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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954On-line version ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.14 no.1 São Paulo Dec. 2006

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

Psicopedagogia: uma identidade em construção

 

 

Mônica Hoehne Mendes*

Universidade Presbiteriana Mackenzie

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a relatar o processo de construção da identidade da Psicopedagogia, que se inicia a partir da necessidade de profissionais que buscam respaldo teórico para intervir junto aos indivíduos que apresentavam dificuldades em seu processo de aprendizagem. Esta busca nos levou a desenvolver uma formação que possibilitasse articular várias áreas de conhecimento, criando assim uma nova área de atuação, a Psicopedagogia. o referencial teórico adotado foi a concepção de identidade como metamorfose, concebida por Antonio da Costa Ciampa (1987), além do conceito de institucionalização na visão de Berger e Luckmann (1995). Neste trabalho mostramos a Pedagogia e a Psicologia como as principais áreas de referência que subsidiam a prática psicopedagógica, em seguida mostramos os fundamentos teóricos que embasam a atuação dos psicopedagogos, adquiridos nos diferentes cursos de formação das décadas de 70 e 80.

Palavras-chave: Identidade, Psicopedagogia, Metamorfose.


ABSTRACT

This paper aims to describe the process of building the identity of “Psyco-pedagogy”, which begins with the need of professionals seeking to establish the fundamentals to assist individuals with learning difficulties. The research led us them to develop the foundation that made possible to establish interdisciplinary knowledge, thus creating a new area of study, that of “Psycho-pedagogy”. The theorical reference adopted the concept of identity as a metamorphosis as it was conceived by Antonio da Costa Ciampa (1987), and also the concept of institutionalization developed by Berger and Luckmann (1995). In this article we consider Psychology and Pedagogy are the main knowledge areas that give theorical support to “Psycho-pedagogy”. The next step was to substantiate the theorical ground that contributed to the professional qualification of the “psycopedagogues” that attended professional courses of the 70’s and 80’.

Keywords: Identity, “Psycho-pedagogy”, Metamorphosis.


 

 

Os estudos sobre identidade levam em conta o processo histórico, os vários personagens/atores que contribuem para a construção dos cenários, nos quais a identidade se constrói. Ela se constitui a partir da cotidianidade destes personagens, compondo a história de vida de cada um e do grupo do qual fazem parte.

A identidade é analisada levando em conta a visão de metamorfose, de transformação; é movimento e como tal procura a articulação entre a subjetividade e a objetividade. Ao lado dos fatos vividos, a emoção vivenciada gera a consciência.

O psicopedagogo é o profissional oriundo de diferentes graduações: Pedagogia, Psicologia, Fonoaudiologia, Letras, etc., que através de sua consciência busca uma transformação de suas concepções e do seu fazer – busca sair da mesmice de uma práxis, busca sair da identidade mito, isto é, de uma aparência de não transformação, constituindo sua história neste processo.

Ao buscar sair da mesmice de sua formação de origem, busca sair de uma identidade mito, isto é, aquele que sugere que tudo está bem, que tudo funciona e por esta razão não precisamos mudar. Esta crença nos aprisiona e nos paralisa.

No processo de construção da identidade há um interjogo que combina igualdade e diferença do sujeito em relação a si próprio em seus diferentes personagens e aos demais que o cercam.

A Psicopedagogia recebeu um corpo de conhecimentos provenientes de seus grupos de referência: Pedagogia e Psicologia. No histórico deste contexto, seus personagens constroem sua identidade individual, que passa a integrar a identidade coletiva.

Aprender um papel/construir um personagem significa um trabalho de várias camadas cognoscitivas e afetivas do sujeito. O desenvolvimento da identidade ocorre num movimento contínuo entre os diferentes personagens do processo histórico entrelaçando estas camadas cognoscitivas e afetivas.

A identidade é movimento, pois se constitui no movimento dos personagens em sua história vivida, dando agilidade a estes e procurando a articulação entre a subjetividade e a objetividade. Observamos no campo da Psicopedagogia os profissionais buscando uma formação que os instrumentalize a lidar com os problemas de aprendizagem; a subjetividade provocando uma transformação em um profissional diferente daquele que iniciou este processo, para responder a uma necessidade de uma realidade objetiva (fato evidente nas entrevistas com psicopedagogos), reafirmando um fenômeno dialético na transformação da identidade. Conforme Ciampa nos diz, sem a unidade da subjetividade com a objetividade, a primeira é “desejo que não se concretiza, e a objetividade é finalidade sem realização” (1987, p.145).

