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Psicologia: ciência e profissão
Print version ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. vol.14 no.1-3 Brasília 1994
Os limites da arte: a abertura para a psicologia
João A. Fryze-Pereira
Professor de Psicologia Social e Psicologia da Arte no Instituto de Psicologia da USP. Coordenador do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do mesmo Instituto
Em março de 1991, o Caderno Ciências da Folha de São Paulo publicou um artigo intitulado: "Animais usam pintura para fugir do tédio", sugerindo que as pinturas produzidas por macacos e elefantes em zoológicos questionam a divisão que as separa da arte humana. Esse tipo de comparação, embora possa deixar perplexos artistas, historiadores e críticos de arte, não é uma novidade. Em 1961, desenhos de um macaco foram expostos numa galeria de Milão por iniciativa do pintor Francesco D'Areno, exposição que deu lugar a uma discussão sobre as fronteiras da arte. E três anos antes, em1959, em São Francisco, Califórnia, uma galeria expusera quadros de um chipanzé que foram comprados por uma pequena fortuna.
Ora, a tese subjacente a esses artigos e episódios é a mesma: os animais (macacos, sobretudo) têm capacidade e motivação para as artes plásticas. Basta oferecer-lhes tintas e pincéis que eles, inicialmente, passam a explorá-los e, depois, a manchar telas quando estas lhes são oferecidas. O lúdico caracteriza essa atividade e, no artigo da Folha de São Paulo, o artista cuja pintura é comparada à dos primatas é Willen De Kooning, um dos grandes pintores do século XX, um notável do abstracionismo.
Praticamente um ano antes dessa notícia, portanto, em maio de 1990, igualmente no Caderno Ciência, publica-se um artigo intitulado: "Pintura rupestre não é a pré-história da arte". O artigo fala dos resultados das pesquisas da equipe que trabalha no laboratório do Museu do Louvre (Paris). Isto é, que "as pinturas rupestres da região não são realizadas com meros pigmentos de base e sim com uma sofisticada composição de elementos que não têm nada de natural". Não só as técnicas utilizadas, mas a própria composição, conforme analisadas pela aparelhagem sofisticadíssima do Louvre, revelam a existência de "um projeto de artista anterior à pintura final, isto é, que esta pintura não era imediata, mas pensada e bem acabada". Por exemplo, além do óxido de ferro para obtenção do vermelho e do óxido de manganês ou carvão de madeira para o preto, esses primeiros artistas empregavam minerais adicionais (granito e talco) que se destinavam à conservação das obras, evitando as rachaduras da pintura ao secar. Além disso, foram identificados diferentes períodos de trabalho dentro de uma mesma caverna. Mais do que isso, os técnicos detectaram esboços em carvão por baixo das pinturas. E, em suma, o conjunto dessas descobertas acabaram por levar os especialistas a pensarem que as cavernas, além de verdadeiros santuários, poderiam ser compreendidas como complexos ateliês de pintura.
Esses artigos de jornal são, evidentemente, muito simples. Mas, da sua comparação surge uma série de questões básicas que nos permitirão alicerçar as possíveis relações entre a Psicologia e as Artes. Ou seja, se os macacos são capazes da arte, por que será que suas manifestações são comparadas à pintura abstracionista, resultado de séculos de história da arte? Por que não são comparadas à chamada arte pré-histórica, por suposto muito mais próxima dos primatas, na vertende evolucionista? Será que é por que a figuração, tão elaborada já nas pinturas no interior das cavernas, não é possível da parte desses seres pré-humanos? E se a figuração é impossível no animal, se o primata só é capaz de "abstrações" e se na relação entre estas não se verifica nenhuma filiação plástica ou gráfica, seria o caso de usarmos o termo arte para designar aquele tipo de produção pré-humana?
Será que podemos falar, nesse nível animal, de um estágio ou de uma etapa de um tipo de comportamento, o estético, que se verificaria de modo mais complexo no homem? Ou será que o comportamento estético, suposto e implicado pela arte, é um tipo de comportamento inaugurado com a humanidade?
