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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954On-line version ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.34 no.35 São Paulo  2024  Epub June 24, 2024

https://doi.org/10.37388/cp2024/v34n35a06 

ARTIGOS ORIGINAIS

MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALÍTICA EM MOGLI O MENINO LOBO: O RESSOAR METAFÓRICO NA INFÂNCIA

MYTHOLOGY AND ANALYTICAL PSYCHOLOGY IN MOWGLI THE BOY WOLF: THE METAPHORICAL RESONANCE IN CHILDHOOD

Mariana Harumi S. Fugikawa1 

1 Psicóloga, Especialista em Saúde Mental da Criança e do Adolescente, Mestre em Comunicação e Cultura Analista em Formação IPAC/AJB. e-mail: Mariharumi.psi@gmail.com


RESUMO

Este artigo que tem a finalidade de analisar a história contada pelas imagens e trama do filme de animação Mogli, o Menino Lobo. As imagens fílmicas são olhadas aqui pelo viés da Psicologia Analítica e da mitologia, costura que tema missão de nos amparar na leitura dos personagens principais da história de Mogli e de sua narrativa. Produzido em 1967, baseada no livro de Kipling, o Livro The Jungle Book, tem sua trama baseada na história de um menino criado pela natureza. O objetivo geral é o de compreender como o filme infantil constrói, a partir da linguagem verbo visual, a metonímia do desenvolvimento da infância em uma esfera mítica e, como específico, identificar a relação entre personagens e seus símbolos, a metáfora ressonante. A metodologia tem por meta penetrar nas camadas de sentido dos símbolos, inscritos nas imagens, a fim de permitir a análise de conteúdos e sua conexão mitológica. Para Jung (1964), os símbolos que se fixam, que perduram no tempo são os que nos fazem sentido, são os relevantes, os que nos levam a pensar que as mídias de adesão e fixação no tempo devem ser analisadas e seus símbolos colocados à reflexão, e que se fixam por se encontrarem com os conteúdos mitológicos na psique.

Palavras-Chave: Psicologia Analítica; Infância; Símbolos; Imagens; Metáfora

ABSTRACT

This article aims to analyze the story told by the images and plot of the animated film The Jungle Book. The filmic images are looked at here from the perspective of Analytical Psychology and mythology, a stitch that has the mission of supporting us in reading the main characters in Mowgli’s story and his narrative. Produced in 1967, based on Kipling’s book, The Jungle Book, its plot is based on the story of a boy created by nature. The general objective is to understand how children’s films construct, based on visual verbal language, the metonymy of childhood development in a mythical sphere and, specifically, to identify the relationship between characters and their symbols, the resonant metaphor. The methodology aims to penetrate the layers of meaning of the symbols, inscribed in the images, to allow the analysis of content and its mythological connection. For Jung (1964), the symbols that are fixed, that last over time, are the ones that make sense to us, are the relevant ones, the ones that lead us to think that the media of adhesion and fixation in time must be analyzed and their symbols placed in perspective. reflection, and which are fixed by encountering mythological contents in the psyche.

Key words: Analytical Psychology; Childhood; Symbols; Images; Metaphor

Reflexões Analíticas

O propósito deste trabalho é o de analisar a história contada pelas imagens e trama do desenho Mogli, o Menino Lobo, produzido pela Disney, enfatizando a vivência do desenvolvimento infantil e a mitologia. O desenho é sucesso entre as crianças desde seu lançamento, em 15 de dezembro de 1966, e nos dias de hoje é parte da programação infantil da televisão de programação aberta – SBT – e na televisão por assinatura – Disney Júnior – em formato de episódios que mantêm os mesmos personagens e preservam a história ampliando-a com aventuras diferentes. A mesma história já foi recontada em filme pela Disney em três longa metragem, sempre mantendo o mesmo conto. O quadro teórico tem a finalidade de discutir a simbologia do Menino Lobo sob a ótica da Psicologia Analítica e na seara mitológica.

