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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
Print version ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.37 no.93 São Paulo July 2017
TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS
A relação mãe-bebê na presença e na ausência de sintoma psicofuncional no bebê: um estudo comparativo
The baby-mother relationship in the presence and absence of psychofunctional symptoms in baby: a comparative study
La relación madre-bebé en la presencia y la ausencia de síntoma psicofuncional en el bebé: un estudio comparativo
Patrícia Wolff MüllerI,1; Carolina Coelho PalmaI,2; Luana de Castro FloresI,3; Carine da Silva BudzynII,4; Daniela Centenaro LevandowskiII,5; Tagma Marina Schneider DonelliI,6
IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil
IIUniversidade Fed. de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil
RESUMO
A relação mãe-bebê é fundamental para a constituição psíquica da criança. Quando esta relação não protege o psiquismo incipiente do bebê, ele poderá utilizar o seu sistema somático para expressar uma sobrecarga psíquica, produzindo sintomas psicofuncionais. Este estudo objetivou compreender a relação mãe-bebê na presença e ausência de sintoma psicofuncional (SP) no bebê, por meio de um delineamento de estudo de casos múltiplos. Participaram quatro mães adultas e seus bebês. Foram coletados dados clínicos e sociodemográficos e aplicados a M.I.N.I. Plus, o Symptom Check-List, a Entrevista sobre a Gestação, o Parto e a Experiência da Maternidade e o Interaction Assessment Procedure. Os resultados apontaram que as mães cujos bebês não apresentaram SP não tiveram maiores dificuldades para lidar com as demandas e desafios da maternidade. Em contrapartida, nos casos em que os bebês apresentaram SP, as mães apresentaram sinais de apatia e depressão, experienciaram situações estressantes e demonstraram menor capacidade de resolvê-las. O estudo permitiu uma compreensão mais aprofundada a respeito da relação mãe-bebê e de sua associação com a saúde psíquica do bebê, indicando a importância da intervenção precoce sob essas manifestações.
Palavras-chave: relação mãe-bebê; sintomas psicofuncionais; maternidade.
ABSTRACT
The mother-baby relationship is fundamental to the child's psychological constitution. When this relationship does not protect the baby's incipient psychism, he may use his somatic system to express a psychic overload, producing psychofunctional symptoms. This study aimed to understand the mother-baby relationship in the presence and absence of baby's psychofunctional symptom (PS), through a multiple case study design. Four adult mothers and their babies took part in the study. Clinical and sociodemographic data were collected and M.I.N.I. Plus, Symptom Check-List, Interview on Pregnancy, Childbirth and Motherhood Experience and Interaction Assessment Procedure were apllied to. The results showed that mothers whose babies did not present PS had no greater difficulties in dealing with the demands and challenges of motherhood. On the other hand, when the infants presented PS, the mothers presented signs of apathy and depression, experienced stressful situations and showed less capacity to solve them. The study allowed a deeper understanding of the mother-baby relationship and its association with the baby's psychological health, indicating the importance of early intervention on these manifestations.
Keywords: mother-baby relationship; psychofunctional symptoms; motherhood.
RESUMEN
La relación madre-bebé es fundamental para la constitución psíquica del niño. Cuando esta relación no protege el psiquismo incipiente del bebé, él podrá utilizar su sistema somático para expresar una sobrecarga psíquica, produciendo síntomas psicofuncionales. Este estudio objetivó comprender la relación madre-bebé en la presencia y ausencia de síntoma psicofuncional (SP) en el bebé, a través de un delineamiento de estudio de casos múltiples. Participaron cuatro madres adultas y sus bebés. Se recogieron datos clínicos y sociodemográficos y se aplicaron a M.I.N.I. Además, el Symptom Check-List, la Entrevista sobre la Gestación, el Parto y la Experiencia de la Maternidad y el Interaction Assessment Procedure. Los resultados apuntaron que las madres cuyos bebés no presentaron SP no tuvieron mayores dificultades para lidiar con las demandas y desafíos de la maternidad. En cambio, en los casos en que los bebés presentaron SP, las madres presentaron signos de apatía y depresión, experimentaron situaciones estresantes y demostraron menor capacidad de resolverlas. El estudio permitió una comprensión más profunda de la relación madre-bebé y de su asociación con la salud psíquica del bebé, indicando la importancia de la intervención precoz bajo estas manifestaciones.
Palabras clave: relación madre-bebé; Síntomas psicofuncionales; Maternidad.
Introdução
A gestação não se configura apenas como um período de preparo para a maternidade, mas também como um momento significativo para o estabelecimento do vínculo mãe-bebê (Piccinini, Gomes, Nardi, & Lopes, 2008), o qual poderá ser facilitado pelas expectativas que a mãe apresenta em relação ao seu filho (Piccinini, Gomes, Moreira, & Lopes, 2004).
Com o nascimento do bebê, a mãe experimenta o primeiro contato face a face com seu filho, o que poderá confirmar ou não essas expectativas e anseios cultivados durante a gestação (Brazelton & Cramer, 1992; Lebovici, 1987). Nesta perspectiva, Cramer e Palacio-Espasa (1993) apresentam o conceito de materialização, que indica que, o que antes era apenas uma fantasia ou representação, passa a pertencer à área do real e do atuado. Assim, é necessário que a mulher, agora mãe, possa elaborar o luto de seu estado de gestação e do filho imaginário, perfeito e ideal, para, em seguida fazer o trabalho inverso. Ou seja, ela precisará se despedir da imagem que criou acerca de seu filho imaginário, para dar espaço ao bebê real que acabou de parir.
Esse processo demandará uma alteração na dinâmica psicológica, para que se possa realizar uma reorganização do mundo interno da puérpera (Lebovici, 1987). Assim, a experiência de dar à luz uma criança constitui-se como uma das vivências mais marcantes na vida de uma mulher. O tornar-se mãe é um momento de transição, que pode ocasionar transformações na maneira da mulher perceber e significar a vida (Prinds, Hvidt, Mogensen, & Buus, 2014). Com o advento da maternidade, desejos, novos modos de ação, medos e fantasias se instauram na mulher, assim como ocorre uma reavaliação, por parte da mesma, dos modos de cuidado recebidos da figura materna (Stern, 1997).
Por sua vez, o bebê se encontra em um período de constituição psíquica, necessitando, assim, que o ambiente, tradicionalmente representado pela figura de sua mãe, lhe proporcione condições adequadas de continência, para que possa vivenciar experiências de plenitude e sustentação (Donelli, 2011). Como mencionado, a relação mãe-bebê sofrerá influência da maneira como a mãe estabelecerá ou não um laço simbólico de ligação com seu filho. Desta forma, deve-se atentar ao fato de que o vínculo mãe-bebê não ocorre de forma imediata, mas sim, gradual, à medida que acontecem sucessivas interações entre ambos (Stefanello, 2005).
