia Positiva. Como afirma Seligman (2004), mentor do movimento, "felicidade e bem-estar são os resultados desejáveis da Psicologia Positiva" (p. 287). O autor trata os termos felicidade e bem-estar de modo amplo e intercambiável para congregar as metas de todo empreendimento científico via Psicologia Positiva.

A Psicologia Positiva empenha pesquisas e estudos em emoções positivas (satisfação, contentamento, orgulho, serenidade, otimismo, esperança, fé e confiança), traços positivos (forças, virtudes e habilidades) e instituições positivas (democracia, família, liberdade). São estudadas as cognições, emoções e comportamentos associados à felicidade, da infância à velhice.

Felicidade, ou bem-estar, é uma experiência que pode ser percebida de três formas diferentes: como prazer ou gratificação, como personificação de forças e virtudes, e como senso de sentido e propósito na vida (Seligman, 2004).Com relação à felicidade na infância, a convenção da Organização das Nações Unidas dirigida aos direitos da criança em 1989 motivou um bom conjunto de pesquisas sobre a avaliação do bem-estar. Foi priorizada a ausência de aspectos que contribuem para a sobrevivência imediata e/ou atenção ao futuro das crianças, como escola e vacinação (Ben-Arieh & Gross-Manos, 2009). O empenho em mapear a realidade do bem-estar infantil abordou prioritariamente cuidadores, educadores e profissionais que atendem as crianças - um enfoque adultocêntrico, portanto. A visão das próprias crianças sobre seu bem-estar ou felicidade não fez parte do plano de ação naquele momento.

A pesquisa direta com crianças sobre sua felicidade é relevante, especialmente se observado o direito da criança à própria opinião sobre si. Sob influência da Psicologia Positiva, ainda são escassos os estudos publicados sobre como a criança entende e vivencia a felicidade. Uma busca no site Periódicos CAPES em agosto de 2015 ilustra a raridade deste tipo de abordagem. As expressões "happiness child* concept", "happiness child* perception" e "happiness child* definition" geraram resultados que, organizados por data, não continham trabalhos no tema em seus 50 primeiros textos citados. Com a expressão "happiness child* view" foram obtidos 31 resultados, dos quais um trabalho, com adolescentes, tratou de percepções sobre as palavras saúde e felicidade (O'Higgins, Sixsmith & Gabhainn, 2010).

O'Higgins et al. (2010) entrevistaram 31 adolescentes (16 rapazes e 15 moças) de 12 e 13 anos de idade, sobre suas percepções para saúde e para felicidade. A entrevista abordou a felicidade com questões como "o que te faz feliz?", "o que a palavra felicidade significa para você?" e "o que você sente quando está feliz?". A análise qualitativa empregada nos dados sugeriu dois grandes temas para felicidade: fazer coisas divertidas e estar na companhia de amigos e familiares. Os autores interpretaram esses resultados com base em estudos que salientam a importância dos relacionamentos pessoais e sociais para os participantes. Uma diferença de gênero destacada mostrou os rapazes mais associados à ideia de não adiar gratificações. Os resultados refletem a dimensão da felicidade nomeada por Seligman (2004) como prazer ou gratificação. Enfim, o estudo focalizou adolescentes, sem a intenção de detectar mudanças ao longo da infância e adentrando na adolescência. No presente trabalho, como se verá, há esta intenção.

Buscas bibliográficas complementares ao Periódicos CAPES permitiram localizar outros dois trabalhos que compartilham da intenção de investigar como crianças e adolescentes entendem e vivenciam felicidade ou bem-estar. Com isso, dois estudos pertinentes à investigação foram localizados.

Fattore, Mason e Watson (2009) conduziram entrevistas não-estruturadas sobre bem-estar em 123 crianças e adolescentes australianos, com idades entre 8 e 15 anos. Os resultados foram organizados nos temas: senso positivo de self, senso de agência, segurança, atividades divertidas, liberdade, competência, lidar com situações difíceis, recursos econômicos e materiais, ambientes, saúde física e responsabilidade social e moral. De fato, as percepções dos participantes sobre bem-estar se incluem nos grupos temáticos do estudo da felicidade em Psicologia Positiva, como, por exemplo, a instituição positiva da liberdade. Como as perguntas foram mais amplas do que as do estudo de O'Higgins et al. (2010), uma maior variedade de temas foi construída com base nos dados coletados. Por outro lado, isso proporcionou o surgimento de aspectos não diretamente ligados a uma definição de bem-estar, mas também ambientes que o favorecem e estratégias para alcançá-lo. O'Higgins et al. (2010) mantiveram o foco em abordar o conceito de felicidade conforme os participantes de seu estudo.

