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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.8 no.14 São Paulo June 2003

 

DOSSIÊ

 

A ortografia e as formações do inconsciente: Novas considerações sobre a instâcia da letra1

 

 

Orthography and the formations of the unconscious: New considerations on the instance of the letter

 

 

Alfredo Jerusalinsky*

 

*Psicanalista, membro da APPOA, da Associação Paulista de Estudos Psicanalíticos e da Association Freudienne Internationale.

 


RESUMO

Neste trabalho o autor propõe, a partir de exemplos, como o uso do acento nas palavras, apontar a ortografia como reveladora disso que Lacan chamou instância da letra no inconsciente. Por um lado, temos a estrutura mesma da linguagem, que determina a posição do significante em função da sintaxe, por outro, temos a posição do significante na ordem da alíngua, ou seja, na versão singular que da linguagem caracteriza a posição de um sujeito.

Palavras Chave: Ortografia, Formações do inconsciente, instância da letra.


ABSTRACT: In this work the author suggests, based on some examples, as the use of accents on words, that orthography reveals what Lacan called the instance of the letter in the unconscious. On the one hand, there is the structure of the language itself, that determines the significant's position according to syntax, on the other hand, there is the significant's position in the order of lalangue, i.e. , in the singular version of the language that characterizes the position of a subject.

Keywords: Ortography, Formations of the unconscious, Instance of the letter.


 

 

Hoje vamos tratar de ortografia. É um tema que vai nos permitir em algum momento retornar ao tema da letra. A palavra MÁS, em espanhol, quando tem acento, quer dizer: em acréscimo, mais, que algo se agrega. MAS, quando não tem acento, quer dizer: embora ou, em espanhol, pero. MAS tem o sentido de em subtração ou em negativa recíproca: "Tal coisa pero não tanto". Em português poderia ser porém.

Vejam só que curioso: o acento na palavra MÁS tem, ele mesmo, a posição de um significante. É como se tivéssemos:

MAS

S1 S2

après-coup

É no après-coup que podemos saber o que esse MÁS está querendo dizer. O que quer dizer que o acento, que não se pronuncia, e que somente se dá a ver, tem um efeito sobre o fonema que faz morfema da língua. Na escrita, é passando pelo olho do Outro que se faz a função significante. Estou dizendo isso porque o que aparece na parte de baixo desse esquema é o significado. Podemos afirmar, então, que nesse esquema encontramos três andares:

1 - O do olhar.

2 - A posição significante.

3 - E o significado.

Aqui vemos que o morfema da língua não faz significante de um modo direto, ou seja, poderíamos dizer que não se constitui como significante senão através do olhar do Outro.

Se eu digo a palavra mas e pergunto o que ela quer dizer, não é possível saber, pois ela não se constitui significante, porque não tem outro depois, ou seja, ela não entra numa série. Então vocês teriam que me perguntar: "Mas em que posição na série ela está?" Ou então: "Tem acento ou não tem acento?" O que é o mesmo que me perguntar em que posição na série ela está. Porque, se ela não tem acento, já sabemos que ele está num lugar na série em que ela faz negação de algo que a precede. Se ela tem acento, ela faz conjunção entre um antecedente e um conseqüente, ela soma.

Isto quer dizer que esse acento, na escrita, tem uma posição significante.

Em português, poderíamos tomar o exemplo da palavra tem. A palavra TEM, quando não tem acento, está referida ao singular e, com acento, TÊM faz referência plural. Aqui vemos também uma mudança de significação porque muda o lugar do sujeito do enunciado.

Sandra Pavone: Isso me faz lembrar um seminário em que você pergunta ao público, constituído fundamentalmente por mulheres, o que elas diriam se por acaso lhes perguntassem: "Você diria que no tempo que resta em sua vida cabe homem ou homens?"

Alfredo Jerusalinsky: Sim, este é um outro exemplo em que apenas uma letra, que introduz na série a diferença de plural e singular, pode mudar toda uma significação.

Daniel Revah: Tem também o exemplo de VEM, que no singular, ELE VEM, não tem acento e no plural tem. Penso ainda numa outra diferença que aparece no plural entre os verbos VIR e VER, em que teríamos ELES VÊM no caso de vir e ELES VÊEM no caso de ver.