Nesse contexto relacional, encontram-se envolvidos aspectos comportamentais da interação da dupla, assim como aspectos emocionais e representacionais da mãe sobre o bebê e sobre os seus modos de cuidado,adquiridos transgeracionalmente, entre outros (Batista-Pinto, 2007). É na dependência de todos esses fatores que a relação mãe-bebê pode se desenvolver de maneira harmoniosa, permitindo que o bebê se torne autônomo e organize o seu aparelho psíquico como um todo (Winnicott, 1968/1999).
Entretanto, embora nossa cultura veicule uma idealização da relação mãebebê, com a garantia de um amor incondicional ou natural da mãe para com o filho (Maldonado, 2000), algumas vezes essa relação pode se estabelecer de forma tensa e conflituosa. Nesses casos, o bebê poderá expressar essa inconformidade através de somatizações. Estes sintomas, expressos no corpo da criança, podem servir como sinal de que há algum sofrimento ou dificuldade na relação com a mãe, pois esta provavelmente está falhando na sua função de amparo, ou de anteparo psíquico, isto é, de proteção do psiquismo do bebê (Jerusalinsky & Berlinck, 2008).
De acordo com Pierre Marty (1993), a qualidade das interações entre mãe e filho no período inicial de sua vida possui estreita relação com a organização psicossomática deste. Dentro desta abordagem, entende-se que os conteúdos que ainda não podem ser processados pelo aparelho psíquico do bebê buscarão sua descarga emocional através da via corporal (Edelstein, 2000). Assim, segundo Kreisler (1978), a manifestação somática ocupa um papel importante na psicopatologia do bebê, visto que atinge as suas principais funções, como sono, alimentação, eliminação e respiração. Considerando que o bebê é um sujeito que ainda não brinca e tampouco fala, a manifestação aparece justamente pela produção e organização corporal (Golse, 2004; Jerusalinsky & Berlinck, 2008; Kreisler, 1978). Neste caso, entende-se que é uma patologia principalmente funcional, por meio da qual a criança demonstra sua insatisfação através do corpo. Então, a presença de uma predisposição hereditária à somatização, aliada a situações geradoras de angústia, pode desencadear o surgimento de sintomas psicofuncionais (SP) no recém-nascido (Scalco & Donelli, 2014). Os SP podem ser entendidos como manifestações de origem majoritariamente somática e do comportamento da criança, sem causas orgânicas identificadas, estando aliados a dificuldades na interação pais-bebê, a ponto de serem compreendidos como sintoma de relação, o que evidencia a estreita relação entre o psíquico e o somático (Batista-Pinto, 2004; Robert-Tissot et al., 1989). Como mencionado, tais sintomas podem afetar diferentes funções orgânicas, como por exemplo, sono, alimentação, digestão, respiração, pele e comportamento (Batista-Pinto, 2004; Robert-Tissot et al., 1989).
Nessa perspectiva, Robert-Tissot et al. (1996) realizou estudo sobre psicoterapia com 75 duplas mãe-bebês cuja idade média dos bebês era de 15 meses. Esses autores encontraram como SP mais frequentes os distúrbios do sono, comportamentais e de alimentação. Além disso, evidenciaram que 15% desses sintomas eram derivados da interação pais-criança, envolvendo problemas de apego e ansiedade de separação. Esse estudo também indicou a associação entre presença de SP, depressão da mãe, problemas na interação mãe-bebê e nas representações maternas. No Brasil, a investigação de problemas de desenvolvimento relacionados à primeira infância mostra-se como um campo de pesquisa pouco explorado. Embora, no âmbito da clínica psicanalítica pais-bebê, essa temática seja relevante, a abordagem dos SP em bebês em estudos empíricos no país ainda é escassa.
Recentemente Scalco e Donelli (2014) publicaram um estudo sobre essa temática, no qual investigaram a relação mãe-bebê de um casal de gêmeos cujos bebês apresentaram indicadores de SP aos nove meses de idade. Os resultados desse estudo de caso apontaram a gemelaridade como um dos possíveis fatores predisponentes ao surgimento desses sintomas em fase precoce do desenvolvimento, pois a possibilidade de ocorrência de falhas maternas pode aumentar, devido à dificuldade que a mãe pode encontrar em suprir as necessidades de dois bebês simultaneamente. Ainda, nesse caso, a conflitiva conjugal, associada à falta de apoio paterno, apresentou-se como um fator potencializador no surgimento de falhas maternas, o que predispôs o desenvolvimento de SP nos bebês. Entretanto, o estudo não utilizou uma amostra de comparação, para que se pudesse verificar especificidades da relação mãebebê na presença de SP no bebê.
Assim, o presente estudo tem por objetivo analisar a relação mãe-bebê em díades cujos bebês apresentem ou não SP, visando identificar semelhanças e divergências entre as mesmas em relação a esse aspecto. A escolha desse desenho permite um avanço frente à escassa literatura existente no contexto brasileiro, no qual ainda não são encontrados estudos comparativos. Além disso, um estudo dessa natureza permite identificar díades vulneráveis ao aparecimento desse tipo de sintomatologia infantil, favorecendo o encaminhamento e a elaboração de intervenções de cunho preventivo.
Método
Delineamento e Participantes
Neste estudo utilizou-se uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório, empregando-se um delineamento de estudo de casos múltiplos (Yin, 2015). As díades participantes deste estudo integraram um projeto de pesquisa maior, intitulado "Sintomas Psicofuncionais em Bebês: Mapeamento e Avaliação" (Levandowski, Frizzo, Marin, Lopes, & Donelli, 2012), que teve por objetivo identificar SP em bebês de seis a doze meses de idade, atendidos em instituições de educação e/ou saúde pública, bem como avaliar aspectos emocionais, desenvolvimentais e comportamentais de díades mãe-bebê. Os seguintes critérios de inclusão foram utilizados: (a) bebês: ter idade entre seis e doze meses de vida; (b) mães: ter idade acima de 18 anos. Quanto aos critérios de exclusão, foram adotados os seguintes: (a) bebês: apresentar malformações, síndromes e problemas neurológicos; (b) mães: presença de retardo mental (observado a partir do contato) e outros quadros psicopatológicos severos, tais como esquizofrenia, transtorno de personalidade borderline ou antissocial, regressão psicótica, risco de suicídio e abuso de substâncias químicas, identificados a partir da aplicação do M.I.N.I. Plus (Sheehan et al., 1997).
A partir da análise do banco de dados do estudo maior, foram selecionadas quatro duplas, pareadas de acordo com a idade e o sexo do bebê, a idade gestacional do bebê ao nascer e a idade da mãe, e quanto à presença ou ausência de SP a partir da aplicação do Symptom Check-List (Robert-Tissot et al., 1989). Além disso, as duplas deveriam ter realizado o Interaction Assessment Procedure (IAP; Wiese & Leenders, 2006) e as mães deveriam ter respondido a Entrevista Sobre a Gestação, o Parto e a Experiência da Maternidade (NUDIF, 2003a, 2003b), instrumentos também analisados no presente estudo.