Pensando nessas questões, acabamos sendo levados a uma outra, mais geral e fundamental para o início de qualquer debate sobre a arte. A pergunta é o que, justamente, se entende por arte? E essa questão é fundamental porque a partir dela é que poderemos compreender o comportamento estético. Se cada leitor pensasse individualmente em alguns exemplos de obras de arte, com toda certeza não hesitaria muito. Todos nós concordamos que a Monalisa de Leonardo Da Vinci é Arte, que os Lusíadas de Camões é Arte, que um Noturno de Chopin é Arte, que as pinturas no teto da Capela Sistina são Arte. Mas se é fácil encontrar exemplos de obras de arte, o mesmo não ocorre quando se pensa nos critérios que levam alguém a dizer porque elas são arte (Coli, 1981). Ou seja, é difícil dizer o que é Arte, sobretudo quando vemos num desses livros ilustrados e bem encadernados, os chamados livros de arte, referências aos trabalhos de um importantíssimo artista plástico contemporâneo, M. Duchamp, entre os quais um aparelho sanitário de louça, exatamente igual aos existentes no mundo inteiro - um objeto que passou a ser conservado em museu e exposto à visitação do chamado público de arte. No entanto, trata-se de um objetò que não corresponde exatamente à idéa que se costuma ter da arte. E, se esse tipo de objeto nos questiona, de qualquer maneira nossas incertezas acabam se acalmando quando, após ter buscado saber o que é arte na Teoria da Arte, percebemos que o campo semântico do termo é ele próprio incerto. E que os teóricos apontam como um dos aspectos da própria arte, as dificuldades que apresenta ao enquadramento numa definição fixa, positiva. Isto é, os teóricos encontram dificuldades para delimitar as fronteiras da própria Arte, pois, de um lado, a Arte não teve sempre, nem em toda a parte, o mesmo estatuto, o mesmo conteúdo e a mesma função. O que se verifica ainda hoje. De outro lado, independentemente de qualquer pressuposto sócio-cultural, desconfia-se hoje muito da palavra Arte. O campo recoberto pelo conceito é extenso: entre "a obra-prima e o esboço, o desenho do mestre e o desenho da criança, o canto e o grito, o som e o ruído, a dança e a gesticulação, o objeto e o acontecimento", é difícil traçar uma fronteira e até poderíamos nos perguntar se vale a pena traçar essa fronteira. "Porque não são apenas as teorias da arte que hesitam em atribuir-lhe uma essência, mas a própria prática dos artistas é que desmente a todo momento qualquer definição". Assim, uma definição da arte não deve procurar contrariar esse "movimento de auto-contestaçã e de invenção" que orienta a arte e "a torna literalmente inapreensível" (Dufrenne, 1982, p. 8).
Um erro muito freqüente é considerar a Arte ou admitir como conceito geral e definidor da Arte, um programa particular de arte, uma poética. Segundo o grande esteta italiano, Luigi Pareyson (1984, p. 24-25), esse engano é freqüente e consiste em tomar a parte pelo todo, por exempo, quando se diz que a arte é expressão do eu profundo do artista sem se dar conta que essa é uma ideia que surge com o Romantismo no começo do século XIX, e não antes. Para evitar esse equívoco, muitos estudiosos admitem uma definição que possua um caráter negativo, isto é, que impeça a busca de uma definição "real", de essência ou de qualquer ser oculto, como durante séculos fizeram todas as poéticas, afirmando que a arte é intuição ou forma, que é idéia ou expressão, que é isto ou aquilo, sempre na ilusão por parte de cada uma dessas posições de ter sido esta e não as outras a que capturou com sua rede conceptual "a própria universalidade da arte, toda arte e para sempre" (Formaggio, 1981, p. 9).
No entanto, se considerarmos historicamente as definições da arte, segundo Pareyson (1984, p. 29-33), podemos ordená-las basicamente em três categorias: arte entendido como fazer, arte entendida como exprimir, arte entendida como conhecer. São concepções que ora se opõem, ora se combinam, mas que "grosso modo" apontam para contextos históricos bastante distintos.