Alfredo Jerusalinsky: Estamos entendendo, nessa série de exemplos, como significante não é o mesmo que palavra. Ou seja, dentro da mesma palavra pode haver mais do que um significante. No exemplo da palavra MAS, quando ela é dita, temos mais de um significante, apesar de ser uma palavra tão curtinha e aparentemente tão insignificante.

Sandra Pavone: O que você está nos trazendo então é que o significante é uma função que põe termos de uma série em relações, em que uma palavra, um acento ou ainda uma entonação pode ter essa função.

Alfredo Jerusalinsky: Sim. Sabemos, porém, que o acento na escrita nem sempre tem esta posição neutra em relação à prosódia: estou me referindo ao caso em que o acento não muda nada da prosódia. Mas, por enquanto, vamos ficar no exemplo em que temos uma palavra que se pronuncia igual e o acento não muda nada da prosódia, mas está a serviço de contextualizar essa palavra, de modo que lhe seja permitido entrar numa série. Ou seja, o que engata esta palavra numa série significante é o seu acento.

Angela Vorcaro: Como disse um governador quando chega pela primeira vez em suas mãos um texto com as vogais e ele diz "que grande obra seria essa, sem todos esses grãos de coentro salpicados". Estavam, para ele, em excesso. Quem conta essa história é Jean Allouch2.

Alfredo Jerusalinsky: Podemos dizer também o inverso: que a série na qual essa palavra está exige que o acento seja colocado ou que não seja colocado. Ou seja, que, visto desde a palavra mesma ou visto desde as outras palavras que rodeiam essa palavra, o acento produz essa articulação que é consistente porque é deduzível tanto de dentro para fora como de fora para dentro.

O interessante é que essa função é inaudível. Isto quer dizer que ela não tem nada a ver com a ordem da percepção. Ela só entra na ordem da percepção secundariamente, e não primariamente. Entra na ordem da percepção determinada pela função significante.

O que é um sotaque? Um sotaque é um acento fora do lugar na prosódia _ não necessariamente na escrita. Eu, por exemplo, tenho melhor ortografia em português que pronúncia. Não diria que tenho uma ortografia perfeita em português, mas bastante respeitável.

Angela Vorcaro: Você passa por brasileiro ao escrever, não é?

Alfredo Jerusalinsky: Em troca, falando, não passo por brasileiro de jeito nenhum! Apenas quando atendo o telefone e digo "OI!" Até aqui pode ser. Se digo mais uma palavra, já sabem...

É interessante essa questão do sotaque porque a acentuação na prosódia aparece corrigida na orelha do outro pela série em que a palavra está. Quem trabalha com transcrição de aulas deve ter uma experiência muito grande com isso: tem de esperar para ver em que contexto está dita esta palavra para discernir qual é ortografia que lhe corresponde ou, se não muda a ortografia, qual é a prosódia em que foi pronunciada. Por exemplo, em espanhol o "S", o "Z" e o "C" se pronunciam igual, e não existe "SS". É preciso, quando se ouve alguém com sotaque, que põe o acento num lugar indevido, fazer um trabalho de correção da prosódia no seu ouvido, ou seja, fazer deslocar o acento ao lugar certo, para que a palavra encaixe no lugar que ela tem na série. Aqui também vemos como o acento não está primariamente ligado à percepção.

Yone Rafaeli: Então é secundariamente que ele tem valor de significante?

Alfredo Jerusalinsky: Não. Primariamente ele é determinado pela posição significante e secundariamente pela percepção, ou seja, o que faz a correção no ouvido é a posição que a palavra tem na série significante. É o que faz com que o acento escorregue ao lugar certo, ou seja, é em segundo lugar que entra na ordem da percepção, corrige a percepção. Não é que primeiro corrige a percepção e que isso lhe permite saber em que lugar vai a palavra. Ao contrário: primeiro insere a palavra na série e, a partir dessa inserção, é que corrige a percepção.