As histórias dos psicopedagogos mostram bem esta relação entre seus desejos, suas necessidades e as possibilidades apresentadas pelo contexto.

Portanto, na medida em que os papéis sociais/profissionais vão sofrendo transformações, observamos o processo contínuo de metamorfose da identidade (Ciampa, 1987), processo este claramente constatado na história do psicopedagogo. Ele é um profissional oriundo de diferentes graduações: Pedagogia, Psicologia, Fonoaudiologia, Letras, Matemática, etc., que através de sua consciência busca uma transformação de suas concepções e do seu fazer - busca sair da mesmice de uma praxis, busca sair de uma identidade mito, isto é, de uma aparência de não-transformação, constituindo sua história neste processo.

Ciampa afirma que “identidade é história, o que nos permite dizer que não há personagens fora da história, assim como não há história sem personagens” (1987, p. 157).

Outra característica do processo de construção de identidade é o interjogo que combina igualdade e diferença do sujeito em relação a si próprio em seus diferentes personagens e aos demais que o cercam. Ciampa nos mostra como por meio do nosso nome, temos a indicação do singular (indicado pelo 1o nome) e do geral (indicado pelo nome de nossa família), isto é, o nome nos diferencia dentro do contexto familiar e o sobrenome é o que nos inclui, o que nos reconhece como membros desta família. O passo seguinte é a identificação com papéis que correspondem também a uma predicação e colocam o sujeito como personagem de uma história. Dentre estas identificações é importante assinalar a identificação profissional, que está sendo objeto de análise neste trabalho.

No entender de Berger e Luckmann (1995), o indivíduo vai construindo uma estrutura biográfica a partir dos momentos sucessivos de sua experiência e o compartilhar com outras pessoas os significados dessas experiências para que ocorra a integração biográfica comum, pode gerar um processo de institucionalização. A institucionalização ocorre inicialmente num plano pré-teórico, em função de um corpo de conhecimentos que o grupo recebe, os quais fornecem as regras de conduta institucionalmente adequadas. Podemos dizer que a Psicopedagogia recebeu um corpo de conhecimentos oriundo de seus principais grupos de referência, a Psicologia e a Pedagogia e as experiências posteriores de seus profissionais gerou a institucionalização.

Ainda em Berger e Luckmann veremos o conceito de institucionalização, que para eles ocorre quando há uma padronização (ou uma tipificação) de ações habituais pelos vários tipos de atores, referindo-se ao “caráter típico dos atores nas instituições. As tipificações das ações habituais que constituem as instituições são sempre partilhadas” (1995, p. 79), estabelecendo pontos em comum nesta ação, nas tomadas de decisão. As tipificações recíprocas são construídas no desenrolar de uma história compartilhada e não repentinamente, como é o caso da Psicopedagogia que inicialmente reúne um conjunto de profissionais respondendo a uma mesma demanda (as dificuldades encontradas em relação ao processo de aprendizagem), reiterando o caráter institucional de uma história compartilhada pelo entrelaçamento dos papéis de seus profissionais/personagens, que posteriormente legitimam esta institucionalização pela organização de uma Associação formal que os representa - a ABPp.

Segundo Baptista (1996), o desenvolvimento da identidade institucional ocorre num movimento contínuo entre os diferentes personagens desse processo histórico e destes com seus grupos de referência. A coexistência constante dos personagens nesse novo contexto, bem como as alternâncias, que atendem às necessidades surgidas do processo histórico deste grupo, dão o caráter dinâmico à identidade institucional (metamorfose).

Ao percorrer o histórico da Psicopedagogia, nos deparamos com os personagens psicopedagogos dessa história construindo sua identidade, isto é, a identidade individual de cada profissional e constituindo uma identidade coletiva - do conjunto de profissionais inscritos em determinado tempo e lugar, enquanto processos interdependentes. Como diz Agnes Heller “o indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano genérico que funciona consciente e inconscientemente no homem” (1970, p. 22).

Ainda segundo a autora, o homem vai tomando um distanciamento entre o humano genérico (a comunidade) e o próprio indivíduo e graças a isto ele pode construir uma relação com sua própria comunidade, assim como com sua particularidade.