Quatro duplas mãe-bebê integraram o estudo, divididas em dois grupos: Grupo 1 (G1), do qual fizeram parte as duas díades cujos bebês não apresentaram SP (Mãe Marina e Bebê Gustavo, Mãe Clarissa e Bebê Heloísa), e Grupo 2 (G2), cujos bebês apresentaram SP (Mãe Julia e Bebê João, Mãe Andressa e Bebê Milena). Gustavo, sete meses, filho único de Marina (32 anos) e Jonas (33 anos), nasceu de 37 semanas, através de uma cesárea, num hospital privado. No início da gravidez, a mãe teve internação hospitalar por hiperêmese e utilizou medicação para evitar um parto prematuro. No entanto, não fez referência a isso nas entrevistas, tendo sido esta informação obtida através da Ficha de Dados Clínicos. A gravidez foi planejada pelo casal, mas a mãe se surpreendeu com a notícia por achar que demoraria para conceber, tal como aconteceu com sua própria mãe. Apesar disso, Marina avaliou positivamente a gestação naquele momento, embora tenha considero uma gestação difícil, principalmente no início, pois se sentia muito sensível, estressada, passava mal e vomitava. A mãe refere que possui um bom relacionamento com a sua família e com a do marido, tanto que ela e os avós eram os principais cuidadores de Gustavo.
Heloísa, seis meses, filha única de Clarissa (34 anos) e Pedro (33 anos), nasceu com 40 semanas. A gravidez de Heloísa foi muito desejada. O casal iniciou as tentativas de engravidar seis meses antes. Clarissa se sentia frustrada por não conseguir engravidar e achava que podia ter algum tipo de problema. Foi então que descobriu uma infecção uterina. Após o tratamento, engravidou. Ela queria parto normal, mas realizou uma cesárea. Clarissa é a mais nova de três filhas. Seu relacionamento com o próprio pai é distante. Tem como modelo de mãe a sua avó materna e sua irmã mais velha, que são as pessoas que cuidaram dela na infância, porque os pais trabalhavam. Clarissa refere não ter muitas lembranças da sua infância, sente que possui lacunas.
João, seis meses, terceiro filho de Julia (32 anos) e Ricardo (32 anos), tem como irmãos Nicolas (7 anos) e Laís (4 anos), e nasceu de parto normal, com 41 semanas. A gravidez foi planejada pelo casal e ocorreu após um aborto espontâneo no primeiro trimestre da gestação anterior. Apesar de a família ter ficado feliz com a vinda de mais um bebê, Julia conta que no começo a gestação foi bem complicada, tanto física quanto emocionalmente, pois teve muito enjoo, falta de apetite, sentimentos como vontade de morrer e não querer o bebê. Após esse período inicial, passou a ter preocupações e ansiedade em relação a não conseguir ser mãe dele, assim como ocorreu com os outros filhos, e de como seria a rotina com três filhos, se iria dar conta de dar banho, apartar brigas e da alimentação. Julia realizou tratamento medicamentoso para depressão pós-parto. Em termos de relacionamentos familiares, pode-se dizer que a avó materna é bastante presente e auxilia nos cuidados com as crianças. Julia possui um bom relacionamento com a sogra também. No momento da realização da pesquisa, João apresentou SP na área da respiração.
Por fim, Milena, sete meses, filha de Andressa (29 anos) e Otavio (32 anos), nasceu de parto normal às 38 semanas. O casal se conheceu quando Andressa tinha 15 anos, se casaram quando ela tinha 18 e moram junto há 10 anos. A gravidez não foi planejada, o que gerou certo estranhamento inicial ao casal, pois tinham planos de engravidar após terminar a casa que estavam construindo. De qualquer forma, a gestação transcorreu sem intercorrências. Andressa é a mais nova de quatro filhos. Refere que a irmã mais velha foi quem a criou, pois, os pais trabalhavam. A mãe, ao engravidar, parava de trabalhar para cuidar dos filhos, mas como foi a última filha, seus cuidados ficaram a cargo da irmã. Lembra de uma infância com brincadeiras com as amigas e da escola. No momento da pesquisa, Milena apresentou SP na área do sono.
Procedimentos, Instrumentos e Considerações éticas
A pesquisa do qual o estudo deriva foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (CEP/ UFCSPA - N º 14/2012), respeitando, portanto, todos os procedimentos éticos para pesquisa com seres humanos contidos na Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Os nomes dos participantes, bem como as informações que possibilitassem a sua identificação, foram modificados, a fim de preservar a sua privacidade.
Todas as díades participantes foram contatadas por conveniência, por indicação dos serviços de saúde ou instituições de educação dos municípios de Porto Alegre e/ou região metropolitana. Também foi utilizada a rede de contatos das pesquisadoras e de demais membros do grupo de pesquisa, a fim de acessar o maior número de famílias com bebês na faixa etária do estudo maior. Após a indicação, as mães foram convidadas a participar da pesquisa, tendo recebido neste momento explicações sobre os objetivos e os procedimentos. A partir de sua concordância, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e responderam ao Questionário de Dados Sociodemográficos da Família (GIDEP/NUDIF, 2008a), que visou à investigação de dados de caracterização da mãe e de sua família, e a uma Ficha de Dados Clínicos (Donelli, 2011; GIDEP/ NUDIF, 2008b), composta por questões referentes à gestação e ao histórico de doenças na família. Após, foi aplicado o Mini Mental Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I. - Plus), elaborado por Sheehan et al. (1997) e traduzido por Amorim (2000), que é uma entrevista diagnóstica padronizada, que explora 23 categorias diagnósticas do DSM-IV, e o Symptom Check-List -Avaliação dos Transtornos Psicofuncionais da Primeira Infância, elaborado por Robert-Tissot et al. (1989) e traduzido pela Profª Drª Elizabeth Batista Pinto Wiese para o português brasileiro. Trata-se de um instrumento que avalia quantitativa e qualitativamente os SP de crianças com idades entre seis semanas e 30 meses de vida. É composto por 84 perguntas que possibilitam explorar os seguintes aspectos: sono, alimentação, digestão, respiração, pele, alergias, comportamento, medos, separação, utilização de cuidados médicos e mudanças na vida da criança. A aplicação desses instrumentos foi realizada em um único encontro de, aproximadamente, 90 minutos.