Geralmente, até onde eu acompanhei os métodos pedagógicos, ensina-se a ortografia totalmente ligada a uma concepção perceptiva da prosódia: "Está", diz a professora, "então, acento no a". "Caminhão", ela diz. "Então, acento no a." É justo um método tal? Se quisermos questionar a pedagogia, evidentemente que não. Porque não é ali que se situa a posição do acento. Se você a situa ali, tem de começar a trabalhar imediatamente com as exceções.

Sandra Pavone: Mas não poderíamos dizer que é secundariamente que a diferença que a professora marca _ "Está, então acento no a" _ chega até a criança? Porque não é a partir do que ela lhe diz que a criança aprende, pois, nesse caso, estamos diante de um sujeito que fala, em que a função de diferenciação já está operando. Alfredo Jerusalinsky : Claro. Afortunadamente, quando a professora faz essa operação, inconscientemente está jogando a estrutura da língua na criança, que corrige no seu ouvido o que a professora tenta convencê-lo de que é o ponto essencial da posição do acento. É como fazer passar na frente dos olhos, em primeiro lugar, algo que já está ocultamente em outro lugar. Porque, se não está em outro lugar, a criança tem um problema ortográfico. Por mais "está" que a professora diga, por mais brincadeira perceptiva que a professora faça, isso não vai fixar a ortografia.

Angela Vorcaro: É nesse sentido que a criança aprende apesar do método.

Alfredo Jerusalinsky: O que quero lhes fazer notar é que entre a percepção e a letra há uma distância, e que essa distância é própria da estrutura da língua. É por isso que em diferentes idiomas a sensação que surge imediatamente, para aquele que se situa como estrangeiro numa língua, é que essa língua estrangeira violenta a percepção na escrita. Poderíamos dizer: "Olha como escrevem os franceses! Tudo errado em relação à percepção". Ou os ingleses. A escrita não corresponde ao som.

Angela Vorcaro: Meu pai diz que espanhol é português errado.

Alfredo Jerusalinsky: Efetivamente... É muito interessante a sua afirmação, porque na Argentina a pronúncia vulgar de certas palavras é exatamente igual à pronúncia correta dessas palavras em português. Por exemplo, buraco em espanhol culto é agujero e em lunfardo, que é uma língua do castelhano vulgar, é buraco.

Julieta Jerusalinsk: Há verbos que as crianças conjugam errado ao falarem em espanhol, tentando fazer o verbo regular, e que seria o modo correto em português. A maneira errada na qual as crianças dizem em espanhol corresponde ao modo correto em português. Por exemplo: elas dizem andó, e não é correto. É anduvo.

Alfredo Jerusalinsky: Daí alguém poderia formular uma teoria, desde o ponto de vista da língua argentina, de que os brasileiros são muito mais infantis! (risos).

Eu referia a palavra MÁS, em que aparece de um modo muito cristalino essa diferença entre a prosódia, a fonética e a função significante do acento. Tal função é essencial para situar essa palavra na série e é consistente o suficiente para poder deduzi-lo de fora para dentro e de dentro para fora e não tem a ver com uma necessária presença, mas sim tem a ver com um jogo de presença-ausência. Justamente porque deve estar quando em certos momentos não está ou não deve estar quando está. Onde vemos que sua escrita, sua presentificação na percepção está determinada, então, desde a função significante, e não desde a função fonética.

Isso esclarece o que quer dizer LETRA no conceito que Lacan nos assinala: algo que não é da ordem da percepção, embora possa entrar secundariamente nela, mas que é da ordem da inscrição da língua, em que, por um lado, temos a estrutura mesma da linguagem, que determina a posição do significante em função da sintaxe, mas temos a posição do significante na ordem da alíngua, ou seja, na versão singular que da linguagem caracteriza a posição de um sujeito. Essa ordem está então determinada pelo particular do ordenamento da série significante nesse sujeito à diferença de qualquer outro. O quanto coincide ou diverge a singularidade da posição do sujeito na língua com a sintaxe está regulado pela particular relação que esse sujeito mantém com o Outro.

Portanto, a ortografia, reveladora por excelência disso que chamamos a instância da letra no inconsciente, não é nem uma função natural da fonética, nem uma função natural da língua e conseqüentemente não é um efeito da percepção, nem tampouco função de uma lógica natural.