Aprender um papel ou construir um personagem significa um trabalho nas várias camadas cognoscitivas e afetivas do indivíduo, sobre o corpo de conhecimentos inerentes a este papel.

Este fato nos leva a analisar a questão da identidade do “eu” (singular) e a identidade coletiva (particular e universal), conceitos trabalhados por Habermas (1983). Para o autor a identidade do “eu” é uma resultante da identificação do sujeito com os outros e de seu reconhecimento por estes.

Segundo análise de Baptista: “os 'outros’ (o grupo de referência) dispõem de identidade coletiva que é o elemento que permite ao sujeito se sentir pertencendo ao mesmo, a partir das semelhanças reconhecidas” (1992, p. 16).

Na medida em que o sujeito assume papéis sociais/profissionais, adquire uma maior autonomia em relação aos modelos oferecidos, e com isto vai adquirindo a identidade do “eu”, vai construindo seu personagem. Paralelamente no processo de institucionalização o grupo vai construindo sua identidade, a partir de seus grupos de referência e atribuindo uma objetividade e um sentido a sua ação.

Nesse sentido encontramos um argumento interessante em Berger e Luckman:

O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles (1995, p. 36).

Para Heller, é na cotidianidade que o homem age sobre a base da probabilidade, da possibilidade; entre as coisas que faz e as consequências delas, existe uma relação objetiva de probabilidade. “O pensamento cotidiano implica também em comportamento” (1970, p. 43).

Outro aspecto a ser analisado na construção da identidade da Psicopedagogia, é o fato de seu surgimento representar claramente o que Ciampa denominou uma questão política, já que sua existência parece ameaçar o campo de trabalho de outros profissionais, principalmente os que pertencem aos grupos de referência. Na prática, o psicopedagogo tem como modelo, papéis assumidos tanto pelo psicólogo no que tange a atuação clínica, como do pedagogo, no trabalho com aprendizagem. Historicamente é a partir destes modelos que surge a identidade do psicopedagogo com uma especificidade que lhe é própria.

A ação dos profissionais que lidam com os problemas de aprendizagem, a partir da cotidianidade construiu sua práxis, estabelecendo novos ideais, dando assim elementos que possibilitam a revisão da atuação educacional.

Uma questão discutida por Heller é o preconceito, como conseqüência do pensamento categorizado e do comportamento cotidiano (1970, p. 43), é o resultado de estereótipos, analogias e esquemas já formulados, que dependerão de uma atitude crítica, para que possam ser percebidos, enquanto preconceitos para que venham a ser problematizados. A autora define o preconceito como um tipo particular de juízo provisório, isto é, passível de refutação pela ciência e por uma experiência cuidadosamente analisada, mas que se conservam inalterados contra todos os argumentos da razão.

Creio que podemos afirmar a existência do preconceito em relação a atuação do psicopedagogo, advindo de um de seus grupos de referência, pelo fato de que muitas vezes a área de conhecimento com que atuam – a aprendizagem é menosprezada socialmente.

Quando o profissional é visto a partir da identidade pessoal (na formação de origem), tende a ocorrer o pré-conceito, como categoria do pensamento e do comportamento cotidiano, o que ocorre muitas vezes com o psicopedagogo, cuja formação inicial é a Pedagogia. Nesses casos é necessário ficarmos atentos, pois estamos a um passo da estigmatização!

A identidade coletiva surge como conseqüência das identidades pessoais (como dito anteriormente), que podem acrescentar novos e bons elementos ou cristalizar aspectos pejorativos.

A identidade social é composta por:
Identidade atribuída: o agir dentro das regras básicas que atendam às exigências da posição assumida.
Identidade adquirida: o sujeito prova seu mérito para tal, são papéis diferenciados.

Como nos descreve Barone, as profissões surgem por combinação de alguns fatores:
Problema - uma demanda social, pela falta de profissionais com recursos para responder a uma necessidade;
Fundamentos teóricos - as fontes teóricas que darão subsídios a uma atuação;
Prática - como os profissionais passam a organizar seus conhecimentos teóricos e demais recursos.

Sarbin e Scheibe (1983) afirmam que a identidade social de uma pessoa, é conseqüência de suas posições sociais validadas, o que ocorre segundo ratificações do papel desempenhado correta e adequadamente. Para estes autores, a sobrevivência das pessoas está ligada a habilidade de “localizarem-se devidamente nas várias ecologias” (p.8). O termo ecologia, aqui é utilizado para designar a estrutura e o desenvolvimento das comunidades em suas relações com o meio ambiente e sua conseqüente adaptação.

