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Estilos da Clinica
Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.8 no.14 São Paulo June 2003
DOSSIÊ
Considerações sobre a letra e a escrita na clínica psicanalíca
Considerations about the letter and the writing in psychoanalytic clinic
Cristine Lacet *
*Psicanalista, mestranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP e psicóloga do Serviço de Psicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
RESUMO
O conceito de letra tem várias acepções na teoria lacaniana, em alguns momentos sendo praticamente identificado à noção de significante e em outros afastando-se dela; ora o conceito é aproximado da determinação simbólica, ora o é da sintaxe, da textualidade, e ora da lógica combinatória. Portanto, quando nos referimos à letra, ocorre perguntar de que letra se trata. Considerando-se a importância do conceito de letra tanto no campo da constituição subjetiva quanto na formação do significante e seus efeitos e uso na clínica, pretende-se neste trabalho trazer uma reflexão sobre estes três aspectos do conceito: a letra e a escrita inconsciente, a letra e a constituição subjetiva e a clínica do literal.
Palavras-chave: Psicanálise, Letra, Escrita.
ABSTRACT
The concept of letter has many meanings in the Lacanian theory. Sometimes it is anderstood as similar to the notion of significant, in other instances it is meant to have a very different meaning. The concept of letter is then approached as one of symbolic determination, or as similar to the concept of syntax, textuality, or combinatory logic. Taking into consideration the importance of the concept on the subjective constitution, on the significant formation and its effects and clinic application. This article intends to reflect about these three aspects of the concept: the letter and the inconscient writing, the letter and the subjective constitution and the literality clinic.
Keywords: Psychoanalysis, Letter, Writing.
LETRA E ESCRITA INCONSCIENTE
E a partir principalmente das considerações de Freud acerca da noção de escrita na Interpretação dos sonhos que Lacan desenvolve conceitos fundamentais em sua obra, como, por exemplo, a noção de letra, que não é cunhada como conceito por Freud, mas utilizada enquanto elemento combinatório na formação dos sonhos. Deste modo, com Lacan, a letra tem seu papel ampliado "para atingir a própria instauração do inconsciente, concomitante à instalação do sistema simbólico e do significante, bem como do surgimento do sujeito propriamente dito (...). É entre duas palavras e entre duas linguagens, que já denunciam na sua unidade distintiva a clivagem do sujeito pela consideração do inconsciente, que a escrita se insere, sobretudo na forma de letra" (Machado, 1998, pp. 105-6).
O esvaziamento de sentido da letra pode ser apontado como ponto fundamental que permite tanto a passagem histórica da letra à escrita, como também a constituição do significante, do traço e do inconsciente sob a forma de apagamento dos restos imaginários do real, permitindo assim o engendramento do sujeito no registro do simbólico, como nos propõe Lacan. E nesse sentido o conceito de letra circula nos três registros.
A noção de letra, que no Seminário XX, Mais, ainda lacan designa como elemento de conjunção, é um fator capital na estruturação do inconsciente a partir da linguagem; há nessa definição de inconsciente uma passagem necessária pela letra, que será posteriormente explicitada.
Alguns esclarecimentos fazem-se necessários no que tange a conceitos que participam dos campos teóricos mais distintos: a linguagem a que se refere Lacan "não se confunde com a linguagem tal como a concebem os lingüistas: contrapartida obrigatória dessa primeira verificação: o significante lacaniano não se confunde com o seu homônimo (e epônimo) saussuriano" (Arrivé, 1994, p. 96). E essa é a pesquisa desenvolvida por Arrivé, cujas principais conclusões são as seguintes: enquanto em Saussure há uma teoria do signo, em Lacan há uma teoria do significante. Para Saussure, trata-se de um significante que estabelece uma relação de dualidade com o significado, em que os dois delimitam-se reciprocamente, como em sua famosa analogia com a folha de papel, da qual não se pode cortar o anverso sem se cortar o reverso ao mesmo tempo; para Lacan, a relação entre significante e significado é de duplicidade, na qual o significante tem autonomia em relação ao significado, ou seja, no sentido diacrônico, com o tempo se produzem deslizamentos, modificando o conteúdo do significante a partir da evolução histórica das significações humanas. Lacan homologa linearidade e diacronia: "Colocar o princípio de linearidade é dizer que falar toma tempo: põe-se um significante depois do outro e se recomeça. E, se a gente fizesse isso ininterruptamente durante alguns séculos, por certo traria algumas modificações na própria língua. Sim. Mas é fato que Saussure, aparentemente, não estabelece explicitamente essa relação entre linearidade e diacronia: a linearidade - que, é preciso lembrar, só afeta o significante - é, para ele, de natureza sincrônica. Não para Lacan" (Arrivé, 1994, p. 101).