Os bebês com a presença ou não de SP, de acordo com o Symptom Check-List, e cujas mães não apresentaram indicadores de psicopatologia grave, como risco de suicídio, transtornos de personalidade borderline ou antissocial, regressão psicótica e abuso de substâncias químicas, segundo a M.I.N.I. Plus, participaram do segundo momento do estudo, para o qual foi assinado um TCLE específico. Nesta etapa, as mães responderam a Entrevista sobre a Gestação, o Parto e a Experiência da Maternidade (NUDIF, 2003a, 2003b) e participaram de uma sessão de filmagem da interação mãe-bebê com atividades previstas pelo protocolo do IAP (Wiese & Leenders, 2006). Esta sessão objetiva a avaliação quantitativa e qualitativa da interação mãe-bebê através das categorias sensibilidade, estruturação, não-intrusividade e não hostilidade - para avaliar o comportamento da mãe, e responsividade e envolvimento -para avaliar o comportamento do bebê. A aplicação das entrevistas e dos demais instrumentos foi realizada no domicílio da família ou em local combinado, conforme a disponibilidade.
Análise dos Dados
Utilizou-se a proposta de estudo de casos múltiplos de Yin (2015) para a análise dos dados. Os relatos dos casos foram construídos de forma individual, integrando-se os resultados derivados dos instrumentos empregados. A Ficha de Dados Clínicos e o Questionário de Dados Sociodemográficos foram utilizadas para caracterizar cada caso. A MINI Plus e o Sympton Check-List foram analisados conforme a orientação de seus autores e serviram para selecionar, bem como caracterizar as díades. Já as entrevistas, após literalmente transcritas, foram lidas e relidas, buscando temas que se destacavam no relato das mães. Por fim, a análise do IAP foi realizada por dois juízes, adotando-se o procedimento de consenso para a classificação dos comportamentos maternos e do bebê com base nas pontuações de cada uma das categorias mencionadas anteriormente. Recorreu-se a um terceiro avaliador quando havia discordância nessa classificação.
Os casos foram organizados para apresentação a partir de quatro eixos temáticos: 1) Experiências anteriores como mãe; 2) Experiência da maternidade; 3) Características do bebê; 4) Experiência da relação mãe-bebê. Após esta etapa, foi realizada a síntese de casos cruzados (Yin, 2015) considerando as duas duplas em que o bebê apresentava SP e em que não apresentava separadamente. Por fim, realizou-se o cruzamento das informações obtidas entre os grupos, analisando-as e interpretando-as a partir do referencial teórico psicanalítico.
Resultados
Em função da limitação de espaço, optou-se por apresentar os resultados da síntese dos casos cruzados, considerando as duas duplas de bebês sem SP e, posteriormente, aquelas constituídas por bebês com SP, a fim de demonstrar convergências e divergências entre os mesmos. Para uma melhor compreensão e análise, a síntese foi elaborada, para os dois grupos, a partir de cada um dos quatro eixos temáticos anteriormente referidos. Após, consta a síntese geral, contrastando os dois grupos de casos, na seção Discussão.
Bebês com ausência de SP
As mães referiram que a gravidez foi planejada, mas que engravidaram mais rápido do que o esperado. Clarissa precisou realizar tratamento para uma infecção e, logo em seguida, engravidou. Sentiu-se realizada com a gravidez, que transcorreu sem intercorrências, apesar de seu desejo por um parto normal não ter se concretizado. Já Marina teve um início de gravidez conturbado. Relatou se sentir estressada, indignada e com muita raiva do marido: "É muito mais forte eu acho, uma TPM muito piorada. Além de tudo, eu tava sensível".
Sobre as experiências anteriores como filha, Clarissa (mãe de Heloisa) e Marina (mãe de Gustavo) relataram ter tido uma boa infância, durante a qual brincaram bastante. Clarissa referiu não ter muitas lembranças desta época: "O que eu sei da minha infância... eu passei muito mais com a minha avó do que na casa com a minha mãe". Seus pais trabalhavam, enquanto ela e seus irmãos ficavam sob responsabilidade da avó paterna. Foi a partir do momento em que se tornou mãe que começou a saber da sua infância, pois isso fez com que questionasse sua mãe sobre esse período. Por outro lado, Marina apontou sua mãe como a principal responsável por seus cuidados. As duas participantes referiram possuir atualmente um bom relacionamento com suas famílias. No entanto, consideram seu pai como uma pessoa mais distante e reservada.
Marina refere que lidar com o filho é melhor do que imaginava, pois possuía a preocupação de que sua vida social iria acabar após o nascimento ou que não ia saber o que fazer quando o bebê chorasse, o que acabou não acontecendo, aliviando-a. Relatou brincar com Gustavo e passear com ele e o pai, mas percebe que o humor do filho é muito variável, o que faz com que se arrependa de sair de casa algumas vezes. Já Clarissa descreveu a filha como sendo perfeita. Segundo ela, as duas possuem um relacionamento de bastante carinho e uma boa comunicação. No entanto, referiu alguns receios e preocupações em relação à maternidade: "Será que eu ia conseguir amamentar, será que eu ia ter paciência, se eu não ia perder minha paciência muito fácil, né, porque eu não sou uma pessoa muito pacienciosa".
A partir da experiência da maternidade, Clarissa percebeu que seu relacionamento com os pais mudou. Através desse acontecimento, pôde resgatar a sua história e estabelecer um relacionamento com sua própria mãe, o que não havia sido possível quando era criança. Sobre essas mudanças, referiu: "A minha paciência e minha tolerância com meus pais, com algumas coisas já mudou bastante... alguns valores caíram por terra". Em geral acreditava estar superando as suas expectativas em relação ao desempenho do papel materno. Preocupavase em participar dos cuidados da filha e não delegar a outras pessoas essa responsabilidade. Para isso, precisou abrir mão de algumas coisas, como viagens e passeios com os amigos. Percebeu-se como bastante exigente consigo mesma, mas, ao mesmo tempo, feliz por estar mais tolerante e paciente depois da maternidade.
Mesmo referindo que a experiência de ser mãe estava sendo melhor do que imaginava, Clarissa demonstrou um receio de estar deixando faltar alguma coisa para o bebê, por passar a maior parte do tempo trabalhando e só vê-lo à noite. Procurava, assim, construir seu próprio modelo de maternidade, visando alcançar um equilíbrio: "Tem que sempre achar o meio termo e o meio termo é difícil de encontrar... queria uma criança normal, que gostasse brincar, que não tivesse medo das pessoas, que assim... não que fosse superproteger, sabe?".
Clarissa apresentou um discurso sobre a maternidade rico em detalhes e cheio de emoções. Muitas vezes, chorava de alegria e satisfação ao falar da filha. Marina, no entanto, apresentou um relato mais superficial, no qual se percebe dificuldade em fornecer detalhes da rotina e da vida do filho. Muitas vezes respondia com um "depende" as questões propostas, sem dar respostas concretas. Em alguns momentos, as duas referiram sentir-se sobrecarregadas e cansadas e que, nesses momentos, principalmente, solicitavam ajuda ao pai do bebê.
