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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.20 no.2 Brasília June 2000

 

ARTIGOS

 

A psicanálise é uma ciência: mas quem não se importa? Uma ressonância de a psicanálise não é uma ciência : mas quem se importa ?1

 

 

Ana Maria Andreoni Rolim*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


 

 

O tempo, antes restrito às ciências humanas, irrompeu na Física Quântica e na Termodinâmica, tornando-se não só um fator de reconciliação entre as ciências como tornando insustentável a definição clássica de ciência. Pelo paradigma científico atual, podemos concordar com a insistente afirmação de Freud de que a Psicanálise é uma ciência da natureza?

Já em Psicoterapia da Histeria Freud indaga se deve supor que «os pensamentos inconscientes são realmente pensamentos nunca produzidos, para o quais existe uma mera possibilidade de existência» (Freud, 1986, p. 304). E, na década de vinte, os físicos Werner Heisenberg e Niels Böhr concluem, na chamada Interpretação Copenhagen, que «o que importa é a explicação de como o evento se mostra no momento da medição e não tentar imaginar se o evento está ou não lá antes da medição». A pergunta de Freud antecipa a saída de cena da rememoração do real vivido, oficialmente ocorrida na Carta 69 a Fliess, em 1897, com a descoberta da fantasia. E a conclusão de Böhr e Heisenberg adveio da constatação de que é impossível tentar conceber o que é o elétron em si, pois, dependendo da forma como se o mede, ele se mostra ora como partícula, ora como onda. Enquanto a indagação de Freud prenuncia a entrada em cena da outra cena («andereschauplatz») - a do Inconsciente -, a constatação de Böhr e Heisenberg, o Princípio de Incerteza. Segundo este, jamais podemos predizer com certeza onde se encontrará uma partícula subatômica num determinado momento ou a forma pela qual ocorrerá um dado processo atômico; isto é, tudo o que podemos fazer é predizer as possibilidades.

O que se deve salientar, em primeiro lugar, é que tanto a pergunta de Freud quanto a constatação de Bohr e Heisenberg provêm de esferas distintas do conhecimento e, no entanto, assemelham-se. Sua semelhança provém da prescindência de um termo “anterior” ao observável, em prol do “estado presente” em que ambos - pensamento inconsciente e evento físico subatômico - são observáveis, ou seja, em que se mostram ao conhecimento, adquirindo sentido e realidade. É somente a posteriori que os pensamentos inconscientes e as propriedades dos elétrons são definidos, porque não há anterioridade essencial nem imanência, mas um vir-a-ser. Pois não disse Lacan (Lacan, 1985, pp. 28 e 34) que o Inconsciente é algo de «não-nascido, não-realizado, que fica em espera na área (...), não é nem ser nem não-ser» ? A Física Quântica diz que, antes da medição, os elétrons são “tanto” partícula “quanto” onda e que só no momento da medição eles se tornam “ou” partícula “ou” onda, o que redunda na ignorância do experimentador quanto ao outro termo (ou partícula, ou onda). E o que é a interpretação ou a intervenção proferida pelo psicanalista senão escolher, priorizar uma fala e não outra do analisando? Na Física Quântica, ademais, o experimentador é um «observador participante», segundo conceituação de John Wheeler (Wheeler, 1973, p. 244), e não simplesmente um observador como na Física clássica. E o que seria a clínica psicanalítica sem a transferência, sem a presença do analista?

Em segundo lugar, deve-se notar que o fato de termos citado a Interpretação Copenhagen, que ocorreu na década de vinte, não significa que somente nessa época a Física tenha deslocado a atenção dos objetos para os eventos; da substância e do ser, para o devir. Mas é somente porque a Interpretação Copenhagen foi o marco em que foi promulgado o que já vinha sendo elaborado há mais de vinte anos. Com efeito. Em 1900, Max Planck, físico, flagra a comportada, previsível e reversível matéria mecanicista ceder lugar a uma outra, imprevisível e irreversível, que “privilegia” certos estados que a “atraem”. No mesmo ano, Freud expõe o conceito de Inconsciente, o qual marca o nascimento da Psicanálise. Com o Inconsciente, tudo se torna disfarce e máscara, sentido e interpretação, sobredeterminação de sentido e superinterpretação, deixando de haver, portanto, um termo original, um evento datado como na primeira teoria do trauma. Com o surgimento da irreversibilidade na Física, enceta-se o delineamento do desaparecimento da onisciência e onipotência da Física clássica, cujo absolutismo abraçava a idéia de que os resultados poderiam ser obtidos sem referência a um experimentador e cujo determinismo prometia a obtenção de resultados absolutamente certos, desde que a cadeia de eventos necessária eliminasse qualquer erro. Hoje, sabemos que «os fenômenos atômicos não são diretamente observáveis, mas que requerem, como os fenômenos inconscientes, interpretação. As motivações inconscientes não podem ser conhecidas diretamente e só são conhecidas pela interpretação» (Hutten, 1975).