Os desenhos infantis trazem informações importantes do universo a que se reportam. O Menino Lobo faz uma retomada de um tema comum no nosso imaginário, tendo como tema central o homem criado fora da sociedade humana, como Victor de Aveyron que, segundo Leite e Galvão (2000), ficou conhecido por menino selvagem, descoberto na adolescência, sem que tivesse tido anteriormente os ensinamentos da vida social. Como seria o ser humano criado distante da sociedade e munido de heroísmo? O personagem Tarzan, também já retratado pela Disney, nos remete a uma trama onde a infância fica à mercê da natureza, criado com os macacos. Na lenda Dakota o conto relata como uma mulher aflita foge das dores de uma violência emocional e é acolhida por uma alcateia. Contos com a mãe natureza. Esse tema é comum entre os mitos, o personagem heroico como aquele que em si mesmo parteja-se em seu desenvolvimento. Lembrando a mitologia romana, Rômulo e Remo são irmãos gêmeos, segundo Bustamente (2010) Rômulo e Remo eram filhos de Ares, e da mortal Reia, filha de Numitor, rei de Alba Longa. A correnteza os arremessou à margem do rio e foram encontrados por uma loba, que teria os amamentado e cuidado deles. Na trama Mogli o menino lobo também recebe o cuidado dessa mãe encontrada na natureza, a mãe loba. Seria a mãe loba aquela que dispõe desse materno em nós, aquela que nos alimenta da nutrição necessária para manter a vida, para superar as mortes?

fonte: divulgação

Estátua Lupa Capitolina. 

Lembremos aqui de La Loba.

O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia dos ossos de todos os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua especialidade reside nos lobos. Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montañas e os arroyos, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura está disposta à sua frente, ela se senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar. Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pêlos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado. La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar. E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro. Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte. ESTÉS, 1994, p. 44.

Novamente vemos aqui a imagem da loba como a guardiã da vida dentro de nós, aquela parte que encontramos investida de ressureição e canto que hidrata e encarna os nossos ossos perdidos.

Nas mitologias europeias, o lobo simbolizava tanto aspectos positivos — representando as forças vinculadas à ideia de veracidade, proteção, fecundidade, bravura e poder — quanto as forças negativas de destruição (caos, o princípio do mal), ferocidade (o devorador, o predador), astúcia, luxúria, crueldade, esterilidade e morte. Ressaltamos que esse animal estava conectado ao simbolismo solar, lunar e celeste, assim como a deuses da guerra e da morte (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p. 652).

O lobo era considerado como sendo um dos animais do deus germânico da guerra Wodan. Na mitologia nórdica, Odin — deus escandinavo da morte e da guerra — estava associada aos lobos Geri e Freki. Aqui nota-se o caráter positivo do lobo como um ser que remete à força, à bravura, ao espírito guerreiro. Na Idade Moderna, os lobos foram considerados um dos animais nos quais bruxas e bruxos se transformariam para ir ao templo, além disso, nesse período começam a proliferar as lendas sobre lobisomens no Leste Europeu. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p. 654; 2001, p. 269-270).

Jung (1961), coloca a família como vivência arquetípica, materno arquetípico, paterno arquetípico, fraterno arquetípico. Assim os arquétipos estão presentes em todos nós e, mesmo quando não vivenciamos determinadas situações, as temos como possibilidades de vivencias, e tendemos a preencher esses arquétipos com imagens, vivenciadas, idealizadas ou acessadas da profundeza da psique. Jung percebeu, em seus sonhos e nos sonhos de seus pacientes, imagens que não eram explicáveis pela memória pessoal. As imagens eram arcaicas, imagens antigas existentes em alguma cultura de outrora, e muitas vezes encontradas nas mitologias. Pesquisando tal fenômeno, Jung chegou à conclusão de que esses conteúdos eram parte de um inconsciente coletivo que armazenam os arquétipos. Carl Gustav Jung nasceu em 1875, na Suíça, formou-se em medicina e optou por exercer psiquiatria. Segundo Hall (1993), no ano de 1900, Jung inicia seus trabalhos no Hospital Burgholzli de Doenças Mentais, em Zurique. Hall relata que a Psicologia Analítica de C.G. Jung foi a psicologia que mais contribuiu para o estudo do material simbólico da humanidade. Jung fez várias viagens, conheceu várias culturas e, com isso, pôde vislumbrar uma conexão universal entre os homens, uma herança psicológica construída ao longo da evolução humana. A herança psicológica universal é denominada por Jung de inconsciente coletivo. Os conteúdos do inconsciente coletivo são denominados de arquétipos, tipos arcaicos que surgem na consciência como imagens simbólicas.