Com efeito, a primeira concepção - a arte entendida como fazer -prevaleceu na Antiguidade, quando o aspecto fabril, manual, executivo, era acentuado. Com o Romantismo permaneceu a segunda - a beleza não era compreendida como adequação a um modelo exterior, mas pela íntima coerência das figuras artísticas, com o sentimento que as inspirava e suscitava. E foi no Renascimento que prevaleceu a terceira maneira de conceber a arte - a arte como visão da realidade, ora da realidade sensível, ora de uma realidade metafísica superior, mais verdadeira, ou de uma realidade espiritual mais íntima, profunda, emblemática.
Seria possível dizer que a arte encerra todos esses atributos. No entanto, é preciso observar mais de perto os próprios termos envolvidos nessas definições.
Se considerarmos a primeira definição, arte é expressão, teremos que admitir, no entanto, que todas as operações humanas são mais ou menos expressivas, isto é, que toda obra humana contém a espiritualidade e a personalidade de quem a realizou e a ela se dedicou e que, nesse sentido, a Arte é, também, operação expressiva. E que não é esse aspecto que a caracteriza essencialmente. Dizer, por exemplo, que arte é expressão de sentimentos - pode ter sentido no plano de um particular programa de arte (isto é, no plano de uma Poética) mas não no plano da Estética, quer dizer, no plano de uma concepção geral de arte (idem, p. 30).
Esse mesmo tipo de reflexão vale para a concepção que diz ser a arte conhecimento, isto é, que há um componente cognitivo na arte. Mas, sabemos, se a arte pode chegar a se fazer ciência como em Leonardo Da Vinci, aquilo que se diz da arte - que ela é reveladora da verdadeira realidade das coisas - pode-se dizer de outras atividades humanas que no seu concreto exercício abrem portas sobre a constituição da realidade: a Filosofia, a Ciência, a Moral, a Religião...
Mas a arte é também um fazer. E também aqui é preciso observar que todas as atividades humanas têm esse lado executivo, que há criação em outros planos que não o artístico. E, nesse momento, ainda estamos no ponto zero, às voltas com a questão da qual partimos: o que é a arte?
Pensar a articulação exprimir -conhecer - fazer, rompendo com a atitude isolante, que opera com positividades, é, através de Pareyson (1984), a maneira de nos aproximarmos de uma resposta que dê conta da concretude da arte.
Com efeito, a arte é necessariamente expressiva enquanto é forma, isto é, um ser que "vive por conta própria e contém tudo o que deve conter". E esta afirmação signifca que "a forma é expressiva enquanto o seu ser é um dizer". Nesse sentido, ela não tem um significado, mas é um significado. Mas, a partir daí entende-se porque a arte é também um conhecer, pois ao revelar um sentido das coisas, o faz de modo particular, ensinando uma nova maneira de perceber a realidade. Esse novo olhar é revelador porque é construtivo, isto é, formador. Nessa medida, é um olhar que se prolonga no fazer, "como o olho do pintor cujo ver já é um pintar" (Idem, p. 31).
Conclusão: a arte é um fazer. Mas é um fazer específico. Ou seja, "É um tal tazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de Fazer". "É uma atividade na qual execução e invenção caminham paralelamente, simultaneamente e de modo inseparável. Assim, na arte concebe-se executando; projeta-se, fazendo; executa-se encontrando a regra, já que a obra existe só quando é acabada. Isto é, não há arte sem obra, entendida inicialmente como objeto sensível que é inventado ao ser feito. A sua realização não é um facere, mas um per-ficere- isto é, um acabar, um levar a termo de modo tão radical que o resultado é um ser inteiramente novo e irrepetível.
São essas, em suma, as características da Forma: "exemplar na sua perfeição, singularíssima na sua originalidade". Portanto, a arte é uma atividade que é um Formar, isto é, um executar que é um inventar. (Idem, p. 32). Nesse sentido, se a obra de arte é Forma, a atividade artística é Formatividade - na medida em que é o resultado de um processo de perfeição. A obra é perfeita exatamente na medida em que o por fazer e como fazer foram levados a termo, plenamente.
