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Estilos da Clinica
Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.8 no.14 São Paulo June 2003
DOSSIÊ
Da estereotipia à constituição da escrita num caso de autismo: Dois relatos...um percurso
From stereotypy to the constitution of literacy in a child with autism: Two reports...and a route
Sandra Pavone*; Rejane Rubino**
*Psicanalista, membro do Serviço de Psicologia da Divisão de Ensino e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic) da PUC-SP, e membro da APEP.
**Fonoaudióloga da Derdic da PUC-SP e professora da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP.
RESUMO
Este trabalho apresenta os relatos dos atendimentos psicanalítico e fonoaudiológico de uma criança autista, focalizando a emergência e os desdobramentos da leitura e da escrita nesse sujeito. As autoras propõem reflexões sobre alguns aspectos da direção do tratamento e interrogam os limites da constituição subjetiva nesses casos. Abordam ainda o tema das intervenções interdisciplinares e discutem os parâmetros que nortearam a aproximação das clínicas psicanalítica e fonoaudiológica.
Palavras-chave: Leitura, Escrita, Autismo, Interdisciplina.
ABSTRACT
The aim of this paper is to examine some clinical observations concerning the emergence of reading and writing in an autistic child. Reports of the psychoanalitical treatment and of the speech therapy are presented. Some questions about the course of treatment and the possibilities of subjective constitution in such cases are discussed. Finally, it explores the issue of interdisciplinary intervention and discusses some principles which guided the relation between the different clinical fields.
Keyword: Reading, Writing, Autism, Interdisciplinary approach.
A propósito da possibilidade de relatar os atendimentos psicanalítico e fonoaudiológico de um menino autista, nos perguntávamos sobre as distinções entre a escrita de um artigo _ ainda que este contivesse recortes clínicos de casos _ e a escrita de um caso clínico.
Alfredo Jerusalinsky (2002), em Razão e método para apresentação de casos clínicos, nos diz que são justamente nossos pontos de ignorância que nos levam, pela via da transferência, a consultar um outro. Tal direcionamento pode possibilitar uma torção, um corte em relação ao que vinha ocorrendo até o momento.
Nossas interrogações partem, sobretudo, de uma posição ética: uma aposta que esse reordenamento possibilite que algo novo surja, seja quando se formula um pedido de análise, de supervisão ou, na mesma direção, na escrita de um caso clínico. Na escrita, o Outro ao qual falamos está sempre posto, impresso.
Há ainda uma outra conseqüência dessa mesma posição ética: a possibilidade de uma atuação interdisciplinar. No trabalho com essa criança uma aproximação entre a clínica fonoaudiológica e a psicanalítica aconteceu em dois distintos momentos. Inicialmente, ainda na fase de diagnóstico, em que os profissionais, desvinculados de uma posição de todo-saber, mostraram-se sensíveis às contribuições de outras disciplinas. Num segundo momento, a emergência de novas produções na análise da criança que apontavam para a fala e a escrita levou à proposta de que o atendimento fonoaudiológico tivesse início, ainda que àquela altura não fosse possível formular claramente o porquê disso. Apresentaremos a princípio, um relato desses dois tratamentos, formulando, ao final, alguns fundamentos dessa atuação interdisciplinar.
DA AUDIOLOGIA À PSICANÁLISE
Os pais de Bruno chegam à Derdic1 buscando a indicação de um aparelho auditivo, pois o filho, que não falava, tinha recebido um diagnóstico de surdez, a partir de um exame que realizara _ o BERA2.
Crianças que parecem não responder ao som, ou, ainda, que não falam quando isso já poderia ser esperado, conduzem os profissionais à hipótese de uma surdez sensorial. Apesar do diagnóstico anterior, a fonoaudióloga que os recebe decide proceder à avaliação por intermédio de outros exames. As respostas comportamentais da criança, durante as avaliações por meio de sons produzidos com diferentes instrumentos musicais, fazem parecer que ela não ouve. Entretanto, a audiologista registra os reflexos de pálpebras. Na avaliação denominada Emissões Otoacústicas3, os dados indicam audição normal. Cabe ressaltar que, por serem métodos de avaliação eletrofisiológica, tanto o BERA quanto a avaliação Emissões Otoacústicas não dependem da colaboração daquele que está sendo avaliado.