Na Espanha, Thoilliez (2011) abordou, mediante entrevista,817 crianças de 6 a 12 anos sobre felicidade, focalizando, nos domínios de afetos positivos, eventos vitais e situações cotidianas, aspirações, talentos e relacionamentos. Enquanto as crianças de 6 e 7 anos foram entrevistadas, as demais responderam a um questionário. Dentre muitos resultados, foi observado que, quanto menor em idade a criança, maior sua percepção de felicidade, sem diferença significativa de gênero. Quanto aos eventos e situações, 33% das crianças apontaram a família e 20% citaram amizade e relações de pares como relevantes à sua felicidade, resultados também encontrados no estudo de O'Higgins et al. (2010) com adolescentes.

Três estudos, portanto, se aproximam do objetivo de compreender como crianças e adolescentes entendem e vivenciam felicidade ou bem-estar. Essas pesquisas são importantes no contexto do desenvolvimento infantil, mais precisamente, do desenvolvimento do autoconceito e seus reflexos sobre a autoestima. Nessa direção, a psicologia do desenvolvimento humano trouxe significativas contribuições para o entendimento de como a criança constrói, mantém e transforma a noção sobre si mesmo ao longo da infância e na adolescência.

Harter (1999) contribuiu sobremaneira para o estudo da autopercepção na infância - como a criança compreende a si, como se percebe no mundo e em relação a outrem, e como avalia seu bem-estar e sua vida. Segundo essa pesquisadora, as crianças pequenas tendem a definir a si mediante características concretas e ligadas a ações específicas, bem como a preferências. Nessa etapa, elas tendem a misturar o desempenho real com o almejado, e costumam descrever a si mesmas como "a melhor" naquelas ações que compõem seu autoconceito (como em "sou a melhor desenhista da escola") (Harter, 1999). Dessa forma, é possível que uma criança dessa faixa etária perceba sua felicidade com base em características concretas e ligadas a ações supervalorizadas, ou seja, traços positivos. À medida que a criança se desenvolve, suas descrições de autoconceito ganham aspectos mais abstratos, e o adolescente passa a se preocupar bastante com o que os outros pensam dele. Portanto, espera-se que a forma como as crianças de distintas faixas etárias percebem sua felicidade acompanhe essa evolução cognitiva da percepção do self.

No Brasil, estão disponíveis apenas dois trabalhos publicados sobre a compreensão da criança sobre felicidade e ser feliz (Giacomoni, Souza & Hutz, 2014a, 2014b). O presente estudo é o terceiro trabalho nessa linha de pesquisa.

No primeiro estudo, Giacomoni, Souza & Hutz (2014a) apresentam como crianças de 5 a 12 anos entendem o que é ser feliz e como é uma pessoa feliz - não foi incluída a autopercepção da criança sobre felicidade. Os principais temas sobre ser feliz foram emoções positivas e self positivo. Crianças de escolas privadas citaram mais o lazer, e as de escolas públicas a satisfação de necessidades básicas e desejos. Sobre como é uma pessoa feliz, a maioria dos participantes citou traços positivos. Pela faixa etária envolvida, as respostas refletem a posição de Harter (1999) sobre os traços positivos como importantes ao autoconceito.

No segundo estudo, Giacomoni, Souza & Hutz (2014b) investigaram como as crianças definem felicidade. Sentimentos positivos, lazer e amigos foram os mais mencionados, com os primeiros mais citados pelas meninas e os segundos pelos meninos. A família foi bastante citada até os 10 anos de idade, e o lazer até os oito, ambos com queda nas frequências de respostas na faixa etária de 11 a 12 anos. Essas diferenças refletem achados compartilhados na literatura em psicologia do desenvolvimento humano. Aproximações são encontradas com estudos com medidas objetivas de bem-estar e satisfação de vida na infância, visto que, como dito, raras são as pesquisas com abordagem qualitativa à felicidade infantil (Giacomoni & Hutz, 2006).