Contudo, o modo como os homens concebem a arte e a atividade artística, isto é, a forma e a formatividade, concretamente, é uma outra história: a história da arte.
Um maneira abrangente de se compreender a arte, portanto, teria que levar em conta a sua particularidade, definida pela sua historicidade. Por exemplo, um outro pensador italiano importante - Dino Formaggio (1981, p. 9) - define arte dizendo o seguinte: "arte é tudo aquilo a que os homens na história chamaram e chamam arte". Como se pode observar, trata-se de uma definição que permite a própria verificação do conceito de arte, isto é, ela suscita uma série de interrogações que começa com a seguinte pergunta: como se constitui aquilo a que os homens chamam arte? E esta indagação gera outras: que significa "aquilo", que "homens" são esses, qual a "validade desses discursos" e, principalmente, "a que hoje os homens chamam arte"?
Trata-se, portanto, de um questionamento que nos leva necessariamente a admitir, lembrando Foucault (1972), que é somente na história que se poderá descobrir o único a priori concreto a partir do qual a arte assume seus contornos necessários.
Claro deve estar, a partir dessa breve apresentação da problemática conceitual encerrada pelo termo arte, que o terreno no qual se deve fundamentar qualquer pesquisa que envolva o processo artístico é o traçado pela história da arte. Esse é o ponto de partida indiscutível de qualquer pesquisa sobre a arte. E a partir dele fica impossível pensar a arte em geral. E isso porque, como já sabemos, falar sobre a arte em geral é correr o risco de falar sobre o nada.
Nessa medida, quando se deseja estabelecer um diálogo com a arte, há que se admitir um ponto básico do qual qualquer pesquisa deve partir: a obra de arte. Afinal, "a arte existe para ser percepcionada" (Argan, 1982, p. 109). Contudo, percebemos muitos objetos que nada têm de artísticos. Quer dizer, "a percepção orientada para a arte, tenta comunicar-nos algo diferente do que nos é comunicado pela percepção normal, projeto que se evidencia no modo de elaboração das coisas que os artistas oferecem à nossa percepção, ou seja, as técnicas artísticas" (Idem). Essas técnicas que só podem ser postas em prática tendo em vista certos materiais, junto com estes, variam conforme as épocas e os lugares. E esse fato -embora não seja decisivo na determinação de um objeto como obra de arte, pois para isso concorrem, além do artista e dos meios que emprega, também a crítica, o público, o mercado e, em suma, todos os espaços institucionais da arte (museus, galerias etc.) - permite-nos observar novamente que é praticamente impossível definir para a arte um esquema ou um programa de realização universal e invariável. Vejamos um exemplo fundado na contemporaneidade quando, é bem evidente, é impossível manter a unicidade da arte para falarmos da arte.
Com efeito, de um lado encontramos os expressionistas abastratos dos anos 40/50 que reviveram "uma concepção romântica do artista, como um homem concomitantemente pertencente e contrário ao seu tempo e que dá forma aos conflitos mais profundos de sua época, e que além dessa concepção romântica do artista defendiam que: uma era violenta exigia uma arte violenta" (Lasch, 1986, p. 133). De outro lado, há que se considerar a sensibilidade minimalista que se originou de um espírito de redução e reflete um sentimento de que não há espaço para a arte e de que a sociedade moderna, como a arte moderna, aproxima-se do fim do caminho. Se considerarmos esses dois movimentos, veremos que, de um ao outro, temos o contemporâneo e possibilidades de se pensar o indivíduo, os tempos modernos e a própria arte, segundo modos distintos.