O terceiro eixo refere-se às características do bebê. Clarissa referiu que Heloísa era "perfeita", pois brincavam juntas e interagiam uma com a outra, em uma relação bastante carinhosa. No entanto, relatou que, em alguns momentos, Heloisa era teimosa como ela. De um modo geral, a bebê foi descrita como uma menina ativa, que gostava de brincar e se relacionava bem com as outras pessoas. Já Gustavo, segundo Marina, era um pouco preguiçoso: "Esses dias tava ele ali, tipo o bico é aqui (mostrando a mamadeira) e ele tentando tomar, sabe? Mas tipo, se tu tá ali e fica segurando, ele não pega. Às vezes o bico tá ali, cai e ele não pega". Marina também referiu dificuldades para sair para passear, pois o bebê chorava e logo queria voltar para casa. No entanto, ela e Gustavo pareciam se satisfazer com a brincadeira preferida do menino, que envolvia a mãe se esconder e, depois, aparecer. Segundo a mãe, Gustavo diverte-se muito e, para ela, esse era um momento em que percebe o desenvolvimento do filho.
Sobre a experiência da relação mãe-bebê, nota-se que a comunicação e a preocupação em relação à saúde do bebê foram comuns às duas mães. Como seus filhos não se comunicavam com palavras ainda, as mães possuíam receio de não compreendê-los. Em relação a isso, Clarissa citou a dificuldade de saber se a filha estava com fome e sede, pois não costumava manifestar essas sensações. Já Marina se preocupava em saber se Gustavo poderia estar doente.
Na análise do IAP, as duplas tiveram resultado semelhante em relação à sensibilidade materna, pontuada como boa, a estrutura excelente, a responsividade moderada e também comportamento não hostil com seus bebês. Portanto, pode-se considerar que estas mães possuíam uma boa interação com seus filhos no momento da pesquisa.
Bebês com presença de SP
Para Júlia, a gravidez de João foi a sua quarta gestação, e ocorreu após uma perda gestacional na terceira gestação. Assim, foi uma gravidez planejada e a notícia foi comemorada pela família, em especial pelos outros dois filhos. No início da gestação, entretanto, ela disse ter vivido momentos difíceis, tanto em termos físicos quanto emocionais, apresentando sintomas de depressão, enjoos e ideação suicida (desejo de morrer e não ter o filho). Possuía receio de não conseguir lidar com uma nova gestação, e o conflito de, ao mesmo tempo, querer e não querer ter o bebê. Tinha medo também quanto ao risco de o bebê ser mais dependente, ou ter algum problema emocional, por conta de seu estado no início da gravidez. Julia e o marido uniram esforços para superar esta fase: "O Ricardo me ajudou de todas as maneiras possíveis, trazia coisas para eu comer e me encorajava, dizendo que aquela situação iria passar". Depois que passaram os enjoos e a falta de apetite, Júlia conta que sua alimentação melhorou bastante e correu tudo bem até o fim da gestação.
No caso de Andressa, a gravidez de Milena aconteceu em um momento não planejado, porém, a participante relatou ter aproveitado e curtido a gravidez. Segundo ela, estava vivendo uma fase boa com seu parceiro, embora ele tenha apresentado resistência, evitando falar sobre a gestação. Referiu também não ter tido muitas preocupações durante a gravidez; estas surgiram somente com o nascimento de Milena. Durante a gestação, não apresentou complicações físicas, mas ficou emocionalmente mais sensível.
Quanto às experiências anteriores como filha, as duas mães relataram uma infância tranquila, com brincadeiras e atividades adequadas às suas idades. Andressa (mãe de Milena) referiu não ter muitas memórias de sua infância, mas sabia que teve conforto e ajudava a mãe a cuidar dos irmãos, bem como recebeu cuidados de sua irmã: "Minha mãe engravidou com 15 dessa minha irmã mais velha, daí ela ajudou a cuidar dos irmãos". Andressa conta que, durante sua infância, os pais possuíam um atelier de calçados e, quando a mãe engravidava, tinha que parar de trabalhar. Quando ela nasceu, os seus cuidados foram exercidos também pela irmã mais velha, por quem tem bastante afeto e recordações.
Já Júlia (mãe de João) pontuou o que considerava importante sobre o seu nascimento: "Minha mãe era muito velha para ter parto normal, e teve que fazer uma cesárea". Também contou que, durante a infância, foi uma criança tranquila, que mamou até o primeiro ano de vida. Quanto aos cuidados recebidos, Júlia relatou ter sido cuidada pela mãe ou por empregadas domésticas, em geral senhoras. Também relatou que, embora possuísse um bom relacionamento com todos os familiares, o pai havia sido muito rígido durante a sua adolescência.
Ao descrever a experiência da maternidade, Andressa conta sobre um estranhamento inicial com a filha. Segundo ela, demorou para compreender que seria mãe e que aquele bebê era sua filha e dependeria dela para tudo. De acordo com seu relato, "Foi bem estranho, porque, quando ela nasceu, o médico colocou ela em cima de mim e eu olhava pra ela e parecia que ela não era minha. Daí ela foi pro quarto comigo e eu olhava ela na caminha, parecia que era mentira aquilo ainda". Júlia, por outro lado, nesse primeiro contato com João, referiu um sentimento de plenitude e felicidade, para além do que havia imaginado, pois os filhos e o marido estiveram presentes no momento do parto. De toda forma, os dois bebês passaram os primeiros dias bem e mamaram após o nascimento.
Quanto à rotina com os filhos, as duas mães cuidavam dos bebês em tempo integral, enquanto os pais se responsabilizavam pelo sustento financeiro da família. Tanto Andressa como Júlia destacaram o cônjuge como alguém que ajudava na rotina com os filhos, mas não com quem pudessem dividir as tarefas diárias. Andressa afirmou ter vivenciado muitas mudanças após o nascimento de Milena, pois deixou de se arrumar, de ser vaidosa e, além disso, não tinha mais tempo para nada, por estar sempre cuidando da filha. Júlia também referiu um sentimento de esgotamento, mas, ao mesmo tempo, considerava-se privilegiada, por poder passar mais tempo com os filhos. Ela destacou, em sua entrevista, a sensação de poder ser mãe e vivenciar a maternidade: "ter como amamentar e poder ter a oportunidade de cuidar dele de perto, porque eu sei que muitas mulheres não têm essa oportunidade, voltam a trabalhar assim, mais seguido. Isso pra mim é gratificante, poder acompanhar ele de perto, mesmo alguns dias sendo mais cansativos que outros, mas pra mim é muito gratificante". Além disso, Júlia declarou ter planos de voltar a trabalhar quando João completasse um ano de idade.