Na presente oportunidade, são descritos os resultados da terceira parte da pesquisa. O objetivo, com este trabalho, foi investigar a percepção infantil da própria felicidade, apresentando a crianças perguntas que envolvem autopercepção da felicidade, crenças e causas atribuídas a ela, e a descrição da origem da felicidade.

 

MÉTODO

Participantes

Duzentas crianças da cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, participaram do estudo. As crianças, meninos e meninas (52,5%), tinham idade entre 5 e 12 anos (média de 8,7; DP = 2,5) e estudavam em escola pública ou privada da cidade. Os pais/responsáveis pelas crianças deram consentimento para que elas, se quisessem, participassem da pesquisa. Somente as que quiseram participar foram incluídas na amostra, obtida por conveniência.

Instrumentos

Os dados foram coletados mediante uma entrevista semiestruturada individual. O roteiro da entrevista incluiu as seguintes questões: 1)Tu achas que tu és feliz? Por quê?; 2)Tu consegues ficar feliz? Por quê?; 3)Tu achas que ser feliz depende de ti?; e 4)De onde vem a felicidade?. A primeira questão investiga o nível de felicidade das crianças pesquisadas e as causas atribuídas a ele. A segunda e a terceira questão examinam possíveis crenças relacionadas à felicidade. A quarta questão busca conhecer o que a criança compreende como origem da felicidade.

Procedimentos

Por conveniência, duas escolas, uma pública e uma privada, ambas na cidade de Porto Alegre, foram contatadas para colaborar com a coleta de dados, permitindo o acesso a suas dependências, o convite aos professores e o uso de uma sala para entrevistar as crianças. As crianças foram convidadas em suas turmas de escola, coletivamente, e levaram para casa um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que os pais lessem e assinassem, em caso de concordância com a participação do(a) filho(a) no estudo. Apenas crianças que trouxeram o termo assinado e que manifestaram querer conceder a entrevista participaram. Cada criança respondeu a uma entrevista, em sala apropriada cedida pela escola, com garantia de conforto e privacidade. As crianças não foram prejudicadas em suas atividades escolares, e aceitaram a gravação em áudio da entrevista. Posteriormente, as gravações foram transcritas e impressas para análise.

Procedimentos de análise dos dados

As transcrições das entrevistas foram analisadas por dois avaliadores independentes. Foi utilizada a técnica de análise de temas sugerida por Bardin (2011), mediante a qual uma leitura flutuante (com distanciamento de pressupostos conceituais nessa etapa) guiou a marcação de trechos semelhantes em sentido, por questão. Os trechos foram, no segundo passo da análise, agrupados em unidades temáticas que, em um terceiro e final passo, foram revisadas e geraram categorias temáticas, por questão. As categorizações foram comparadas e a concordância entre avaliadores foi de aproximadamente 80%. Divergências na categorização foram eliminadas com a participação de um terceiro avaliador. Portanto, as categorias foram criadas a partir das respostas das crianças, sem o uso de uma grade prévia de categorias.

Foram calculadas frequências e porcentagens de respostas nas categorias. Em seguida, as categorias foram comparadas por sexo (meninas e meninos), tipo de escola (pública ou privada) e faixa etária (5-6 anos, 7-8 anos, 9-10 anos e 11-12 anos de idade). Os testes realizados nestas análises foram, para as duas primeiras, o Teste Binomial para Diferenças entre Duas Proporções (Hinkle, Wiersma, & Jurs, 1988), e para as comparações etárias foi usado o Teste Qui-Quadrado para Várias Proporções Populacionais (Ayres, Ayres Jr., Ayres & Santos, 2000).Para todos os testes foi considerado o nível de significância de 0,05.

 

RESULTADOS

Tu achas que tu és feliz?