Segundo Ritvo (2000), a letra, aqui considerada como traço significante no corpo, é o conceito que permite a distinção entre o significante lingüístico e o significante psicanalítico, no que introduz o efeito de rasura, de apagamento, de desaparecimento.
A letra teria como propriedades ser diferente de tudo o que a rodeia (propriedade esta compartilhada pela lingüística estrutural) e ser diferente dela mesma. Numa referência ao Seminário IV. A relação de objeto, Ritvo sugere que a letra esteja do lado da privação. "Privação dessa metade do sujeito com a qual nunca se contou - aí está o paradoxo. Não é que se tenha partido em duas metades, uma perdida e outra ganha, mas sim que a ganha nunca existiu" (2000, p. 13).
Na concepção comum a letra A é diferente de si porque nunca a repito de modo idêntico. Para a psicanálise é como se houvesse um A anterior ao A não pronunciado e inexistente que apontasse para a privação na origem. A letra está associada ao problema estrutural da privação, privação de uma metade do sujeito que nunca existiu; para Safouan, apenas o neurótico acredita que o A existe e o busca.
Para retomar os efeitos de rasura e apagamento introduzidos pela letra psicanalítica, podemos trazer a cena do analisante que diz que se lembra de algo, mas a lembrança enquanto retorno do recalcado já não é a mesma após ser afetada pela censura. "E nunca vamos encontrar essa primeira vez em que algo foi dito, idêntico a si próprio. Esse ponto é onde entra a letra" (Ritvo, 2000, p. 14).
Desde A carta roubada a noção de letra já está associada ao efeito de desaparecimento. Lacan contradiz o provérbio "scripta manent, verba volant"1 ao propor que as palavras, ao serem ditas ao outro, não podem ser desditas, apagadas; o outro, enquanto testemunha, as escuta e registra; já os escritos podem ser rasurados, apagados. "O inconsciente lê uma escrita em ruínas e a transforma em significante. Mas, observem, trata-se obviamente de um campo metafórico - como se a função do inconsciente consistisse em cifrar e decifrar continuamente marcas apagadas, marcas em estado de ruínas, marcas que se constroem e voltam a destruir-se incessantemente. O que o inconsciente faz é inventar, cifrar e não decifrar. O decifrar é a suposição do inconsciente em relação ao sujeito suposto saber, isto é, um sujeito suposto decifrador do que cifra o inconsciente, mas o que o inconsciente faz é apenas trabalhar cifrando (cifrar, aqui, quer dizer inventar)" (Ritvo, 2000, p. 16).
Também a palavra à qual nos referimos em psicanálise é diferente daquela definida pelos lingüistas, ou seja, sob a regra da associação livre, possui outra estrutura, outro funcionamento. Entregar-se à regra da associação livre é acreditar que aquilo que é dito o é pela metade ou "que a palavra não pode senão meio-dizer-se", falar qualquer coisa é assim dizer o que não pode ser dito, o discurso do inconsciente - é o que diz Lacan no Seminário I, Os escritos técnicos de Freud - mostra-se mascarado, criptografado, é a priori incomunicável e se apodera dos tagesreste, de elementos vazios, para se fazer reconhecer. Os tagesreste descritos por Freud como restos diurnos, elementos errantes, destituídos de sentido e disponíveis no pré-consciente, são justamente o material significante, fonemático ou hieróglifo esvaziado de sentido é articulado em uma nova organização para expressar um novo sentido. Esse material significante "não é outra coisa senão escrita, sistemas de escrita (...). A equação dá como resultado que o discurso do inconsciente se apodera do discurso superficial através desses elementos esvaziados de sentido que são, repitamos mais uma vez, os tagesreste, ou formas errantes, ou material significante, ou sistemas de escrita fonemática ou hieróglifa. Esses elementos, que pertencem a um sistema de escrita, podem entrar em uma nova organização ou combinatória, para transferir uma mensagem do inconsciente rumo à superfície (...), o meio que o inconsciente tem para se revelar é o alfabeto, logo a escrita" (Machado, 1998, pp. 127-9; grifo nosso).