Segundo esses autores,

(...) entre as várias ecologias nas quais o mundo pode ser diferenciado, é que fica a ecologia social ou o sistema de papel desempenhado. As pessoas, constantemente se defrontam com a necessidade de localizarem-se em relação com os outros. A má localização do eu no sistema pode trazer conseqüências embaraçosas amargas (p. 8).

As pessoas em conjunto produzem um ambiente humano, com a totalidade de suas formações sócio-culturais e psicológicas, gerando um contexto voltado a uma direção e a uma organização. O psicopedagogo tenta inserir-se nesta ecologia social, no sentido de responder a uma demanda surgida em função de um fracasso escolar; inicia seu trabalho estabelecendo relações com os demais profissionais das áreas afins, encontrando muitas vezes vários obstáculos. Neste movimento de ação e reflexão, vai constituindo sua identidade.

Outro aspecto, que ajuda a entender a construção da identidade profissional dos psicopedagogos, é a questão dos papéis. Historicamente muitos dos profissionais que procuraram suprir a demanda das crianças com dificuldades de aprendizagem eram, em sua maioria, pedagogos que procuravam formas de resolver os problemas observados em sala de aula, por meio de cursos com neurologistas, psiquiatras e psicanalistas, etc. A partir disso, passavam a assumir papel terapêutico junto a esta clientela, e consequentemente diferenciavam-se enquanto personagens dessa história. De acordo com Berger e Luckmann: “(...) os papéis são tipos de atores neste contexto (...) ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real para ele” (1995, p. 103).

Desta forma, os personagens/psicopedagogos estão firmando cada vez mais seu espaço de atuação, procurando a legitimação de seu agir de forma competente, constituindo o discurso da Psicopedagogia e consequentemente construindo a sua identidade.

A grande demanda por Psicopedagogia acontece no final da década de 70 e início de 80 (quando ocorre um índice significativo de repetência escolar e evasão).

Os fundamentos teóricos são encontrados em várias áreas do conhecimento: Pedagogia, Psicologia, Psicolinguística, Neurologia, Fonoaudiologia, Psicanálise...

Identificamos que os profissionais que mais buscaram respaldo para sua prática foram os educadores, e demais profissionais relacionados com a educação.

A construção da História da Psicopedagogia se dá a partir da narrativa de seus personagens, constituindo-se em uma nova instituição, que surge como resposta a antigas instituições já cristalizadas. O processo de institucionalização leva à legitimação: a partir da práxis no seu cotidiano.

 

Os diferentes momentos do percurso da Psicopedagogia

A história mostra o desenvolvimento da identidade de uma nova instituição: a Psicopedagogia, que surge dando respostas às antigas instituições já cristalizadas, que não conseguiam atender à demanda dos sujeitos com problemas de aprendizagem. De acordo com Berger e Luckmann dizer que “um segmento da atividade humana foi institucionalizado é dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social.” (1995, p.80)

Os agentes dessa instituição - os psicopedagogos - passaram a constituir uma nova identidade, da mesma forma que a Psicopedagogia, já que o seu surgimento vem atender uma demanda.

Segundo Baptista: “O desenvolvimento institucional se dá num movimento contínuo de relações entre diferentes participantes da instituição e destes participantes com os grupos referenciais” (1996, p. 9).

No caso da Psicopedagogia ela se articula com a Psicologia e com a Pedagogia, enquanto principais grupos referenciais, gerando uma intersecção dos conhecimentos.

Segundo Berger e Luckmann, “as instituições como facticidades históricas e objetivas, defrontam-se com o indivíduo na qualidade de fatos inegáveis” (1966, p. 86) ainda que questionáveis (acrescentaria eu). Os autores afirmam que as instituições existindo como realidade exterior, levam o indivíduo a “sair de si” e apreender o que elas são. “A objetividade do mundo institucional, por mais maciça que apareça ao indivíduo é uma objetividade produzida e construída pelo homem” (ibdem).