Quando perguntado para as crianças se elas se consideravam felizes, 85% (n = 170) respondeu afirmativamente, 12% (n = 24) que algumas vezes sim (dependendo de condições), 2% (n = 4) não se consideraram felizes, e 2 não souberam responder (um menino e uma menina). Não foram detectadas diferenças significativas de sexo nem tipo de escola.

As porcentagens de respostas afirmativas à questão realizada, por faixa etária, foram: 5-6 anos (95,5%), 7-8 anos (70%), 9-10 anos (84%) e 11-12 anos (90%). Foram verificadas diferenças significativas (p < 0,001) entre a primeira e a segunda faixa etária nas respostas "sim" e "depende" (qui-quadrado de 12,28 e de 11,44, respectivamente). A porcentagem de repostas afirmativas à autopercepção da felicidade diminuiu dos 5-6 anos para os 7-8 anos. Ao mesmo tempo, as respostas "depende" aumentaram de 2,3% para 26% nestas mesmas faixas de idade, respectivamente.

Às crianças que responderam positivamente sobre o sentimento de felicidade foi solicitada justificativa("Por quê?").Três crianças de 5-6 anos e uma de 9-10 anos não responderam à pergunta. As respostas das crianças geraram oito categorias. A seguir, são mostradas as justificativas nas categorias, a quantidade de crianças que respondeu à pergunta (n) e a frequência de respostas encontradas em cada categoria (f) nas seis maiores categorias:

- família: ter família, amor de pai/mãe, brincar com pais (n = 72): f = 94;

- self positivo: sou alegre, amável; sei resolver os problemas, conversar; ajudo as pessoas (n = 45): f = 59;

- lazer: brincar, passear, jogar, viajar, desenhar, ver televisão (n = 39): f = 53;

- satisfação de necessidades básicas e desejos: ter casa, comida, saúde, dinheiro, brinquedos (n = 32): f = 45;

- amizade: ter amizades, gostar dos amigos (n = 36): f = 39;

- satisfação plena de vida: não falta nada, tenho tudo, não tem problema (n = 23): f = 25;

- escola: aprender a ler e escrever, ter boas notas;

- não-violência: viver em paz, não briga, pais não brigam.

As comparações das causas atribuídas à própria felicidade não apontaram diferenças significativas para sexo nem tipo de escola. Já as comparações etárias geraram diferenças significativas nas oito categorias. A Tabela 1 apresenta as frequências, os percentuais e os resultados do teste qui-quadrado por faixa etária para as categorias referentes às causas atribuídas para a própria felicidade.

Como se pode ver na Tabela 1, na categoria "família", a diferença localizou-se entre crianças de 5-6 anos e de 9-10 anos. Na categoria "self positivo", a faixa etária de 7-8 anos destacou-se das demais. Na categoria "lazer", as crianças de 5-6 anos se diferenciaram das de 9-10 e das de 11-12, e as de 7-8 anos se destacaram das crianças de 9-10 e de 11-12. Relativo à "satisfação de necessidades básicas e desejos", as diferenças foram entre crianças de 5-6 anos e de 7-8 anos. Na "satisfação plena de vida", crianças entre 7-8 e de 11-12 anos se destacaram entre si.

Tu consegues ficar feliz?

Essa questão investigou se as crianças consideravam-se capazes de atingir a felicidade. Nas respostas quanto à crença da capacidade de atingir a felicidade, 88% (n = 173) se consideravam capazes de permanecer feliz e 12% (n = 23) responderam que às vezes conseguiam se manter feliz. Nenhuma criança se disse incapaz, e houve quatro casos sem resposta pertinente à questão. Não foram detectadas diferenças significativas de sexo, tipo de escola ou faixa etária.

Para as respostas referentes aos motivos atribuídos para a crença de capacidade de ser feliz ("Por quê?"), foram construídas oito categorias. Por serem similares em conteúdo às encontradas na questão anterior, optou-se por descrever apenas a categoria "sentimentos positivos", a qual engloba a descrição de sentimentos de realização, autonomia, alegria, felicidade e pertencimento. Seis crianças não souberam responder (cinco meninas e um menino).