A partir do mecanismo de formação dos sonhos de Freud, de uma transferência de valor entre os termos, no caso dos tagesreste e de sua combinatória, Lacan propõe a teoria do significante, que vai de encontro à noção de representação, pois o cerne de sua teoria é justamente a ruptura com a idéia de correspondência biunívoca entre forma e conteúdo, significante e significado. Qualquer imagem, figura ou palavra pode ser significante, funcionar com estrutura de escrita, isto é, organizar-se no sistema simbólico e ser passível de leitura, e para que possam ser lidas devem funcionar como letras, esvaziadas de sentido e destituídas de sua função representativa. Assim como as formações do inconsciente, os sistemas de escrita têm em comum o fato de serem legíveis. "Fazer passar uma mensagem. Essa é a astúcia fundamental que está no centro da invenção da escrita: a morte da imagem como representação da realidade e sua utilização exclusivamente pelo valor fonético ou de letra" (Machado, 1998, p. 140).
O conceito de letra tem várias acepções na teoria lacaniana, em alguns momentos sendo praticamente identificado à noção de significante e em outros afastando-se dela; ora o conceito é aproximado da determinação simbólica, ora o é da sintaxe, da textualidade, e ora da lógica combinatória. Nesse sentido vale retomar a discussão feita por Ritvo (2000) acerca do conceito em psicanálise, que é diferente do conceito no discurso acadêmico. Segundo o autor, os conceitos vêm resolver um problema em determinada época e acabam criando outro ou deixando um resto de que outra concepção do mesmo conceito vem tentar dar conta, pois os conceitos estruturam-se em função de um ponto de impossibilidade, e o rigor psicanalítico consistiria em apontar, em cada momento, qual seria esse ponto de impossibilidade.
Dessa discussão podemos pensar que também o conceito de letra e sua articulação com o significante seguem essa lógica, não sendo possível estabelecermos uma evolução linear e unívoca do conceito.
Ritvo (2000) propõe dois estatutos para a letra: o pólo patemático, que está relacionado ao traço significante no corpo, e o pólo matemático, que deriva de matema e diz respeito à letra como ideal de transmissão. No pólo patemático encontramos a oposição entre uma letra significante, letra inconsciente, relativa às formações do inconsciente e uma letra pulsional, que diz respeito ao isso.
Dessa forma, quando nos referimos à letra ocorre perguntar de que letra se trata. Até o Seminário IX, A identificação, a letra de que trata Lacan está sempre referida ao significante, como elemento diferencial do mesmo, diferente quanto à materialidade e estrutura. Milner (1996, p. 104) considera que a letra e significante são distintos no ensino de Lacan, o significante consistiria em relação: "Ele representa para e é aquilo através do que isso representa; a letra mantém, decerto, relações com outras letras, mas ela não consiste somente em relações. Sendo apenas relação de diferença, o significante é sem positividade; mas a letra é positiva em sua ordem. A diferença significante sendo anterior a toda qualidade, o significante é sem qualidade, a letra é qualificada (ela tem uma fisionomia, um suporte sensível, um referente, etc.). O significante não é idêntico a si, não tendo um si a que uma iden tidade possa ligá-lo, mas a letra, no discurso em que se situa, é idêntica a si mesma. O significante sendo integralmente definido por seu lugar sistêmico, é impossível deslocá-lo; mas é possível deslocar uma letra; assim, a operação literal por excelência deriva da permutação (testemunha a teoria dos quatro discursos). Pela mesma razão o significante não pode ser destruído: ele no máximo pode faltar em seu lugar; a letra com suas qualidades e identidade pode ser rasurada, apagada, abolida (...). Sendo deslocável e empunhável, a letra é transmissível; (...) um significante não se transmite e nada transmite: ele representa, no ponto das cadeias em que se encontra um sujeito para outro significante". A posição de Milner, embora precisa, parece desconsiderar a evolução do conceito na obra de Lacan, tomando as últimas concepções deste acerca da letra, em detrimento de momentos em que toma a letra por significante ou considera-a uma partícula deste último.
A diferença entre letra e significante é enfatizada por Lacan na sétima aula do Seminário XVIII, De um discurso que não seria do semblante, quando propõe que não se confundam os dois conceitos; entretanto, numa visita aos EUA em dezembro de 1975 afirma que o significante não é fonema, é letra.
Ritvo (2000) esquematiza as formas que toma a letra no ensino de Lacan: a) letra como fonema - A Instância da Letra; b) letra como texto escrito; c) como partícula significante, como carta, como envio - A carta roubada; d) essência de significante, o diferenciando do signo. É redutível, em seu nível mais simples, ao traço - Seminário IX, A identificação; e) limite, litoral entre saber e gozo - Seminário XVIII, De um discurso que não seria do semblante -, é quando afirma que o significante está no simbólico e a letra, no real; f) letra algébrica constituinte dos matemas, ideal de transmissão. Jogo de escritura - Seminário XX, Mais ainda.