Através da concepção de inconsciente coletivo, Jung concebe que todos os homens, primitivos ou modernos, compartilham de um conhecimento arquetípico universal. Essa estrutura rompe com a linearidade espaço-tempo, ampliando a visão do psiquismo para além da simples causalidade. A análise mítica nos traz a possibilidade de ter acesso ao material arquetípico e arcaico do inconsciente. Deste modo, a análise faz um resgate simbólico para a compreensão das nossas imagens internas, dos mitos e, consequentemente, para uma compreensão mais profunda de si mesmo. Uma viagem do coletivo ao individual e do individual ao coletivo.

No filme de animação Mogli, o menino é encontrado pela Pantera Baguera, boiando em um cesto no rio envolto pela selva, assim a trama tem início, a história que se refere ao abandono e vulnerabilidade de uma criança que precisa encontrar uma pantera para dar conta da sobrevivência.

Na sequência ele é entregue a uma família de lobos que o acolhem e o criam, porém são muito diferentes, tanto fenotípica quanto geneticamente. Cabe refletir sobre uma questão metonímica na qual a busca da identidade e a busca da superação do desamparo de dentro das telas ressoa fora das telas, ocorrendo uma identificação das crianças com o menino Mogli, não somente daquelas que sofrem negligencia e abandono na primeira infância, mas de todas que precisam se investir de coragem para dormir nos seus quartos sozinhos, ir a escola sem os pais, sair com os amigos, encontrar grupos, pertencer sem se perder, enfrentar os medos, crescer e adentrar a floresta.

O filme contextualiza o personagem como um menino que passa por diversos desafios. Seu desenvolvimento se entrelaça a trama que faz dele um guerreiro que cumpre sua saga, e as crianças quando recebem essas imagens fílmicas, podem sentir um encontro com as próprias imagens, vencendo os desafios da infância em prol da autonomia e do desenvolvimento, saga necessária em todo desenvolvimento infantil.

Os desenhos infantis para cinema, como é o caso de Mogli, estão tendo cada vez mais adesão social e não só por parte do público infantil. É comum na estreia de desenhos a presença de grande número de pessoas. Na verdade, o cinema representa uma necessidade antiga de nossa cultura. Segundo Arlindo Machado (1995), a caverna de Platão já está nos primórdios do cinema. Para este autor, assistir tramas cineastas, vai ao encontro da nossa necessidade de espiar um outro mundo. Na história de Mogli as crianças espiam o Menino Lobo provido de instinto, com pouca influência educacional, livre de escolas e regras sociais rigorosas.

Para Campbell (1992), os mitos foram usados por muito tempo como únicas respostas da nossa mente para nossas dúvidas. Em todas as sociedades encontramos a presença de mitos, e nos lembrarmos deles é voltar ao início das coisas, é retomar a força do começo. O mito desvela um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar, aprender, olhar para as coisas; essa é a razão pela qual os mitos constituem os paradigmas de todos os atos humanos significativos. Os mitos foram criados pela lógica da nossa mente, a lógica da emoção desprendida de racionalidade, suas histórias são consideradas verdadeiras por darem respostas ao real.