As comparações de sexo nas categorias relativas às causas atribuídas à crença da capacidade de ser feliz geraram uma diferença significativa na categoria "lazer". Os meninos (n = 30) apresentaram porcentagens significativamente superiores (28%) às das meninas (n = 20) na categoria "lazer" (16%) (Z = 2,42; p = 0,01).

Quanto ao tipo de escola, uma criança de escola pública não soube responder. A categoria "família" apresentou porcentagem significativamente superior para o grupo de crianças de escolas públicas (n = 18; 37%; Z = 3,45; p <0,001), e a categoria "sentimentos positivos" para o grupo de crianças de escolas privadas (n = 16; 30%; Z = -3,24; p <0,001).

A Tabela 2 apresenta as frequências, os percentuais e os resultados do teste qui-quadrado por faixa etária para as categorias referentes às causas atribuídas à crença da capacidade de ser feliz. Na categoria "família", a diferença significativa foi entre crianças de 9-10 anos e 11-12 anos. Na categoria "lazer", as diferenças significativas foram entre crianças da segunda faixa etária e da terceira faixa etária, e entre as crianças da segunda e da quarta faixas etárias. Quanto aos "sentimentos positivos" constataram-se diferenças significativas entre crianças de 7-8 anos e 11-12 anos, e entre crianças de 9-10 anos e as mais velhas da amostra. Índices de significância foram encontrados entre a segunda e a terceira, e a segunda e quarta faixas etárias relativas à "satisfação de necessidades básicas e desejos".

Tu achas que ser feliz depende de ti?

Além das questões sobre os índices de felicidade, explorou-se a noção de internalidade-externalidade relacionada à felicidade através da questão "Tu achas que ser feliz depende de ti?". As respostas das crianças foram classificadas em quatro categorias, que seguem com a indicação da quantidade de crianças e porcentagem de respostas: sim, depende de mim (n = 97; 49%); sim, depende de mim e dos outros (n = 66; 34%); não depende de mim (n = 31; 16%), e não soube ou não quis responder (n = 6; 1%). Não foram questionadas as razões atribuídas às respostas.

Não foram encontradas diferenças significativas entre meninos e meninas, nem entre escola pública e privada, apenas entre as faixas de idade investigadas. As diferenças etárias significativas foram detectadas para "depende só de mim" (Z = 7,87; p = 0,04), comas crianças de 5-6 anos com 65%, as de 7-8 com 45%, as de 9-10 com 51% e as de 11-12 anos com 36%; e para "depende de mim e dos outros" (Z = 23,82; p < 0,01), com as crianças de 5-6 anos se diferenciando das demais faixas por apresentarem a menor porcentagem de respostas (7%) (respectivamente, nas demais faixas, as porcentagens foram de 33, 38 e 55).

De onde vem a felicidade?

As respostas a essa pergunta geraram11 categorias, incluindo as categorias "outras respostas" e "não respondeu". A quantidade de crianças, frequência de respostas, porcentagem e exemplos de conteúdos das categorias com maior quantidade foram: coração ("vem do coração") (n = 82, f = 82, 26%); própria pessoa (de mim, da pessoa, de nós mesmos) (n = 45, f = 46, 14%); e afetos/emoções (vem da alegria, amor, carinho, sorriso) (n = 30, f = 44, 14%). As categorias com menos de 10% de respostas foram entidades/natureza (Deus, Terra, mar, paz, harmonia, natureza, céu), família, atividades (esportes, churrasco, diversão, passear), cabeça/cérebro/pensamento/consciência, amizade, outras partes do corpo, outras respostas, e não respondeu.

A única diferença de sexo encontrada foi com os meninos apresentando maior frequência na categoria "atividades" (eventos cotidianos, como passear, ir a um churrasco, lavar o carro, fazer esporte). Quatro meninas citaram este tipo de resposta (2%), ao passo que dez meninos a citaram 15 vezes (10%) (Z = -2,84; p < 0,001).

Três diferenças significativas foram detectadas nas comparações por tipo de escola. No grupo de alunos de escolas públicas, houve maior porcentagem na categoria "coração" (37,5%), comparada aos 16% da escola privada (Z = 2,93; p = 0,003). O grupo de alunos da escola privada se destacou mais na categoria referente à "própria pessoa" (36%) (Z = -3,62; p = 0,0003), ao passo que os da pública geraram 11% de respostas. Também os estudantes da escola privada se destacaram mais com a categoria "amizade" (12%), e na pública a porcentagem foi 1 (Z = -2,64; p = 0,008).