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DO SIGNIFICANTE
A constituição do sujeito é concomitante à constituição do significante; aliás, a possibilidade de esse sujeito se dizer em sua singularidade é dada pelo seu engendramento na cadeia significante. Lacan propõe, no Seminário IX, A identificação, que a constituição do significante ocorra em três tempos: inicialmente há a inscrição de um traço, primeira marca recebida pelo sujeito (SI), seguida por seu apagamento ou rasura, que corresponderia ao que Freud propõe como recalque, permanecendo inconsciente, e, por fim, um terceiro momento em que o sujeito pode se dizer a partir da interpretação que faz das marcas que lhe foram inscritas (Fragelli, 2002).
É importante nesse caso fazer a distinção entre rastro e significante; apesar de ambos afirmarem uma ausência, o rastro, enquanto um primeiro nível de substituição, ainda estabelece uma relação de representação daquilo que no real é sua origem; já o significante, como operador de linguagem, só pode remeter-se a outro significante em uma relação de representatividade, e, estando completamente esvaziado de sentido, não traz nenhuma relação com o objeto; significante e significado estão irremediavelmente separados. O rastro seria, em seu caráter evanescente, a condição para a existência do significante, é com seu apagamento, esvaziamento de sentido, que ganha estatuto de significante, e isso enraíza esse último no universo da escrita, no caso, representado pelo caráter de impressão do rastro. Retomemos então os tempos de constituição do sujeito e do significante:
1o tempo: Do ponto de vista do significante, temos a inscrição do traço e, do lado do sujeito, a formação e constituição da letra num tempo muito primitivo. Tomemos aqui a inscrição mnemônica no bebê da experiência de satisfação, "a letra é o elemento que foi considerado por Freud e isolado por lacan para tratar dessa singularidade do sujeito. É o que, na trama da constituição, marca a diferença mínima entre cada inscrição. É o resultado do encontro da percepção com o que será o sujeito, uma cifra. O elemento mínimo de um enigma. Marca o tempo primeiro da instalação do significante, ofertando-se como suporte material para que sobre ele a operação se desdobre" (Fragelli, 2002, p. 59).
2o tempo: Trata-se do apagamento do traço para que se possa constituir o significante, e essa operação é realizada pelo recalque originário, impedindo que o traço tenha acesso à consciência, instituindo S1, traço unário, primeiro significante do sujeito. A partir desse apagamento, também os significantes posteriores que por uma linha associativa estiverem ligados a S1 são recalcados; esses significantes formam uma cadeia, iniciando a operação significante, imprimindo um texto ao inconsciente. "O apagamento do traço faz uma marca, é o S2 que se institui pelo mesmo movimento que condenou S1 ao inconsciente. Assim ordenados, S1 - S2 estão ligados, mas separados. A eles se juntarão outros significantes (S3, S4, Sn...), que montarão uma cadeia, e então a operação significante poderá se desenrolar" (Fragelli, 2002, p. 62).
3o tempo: É o momento em que o sujeito desponta a partir da leitura das marcas anteriormente inscritas - e essa é a condição
de sua constituição, dar uma significação própria, interpretar suas marcas no campo do Outro. O operador dessa leitura seria o significante do Nome do Pai, aquele que confirma a divisão do sujeito pela linguagem que submete o sujeito à lei simbólica, interditando o desejo materno e possibilitando à criança um lugar diferente daquilo que falta à mãe. Essa interdição é o que, ao barrar o gozo, articula a cadeia significante, e permite que as marcas do Outro transformem-se em marcas próprias, para que o sujeito possa se dizer.
A partir daí, podemos pensar que, se acessamos algumas leis de funcionamento do inconsciente, é porque ele migrou do real para o registro simbólico: "É o significante que escava seu lugar no real sob a forma de letra, por meio do rastro apagado ou por meio do traço unário, sendo esses três elementos a base do funcionamento da escrita" (Machado, 1998, p. 193).
O PRINCÍPIO DE LEGIBILIDADE E A CLÍNICA DO LITERAL
A ultrapassagem do real em direção ao simbólico, condição para o funcionamento do significante e, portanto, do sujeito e da cultura, está assentada na estrutura da escrita, na barra que se impõe ao imaginário, que deve ser rasurado, para que o simbólico instale-se como presença de uma ausência. "Lacan pôde nos mostrar que a mesma imagem que cripta oferece a chave de sua decifração sob a única condição de ser abordada como letra de uma escrita não alfabética" (Machado, 1998, p. 211).