Numa conferência pronunciada em 1951, o pintor francês Jean Dubuffet antecipou os traços principais da sensibilidade minimalista, ao defender a "completa liquidação de todas as formas de pensamento, cuja soma constituía o que tem sido chamado de humanismo e foi fundamental para a nossa cultura, desde o Renascimento" (Idem). Segundo Dubuffet, o artista deve suprimir a assinatura pessoal de sua obra. Se ele pinta um retrato, insiste, deve procurar libertar o retrato de quaisquer traços pessoais. Trata-se de fazer uma arte impessoal que rejeita o primitivismo, o surrealismo e o expressionismo abastrato com veemência. Nessa linha, Ad Reinhardt, pintor americano que de 1957 a 1967 não pintou outra coisa senão composições em negro, no texto "Doze regras para uma nova academia" (1957), dizia o seguinte: "nenhuma textura; nenhum trabalho de pincel ou caligrafia; nenhum esboço ou desenho (...); nenhuma forma, desenho, cor, luz, espaço, tempo, movimento, dimensão ou escala; nenhum objeto; nenhum sujeito; nenhum tema; nenhum símbolo imagem ou signo; nem prazer; nem dor" (Lasch, 1986, p. 133).
De outro lado, Mark Rothko, com a série de trabalhos em negro semelhantes aos de Reinhardt, destacava estar interessado somente em "expressar as emoções humanas e em comunicá-las aos outros". Uma comparação entre as pinturas em negro de Reinhardt e as de Rothko "mostra a diferença entre uma arte que, tendo renunciado à esperança de impor a ordem do artista ao mundo, apega-se, no entanto, à individualidade, como a única fonte de continuidade num meio circundante de outro modo caótico, e uma arte que, por outro lado, renuncia à própria possibilidade de uma vida interior".
Segundo Eliza Rothbone as pinturas em negro de Rothko "mantêm sua preocupação com uma experiência humanamente vivida". A única idéia desse artista é a de "uma experiência que possa se expandir na resposta do espectador, ao passo que Reinhardt recusa qualquer intercâmbio desse tipo entre possibilidades interpretativas". Para Reinhardt "a opção pelo negro foi o último passo para evitar qualquer uso da cor..." (Lasch, 1986, 134).
Porém, admitindo que é quase impossível manter a unidade da arte na contemporaneidade, dada a multiplicidade das poéticas existentes, como compreender que todas elas sejam arte, ou melhor, que Reinhardt e Rotko, por exemplo, representam modos diferentes de se fazer arte, (ou diferenciações da arte), e que as expressões dos macacos não fazem parte desse processo que justamente admite tantas variações? Para compreendermos esta questão, será preciso entendermos que tipo de comportamento é esse, pressuposto e implicado pela arte, que se verifica na "ordem humana". E, nesse instante, a indagação não é mais histórica, cultural ou psicológica. Ela é, antes, uma questão filosófica. E entre os pensadores contemporâneos Maurice Merleau-Ponty é talvez aquele que mais radicalmente considerou essa questão, elaborando uma Filosofia na qual o "comportamento estético" tem um valor ontológico fundamental.
Em "A Estrutura do Comportamento", o filósofo (1942) distingue a "ordem humana", a "ordem física" e a "ordem vital". A "ordem humana" é definida por uma "estrutura simbólica" cujo equilíbrio não se verifica como conservação de uma ordem dada (ordem física), nem como adaptação através das virtualidades do organismo às condições atuais (ordem vital), mas sim em virtude de uma possibilidade de ultrapassar a imediatez das situações e criar uma situação nova, tendo em vista algo que está ausente. O símbolo é justamente o que exprime esse tipo de estruturação onde a ação se orienta para o virtual; orientação que se presentifica na percepção, na linguagem e no trabalho. A "estrutura simbólica" define-se, então, por um movimento de transcendência que confere à existência humana o poder de ultrapassar o dado, encontrando para ele um sentido novo através de uma ação orientada em função do possível. "Por isso mesmo somente nessa dimensão é que se poderá falar em história propriamente dita" (Chauí, 1974).