A Psicanálise e a Física inauguram o século XX rompendo com a pretensão da busca de uma verdade e de uma realidade fixas e imutáveis, acordes com a certeza e a ordem canônicas então vigentes. Na evolução da ciência do século XX, os processos e eventos foram tomando o lugar dos objetos; os processos irreversíveis, o lugar dos reversíveis; o devir e a mudança, o lugar do ser e da permanência; as noções de destino, liberdade e espontaneidade, o das de causalidade, determinismo, mecanicismo e racionalidade; as de interação e informação, a de causalidade unilateral isolada; e a de acaso, a da ordem (de uma ordem primeira).

E falar de processos, eventos e interações, de devir e mudança, de acaso e irreversibilidade, é falar de tempo. Tempo que, segundo Einstein, não poderia habitar a ciência, já que ela não poderia acatar o que ele denominou, com desdém, de «tempo dos filósofos» (Prigogine & Stengers, 1991, p. 210), por este ser um tempo que está referido a experiências vividas, as quais, por serem atinentes à subjetividade - e, portanto, à singularidade -, jamais poderiam pertencer à esfera da ciência, cujo domínio é o do objetivo, do que é repetível em idênticas condições. Para que a Física pudesse ser unificada, ele almejava descobrir um princípio único que desse inteligibilidade à realidade física. E, nesta expectativa, «o devir era apenas um obstáculo, uma ilusão por ultrapassar» (Prigogine & Stengers, 1992, p. 18). Mas, contra as suas expectativas, o tempo não foi ultrapassado. Pelo contrário, ele acabou triunfando na ciência. E acabou triunfando como um tempo «invenção» (Atlan, 1992, p. 117), como um tempo «criação» (Prigogine & Stengers, 1991, p. 215), porque o tempo não é mais uma prerrogativa humana, oposta a uma natureza autômata. O tempo, em termos do seu fluxo, concilia o homem com a natureza, tornando-os «homó-logos» (Wine, 1992, p. 19), uma vez que ambos vivem no regime da diferença, do movimento e da incompletude.

Ora, a Psicanálise, quando nasce, nasce rompendo com a concepção de tempo vigente (cronológico, reversível) ao introduzir uma outra dimensão do tempo (intemporal e irreversível), que é a dimensão em que o sujeito se estrutura e vive - portanto, um tempo criativo e inventivo, sempre presente e singular e não absoluto. E o que dizer do 2º princípio da Termodinâmica, a entropia? Ao retomar, em 1967, aquela matéria que Planck flagrara “privilegiando” certos estados que a “atraem”, Prigogine conclui que a produção de entropia contém dois elementos sempre ligados (dialéticos): um, criador de desordem e, outro, de ordem. A coexistência de tempos diferentes e articulados - um que desagrega e outro que agrega - retira do caráter irreversível da entropia o papel negativo e depreciado que ele até então desempenhara. Como a irreversibilidade passa a ser vista como fonte de novas ordens, impossíveis de serem determinadas a priori, a reversibilidade fica sendo válida apenas para casos particulares e nada criativos em si mesmos. Enquanto a ordem era vista, pela ciência e pela filosofia, como primeira e essencial, a desordem era vista como degradação da ordem preexistente e, portanto, como não-equilíbrio, como acidental e contingente, como morte. Assim, a noção de que ordem e desordem surgem simultaneamente, instaurada pelos estudos de Prigogine em torno das estruturas dissipativas, dá um basta ao sonho racionalista que as hierarquizava, impondo que se coloque o acaso como anterior à dualidade ordem-desordem. Isso significa que o acaso desempenha um papel tão importante quanto o da necessidade, pois ambos são constituintes tanto dos processos de organização quanto das estruturas dissipativas. Ora, este modelo guarda ressonâncias com o da dualidade pulsional: enquanto a pulsão de morte, como princípio disjuntivo, é renovadora e produtora de diferenças, a conservadora Eros tende à unificação.

Em vista disso, teria sido Freud um precursor das idéias que foram abraçadas, no século XX, pelas ciências exatas (as chamadas “ciências duras”, de Augusto Comte)? Ou simplesmente um contemporâneo que estivesse falando a mesma linguagem delas, mas que, por razões inerentes à própria contemporaneidade - a qual só uma visão retrospectiva permite inferir como tendo pontos em comum as idéias que a povoavam -, não tivesse possibilidade de interlocução com elas? Quer dizer, tratando-se de uma contemporaneidade em que vigia o paradigma cartesiano-mecanicista - com seu dualismo mente-corpo, sujeito-objeto -, havia uma impossibilidade implícita na própria distinção dos respectivos objetos de estudo: a mente humana para a Psicanálise; a natureza, a matéria, o objeto, para as ciências exatas, naturais.