Ainda para Campbell (1992), a busca pelos mitos nasce da crença de que, se conhecermos a origem das coisas, estaremos imunes a elas, conhecer a origem seria ter poder sobre elas. O mito é uma linguagem do inconsciente e revela o que nós, seres humanos, temos em comum e seguimos com as palavras do autor:

As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação de toda gente. Tendo sido suprimidas, toda uma tradição de informação mitológica do Ocidente se perdeu. Muitas histórias se conservavam, de hábito, na mente das pessoas. Quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para com aquilo que esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe está acontecendo. Com a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não possuímos nada semelhante para pôr no lugar. (CAMPBELL, 1988, p.15)

Talvez possamos pensar que os mitos estão sendo recontados pela mídia e que as imagens que são aderidas por uma grande massa, se apoiam nos mitos e se encontram com essas imagens arquetípicas em nós.

Jung (1985) percebeu, em seus sonhos e nos sonhos de seus pacientes, imagens que não eram explicáveis pela memória pessoal, pareciam estar presentes em outro tipo de fantasia ou algo herdado da imaginação. As imagens eram arcaicas, imagens antigas existentes em alguma cultura, e encontradas na mitologia. Pesquisando tal fenômeno, Jung chegou à conclusão de que esses conteúdos eram parte de um inconsciente coletivo que vem de geração em geração. Para elucidar a visão de Jung, é relevante falar um pouco sobre alguns de seus conceitos que explanam e elucidam a ligação com os mitos.

Segundo Silveira (1997, p. 162), “os mitos resultam da tendência incoercível do inconsciente para projetar as ocorrências internas, que se desdobram invisivelmente em seu íntimo, sobre os fenômenos do mundo exterior, traduzindo-as em imagens”.

Através da concepção de inconsciente coletivo, Jung concebe que todos os homens, primitivos ou modernos, compartilham de um conhecimento arquetípico universal. Essa estrutura rompe com a linearidade espaço-tempo, ampliando a visão do psiquismo para além da simples causalidade. A análise mítica nos traz a possibilidade de ter acesso ao material arquetípico e arcaico do inconsciente. Deste modo, a análise faz um resgate simbólico para a compreensão das nossas imagens internas, dos mitos e, consequentemente, para uma compreensão mais profunda de si mesmo. Uma viagem do coletivo ao individual e do individual ao coletivo. Onde se inserem imagens fílmicas que atravessam o tempo.

Os mitos aprofundam, por meio de paralelos, toda a produção simbólica da humanidade, dando sentido aos nossos hábitos, religião, arte. Assim, o mito possibilita um olhar atento às situações vividas.

Em seus estudos sobre o mito do herói, Campbell (1992) relata que facilmente encontramos pessoas que revivem algum mito. Elas estão mergulhadas no inconsciente coletivo que é provido de conteúdos mitológicos, sendo uma manifestação que se exibe.

Vamos agora complementar nossas reflexões observando os sentidos nas imagens selecionadas do filme. Para cada uma delas buscaremos um olhar simbólico.

Fonte: Divulgação.

Figura 1 Mogli, o menino lobo 

Nessa representação visual, o olhar bisbilhoteiro do menino nos atravessa, como se ele pudesse ver mais de nós mesmos, além da aparência. Um menino com cabelos e roupas não convencionais à vivência social. Este menino de olhar profundo segura um elemento da natureza em suas mãos, os cabelos negros até os ombros simbolizam, segundo Chevalier, (1982), força e virilidade masculina. O cumprimento do cabelo e o mau corte nos remetem ao desapego, à liberdade social: “somente o necessário” como diz a canção principal do filme. O galho conectado à mãe terra nos apresenta um herói arquetípico guerreiro ancestral mítico protegido e energizado pela sua mãe terra, ainda segundo Chevalier (1982), a terra é quem sustenta, ela simboliza a função materna da qual os homens necessitam para crescer.

Fonte: Divulgação.

Figura 2 Raksha: a loba mãe 

Segundo Chevalier (1982), na mitologia greco-latina foi uma loba quem amamentou Aqueronte, o leite da loba tem o poder de fortificar para o heroísmos, também conta a mitologia romana que foi uma loba quem amamentou os irmãos gêmeos Rômulo e Remo, o primeiro, fundador de Roma e seu primeiro rei.