A Psicopedagogia em sua concretude assume esta objetividade, se institucionalizando. Ao se dar a institucionalização vemos que esta é precedida por um processo de formação de hábitos, o que geralmente torna as ações possíveis de serem antecipadas, de se lhe atribuir padrões às alternativas de conduta agilizando-as. A institucionalização, segundo os autores citados, ocorre sempre que há uma tipificação (formação de hábitos) recíproca por tipos de atores o que significa que determinada instituição pressupõe certas ações em relação a determinados indivíduos. A tipificação recíproca das ações acontece no decorrer de uma história compartilhada, como é o caso das pessoas (atores) que constituíram a Psicopedagogia. Elas tomaram a iniciativa de procurar uma formação nessa área, como foi o caso das alunas que procuravam o curso do Instituto Sedes Sapientiae (na década de 70), ou outros cursos formais e informais; elas criaram um espaço comum de interlocução, como é o caso das pessoas que criaram e desenvolveram a Associação Brasileira de Psicopedagogia (na década de 80). Como comprovam as entrevistas realizadas, elas tomam estas iniciativas, a partir de significados atribuídos à sua práxis e passam a compartilhar de ações que contribuem para corroborar a institucionalização da mesma.

O processo de institucionalização exige legitimação, isto é, uma forma pela qual pode ser explicado e justificado. Legitimação esta que será encontrada no próprio bojo da comunidade que a constitui, a partir da práxis no cotidiano de sua história. Podemos perceber o movimento de legitimação desde a criação da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), das seções da Associação em outros estados do país, da constituição de seu estatuto, do seu código de ética, e da sua atual preocupação com a formação deste profissional.

A ABPp se instaura, portanto, como a legitimação de uma instituição que tem por objetivo reunir profissionais da área, proporcionando-lhes um espaço de discussão, reflexão, atualização e representatividade de seus anseios e ideais. Passa a ser o órgão representativo da institucionalização da Psicopedagogia.

Segundo Berger e Luckmann “A necessidade de legitimação surge quando as objetivações da ordem institucional (agora histórica) têm que ser transmitidas a uma nova geração” (1995, p.128). Para os autores a legitimação “...explica a ordem institucional outorgando validade cognoscitiva a seus significados objetivos (...) e justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos práticos” (ibdem).

A partir da narrativa de profissionais e dos registros pesquisados, levantamos alguns dados importantes para a caracterização dos diferentes momentos do percurso da Psicopedagogia.

Um primeiro momento é caracterizado pela indiferenciação da identidade da Psicopedagogia. É quando a Psicopedagogia nasceu aqui em São Paulo, voltada principalmente para atender os distúrbios das áreas da leitura, escrita e da psicomotricidade. As dificuldades eram entendidas como dificuldades específicas e voltadas para a dislexia específica de evolução. A porta de entrada da Psicopedagogia parece ter sido uma visão mais organicista. Os profissionais que trabalhavam em clínica nesse período, o faziam ainda com uma visão mais reeducativa e apoiados nesta abordagem organicista (em que o orgânico assume grande importância sobre os distúrbios de aprendizagem).

Nesse momento, a demanda por profissionais que “olhassem” para o processo de aprendizagem, fez com que surgissem os primeiros cursos voltados para os problemas de aprendizagem. As publicações voltadas para esta temática, começam a tomar vulto.

A passagem do momento de indiferenciação para o de institucionalização da Psicopedagogia, ocorre a partir dos cursos que surgem com propostas mais objetivas, e procuram conhecimentos mais sistematizados para responder aos fatores não apenas pedagógicos e orgânicos do desenvolvimento do sujeito, mas também de fatores cognitivos e emocionais. A presença dos psicopedagogos argentinos tem um papel marcante nesta etapa. A literatura prolifera e os trabalhos acadêmicos passam a se fazer presentes.
É nesse cenário, que podemos visualizar a afirmação de uma nova identidade institucional, porque sem dúvida os fatos relatados nos mostram a objetivação de uma realidade evidente, nos apresentam a narrativa da Psicopedagogia, das atividades de uma prática, a partir de uma consciência de seus personagens...

O momento da legitimação, que parece ser o mais longo, pois se estende até hoje, se dá principalmente através do trabalho realizado pela ABPp, com seus eventos e publicações que garantem a divulgação dos trabalhos da área, de propostas teóricas voltadas para a aprendizagem, da elaboração de um código de ética; dos cursos de pós graduação que passam a se preocupar com o estágio, como elemento substancial à formação do profissional e de uma literatura profícua em sua diversidade de abordagens.

É neste período que se procura estabelecer um espaço no mercado de trabalho, e que se procura lutar para que a Psicopedagogia seja reconhecida como profissão. Neste momento se iniciam as discussões e disputas entre os profissionais desta área e os que pertencem aos grupos referenciais.