Surpreendentemente, numa dessas consultas, B. volta seu olhar na direção de uma estagiária que, sentada atrás dele, acabara de produzir um ruído (sem finalidade de avaliação) ao folhear
uma revista. Como a ausência de fala e a aparente surdez também podem ser indicativos de uma falha na constituição subjetiva, o diagnóstico de surdez pode ficar em suspenso, e a audiologista decide por um encaminhamento à psicanalista (Pavone, 2000a).Não são raros os casos de crianças autistas anteriormente diagnosticadas como surdas. Essa aparente surdez de crianças fala-nos de uma percepção não recortada pelo significante, conseqüência da defesa primária do autismo (Pavone, 2000b).
DA ESTEREOTIPIA NO NÚMERO AOS RECORTES COMO SUPLÊNCIA
Quando os pais trazem Bruno para o atendimento, muito pouco têm a dizer sobre esse filho, sobre um lugar que pudesse ocupar. Contam que até 1 ano de idade, morando apenas com a mãe e a família do pai na cidade de origem deles, Bruno passava muito tempo com seu avô paterno. O pai diz que o avô tinha essa "coisa meio enlouquecida" (sic) de falar com Bruno, ainda que fosse certo que o menino não pudesse entender nada. Por outro lado, ele supõe que a mudança para outra cidade e o distanciamento em relação a esse avô sejam a causa de suas dificuldades. Seu avô constantemente levava-o ao portão de casa para que ali ficassem olhando a rua e os carros que passavam. Ele conta que Bruno já falava algumas palavras nessa idade, "carro e mama", que desapareceram completamente após a mudança deles para São Paulo.
Durante muito tempo em suas sessões limitava-se a ficar na janela olhando o movimento dos carros, deitado no chão e olhando as mãos que ele agitava diante dos olhos, ou ainda batendo as mãos nas orelhas estereotipadamente.
Aos poucos um interesse particular pelos números aparece de diferentes maneiras: apertando o teclado de um telefone de brinquedo, detendo seu olhar nos relógios de pulso ou ao ocupar-se de percorrer as diversas páginas de um calendário, reiniciando esse processo quando chegava ao fim.
Nenhum desses elementos parecia poder ser tomado por seus pais como atos com alguma significação e que indicassem o direcionamento de um interesse ou particularidade desse filho. Entretanto, em situações ainda incipientes era do lado do pai que alguma aposta de mudança de posição subjetiva comparecia para essa criança. Nas sessões, o pai solicita sua atenção escrevendo o nome e sobrenome do filho numa folha de papel. Sempre que chega em casa, ao final de um dia de trabalho, escreve num papel as contas do dinheiro que recebeu naquele dia. É possível supor que Bruno acompanhe-o, mesmo que à distância.
Seus direcionamentos aos carros e aos números, ainda que estereotipados, eram intrigantes. Apesar de não simbolizadas, tais incidências portavam marcas do pai e do avô.
Laznik (1997), em seu livro Rumo à palavra, nos fala do estatuto das estereotipias. Tais ocorrências, apesar de seu retorno insistente, têm um fim de descarga motora antes que de ato. Seriam resíduos de gestos esvaziados de sua função de comunicação, e a autora propõe que apenas na origem pudessem ter tido valor de ato. Aparece assim uma importante distinção entre as insistências estereotípicas _ ruínas de um ato _ e a ordem da repetição (Wiederholungszwang) _ de representação de ausência.
Nesse sentido, a autora propõe como direção do tratamento a busca de restaurar nesses comportamentos seu valor representacional, ligando-os às representações de palavras a fim de que adquiram um valor para além de seu corpo, que ainda responde como um puro real de descarga motora.
O trabalho com os carros e os números segue em diferentes direções. Foram meses de trabalho olhando pela janela onde a analista buscava as extensões mais diversas para o que se passava lá fora: ônibus, suas cores, números, destinos, motos, barulhos de ambulâncias. Nesse mesmo movimento, em que os ônibus iam e vinham alternadamente, a analista antecipava-os em sua fala dizendo "tchau" antes que fossem embora e, quando iam embora, chamava-os de volta.
Mais além, incluía a criança nessa série, dizendo: " O Bruno está aqui na janela esperando você passar, ônibus". Ou, ainda, solicitando a ele que se despedisse dando tchau.
Muito tempo se passou no vazio de qualquer retorno da criança que fizesse supor que essa intervenção estivesse provocando algum efeito. Até que ele começa a balançar os dedos à chegada dos ônibus e a movimentar a cabeça quando iam embora, virando-a e dirigindo o olhar na direção para a qual se iam.
Mesmo assim, quando um retorno da criança parecia acusar um endereçamento, ficava-se muito tempo sem que fossem possíveis novos e distintos direcionamentos.