Quero com isso apontar que não é na diferenciação fonética que se estabelece, mas pelo contrário é a função fonética que depende da inscrição da língua. Isto se demonstra no sotaque introduzido por um estrangeiro num idioma qualquer _ aí o sotaque manifesta-se como traço unário.

Mais ainda, ela não é uma função natural da língua, que poderia ser pensada como uma lógica inata _ estou falando de Piaget, e nesse ponto Vigotsky tem muito mais razão. Sim, porque Piaget fala de uma lógica natural em que, se a escola não incomodasse demasiado, a criança se desenvolveria bem. É um pouco exagerada essa minha afirmação, mas é mais ou menos isso que podemos encontrar em Problemas de psicologia genética, em que a polêmica com Vigotsky é que este diz exatamente o contrário da lógica da língua: para ele, a transmissão da lógica da língua é social. Isto está num texto dele que se chama Pensamento e linguagem.

Como não é uma função natural da língua, conseqüentemente não é um efeito da percepção, supondo que a percepção seja um procedimento natural. Revela-se, pelo contrário, como a percepção é determinada por uma posição do sujeito na língua, que é anterior a ela. Anterior desde o ponto de vista lógico, não anterior em seqüência cronológica: é condição de.

Tampouco é função de uma lógica natural ou inata, apriorística, que estaria em hipótese contida nos mecanismos adaptativos da espécie (Piaget, 1973a). Neste caso seria o objeto que guiaria o que dele deveria ser dito, marcando então a posição do acento, para que este fizesse encaixar a palavra na posição justa para representar a coisa. Muito pelo contrário, comprovamos aqui a verdadeira medida em que o acento, a ortografia em geral, ela é ponto de articulação, dobradiça importante da posição da palavra enquanto significante3.

A ortografia fica a serviço, então, de escrever um traço que não se escreve, que é o significante que antecede e/ou precede aquele que recebe esse golpe, essa incidência. Apostación é a palavra em espanhol. É uma palavra rara, mas bonita, porque ela quer dizer que é uma incidência, que no entanto não se vê: uma incidência virtual.

Sandra Pavone: O que se vê é o traço, não a incidência, pois esta é a função significante. O traço a representa, mas não o é.

Alfredo Jerusalinsky: Exatamente. Só que, para que o traço possa cumprir a sua função, de inserir a palavra na série significante, ele transita pela instância da letra. Às vezes essa instância manifesta-se de um modo fonético ou prosódico, às vezes não. Em outras manifesta-se na grafia e às vezes não. E o quanto se manifesta ou não depende do caráter necessário com que uma palavra encontra-se atrelada a uma posição fixa na sintaxe. Quando ela tem uma posição completamente fixa na sintaxe não precisa dessa incidência.

Angela Vorcaro: Na sintaxe da língua ou do sujeito?

Alfredo Jerusalinsky: Na sintaxe da língua. É por isso que o sujeito tem de fazer um esforço prosódico, de entonação, apesar da fixidez desse termo na sintaxe da língua, para marcar uma conotação diferente. Vou dar um exemplo em que essa diferença se pode ouvir, mas escrever: Ainda estamos em tempo. A_ i_ n_ d _a estamos em tempo! Na primeira frase o sentido é que ainda dispomos de uma certa comodidade, de um certo espaço temporal, que nos permite ainda desdobrar seja lá o que for. Na segunda frase o que se quer dizer é que se está na iminência, na borda.

Yone Rafaeli: É a entonação que vai dar o sentido?

Alfredo Jerusalinsky: Exatamente. Na segunda frase o que se marca com a entonação é o sentido de que estamos próximos do fim, apresse-se. E isso não se escreve. Esse esforço é porque não dá para mudar a sintaxe da língua. Mesmo que a gente mude a posição da palavra, "Estamos ainda em tempo", a significação não muda. É a entonação que permite mudar a significação. Uma maior iminência seria: "Estamos em tempo a i n d a"4. Assim como Lacan chama atenção sobre as figuras da retórica como lugar de trânsito das formações do inconsciente, podemos aportar que as formações do inconsciente também transitam pela prosódia e acentuação, tendo, então, as suas conseqüências na ortografia. Pelas modalizações5 da negativa (anáfora, sinédoque, pleonasmo, metáfora, metonímia, etc.), ou seja, as representações que são além de, aquém de, em outro lugar de, a inversa de são formas da negativa pela afirmativa, porque não é só esse texto que eu estou dizendo, senão mais alguma coisa ou menos alguma coisa ou em outro lugar de. As figuras da retórica são isso.