O mesmo não pode ser dito atualmente, pois também para as ciências naturais não mais vigora o dualismo mente-corpo, sujeito-objeto. Não mais vigora o ideal da descoberta, para além da mudança, das leis invariantes que fizeram a glória da Física clássica. Sim, porque nelas também tornou-se indispensável o «elemento narrativo» (Prigogine & Stengers, 1992, p. 65), que era prerrogativa das ciências humanas e que ora, juntamente com outros tantos conceitos antes reservados às mesmas, serviram para que a própria Física quebrasse a noção de «ciência-modelo» (op. cit, p. 68) que lhe era atribuída. E, sendo ciência-modelo, ela não só prometia poder reduzir a complexidade dos fenômenos naturais à simplicidade de comportamentos elementares como outorgava-se o privilégio de autorizar a pretensão de cientificidade de qualquer saber, conforme o seu maior ou menor distanciamento do critério de objetividade que ela impunha como ideal.

Em vista disso, poderíamos dizer que a afirmação de Freud, tantas vezes repetida durante toda a sua obra, de que a Psicanálise é uma ciência da natureza, poderia não ser procedente na época em que foi formulada, já que não eram encontradas ressonâncias dos modelos psicanalíticos (nitidamente calcados no monismo mente-corpo, sujeito-objeto) no modelo científico em vigor. Mas não hoje. Aliás, este modelo, o da distinção cartesiana res extensa-res cogitans, fazia crer, como bem assinala Arendt, que «os seres vivos, homens e animais, estão ‘no’ mundo e não que são ‘do’ mundo» (Arendt, 1992, p. 16), isto é, que eles não são, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos que percebem e são percebidos.

Desta breve exposição que apenas tangenciou o tema, talvez possamos deduzir que os psicanalistas que desconsideram as descobertas da ciência atual - na qual há facções que apelam para o pronunciamento da Psicanálise quanto à articulação de alguns de seus conceitos com os da Biologia contemporânea (cf. Atlan, 1992 & Morin, 1989) - não estão longe do que Arendt afirma. Ao não darem ouvidos, por exemplo, ao que a Biologia Informacional diz quanto à continuidade entre o natural/biológico e o cultural/simbólico, a qual não aparta o homem da imensa cadeia do mundo vivo, é como se eles renitissem na preservação da dicotomia sujeito-objeto, mantendo o sujeito como sendo o único detentor da razão onipotente para explicar e afetar o resto do mundo, sem ser também por ele explicado e afetado. Como observa Atlan, eles talvez não tenham se dado conta de que «já se vão muitos anos, a morte do homem foi anunciada (...). O homem, como sistema fechado, desapareceu: sistemas cibernéticos abertos, auto-organizadores, são candidatos à sua sucessão» (op. cit., p. 113). E, conseqüentemente, não se dêem conta de que, negligenciando a discussão com a ciência atual, manterão a Psicanálise à margem do pensamento contemporâneo sobre o mundo vivo - marginalização que redundará no impedimento de que ela seja «filha da época em que vive» e, por conseguinte, em sua «fossilização» (Faveret, 1997, p. 236).

 

Referências bibliográficas

Arendt, H. (1992) A Vida do Espírito, Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro.        [ Links ]

Atlan, H. (1992) Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo, Rio de Janeiro: Editora Zahar.        [ Links ]

Faveret, B. (1997) Psicanálise e Biologia: o adoecer psíquico repensado a partir do paradigma informacional, Tese de Doutorado, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.        [ Links ]

Freud, S. (1986) «Sobre la psicoterapia de la histeria» (1893-95), Estudios sobre la histeria, in Obras Completas, Buenos Aires: Amorrortu Editores, vl. II.        [ Links ]

Hutten, E. H. (1975) “Método Científico em Psicanálise”, in Brazil, H. V. (Org.) Psicanálise: problemas Metodológicos, Coleção Conscientia Nº 2, Petrópolis: Editora Vozes.        [ Links ]

Lacan, J. (1985) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, O Seminário, Livro XI, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.        [ Links ]

Morin, E. (1989) O Método II: a vida da vida, Portugal: Publicações Europa-América.        [ Links ]

Prigogine, I. & Stengers, I. (1991) A Nova Aliança: metamorfose da ciência, Brasília: Editora UnB.        [ Links ]

Prigogine, I. & Stengers, I. (1992) Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo: Cia das Letras.        [ Links ]

Wheeler, J. (1973) «The Physicist’s Conception of Nature», in Mehra, J. (Org.) D. Reidel, Dordrech-Holland.        [ Links ]

Wine, N. (1992) Pulsão e Inconsciente: a sublimação e o advento do sujeito, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Andreoni Rolim
Rua Gal Venâncio Flores, 594/101
22441-090 Leblon - RJ
Tel.: +55-21 512-2808 (c/ faxmodem) / Cel.: +55-21 9972-3384
E-mail: anarolim@openlink.com.br

Recebido em 08/06/99
Aprovado em 02/10/99

 

 

* Psicóloga, psicanalista. Cursista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID-RJ). Pós-graduada em: Psicologia Escolar (PUC-RJ), Socialização de Deficientes e Marginalizados (IBMR-RJ) e Psicanálise (CEPCOP/USU-RJ). Mestranda em Psicologia Clínica (PUC - RJ)
1- Autor: Roberto Henrique Amorim de Medeiros, Psicologia, Ciência e Profissão, 1998, 18 (3), 22–27.