Do lado dos números, as intervenções parecem ter tido um caminho mais frutífero. Sua excitação ao encontrar números em calendários ou páginas de revistas ficava expressa claramente numa agitação dos dedos e aproximação destes aos olhos. Tal movimento fazia pensar em alguém que "conta com os dedos".
A analista decide operar contagens: de ônibus, de dedos da mão, até três antes da queda de um carrinho ou ônibus da mesa. Mas a que realmente o entretém e o tira da posição de fechamento é quando a analista conta até cinco e depois o alcança no umbigo dizendo seu nome como o sexto termo:
_ Um, dois, três, quatro, cinco, e Bruno.
Ele não apenas sorri, como pede que isso se repita muitas vezes. Essa marca se inscreve, recortando seu corpo, tecendo a borda pulsional a partir da qual se representará como sujeito.
No segundo ano de tratamento, sua escolarização inicia-se numa pequena escola do bairro em que moravam. Sua professora, desde o início, relatava com entusiasmo tudo o que percebia que o menino sabia. Bastante atenta aos movimentos da criança, acompanha-o no momento em que ele escolhe, entre livros que ali se encontram, um de matemática. Bruno se detém, recobrindo com um lápis os números que encontra. Fundamentalmente dedicava-se a encobrir números nas páginas em que eles estivessem misturados com letras, como acontece, por exemplo, num problema matemático cuja formulação é composta por palavras e números. Ele não cobria letras, apenas números. Isto nos fez pensar que ele os diferenciava, porém, ainda não era possível saber a extensão em que poderia operar com eles. Ele aceita e pede a sua professora que escreva com ele páginas e páginas de números. Acompanhava-a com o olhar ou com a mão sobre a dela nessa escrita.
Nas sessões ocupa-se basicamente de folhear revistas, detendo-se principalmente sobre as páginas que contêm números: sua preferida era a que trazia as cotações da bolsa de valores. Embora houvesse um notável interesse pelos números e carros das revistas, ainda não era possível uma intervenção que permitisse interrompê-lo em sua tarefa. Ele parecia mais envolvido no movimento de folhear a revista do início ao fim do que num trabalho representacional. Apesar disso, a analista recorta e cola das revistas, números, figuras de carros e palavras pelas quais ele parece se interessar.
É nessa mesma época que ele traz à sessão um livrinho que conta a história do personagem Pinóquio. A mãe conta que ele estava há dias com esse livro pela casa. Nessa história lemos com surpresa:
"Gepeto, um velho carpinteiro, conversava com seus bonecos de madeira como se eles fossem pessoas de verdade... bastaria um sopro de vida, para que se tornassem reais. Ainda boneco, Pinóquio, com fala e roupa de menino, escuta de seu pai:
_ Você é o filho que eu tanto quis ter! Farei de você um homem de verdade... como todas as crianças, irá à escola, brincará..."
Pinóquio porém, desvia-se do caminho para a escola. O pai, à sua procura, perde-se no mar e é engolido por uma baleia. O boneco salva seu pai, e aí sim pode ser transformado por uma fada num menino de verdade.
É a partir do que pode ser valorizado por seu pai-avô4 que essa criança poderá resgatar, de um "naufrágio" inicial, um lugar de ideal para advir como menino.
Nesse mesmo período Bruno se detém olhando para fora da sala, já não mais pela janela de vidro transparente, mas por outra com um espelho que lhe retorna a própria imagem, ao mesmo tempo em que, fechando-se suas cortinas, permite-lhe fazer-se desaparecer. Jogos de borda aparecem nas sessões: entra e sai da sala, abre e fecha a janela, esvazia e enche, deixa a mão passar por uma fresta sem vidro, deixa cair bonecos da borda da mesa, e busca reencontrar sua analista, que se esconde quando ele sai da sala. Tais jogos revelam o movimento constituinte do sujeito, no qual a criança captura sua própria imagem ao mesmo tempo em que a põe na série presença-ausência, na descontinuidade significante (Jerusalinsky, 1999).
Estamos no quarto ano de tratamento. Um material emborrachado que associava números e quantidades representadas em figuras geométricas permite perceber que Bruno conhece a seqüência de números de 1 a 10. Mas sabe contar? Bruno circula pelos corredores da instituição. Seu trabalho se dá nas portas das salas, em suas bordas, cada qual com uma inscrição no topo: seu número.
Suas vocalizações, que haviam se intensificado bastante nesse período, levam a analista a consultar uma fonoaudióloga. Segui- mos um período breve de gravação dessas produções sonoras, que desaparecem quando Bruno volta a se debruçar sobre as revistas.