Embora não seja possível tratar dessas distinções no espaço deste artigo, algo que já fizemos em outro trabalho (Frayse-Pereira, 1984), cabe citar deste uma passagem para esclarecer um pouco mais a questão que nos interessa:
"A transcendência já descoberta no plano vital é, na ordem humana, conservada e ultrapassada, pois a pecularidade da "estrutura simbólica " é ser reflexionante. Trata-se de uma reflexão que, como sabemos, ocorre primordialmente no corpo, propagando-se nas coisas e instaurando entre ele e elas uma relação expressiva. É o corpo reflexivo, portanto, que inaugura a "estrutura simbólica", destruindo a oposição subjetivo/objetivo. Assim é que "não há coisas puras. Há coisas humanas no meio da natureza. Há fisionomias. Há valores". (Chauí, 1974). É, nesse sentido, impossível distinguir, nessa dimensão, meios e fins como elementos separados. A ação humana só poderá ser apreendida concretamente através de uma estrutura que rompa com a exterioridade entre meios e fins. Diz-nos Merleau-Ponty (1942, p. 188): "sem dúvida, o vestuário e a moradia, servem para nos proteger do frio-, a linguagem ajuda o trabalho coletivo e a análise do sólido inorgânico. Mas, o ato de se vestir torna-se o ato de enfeite ou, ainda, o do pudor, e revela uma nova atitude para consigo mesmo e para com o outro. Somente os homens vêem que estão nus. Na casa que constrói para si, o homem projeta e realiza seus valores preferidos. O ato da palavra exprime, enfim, que deixa de aderir imediatamente ao meio, eleva-o à condição de espetáculo e apodera-se dele (...) pelo conhecimento propriamente dito". A estrutura que vincula meios e fins determina a gênese da ação como transformação do dado em fins, e destes, em meios para novos fins" (Chauí. 1974). Aponte construída pelo castor reitera-se num processo cíclico a perdurar nas suas condições naturais. É um objeto que não tem sentido senão na sua relação vital com o comportamento do organismo. Do mesmo modo, se o chimpazé é capaz de conferir valor instrumental a um galho de árvore, jamais chega a construir instrumentos a servir-lhe para repôr outros. Ademais, no galho de árvore transformado em bastão, o galho é suprimido enquanto tal. "Para o homem, ao contrário, o galho de árvore transformado em bastão permanecerá justamente um galho-de-árvore-transformado-em-bastão, uma mesma coisa com duas funções diferentes, visível para ele sob uma pluralidade de aspectos. O poder de escolher e de fazer variar os pontos de vista permite-lhe criar instrumentos, não sob apressão de uma situação de fato, mas para um uso virtual e em particular para fabricar outros " (Merleau-Ponty, 1942. p. 190). A ação propriamente humana não pode ser reduzida à ação vital. O galho transfigurado em bastão adquire para o agente a forma de um instrumento de trabalho, trabalho este que os consome no processo ao mesmo tempo que repõe novos instrumentos. E é dessa maneira que o galho de árvore dado desaparece no bastão. E é este o sentido do trabalho, isto é, o reconhecimento para além do mundo atual de um mundo de possibilidades (Merleau-Ponty, 1942, p. 190). E estas são possibilidades do corpo e das coisas. Escreve A. Bosi (1977, p. 55): "morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro, empilham pedras, atam bambús, assentam tijolos, aprumam o fio, trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto, argamassam juntas, desempenham o reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé, pregam ripas no forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas, recortam janelas, chumbam batentes, dão àpintura a última demão". A casa não está em potência como forma indeterminada na matéria. Depende de um ato de violência através do qual se extraem da matéria, mediante a visualização de uma perspectiva (a casa), possibilidades que a transformam e viabilizam o seu uso. O ciclo natural se rompe na medida em que a ação humana - na qual o agente se encontra corporalmente engajado e com domínios ampliados mediante o uso de instrumentos - não é mera negatividade mas negatividade, formadora. Projeta "objetos de uso " ("a vestimenta, a mesa, o jardim ") e "objetos culturais " ("o livro, o instrumento de música, a linguagem"), que constituem o meio propriamente humano e fazem emergir