O arquétipo materno, segundo Hall (1993), é um arquétipo universal, isto é, toda criança no mundo herda esse arquétipo em uma imagem pré-formada da mãe que se ampliará através da imagem definida da mãe verdadeira, da experiência. No caso de Mogli a terra instintual que dá frutos e é sua grande provedora aparece ao lado da mãe loba do menino, Raksha, é a loba mãe que o aceitou como seu. É a mãe que aceita, a mãe loba, ela é encontrada na psique dessa nossa criança e a reveste de heroísmo psíquico e segundo Alvarenga (2007) um herói psíquico é dotado de grande desenvolvimento de atributos.

O olhar protetor de Raksha é o que nos atinge inicialmente. Trata-se de um animal selvagem que vive sob a lei da sobrevivência na selva. Segundo o conhecimento popular, nas alcateias sempre há um líder que é o mais velho, a loba é também uma representante da sensualidade feminina, da boemia já que se trata de um animal noturno. Na imagem, a loba aparenta estar atenta ao entorno da caverna onde seus filhotes dormem. Segundo Chevalier, (1982, p.212), a caverna é arquétipo do útero materno, é onde acontecem, para inúmeras culturas, os ritos de renascimento e iniciação. Ainda para esse autor (1982, p.557), a loba é sinonímia da fecundidade e direcionamento e cita um trecho da poesia universal de Caillois e Lambert.

Aparecerá ainda um lobo diante de ti

Toma-o como irmão

Porque o lobo conhece

A ordem das florestas

Ele te conduzirá

Pela estrada plana

Até um folho de rei

“Até o paraíso.”

A loba Raksha no filme exerce a função protetiva ao menino Mogli e dá a ele a energia inicial para começar seu rito de passagem para o desenvolvimento e crescimento masculino. Seu leite o fortifica para seguir em frente, sua proteção inicial é força interna para os momentos de dificuldade e seu farol por entre os caminhos escuros e selvagens da vida. Segundo Neumann, (1968), a criança experimenta o mundo indefinido, ela não é orientada pela consciência. Essa fragilidade a deixa vulnerável aos caprichos do mundo e dos homens e faz brotar nela o medo. O medo é um sentimento natural à infância, que precisará de enfrentamento, para que a criança consiga assumir os riscos do desenvolvimento e as etapas da maturidade. Porém para que ocorra esse fortalecimento, que propicia a superação do medo, é necessário a boa vivência do arquétipo materno, e assim ocorre na vivência de Mogli e a loba Raksha.

Quando Mogli sai pela floresta com Baguera seu pantera guardião seu primeiro obstáculo é a cobra Ka.

Neumann (1968, p.49) propõe sobre o domínio da uroboros no decorrer da fase infantil, a época do matriarcado que é o estágio da consciência do ego não desenvolvida, ainda enredada pela natureza. Seguindo seu pensamento a uroborus é o primeiro estágio do desenvolvimento infantil, no qual os símbolos estão reunidos em torno do que ainda será explicado, ainda não veio à luz da consciência. E a uroborus é comumente representada pela figura da cobra em movimento circular.

Trata-se de uma cobra com três cores, olhar penetrante que paralisa o menino, leva assim à perda de controle, ele é hipnotizado por ela, possuído por andar inconsciente e distraído. Na figura 3, ela aparece enrolada e sufocando o menino, na figura 4 ela aparece apoiada no galho de uma árvore, em ambas predomina a forma circular. A cobra para Chevalier (1982, p. 814) é rápida como relâmpago, sempre surge de uma fenda escura para anunciar morte ou vida; ela não apresenta um arquétipo, mas um complexo de arquétipos frios, subterrâneos, da camada mais profunda da vida que ficam latentes. A cobra em formato circular, segundo Neumann (1968, p.27), representa os aspectos autocontidos, sem começo nem fim, não há antes nem depois, em cima ou embaixo, não há distinção de nada, as separações só ocorrem com o surgimento da luz. No caso do desenvolvimento infantil o surgimento da luz da consciência, no momento em que Mogli encontra-se com Ka está mesmo no seu momento uroborico sem luz da consciência, não querendo ver as necessidades de seu crescimento e amadurecimento para sair do aconchego da mãe natureza e ir ao encontro de suas verdades e de seu caminho, passar pela serpente e adquirir consciência do perigo, dos riscos pode auxilia-lo na percepção de que já pode deixar a mãe loba real e seguir investido de toda herança que ela já lhe entregou na psique. Quem aparece para salvá-lo da cobra e direcioná-lo é Baguera, a Pantera, que durante todo o filme funciona como aquele que acorda ao menino de seus momentos hipnóticos e possuído por algum complexo.