No que se refere às características dos bebês, as duas descreveram os filhos como calmos e tranquilos. Porém, Júlia colocou que, quando João não recebe o colo ou as coisas que deseja na hora, se irrita. O bebê era parecido com o que ela imaginava, porém, não esperava que ele fosse tão "gritão", ao ponto de expressar as coisas aos berros. Já segundo Andressa, a filha é curiosa, querida e costuma brigar somente quando está com fome. Os dois bebês costumavam brincar e ser amamentados pelas mães. Conforme o relato de Júlia, João costumava brincar de bater palminhas e atirar e receber os brinquedos de volta.
Ao falar da experiência da relação mãe e bebê, verificou-se que ambas as mães cuidavam de seus filhos em casa. Os casais optaram por não colocar os bebês em creches, seja por não confiarem que alguém poderia cuidá-los tão bem quanto as próprias mães cuidavam, seja por recomendação médica, como no caso de Milena, em que o médico sugeriu que seria melhor para a criança ser cuidada em casa, com a mãe, até os dois anos de idade. Assim, Andressa permanecia mais tempo com a filha e acabava por desempenhar as tarefas de cuidado praticamente sozinha, embora o pai da menina sempre brincasse com ela ao chegar do trabalho. Andressa avaliou entender bem as necessidades da filha, ao contrário do pai, que não reconhecia o que a menina queria quando balbuciava. Além disso, "Às vezes ele (o pai) brinca até ela ficar braba e não querer mais brincar e isso me incomoda. Ele acha graça de ver ela braba e eu não gosto e acabo evitando deixar com ele. Às vezes ele está aqui e levo ela junto para o banho, para evitar deixar com ele".
Júlia também percebia os sinais de João, o que ele necessitava, através da sua expressão corporal (fome, sono, alimentação). Quando o bebê chorava mais, ela se angustiava e tomava, como primeira medida, a amamentação, relatando que mamar é o que mais agradava o filho quando estava com ela. As duas citaram preocupar-se quando deixavam o filho com outra pessoa ou quando pensavam no período em que ele deverá ir para a creche. Esta preocupação se mostrou clara na fala de Andressa: "Minha preocupação é dela chorar, de eu deixar ela com as pessoas e ela achar que eu não vou voltar". As duas associaram esta preocupação também a momentos em que o bebê pudesse adoecer. Júlia estava acostumando-se a lidar com suas angústias e ansiedades, pois, na ocasião da entrevista, estava terminando um tratamento medicamentoso para depressão pós-parto.
Na análise do IAP, as duplas apresentaram alguns resultados semelhantes entre si, sendo eles: boa sensibilidade materna, mas uma estrutura inconsistente por parte das mães na hora do brincar, com comportamento parcialmente intrusivo, e envolvimento moderado do bebê nesta interação. O comportamento parcialmente intrusivo de Andressa durante a brincadeira inibiu em alguns momentos os gestos do bebê, não deixando lugar para ele responder quando colocado à cena do brincar. Ao mesmo tempo em que perguntava-lhe algo, respondia-lhe como devia proceder com determinado brinquedo. Júlia, ao brincar com João, deixava o bebê mais livre e, quando este não respondia ao que ela lhe pedia na brincadeira, também não era exigido, não demonstrando possuir limites claros estabelecidos durante a interação.
Discussão
Como resultado da síntese de casos cruzados, serão apresentadas as semelhanças e diferenças identificadas entre os casos, considerando as duas díades cujos bebês apresentam SP e as duas díades cujos bebês não apresentam. O intuito dessa comparação entre os casos dos dois grupos não visa buscar uma relação de causa e efeito entre a qualidade da relação mãe/ bebê estabelecida e a existência ou não de SP nos bebê, mas sim realizar algumas inferências e estabelecer algumas relações entre os aspectos abordados no estudo.
Quanto ao eixo experiências anteriores como filha, em relação à sua infância, todas as mães relataram ter tido uma boa infância com muitas brincadeiras e lembranças. Os pais ou a irmã mais velha eram os principais cuidadores. Andressa e Clarissa referiram não ter muitas lembranças de quando eram criança. Ambas foram criadas principalmente pela irmã mais velha. Através da maternidade, Clarissa passou a construir a sua história, que considerava com muitas lacunas. Todas as mães possuem um bom relacionamento com suas mães, embora com seus pais tenha sido percebido um distanciamento. Percebe-se que a reaproximação de Clarissa com a própria mãe é um fato comum na transição para a maternidade, devido à revivência da história de identificações com a figura materna (Brazelton & Cramer, 1992; Lopes, Prochnow & Piccinini, 2010).
Quanto ao eixo expectativas em relação à maternidade e ao bebê, entendese que apenas Andressa não teve uma gestação planejada. Observou-se que as mães apresentaram dúvidas e dificuldades que podem ser consideradas esperadas em mulheres que vivenciam a maternidade. Apenas Júlia não era mãe primípara. É comum mães demonstrarem, nos primeiros meses após o nascimento, preocupações em relação ao desenvolvimento do bebê relacionadas ao sentimento materno de ser inadequada e de não ser suficientemente protetora (Stern, 1997). Essas também podem estar associadas à primiparidade, pelas mães não terem enfrentado algo semelhante em suas vidas, e se sentirem diretamente responsáveis pelo cuidado do bebê (Kreutz, 2001).
O início da relação mãe-bebê é anterior à concepção, pautando-se nas vivências primitivas da mãe. Entretanto, é no período gestacional que a mulher irá experienciar diversas mudanças, tanto físicas quanto psíquicas, que irão caracterizar esta fase como um momento complexo e de fundamental importância para a formação do vínculo da díade. Trata-se de uma experiência repleta de sentimentos intensos, variados e ambivalentes, que pode dar vazão a conteúdos inconscientes da mãe. Assim, as interações que se estabelecem desde a gestação estão na base da relação mãe-bebê posterior ao nascimento (Brazelton & Cramer, 1992; Caron, 2000; Klaus & Kennel, 1993; Soifer, 1992). Piccinini et al. (2008) referem que a gestação pode estar associada não somente a alterações biológicas e somáticas, mas sim a mudanças psicológicas e sociais que irão influenciar a dinâmica psíquica e relacional da gestante. Essas mudanças incidem diretamente em como essa mulher irá constituir a maternidade e a relação mãe-bebê. Para os autores, essas transformações são necessárias para que haja uma constituição do espaço psíquico do bebê. Esse movimento é de extrema importância, pois segundo Donelli (2011), para que o bebê se desenvolva e alcance a independência, os relacionamentos iniciais são fundamentais, pois é através do outro que ele irá se relacionar com o mundo e com si mesmo e assim poderá passar de um estado de total dependência para um estado de dependência parcial ou relativa, até que alcance a independência. Esses achados da literatura confirmam o que as participantes referiram. durante a gestação, algumas angústias corriqueiras, como não saber o que fazer com o bebê, não saber o que está acontecendo, mudanças na rotina, e questões relacionadas à comunicação do bebê que, nesta fase, é não-verbal. Júlia, uma mãe que já tinha dois filhos, tinha como principal preocupação a demanda de um cotidiano com mais um filho; assim, não sabia se conseguiria dar conta do bebê e dos filhos mais velhos. Andressa referiu estranhamento no pós-parto imediato, quando percebeu que a filha seria totalmente dependente dela.