Foram também três as diferenças significativas encontradas entre as comparações por faixas de idade. Na categoria "coração", a diferença se localizou entre as crianças de 9-10 anos (34%) e as de 11-12 anos (19%) (Z = 8,66; p = 0,03). Na categoria "própria pessoa", as diferenças foram entre 5-6 anos (6%) e 11-12 anos de idade (35%), entre 7-8 anos (5%) e 11-12 anos, e entre 9-10 anos (12%) e 11-12 anos (Z = 33,92; p < 0,01). Na categoria "afetos/emoções", verificaram-se diferenças significativas entre as crianças de 5-6 anos (nenhuma resposta nessa categoria) e as crianças de 7-8 (25%) e de 9-10 anos (15%) (Z = 19,18; p < 0,01).

 

DISCUSSÃO

As análises geraram uma grande quantidade de dados cuja interpretação extrapola a oportunidade dada ao presente texto. Assim, serão discutidos os principais resultados, em diálogo com as referências que fundamentam o estudo.

Como visto, 85% das crianças entrevistadas se considera feliz, o que não diferenciou por sexo nem por tipo de escola. A ausência de diferença de sexo acompanha a autopercepção de felicidade nas crianças espanholas de 6 a 12 anos de idade abordadas na pesquisa de Thoilliez (2011). Essa mesma pesquisa da Espanha também encontrou que as crianças mais novas da amostra se perceberam como mais felizes que as demais. Este resultado também foi observado no presente estudo: diferenças significativas de faixa etária foram localizadas entre as crianças mais novas da amostra e as de 7-8 anos de idade, com respeito a serem felizes incondicionalmente ou de serem felizes dependendo de algures. Esses resultados mostram que o entendimento de felicidade reflete o nível cognitivo das crianças, pois à medida que desenvolvem suas habilidades cognitivas, ficam mais evidentes os desafios enfrentados na busca pela felicidade. As teorias desenvolvimentais tradicionais, focalizadas no desenvolvimento da cognição, respaldam essa constatação (Piaget, 1964/2011).

O entendimento das crianças sobre a felicidade é material fértil para a criação de intervenções, por exemplo, em escolas infantis e de ensino fundamental. Ser feliz pode ser uma avaliação demasiada ampla de si e das condições da própria vida, mas é oportunidade ímpar de auxiliar as crianças a refletirem sobre as diferenças, com seus pares, na compreensão da felicidade. Ser feliz envolve boas relações interpessoais, especialmente com a família e com os amigos - dois contextos fundamentais ao desenvolvimento infantil como um todo. Já as respostas que associam ser feliz com ser alegre, amável, saber resolver problemas e ajudar pessoas (categoria self positivo) mostram como o desenvolvimento do autoconceito é importante aliado à discussão sobre felicidade. Ademais, nessas respostas encontram-se aspectos como autoeficácia, autoestima e altruísmo, todos altamente relevantes ao movimento da Psicologia Positiva. A crença em atingir a felicidade foi uma certeza em 88% das crianças participantes do presente estudo, sem distinção de sexo, tipo de escola ou faixa etária. Esse resultado também respalda a conexão entre tratar da felicidade como prelúdio a aspectos da autoestima, da autoeficácia e do altruísmo com escolares.

As crianças atribuíram sua felicidade à família, ao self positivo e ao lazer, sem distinção de sexo ou de tipo de escola. O trabalho de Fattore, Mason e Watson (2009), com crianças australianas, encontrou dados semelhantes. Naquele trabalho, os participantes referiram ao próprio bem-estar também através de um senso positivo de self, atividades divertidas e proteção fornecida pelos pais.

Semelhanças entre culturas distintas como a brasileira e a australiana remetem a oportunidades de pesquisas transculturais conjuntas entre estas e outras culturas, no que diz respeito ao estudo da felicidade em crianças. Encontrar pontos em comum pode ajudar a desenvolver propostas que auxiliem em projetos de alcance multicultural.