um ciclo inédito de comportamentos (Merleau-Ponty, 1942, p. 175). São esses os objetos que inicialmente compõem o campo da percepção. E mesmo quando a percepção se orienta para "objetos naturais" é, ainda através de objetos humanos (por exemplo: a linguagem) que ela os visa. E isto é possível porque o homem não é uma coisa e nem um ser que se perde nas transformações reais que opera sem poder reproduzi-las: "tem o privilégio de relacionar-se com outra coisa diferente dele próprio, porque não é simplesmente, mas "existe"(Merleau-Ponty, 1966, p. 227). Na "estrutura simbólica", o corpo humano deixa, portanto de aderir ao meio da maneira como o animal adere. Ademais, esse corpo já não está sozinho. Encontra-se situado entre outros corpos também situados, de sorte que a ação humana aqui referida é tomada no seu sentido particular e concreto. O agente não é a subjetividade, mas uma intersubjetividade, de modo que "o conhecimento se encontra recolocado na totalidade da praxis humana e lastreado por ela " (Merleau-Ponty, 1966, p.237). Nesse sentido, "o que define o homem não é a capacidade para criar uma segunda natureza-econômica, social, cultural-para além da natureza biológica -, é sobretudo, o poder de ultrapassar as estruturas criadas criando outras" (Merleau-Ponty, 1942. p. 189). É um poder de transcendência que põe o agente humano como um ser histórico. Ou seja, "a dialética humana é ambigüa: ela se manifesta inicialmente através das estruturas sociais ou culturais que faz aparecer e nas quais se aprisiona. Mas seus objetos de uso e seus objetos culturais não seriam o que são se a atividade que os fez aparecer não tivesse também como sentido negá-los e ultrapassá-los" (Merleau-Ponty, 1942. p. 190 -grifos do autor omitidos). Assim, com a "estrutura simbólica " marca-se o advento da lógica da expressão mediante a qual o significante e o significado não se vinculam com base numa associação empírica, por sua vez fundada na situação imediata e limitada que circunda o agente. Isto é, com a "estrutura simbólica" abre-se a possibilidade de expressões variadas de um mesmo tema: "multiplicidade de perspectivas"(Merleau-Ponty, 1942, p. 133)" (Frayze-Pereira, 1984, ps. 191-194).
Em suma, a estrutura simbólica é polarizada pelo "corpo enquanto unidade de condutas e núcleo de significações e pelas coisas, enquanto qualidades expressivas, isto é dotadas de sentido". Isto quer dizer que a estrutura simbólica é reflexionante, reflexão que ocorre primordialmente no corpo e não na consciência, situando-se o "para-si" num domínio que sempre, filosoficamente, pertenceu ao "em-si" (Chauí, 1974). "O enigma é que meu corpo é simultaneamente vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar-se e reconhecer-se naquilo que vê o "outro lado" de sua potência vidente. Ele se vê vendo, toca-se, tocando. É visível e sensível para si mesmo. E um si, não por transparência, como o pensamento que só pode pensar assimilando o pensado, constituindo-o, transformando-o em pensamento, mas um si por confusão, narcisismo, inerência daquele que vê, naquilo que vê, daquele que toca, naquilo que toca (...). Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas, preso no tecido do mundo e dotado da coesão de uma coisa. Mas, porque vê e se move, mantêm as coisas em círculo ao seu redor, são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustradas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do próprio, estofo do corpo". (Merleau-Ponty, 1964, p. 18-19). E comentando Merleau-Ponty, diz Chauí (1974): "a propagação da reflexão corporal nas coisas desdobra a interioridade ou o sentido presente nelas como neles. Quando o pintor diz que é visto pelas coisas ao invés de serem as coisas vistas por ele, põe a visão no próprio mundo. Ou seja, há uma visibilidade secreta nas coisas que se torna visibilidade manifesta através de nosso corpo (...). A estrutura simbólica, portanto, põe a reversibilidade do sujeito e do mundo como uma relação expressiva. Não há coisas puras, mas coisas humanas, fisionomias, valores. Os outros e as coisas se oferecem como pólos do desejo e a dialética humana nasce aí, na tentativa de apropriação e negação do mundo natural, fazendo emergir o mundo humano da linguagem e do trabalho". Isto é, da arte.