Em relação à experiência da maternidade, verifica-se que tanto Andressa como Júlia tiveram um início de gestação marcado por algumas dificuldades em lidar com aspectos emocionais envolvidos nessa fase. Júlia apresentou sintomas depressivos e ideação suicida. Muitos estudos investigam as possíveis repercussões da depressão materna no bebê (Frizzo & Piccinini, 2005; Guidolin & Célia, 2011; Ramos & Furtado, 2007; Schwengber & Piccinini, 2005), salientando que o estado depressivo pode repercutir de maneira negativa na relação mãe-bebê e interferir também no desenvolvimento afetivo, cognitivo e social do bebê, o que pode explicar o aparecimento de SP.
O nascimento de um bebê, implica em adaptação à uma nova vida, que inclui muitas variáveis, por exemplo, as demandas do bebê, uma interação conjugal que passa a envolver um terceiro membro e a vida profissional e social com a presença de um ser que depende dela (Rapoport & Piccinini, 2006). A mulher vem ocupando espaços sociais, e a família vêm se reorganizando. De acordo com Beltrame e Donelli (2012), ao final da licença maternidade, a mulher se depara com a decisão de retornar ao trabalho ou permanecer em casa cuidado do filho. Nesse contexto, segundo as autoras, as redes de apoio são uma das formas encontradas pela família na busca de cuidado aos seus filhos. Essa realidade é descrita pelas mães dos bebês sem sintoma, as quais decidiram por retornar ao trabalho após o nascimento do bebê e delegaram aos avós ou à escola os cuidados durante sua ausência. No entanto, conciliar trabalho profissional e maternidade pode gerar tensões, pois as concepções a respeito deste âmbito fazem com que as mães criem estratégias nesses dois ambientes para conciliar os múltiplos papéis (Beltrame & Donelli, 2012). Marina, expressa claramente esse conflito, pois sente aliviada ao perceber que a vida não acabou, mas também se culpa por ter a impressão de que pode estar falhando por trabalhar. Já as mães de bebês com SP optaram por não trabalhar e se dedicar ao filho, referindo que muitas vezes esse convívio, embora gratificante, também é exaustivo.
Observou-se o envolvimento afetivo das mães com seus bebês, embora também um certo receio de falhar em alguns momentos. Müller (2009) aponta que, muitas vezes, frustração de não serem pais ideais para uma criança ideal. Nesse sentido, sentimentos de culpa e de falha podem ser intensos. A impossibilidade de perfeição materna, foi apontada por Winnicott (1956/2000), ao postular o conceito de mãe suficientemente boa. Para o autor, é essencial que a mãe mostre flexibilidade para acompanhar o bebê em suas necessidades, desenvolvendo, com isso, a autonomia e maturidade do mesmo. Assim, mesmo falhando na satisfação de suas necessidades, as mães podem ser bem sucedidas e evitar que o bebê se sinta desamparado.
Andressa referiu a dificuldade do marido em aceitar a gestação, relatando que o mesmo demorou meses para falar sobre este assunto. Além disso, sentiu um estranhamento no primeiro contato com Milena, referindo certa dificuldade de aceitá-la e identificá-la como sua filha. De acordo com Piccinini et al. (2004), o envolvimento paterno pode variar bastante ao longo da gestação, de acordo com o desenvolvimento do bebê e das características de cada pai. Existe uma vasta literatura indicando que o envolvimento do pai na gestação parece ter importantes implicações para o desenvolvimento das primeiras relações paibebê (Brazelton & Cramer, 1992) e mãe-bebê (Brazelton, 1988; Winnicott, 1965/ 1982). Para Stern (1997), o pai do bebê desempenharia um papel protetivo da mãe, provendo suas necessidades e, por algum tempo, afastando-a das exigências externas, para que possa se dedicar ao desenvolvimento do bebê. Gabriel e Dias (2011) refletem acerca das percepções dos pais ao se tornarem pai. Para as autoras, essa nova função pode ser experienciada pelo homem de várias maneiras, como um momento de novos significados, transformações e responsabilidades ou até como um movimento de reavaliação dos valores e da criação tida pelos seus próprios pais.
Em relação às características do bebê, as mães apontaram características emocionais particulares, demonstrando conhecer seus filhos/as. Essas representações maternas sobre o bebê se encontram interligadas aos aspectos comportamentais da interação e aos aspectos emocionais e representacionais maternos sobre os seus modos de cuidado, entre outros (Batista-Pinto, 2007), as quais exercem influência na qualidade do relacionamento estabelecido com os bebês.
Quanto à experiência da relação mãe-bebê, pode-se perceber que Clarissa e Marina se encontravam em um momento de construção do processo de comunicação verbal com seus filhos, visto que estes ainda não verbalizam suas vontades e desejos, o que gera certa ansiedade e angústia nas mães, que buscam compreendê-los através de suas manifestações não verbais. Esse dado está de acordo com os resultados encontrados no estudo de Seidl-de-Moura, Ribas, Seabra, Pessôa, Ribas Jr. e Nogueira (2004) em que constataram que a natureza das interações entre mãe e bebê em um período tão precoce do desenvolvimento apresenta peculiaridades, como as limitações do repertório de comportamentos do bebê, da própria mãe, na medida em que ela seleciona os meios pelos quais interage com o bebê de acordo com o repertório do bebê, e também dos contextos específicos de troca.
A análise da interação mãe-bebê e, mais especificamente, da forma como o bebê e sua mãe se comunicam, é de suma importância, visto que a díade vivencia constantemente um processo bidirecional, por meio do qual a mãe tenta se adaptar ao mundo subjetivo da criança. O intuito desta adaptação é dar à criança um suprimento básico da experiência de onipotência. Esta experiência é importante para a criança introduzir os princípios da realidade e também experimentar as reações às frustrações, possibilitando que se dê continuidade à existência do self em um ambiente seguro (Winnicott, 1989/1967). Para Batista-Pinto (2007), as bases da subjetividade da criança são construídas através dos primeiros vínculos. Sendo assim, os distúrbios psicofuncionais e psicopatologias podem indicar dificuldades na interação com os pais. A partir da avaliação do IAP, constatou-se semelhanças nas duplas Marina/Gustavo e Clarissa/Heloisa em relação à boa sensibilidade, excelente estrutura, não hostilidade das mães e responsividade moderada dos bebês. Clarissa e a filha mostraram ter um relacionamento de carinho, com boa comunicação e uma boa interação. Já Marina se empenhava em ser uma mãe próxima à perfeição, apesar das dificuldades em verbalizar e definir alguns detalhes da vida do filho. No entanto, Gustavo mostrava-se seguro com a mãe. Já em relação aos dois casos de bebês com SP, verificou-se que as duplas tiveram momentos de boa sensibilidade durante a interação. No entanto, a estrutura foi avaliada como inconsistente, o comportamento da mãe como parcialmente intrusivo e o envolvimento foi considerado como moderado. Levando em consideração a avaliação da interação através do IAP, as duplas com bebês sem SP tiveram resultados mais positivos, principalmente na categoria estrutura. Andressa e Milena nas categorias estrutura, responsividade e não-hostilidade obtiveram um desempenho pior.