É certo que políticas públicas são relevantes nesse sentido para cada país. Inicialmente, as propostas vindas de entidades vinculadas à ONU costumavam abordar aspectos da família, da autopercepção e do direito ao brincar. Porém, elas priorizam medidas voltadas à sobrevivência imediata das crianças, como escola e vacinação (Ben-Arieh & Gross-Manos, 2009). Projetos sociais vêm se multiplicando na direção de promover a felicidade das crianças, inclusive com respeito a suas famílias e ao direito a brincar no seu tempo livre. Entretanto as propostas focalizam a detecção e o combate de problemas associados a essas questões, como o abuso infantil oriundo de familiares e a promoção do esporte e do lazer como pretexto para prevenir o "mau" uso do tempo livre especialmente por adolescentes de bairros com maiores índices de violência e tráfico de drogas. Assim, uma abordagem para promover aspectos positivos ainda parece carente de esforços.

Interessantemente, alcançar a felicidade foi atribuído mais ao lazer pelos meninos, mais à família pelas crianças de escola pública, e mais a sentimentos positivos pelas crianças de escola privada. Não foram encontrados estudos que relacionassem o tipo de escola da criança e sua autopercepção de felicidade e bem-estar, mas o tipo de escola poderia ser associado à renda familiar. No entanto, comparações com outros países são temerárias, dadas as diferenças de investimento no ensino público entre as nações. Ainda assim, é fato que levantamentos estatísticos têm mostrado elevados índices de violência doméstica contra crianças que, em suas características sociodemográficas, frequentam escolas públicas (Pinto & Assis, 2013). Se o resultado sobre a família for considerado desde este panorama, as crianças de escola pública do presente estudo podem estar apontando um pouco mais do que uma origem para a felicidade; no caso, podem manifestar uma necessidade.

Quanto ao resultado de os meninos entenderem que a felicidade se alcança através de atividades físicas divertidas e de brincar, é lícito considerar que os meninos citam mais essas atividades como parte de seu cotidiano, na comparação com as meninas. O estudo de Oliveira, Silva, Santos, Silva e Conceição (2010) sobre atividade física e sedentarismo em 592 escolares de 9 a 16 anos de idade apontou que os meninos têm maior índice de atividade física em seu cotidiano. Isso colabora para respaldar o resultado encontrado para o lazer nos meninos do presente estudo, dados que incluem atividades físicas divertidas. O resultado de os meninos destacarem eventos cotidianos para a causa da felicidade pode estar ligado ao mesmo aspecto das atividades em contraposição ao sedentarismo, como aponta o estudo de Oliveira et al. (2010).

As crianças de 11-12 anos de idade foram as que menos atribuíram à família o alcance da felicidade, na comparação com as demais crianças participantes. Desse resultado se pode discutir a questão de que as crianças mais velhas já são capazes de identificar os erros de seus pais e as inconsistências em seus argumentos e comportamentos nas práticas parentais de criação dos filhos. Ademais, as crianças de 11-12 anos passam a exigir cada vez mais autonomia para a realização de atividades e envolvimento em contextos, dado que gradativamente tem mais condições de lidarem com novas interações e situações. Os pais, no entanto, ainda são receosos com filhos nessa faixa etária, dado que ao mesmo tempo em que ainda são consideradas crianças e carecem de proteção e monitoramento, já requerem mais independência e são mesmo requisitados muitas vezes pelos pais a demonstrarem que são já maiores para a execução de algumas tarefas domésticas. O que estas crianças podem estar percebendo é uma maior quantidade de cobranças por parte dos pais, ao mesmo tempo em que há ainda muitas recusas às solicitações dessas crianças que se encaminham à adolescência. Dessa forma, se para alcançar a felicidade é preciso ser livre para se fazer o que quiser, os pais podem ser vistos como um obstáculo nessa época da vida.