Fonte: Divulgação.

Figura 3 

Fonte: Divulgação.

Figura 4 

Segundo Alvarenga (2009) a esfinge de Édipo era considerada uma figura feminina filha de Ortros e de Equidna ou Quimera, além da cabeça humana e do corpo do leão, ela também tinha asas de águia e cauda de serpente, Édipo vence a esfinge com sua sagacidade, a decifra, mas a esfinge se devora e Édipo o herói sem proteção divina segue para um destino infortúnio. A autora nos convida a pensar Édipo e a Esfinge, como a revelação da natureza mais íntima de Édipo, sendo esse o enigma que o solucionador de enigmas não entendeu. Ainda nas palavras de Alvarenga (2009) ele também não entende o cumprimento de sua maldição como realidade simbólica, certamente nosso herói, ao ouvir a mensagem oracular, deve tê-la repudiado por completo, porque a entendeu de forma literal.

No filme de Mogli ele recebe auxílio da pantera para sobreviver à serpente, a pantera que é animal de hábitos noturnos e consegue ver na escuridão, o olhar da pantera na psique faz o resgate sem precisar matar a serpente, dialoga com ela e agora o menino segue consciente dos perigos da selva.

Fonte: Divulgação.

Figura 5 Baguera a pantera 

Ao observar a imagem percebemos uma mescla de cores. A pantera negra na selva carregando o menino pelo calção vermelho. Ela com olhar atento; ele com expressão zangada. Sabemos que a pantera é um felino de hábito e visão noturna.

No tocante à simbologia, arquétipos e contextualização no filme, a pantera, segundo Chevalier, (1982, p.462), assim como o gato, simboliza a sabedoria superior, força e agilidade. Pela tradição mulçumana, um felino completamente preto possui qualidades mágicas e, em muitas outras tradições, o felino preto simboliza a obscuridade da morte. Como guia e condutor de Mogli, Baguera lança luz à consciência do menino estimulando que sua energia seja usada para seguir a saga do crescimento e lança a morte para algumas venturas da infância que necessitam dar lugar à maturidade. Assim é Baguera, a energia vital, a fundamental libido e ansiedade que nos direciona ao crescimento; em oposição a Balu, grande urso brincalhão amigo afetuoso do menino, que representa o desejo de não crescer.

Fonte: Divulgação.

Figura 6 Balu 

O sentimento que a imagem traduz é de alegria, o menino e o urso parecem estar dançando felizes. Sabemos do urso que é um bon vivant, vive bem no verão, come tudo o que quer, faz tudo do seu jeito e quando chega o período difícil na selva, que é o inverno, ele hiberna, ou seja, dorme em tempos difíceis.

Assim, o urso Balu no filme é o que ensina para o menino as facilidades da selva. Simbolicamente, segundo Chevalier (1982, p.924), o urso é um anunciador dos nascimentos dos meninos. Tem relação com a montanha, que se aproxima do céu, e que é seu habitat e se opõe à serpente que rasteja. Chevalier continua (p. 925) nos contando que o urso corresponde aos instintos e às fases iniciais da evolução, ele emana das cavernas, da obscuridade, sendo considerado na China um iniciador do ritual da vida. No filme, o urso faz um papel do grande amigo. A amizade é nosso primeiro espelho, é nosso iniciador na vida, é possível apenas quando saímos da caverna obscura e protetiva do útero familiar e ingressamos iniciantes na vida social. Nela entramos com muita euforia, acreditando realmente que viver intensamente com os amigos é “somente o necessário”, como diz a canção do urso e do menino no filme. O urso representa o amigo, a união dos dois traz alegria na tela, mas notamos nas atitudes do urso que, inconscientemente, ele não quer que seu amigo atinja um estágio de desenvolvimento maior, que ultrapasse a infância. Desta forma, também podemos encontrar amigos internos na psique que apresentam resistência e medo de encontrar a própria potência, que tem medo de ser grande.