Bittencourt (2002) propõe o abandono da lógica da compreensão para se aceder ao registro da escuta literal; uma escuta desprendida de imagens figurativas. Buscar uma escuta literal implica não só um desprendimento do imaginário, mas também numa relativização do simbólico a partir do corte que introduz a dimensão do real.
Trata-se de uma clínica que - incidência do real - subverte o imaginário de uma clínica psicanalítica da rememoração, de lacunas mnêmicas que serão restituídas, porque trabalha-se com a idéia de que não se pode suturar tudo e porque não existe reconstituição no sentido literal. É uma clínica que subverte também a clínica do sentido. "A clínica do literal não seria efeito de corte, enquanto um recurso da estratégia clínica? Corte que escava o literal pela via da letra, instituindo uma quebra na paixão pelo sentido. O sentido é a paixão em responder: `O que quer dizer?' O simbólico é o que permite fazer sentido. A paixão se quebra para que o inconsciente compareça em ato, abrindo a possibilidade de o sujeito do inconsciente encontrar uma via por onde possa meter as caras" (Bittencourt, 2002, p. 111).
A clínica do literal empresta de Lacan suas últimas acepções acerca do conceito de letra, aqui tomada como distinta do significante, como aquela que corta o significante e leva o sujeito do território do simbólico para o litoral do real. "O corte promovido pela letra num significante não seria a construção dessa fronteira que faz margem entre o simbólico e o real, e que Lacan tenta nomear Lituraterre? (Bittencourt, 2002, p. 110).
A escuta literal funda-se no corte como deciframento em conformidade com o tempo lógico; a literalidade aponta para um entrecruzamento de sentidos, lançando o sujeito para o desconhecido. Fazendo borda ao real, oferece-se como suporte para a nomeação de significantes.
Enquanto suporte do significante, a letra traz seus elementos materiais: o fônico e o gráfico. O fônico constitui-se a partir da polissemia da língua orientada pelo som e suas assonâncias, dissonâncias e homofonias. O gráfico por sua vez é regido pela escrita, é o que se escreve, se registra (aquilo que insiste em se escrever, como o sintoma).
"Ao simbólico falta um significante que diga da coisa: `Que troço é este?'" A letra escreve essa falta e registra o real, o registro do impossível: "Eu sou cópia de uma ausência (...) O literal seria um registro que sonha em encostar na coisa" (Bittencourt, 2002, p. 116)
A teoria do significante e os desenvolvimentos acerca do conceito de letra representam grandes avanços de Lacan no sentido de tirar a psicanálise do registro imaginário, e isso se dá a partir do momento em que rompe com o paradigma da representação - o real não é representado nem por imagens, nem por palavras, e estamos fadados a con-
tinuar tentando preencher esse buraco, essa falta estrutural no Outro, com palavras. O princípio organizador do significante é a legibilidade, e não a representação. Para compreendermos a interdição da função de representação das imagens, podemos tomar o exemplo do rébus proposto por Freud na Interpretação dos sonhos, em que as imagens são tomadas por seu valor associativo, e não no sentido de representar o que imaginariamente sugerem - aí está sua condição de legibilidade, de letra.
A escrita inconsciente é ao mesmo tempo meio de recalcamento e possilidade de revelação, ao mesmo tempo que cripta é o próprio instrumento de decifração, e isso tem algumas conseqüências clínicas. O fato de as formações do inconsciente, assim como a escrita, terem a legibilidade como característica comum faz da interpretação analítica um processo de deciframento e leitura - literal, eu diria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arrivé, M. (1994). Lingüística e psicanálise. Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros. São Paulo, SP: Edusp. [ Links ]
Bittencourt, E. (2002). Da letra e da leitura na clínica do literal. Revista Literal - Letra e Escrita na Clínica Psicanalítica, no 5. [ Links ]
Fragelli, I. K. Z. (2002). A relação entre escrita alfabética e escrita inconsciente: Um insatrumento de trabalho na alfabetiza;cão de crian;cas psicóticas. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. [ Links ]
Lacan, J. (1998). Escritos (1966-98). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. [ Links ]
Machado, A. M. N. (1998). Presença e implicações da escrita na obra de Jacques Lacan. Ijuí, RS: Ed. Unijuí. [ Links ]
Milner, J.-C. (1996). A obra clara. Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. [ Links ]
Ritvo, J. B. (2000). O conceito de letra na obra de Lacan. In A prática da letra. Rio de Janeiro, RJ: Escola da Letra Freudiana. [ Links ]
NOTA
1 "O escrito permanece, as palavras voam."
Recebido em maio/2003
Aceito em julho/2003