Metade das crianças acredita que a felicidade depende de si, enquanto 34% crê que também depende de outras pessoas. Esses dados não diferiram por idade nem por escola, mas por faixa etária, que diferenciou as crianças mais novas da amostra das mais velhas no que diz respeito à felicidade também depender de outrem, não somente de si. Assim, dos 5 aos 12 anos de idade, enquanto diminui a crença de que depende somente de si, aumenta a ideia de que também se depende de outrem para ser feliz. Esta também é uma questão desenvolvimental esperada, visto que a criança mais velha tem condições de perceber melhor as pessoas e condições envolvidas na sua vida para que seja feliz. O egocentrismo vai dando lugar à cooperação em diferentes níveis à medida que a criança avança em seu desenvolvimento cognitivo (Piaget, 1964/2011), podendo, assim, lidar melhor com causas e efeitos em termos de seu envolvimento e de outrem nas situações e eventos dos quais participa ou testemunha.

Sobre a origem da felicidade, variadas foram as respostas, mas os meninos claramente preferiram "atividades", as crianças de escola pública preferiram o coração, e as de escola privada preferiram a "própria pessoa". Essa diferença qualitativa de tipo de escola requer a consideração do contexto socioeconômico dessas crianças. É possível que alcançar a felicidade, por exemplo, adquirindo bens materiais e tendo acesso a atividades divertidas, porém pagas, fomente o senso de autoeficácia das crianças de escolas privadas. Já a resposta relativa ao coração como fonte da felicidade, parece estar mais ligada às respostas anteriormente dadas sobre a autopercepção da felicidade: ser alegre, feliz, amável, amigável, etc. Não foram encontrados estudos com resultados similares. Possivelmente se trata de alguma questão específica da amostra do presente trabalho. De todo modo, há também a possibilidade de que escolares do ensino privado tenham mais oportunidades de discutir temas universais, por exemplo, felicidade, bem-estar e satisfação de vida, e debater com professores e colegas sobre as causas e a responsabilidade individual sobre a própria felicidade. Escolas públicas, por outro lado, enfrentam dificuldades como greves, falta de professores, docentes desmotivados, e são esporádicos os projetos sobre temas universais. Futuros trabalhos devem explorar melhor essas questões.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente estudo foi investigar a percepção infantil da própria felicidade, apresentando a crianças perguntas que envolvem a autopercepção da felicidade, crenças e causas atribuídas a ela, e a descrição da origem da felicidade. Os principais resultados mostraram que a maioria das 200 crianças participantes se considera feliz, sem distinção de gênero ou tipo de escola. Essas diferenças também estiveram ausentes na atribuição da própria felicidade, mais ligada à família, ao self positivo e ao lazer. A autopercepção da felicidade mostrou que as crianças mais novas do estudo se percebem mais felizes do que as mais velhas. Os meninos associaram mais o lazer à felicidade do que as meninas. Para as crianças participantes, a origem da felicidade está no coração, na própria pessoa, e nos afetos/emoções, sugerindo uma associação entre o self e as emoções no surgimento da felicidade.

Das limitações do estudo, cabe apontar o tamanho da amostra, bem como o fato de ser originária de uma única cidade do Sul do Brasil. Dessa forma, generalizações não são possíveis, embora indicações possam ser feitas para futuros estudos.

Como visto, a discussão sobre a felicidade é possível já com crianças de 5-6 anos de idade, que trazem conteúdos que, ainda que aparentemente desligados da pergunta (p. ex., a felicidade vem da cabeça), são porta de entrada para tratar de temas como sentir-se preocupado, ter pesadelos, ser muito "esquecido", enfim, todos processos que se passam na cabeça, e que podem interferir na felicidade da criança. Ansiedade (que inclui elevada preocupação e ruminação), dificuldades no sono (pesadelos) e dificuldade de atenção (esquecimentos) são sintomas comuns em psicopatologias infantis e certamente afetam a percepção da própria felicidade.

 

REFERÊNCIAS

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1 Agradecimentos: L. Stein, R. Arendt, A. Biaggio, D. Bandeira, D. Dell'Aglio, S. Blatt, A. Tibulo, G. Mazzini, J. Zanchetin, A. Silveira, C. Oliveira, C. Hartmann, D. D'Incão, I. Gemeli, L. Azevedo e Souza, M. Fischborn, R. Ebert, T. Schmidt, V. Nachtigall, Z. Silveira.
Apoio: CAPES.

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