Ressalta-se a importância de desenvolver uma maior compreensão e análise acerca dos sintomas apresentados pelos bebês. De acordo com o resultado do Symptom Check-List (Robert-Tissot et al., 1989), João apresentou sintomas na área respiratória, enquanto que Milena apresentou sintoma na parte do sono. Os transtornos respiratórios, de acordo com a maioria dos estudos realizados, não foca os primeiros meses de vida da criança, o que reforça a necessidade de mais pesquisas nesta área, a fim de compreender em maior profundidade os fenômenos clínicos da primeira infância (Borba & Sarti, 2005; Goulart & Sperb, 2003). Contudo, o estudo realizado por Oliveira e Lopes (2002) acerca dos fenômenos psicossomáticos, em especial a asma, com cinco duplas mãe-bebê, constatou que a angústia materna pode refletir na dupla, sendo a asma compreendida como a própria angústia manifestada no corpo da criança. Além disso, as mães destas crianças pareciam ser menos interpretativas e mais descritivas na leitura das manifestações dos seus filhos, o que evidenciava que, quanto menor o nível de simbolização materno, mais graves poderiam ser as manifestações somáticas de seus bebês. Lopes, Jansen, Quevedo, Vanila, Silva e Pinheiro (2010) investigaram a associação entre depressão pós-parto e alterações no sono de bebês com 12 meses de vida. As mulheres participantes realizaram o acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), nas unidades básicas de saúde do município de Pelotas, e que tiveram seus partos a partir de junho/2006. Os bebês de 12 meses oriundos dessa gestação também fazem parte da amostra. Para avaliar a presença de sintomas depressivos nas mães, foi utilizada a Edinburgh Postnatal Depression Scale (EPDS) e foram investigados os seguintes comportamentos do sono dos bebês: horas de sono por dia, regularidade do horário para dormir e acordar, sono agitado e despertar noturno. Dentre os bebês cujas mães apresentavam depressão pós-parto (N=409), 35,7% apresentavam alterações no padrão do sono, o que confirmou que associação entre a sintomatologia depressiva da mãe e os sintomas apresentados pelo bebê.
Considerações Finais
Este estudo objetivou compreender a relação mãe-bebê na presença e ausência de SP no bebê, por meio de um delineamento de estudo de casos múltiplos, do qual participaram quatro mães adultas e seus bebês. Foi possível perceber que a experiência da maternidade costuma ser acompanhada de dificuldades e desafios, tanto para os genitores, como para os bebês. No entanto, sabe-se que, de acordo com a maneira como o indivíduo lida com as adversidades, estas poderão exercer ou não uma considerável influência em suas vidas e na vida de quem os cerca.
Nos casos analisados, nota-se que as duplas mãe-bebê cujos bebês não apresentavam SP não tiveram maiores dificuldades para lidar com os desafios de conciliar trabalho e maternidade. Em contrapartida, nos casos em que os bebês apresentaram SP, as mães apresentaram sinais de apatia e depressão, o que pode sugerir uma possível relação com as manifestações somáticas dos filhos. Talvez isto esteja associado ao fato de que Julia e Andressa considerarem a dedicação exclusiva à maternidade gratificante, mas também exaustiva.
Sendo assim, diante do estudo realizado, evidencia-se a relevância de se estudar os diversos aspectos envolvidos na trama que compõe a relação mãebebê. Deve-se, portanto, atentar ao caráter preventivo que esta relação ocupa, em um momento tão singular da vida da criança, no qual a sua estruturação psíquica ainda se encontra em formação e depende diretamente da qualidade da relação que será estabelecida com as figuras parentais.
A partir dos resultados desta pesquisa, verifica-se a necessidade de novos estudos, a fim de que se possa compreender outros aspectos que poderão estar implicados na sintomatologia da criança, para além das dificuldades maternas aqui identificadas. Assim, considera-se de suma importância analisar em maior profundidade a implicação da presença do pai e de outros familiares junto ao recém-nascido, o que se constitui em uma limitação do presente estudo. Investigações como essa poderiam propor novas reflexões acerca da temática em questão, para que se possa, cada vez mais, aprimorar as intervenções na clínica com o bebê.
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Recebido: 27/10/2017 / Corrigido: 09/11/2017 / Aprovado: 09/11/2017.
1 Psicóloga, Especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica pelo CELG, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. End.: Rua Carlos Barbosa, 80/ 303-B. Centro, Sapiranga, RS- Brasil. CEP: 93800-096. Tel.: (51) 999115285. E-mail: patriciawmuller@gmail.com
2 Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica Junguiana, pelo IJRS. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. End.: Rua Dr. Eduardo Chartier, 1151/303, Passo d´Areia, CEP: 90520-100. Porto Alegre, RS - Brasil. Tel.: (51) 999304039. E-mail: carolpalms@yahoo.com.br
3 Acadêmica de Psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. End.: Av. Boqueirão 2341, Bairro Estância Velha, CEP: 92032-420 - Canoas, RS - Brasil. Tel.: (51) 997555581. Email: luanacflores@gmail.com.
4 Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Residente em Saúde da Criança pelo Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RIMS/HCPA). End.: Rua Lajeado, 921, Niterói, Canoas, RS. CEP: 92120-090. Tel.: (51) 992256656. E-mail: cbudzyn@hotmail.com
5 Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS, com Pós-Doutorado em Psicologia pela PUCRS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde e em Ciências da Saúde da UFCSPA. Bolsista Produtividade do CNPq. End.: UFCSPA. Rua Sarmento Leite, 245 Sala 207. Bairro: Farroupilha. Porto Alegre, RS. Brasil. CEP: 90050-150. Tel.: (51) 33038826. E-mail: danielal@ufcspa.edu.br
6 Psicóloga, especialista em Psicologia Hospitalar, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Doutora em Psicologia pela UFRGS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica Universidade do Vale do Rio dos Sinos. End: Av. Unisinos, 950 -Área da Saúde, sala 2A110. Bairro Cristo -CEP: 93022-000 -São Leopoldo, RS - Brasil. Tel. (51) 35911122 Ramal: 2208. E-mail: tagmapsi@gmail.com