O trânsito do inconsciente pelas figuras da retórica passa através de certas formas da negativa. E o trânsito do inconsciente pela prosódia, pela acentuação e, então, pelas figuras da ortografia e da pontuação atravessa a instância da letra no inconsciente. Lembrando que a pontuação é um ponto de articulação entre isto e a retórica, isto é, ela articula a prosódia e a acentuação com a retórica.

É por isso que não parece ser equivalente o procedimento para analisar uma formação do inconsciente que se manifesta na retórica e uma formação do inconsciente que se manifesta na falha ortográfica, no sotaque, na prosódia. Ainda que ambas possam ser consideradas da ordem do lapso, mas não são lapsos que atravessam o mesmo lugar na posição do inconsciente. De um modo geral poderíamos considerar os lapsos da retórica mais próximos à ordem do imaginário, e os lapsos da letra mais próximos à ordem do real. Por isso nas origens da linguagem _ referimo-nos à constituição do sujeito _ encontramo-nos com o grito ou a vocalização fragmentária, sobretudo quando a ordem do imaginário capitula. Vejam a importância clínica que isso pode chegara ter.

Angela Vorcaro - Penso no exemplo de um paciente, que, apesar de não falar, quando vai reclamar de uma interdição, ele repete igualzinho ao que lhe foi dito e fica ali reclamando. Então, se ele está acendendo e apagando a luz, e a mãe diz "não pode", ele fica ali repetindo "não pode, não pode, não pode", chorando, contorcendo-se, mas repetindo o interdito.

Julieta Jerusalinsky - Lembro um outro caso de uma criança que estava funcionando de um modo psicótico e que, quando chegávamos no final da sessão e eu lhe dizia "Bem, agora temos de terminar e podemos continuar outro dia", por vezes ele se agarrava no brinquedo e dizia "outro dia, outro dia, outro dia". Se vamos pela via do enunciado, o que parecia era "sim, outro dia", mas o que ele estava dizendo com sua entonação é que não havia outro dia. Era ou ali ou não era.

Alfredo Jerusalinsky: Como vêem, a prosódia está a serviço de marcar a posição de borda numa posição diferente.

Julieta Jerusalinsky: Justamente o que discutíamos eu e a Angela é que a criança toma esses significantes que vêm do outro e dos quais não podem ainda ali armar uma inversão, mas que aparecem nem que seja num momento inicial... O que vemos é que não é totalmente ecolálico, mas sim que tenta armar alguma posição do sujeito, nem que seja apenas pela entonação que dá.

Angela Vorcaro: Oposição prosódica, e não oposição de significantes. Não opera a inversão da fala do outro, mas a prosódia opera.

Alfredo Jerusalinsky: Exatamente. Ele tenta produzir uma borda, só que muito próximo do real, e ainda sem constituir sequer um imaginário em que possa desdobrar essa posição. Isso tem importância tanto para a clínica dos que já estão instalados na língua, como daqueles que estão brigando para se instalar. Isso também dá elementos para a pedagogia.

Angela Vorcaro: Ou mesmo para a medicina, que considera a ecolalia algo bem estereotipado. Você pode encontrar ali uma diferenciação muito grande.

Alfredo Jerusalinsky: Abre a possibilidade de escutar a ecolalia de um modo singular, e não desde a teoria.

Angela Vorcaro: Tem também o caso de um menino que repete com a mesma prosódia, mas estabelecendo uma segmentação temporal, repetindo aos solavancos. Ou ainda um outro que repete tentando introduzir uma troca de significantes, mas ele repete igualzinho:

-Vamos brincar de cinema?

E ele repete: _ Vamos brincar de... teatro?