Ora, como sabemos, a arte é um fazer, formativo, isto é, trabalho. Mas, é um fazer expressivo, isto é, dotado de sentido, quer dizer, linguagem. Como o símbolo exprime justamente um tipo de estruturação onde a ação visa o que está ausente, a linguagem e o trabalho podem aparecer no mundo humano e com elas, a dimensão do sentido.
Percebemos, assim, que já é por seu próprio corpo que o homem se diferencia dos outros seres. E mais, que é através desse corpo, vidente-visível que se abre o campo das significações picturais, campo aberto desde o momento em que um homem surgiu no mundo. "E o primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição unicamente por recolher outra: a da percepção. A quase eternidade da arte confunde-se com a quase eternidade da existência corpórea, e temos no exercício do corpo e dos sentidos, enquanto nos inserem no mundo, material para compreender a gesticulação cultural enquanto nos insere na história" (Merleau-Ponty, 1975, p. 355). Quer dizer, "os primeiros desenhos nas cavernas instauravam o mundo como a pintar ou a desenhar, invocavam um porvir indefinido da pintura e por isso nos falam e os evocamos por metamorfoses em que fluem conosco" (Idem, p. 347).
Que significa isso?
Em outras palavras, o seguinte: quer tratemos do desenho na caverna, quer da pintura contemporânea, o suposto é uma operação reflexiva que funda a unidade da pintura e que na pintura se amplifica.
É nesse sentido que o historiador da arte Michel Thévoz (1984, p. 7), pensa ser o homem diferente dos outros seres por seu corpo, isto é, porque se situa numa relação problemática com sua própria imagem, relação que o leva a retocar seu corpo de múltiplas maneiras, deformando-o, mutilando-o ou, então, ornando-o - através de tatuagens, escarificações, maquilagem, cirurgia plática etc. E pode ser que essa tendência auto plástica sugira a alguns uma raiz vital da própria arte. No entanto, se o homem nasce prematuramente, com uma pele muito fina, muito frágil, muito pura e que, por isso, pede uma proteção artificial, esta não é apenas física, mas, sobretudo, simbólica. Quer dizer, o homem, ao nascer, fica exposto num duplo sentido: aos perigos, mas também aos olhares. Ele é com toda certeza o único animal que nasce nu e que faz de sua pele uma superfície a pintar - superfície na qual se inscreve sua identidade, que, por exemplo, a tela, epiderme ultra-sensível, através da pintura e de toda a arte, irá ampliar.
Ora, será que a partir dessas considerações que delimitam o campo da arte, é preciso dizer algo mais para que os psicólogos percebam nesse campo um sentido para o seu próprio trabalho? No momento contemporâneo da modernidade, momento que abrange o século XX (Berman, 1986, p. 16), no qual a arte se emancipa definitivamente de uma cultura totalizante, se desliga de valores religiosos, éticos ou sociais, adquirindo o poder de exprimir uma relação mais profunda, mais originária do homem com o mundo, relação que Dufrenne (1982, p. 30) ousa chamar "pré-cultural ou pré-histórica"; nesse momento contemporâneo em que surgem como questões, simultaneamente, o olhar e o desejo, o imaginário e o real, a arte possui "uma função e uma força insubstituíveis". Ora, exatamente por isso, não terá a Psicologia - com lugar interdisciplinar garantido entre a história da arte e a estética -algo a dizer? Tudo dependerá da disposição do psicólogo, como expectador da arte, para introduzir-se nesse campo abissal, de cujos limites tratamos aqui, correndo o risco da vertigem e da perda de pontos fixos que esse campo necessariamente suscita. Afinal, como observou René Huyghe (1986, p. 19), "a obra não põe apenas em jogo a psicologia do artista, mas também a do espectador. Que procura nela, que recebe dela e por que razão a sente!".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Letras, 1986. [ Links ]
CHAUÍ, M. A noção de estrutura em Merleau-Ponty: uma esperança malograda? [ Links ]
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"Pintura rupestre não é a pré-história da arte" Caderno Ciência - Folha de São Paulo, maio de 1990, p. G-3. [ Links ]