Fonte: Divulgação.

Figura 7 Shere Khan: o tigre 

A imagem apresenta um suspense. Aonde vai este tigre com essa expressão indagadora? Trata-se de um tigre caminhando na selva que é seu habitat natural. Sabemos do tigre que é feroz, instintual, caçador implacável, carnívoro, e que possui uma beleza extraordinária com cores intensas.

O tigre no filme tem o papel de expulsar o menino do conforto da família e da mãe natureza, pô-lo para fora do paraíso é sua missão, por causa dele que o menino deve fugir para fora da mãe natureza, deve ir ao encontro da civilização, crescer, pela existência do tigre o menino não pode andar distraído, o menino precisa ter cuidado por onde anda, o que provoca a queda da ingenuidade, acontecimento necessário em muitos momentos da vida. Segundo Chevalier, (1982, p.884), o tigre na Malásia simboliza o curador, o curandeiro, e em todo sudoeste asiático ele é visto como símbolo da morte e ressurreição, e assim é o papel do tigre. O que nos assusta pela sua voracidade e carnificina muitas vezes é o fundamental para nos manter vivos, o medo é essencial para vida, e os nossos antagônicos que nos ameaçam em alguma coisa na vida são os que nos estimulam o crescimento. Assim foi com o menino selvagem, que só conseguiu deixar a selva e a fase inicial dos instintos para seguir com seu crescimento emocional porque encontrou um conflito, que faz sair das águas paradas da psique.

Fonte: Divulgação.

Figura 8 Shanti 

No desfecho do filme, quando Mogli vence o tigre, ele avista Shanti, a linda menina da aldeia, e a etapa da maturidade que permite se relacionar com o feminino, a união, anima e animus, se efetiva.

A imagem agora une, visualizamos um encontro, feminino e masculino e um vaso que pode ser preenchido, um vaso de possibilidades.

Para Alvarenga (2009) para integrar a natureza do feminino, será necessário integrar a Grande Mãe em si mesmo, e aqui encontramos um menino, Mogli e uma menina Shanti, em torno deles notamos a natureza integrada na imagem. Estão unidos por um mesmo objeto que é um vaso aparentemente de barro que pode conter e carregar algumas substâncias. O menino já enfrentou seus desafios, aceitou a queda da ingenuidade, contou com todas as vozes da floresta, porque soube ouvi-las, e encontra-se com o feminino.

A menina com olhar sedutor vestida de rosa traz toda sua feminilidade para o encontro, ela carrega um vaso que simboliza união. Segundo Chevalier (1982, p.931), na cabala o vaso tem o sentido de tesouro, apoderar-se do vaso significa a conquista do tesouro; também diz que o vaso representa o segredo das metamorfoses. E assim se encerra o filme Mogli com o menino aceitando sua metamorfose. Ele pega o vaso de Shanti e carrega para ela, indo em direção à aldeia que representa a socialização e o educar dos instintos, a união do feminino e masculino descrito por Jung (1964) como o arquétipo anima e animus que personificam o princípio feminino no homem e o princípio masculino na mulher, intermediando o inconsciente pessoal com o inconsciente coletivo. Ocorre a união masculino e feminino, a transcendência. Temos a história de um menino, que leva a mãe em sua natureza, que ouve os sussurros dos riscos anunciados pela serpente, que utiliza a visão noturna da pantera quando confrontado com as sombras, que mantém por perto o humor e a leveza do urso conectado na infância, que aceita a voz feroz do tigre que o expulsa do paraíso e que se conecta com seu feminino abrindo um vaso de possibilidades. Um longa metragem que desperta e encoraja o imaginário infantil.

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