Ele faz uma pausa, põe uma outra palavra, mas aquilo não faz função. Muito mais ecolálico esse aqui do que o outro que tenta fazer uma segmentação, mesmo repetindo igualzinho.

Alfredo Jerusalinsky: Claro, ele está fazendo na língua um brinquedo de quebra-cabeça em que os termos já estão definidos a priori. Por que os autistas podem montar quebra-cabeça embora estejam à margem da língua? Porque aí já está tudo feito de antemão, é só fazê-lo encaixar. Ou seja, não se trata de produzir uma significação, mas de fazê-la encaixar. Agora isto me parece da maior importância clínica e surgiu a partir de um caso clínico, que vai ser publicado, da equipe do dr. Mauro Spinelli, em que havia esta problemática da ortografia: A ortografia e as formações do inconsciente: Novas considerações sobre a instância da letra.

Angela Vorcaro: Daqui a pouco a gente vai suprimir todas as letras, todas as palavras e a gente vai ficar só com os acentos, bem lalangue.

Alfredo Jerusalinsky: Bom, no hebraico há letras que são substituídas pelo acento, letras que não se escrevem, mas que se pronunciam pela presença de certos acentos sobre outras letras.

Há pequenos traços que mudam a escritura da letra, se ele se encontra no fim ou no início. Por exemplo, um "n" no final se escreve diferente do que se ele estivesse na metade da palavra. Até mesmo a altura marca posição da letra: há uma linha imaginária, e você tem que escrever em cima ou embaixo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Piaget, J. (1973a). Biologia e conhecimento: ensaio sobre as relações orgânicas entre as regulações orgânicas e os processos cognoscitivos. Petrópolis (RJ): Vozes.        [ Links ]

        [ Links ]

Vigotsky, L. S. (2000). Pensamento e linguagem. São Paulo (SP): Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

NOTAS

1 Supervisão realizada em 20/08/2001 na Divisão de Ensino e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic), da PUC-SP. Transcrição de Sandra Pavone.

2 Jean Allouch cita essa passagem retirada de James Février, em seu Letra a letra: traduzir, transcrever, transliterar. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud, 1995, p. 73. Em Histoire de l'écriture, Paris, Payot, 1995, Février relata a indicação das vogais no árabe, para evitar erros na recitação do Alcorão. Segundo ele, tanto os muçulmanos quanto os judeus dobraram-se mal ao uso dos signos-vogais e que somente por uma razão de ordem religiosa essa repugnância foi superada: "Abd Allãh ibn Tãhir, governador do Khorãsãn em 844-5, recebendo uma missiva cuidadosamente caligrafada e provida de signos-vogais, teria gritado: `Que obra-prima seria essa, sem todos esses grãos de coentro (ou seja, os signos-vogais) que foram salpicados'. Considerava-se uma impolidez `pontuar', ou seja, munir de signos-vogais, uma carta endereçada a uma alta personagem: era colocar em dúvida seu conhecimento da língua escrita. Essa repugnância persistiu, e atualmente ainda a escrita corrente negligencia o indicar os signos-vogais" (pp. 269-70).

3 Aqui o grupo, juntamente com Alfredo, faz um comentário acerca de como o tema induz a explicitações, durante a fala, dos signos não fonéticos nem prosódicos da enunciação. Por isso, o que ele está dizendo vai ficando pontuado, de um modo explícito na sua fala com hífens, vírgulas, aspas, parênteses etc. Ele brinca dizendo que ainda virão as notas de pé de página e de fim do texto... "Vejam só qual é a bússola que tem de ter um sujeito para não se perder na língua! Vejam só com que facilidade pode tomar um rumo qualquer, totalmente equívoco e diferenciado do discurso social!"

4 Nota de transcrição. Por tratar-se da transcrição de uma fala, torna-se difícil escrever o que é da ordem da entonação com o uso de acentos ou sinais. Cabe ressaltar, porém, que é exatamente o que o autor está buscando nos indicar: que há algo que modifica o sentido da frase, mas que apenas pode ser dito, e não escrito.

5 Alfredo Jerusalinsky: Modalização é sistema, alude ao modo.

 

 

Recebido em novembro/2001
Aceito em abril/2002

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