É quando se instala a preocupação em estabelecer as diferenças entre os grupos referenciais e os subgrupos internos. A fala de uma psicopedagoga é muito esclarecedora desta situação. Diz ela:

A Psicopedagogia não é uma extensão da Psicologia, nem da Pedagogia (...) ela tem uma prática específica, ela tem uma leitura de teorias que canalizam para o aspecto da aprendizagem (...) a formação universitária do psicólogo, do pedagogo, não conduz a exercer a profissão de psicopedagogo (...)

É neste momento, também, que o psicopedagogo mais incisivamente torna pública sua inserção na “ecologia social”, que começam a emergir os preconceitos e os estigmas ligados ao grupo como um todo ou a alguns subgrupos. As questões políticas se instalam e permanecem até hoje, conferindo um movimento bastante peculiar à Psicopedagogia.

Tentamos aqui compreender os movimentos de identidade dos psicopedagogos, assim como da Psicopedagogia, objetivados em personagens que expressam tendências de autonomia na construção de uma identidade adquirida. Percebemos, através de depoimentos, que a identidade se afirma por meio dos contatos com outros significativos, e é através da socialização dos conhecimentos que podemos almejar um movimento emancipatório. Este trabalho nos permitiu ratificar a importância do trabalho psicopedagógico, em todos os contextos em que a aprendizagem seja o fenômeno alvo.

Podemos afirmar ainda, que o psicopedagogo se manterá em posição de refletir sobre sua ação, questioná-la e transformá-la, numa perspectiva de ampliação da consciência, desde que não assuma um fazer cristalizado quanto a sua identidade pessoal, o que refletiria na identidade coletiva.

Minha proposta hoje é para pensarmos de forma mais criteriosa na formação deste profissional, pois a razão dele ser tão questionado em sua competência, está na fragilidade de sua formação. Os cursos formais (ou institucionalizados) atendem a uma proposta de especialização, com duração de no mínimo 360 horas/aula, segundo exigências do MEC, poucas são as instituições que ultrapassam essa carga horária.

Se nos ativermos ao relato das profissionais da Psicopedagogia, vamos ver que o ponto comum entre elas é a manutenção de um movimento que visa a continuidade de sua formação, pois “a formação nunca acaba”. Nossa tarefa, portanto, enquanto “formadores” de outros profissionais é possibilitar essa extensão e aprofundamento tanto dos aspectos teóricos enquanto práticos no estágio supervisionado. Outro aspecto importante é apontar a esses profissionais em formação, as transformações que ocorrem durante seu processo de busca de uma nova área de atuação, porque por trás de uma nova alternativa de trabalho, existe a busca de uma metamorfose de seu agir.

Nesse movimento de maior conscientização de um agir psicopedagógico, está inserida uma legitimação da própria Psicopedagogia, cada vez mais objetivada em sua cotidianidade. É a formação mais consistente que dará continuidade à história desta área de atuação, voltada para o aprender. A ABPp, na gestão 93/94, chegou a propor um modelo de curso voltado tanto para a área institucional, quanto clínica com estágio para as duas áreas; considero pertinente considerarmos tal possibilidade, para evitarmos o equívoco em que a maioria das instituições incorrem, que é privilegiar os estudos da área clínica, deixando de lado a área institucional.

O processo de institucionalização não pára, já que a ABPp se faz presente em vários estados do Brasil, até mesmo o Estado de São Paulo conta com a ABPp – Seção São Paulo desde 2003, que pretende seguir os mesmos passos de sua matriz geradora, mas no sentido de descentralização. Promove eventos culturais nas diversas regiões do estado, incluindo seus psicopedagogos na discussão e conquista dos interesses de classe.

Portanto, ao falarmos sobre identidade na perspectiva de metamorfose, em relação aos profissionais que construíram a História da Psicopedagogia, é um bom momento para iniciarmos uma ação com perspectivas de transformação nesse novo campo de atuação que se institui - a Psicopedagogia.

 

Referências bibliográficas

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Evolução Histórica. In: Boletim da Associação Brasileira de Psicopedagogia (13), ano 6, junho de 1987.

 

 

Notas

* Pedagoga, especialista em Psicopedagogia, mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, SP; presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia no biênio 91/92; presidente-fundadora da Associação Brasileira de Psicopedagogia, Seção São Paulo; docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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