Sua posição defensiva já não aparece tão intensamente, e, entre uma página e outra, Bruno deixa que a analista faça alguns recortes. Do mesmo modo, ele passa a colar o que foi recortado em folhas de sulfite. Aos poucos ele mesmo escolhe o que será recortado. Solicita, puxando a mão da analista e entregando a tesoura para que ela recorte.
Suas preferências são os carros, ônibus, ruas com movimento de carros, salas de aula, números, nomes de carros, pessoas de costas olhando para trás, comidas e objetos de que ele gosta. A princípio tais imagens pareceram quaisquer, porém, sua insistência e repetição apontavam para a hipótese de um trabalho psíquico com a representação, indicando a existência de uma ligação entre a imagem sonora da palavra e uma imagem visual.
Recorta também cenas de pessoas em mesas de bar. Tal incidência só pode ser compreendida muito tempo depois, quando seu pai conta que levava Bruno quando sai para beber com os amigos no final de semana. Relendo suas produções, é possível reconhecer que B. conta o que não fala, construindo nestes recortes e montagens a rede de sua constituição como sujeito.
A analista propõe uma outra extensão: escrever seu nome em cada uma dessas folhas. A princípio ele apenas a observa escrevendo. Depois, ao ser solicitado, escreve algo também. Abaixo do seu nome já escrito ele faz círculos: tantos quantos o número de letras. Foi possível também identificar, em outros escritos, as letras B ou N.
As articulações entre palavras e imagens, entre imagens acústicas e imagens visuais, entre representação de palavra e representação de objeto que comparecem no tratamento dessa criança revelam o movimento das inscrições.
Devemos nos questionar, porém, que tempo da inscrição é esse e sobre o fato de essa operação estar fundamentalmente sustentada em imagens visuais. Laznik (1997) propõe pensarmos esse trabalho das crianças, tal como se apresenta com imagens recortadas de uma revista, como um "discurso" situado no nível da primeira inscrição significante. A autora nos fala sobre o fato de que a falha no imaginário torna problemática a organização das representações próprias ao registro do inconsciente (Vorstellungrepräsentanz), e, apoiando-se nas imagens, a criança pode realizar uma suplência à circulação dos pensamentos inconscientes.
A autora sustenta sua hipótese trabalhando com os registros da inscrição no aparelho psíquico, a partir do modelo freudiano proposto na Carta 52 a Fliess. Em tal modelo de registro inconsciente ocorre somente a partir da segunda inscrição.
Na primeira inscrição instaura-se a articulação sincrônica entre duas imagens, não tendo ainda senão valor de sinais perceptivos ligados por simultaneidade. Ou seja, um signo assim formado constitui uma unidade fixa entre o significante e o significado, o que impedirá o deslizamento próprio à cadeia significante. A segunda inscrição, a do registro do inconsciente propriamente dito, supõe a hiância causal, instaurando uma outra forma de articulação que é diacrônica. A riqueza dos processos inconscientes, metafórico-metonímicos, estará suportada pela organização da representância, que Lacan chamará de significância.
O SURGIMENTO DA LEITURA E DA ESCRITA: A LETRA COMO SIGNIFICANTE?
Novo momento de consultar uma fonoaudióloga. Com sua colaboração, os recortes ganham contornos mais definidos: entre outras coisas, ela observa que Bruno escolhe várias palavras que contêm as duas primeiras letras de seu nome: bradesco, brasileiro, petrobrás (seguido do logotipo BR), .com.br. Aqui, decidimos que não haveria apenas uma assessoria por parte da fonoaudióloga, mas teria início um atendimento fonoaudiológico.
A professora, agora numa sala especial de uma escola pública, conta que B. acompanha, com o olhar, nome por nome dos amigos de sua sala escritos numa lista na lousa.
A analista passa a propor então, não apenas o recorte de palavras, mas copiá-las numa folha de papel. As revistas e a TV estão repletas de imagens e reportagens sobre as eleições. Desta vez ele sugere os nomes dos candidatos à eleição presidencial, datas (1994, 1995...) e outras palavras.
Assim como é possível escrever o que se lê, é possível ler o que se escreve. Acompanhando as palavras com o dedo, a analista passa a ler o que "escrevem". B. ouve atentamente. Ainda há dúvida se ele pode ler... A analista decide ler "errado". Diz um nome ou número diferente do que está escrito, e ele segura firme em sua mão fazendo seu dedo voltar ao início da palavra para que leia outra vez. Só desiste quando a palavra é lida corretamente.
Por que certas operações de leitura são possíveis de serem identificadas, mas ainda para ser falada Bruno depende do suporte na voz do Outro? Levin (1998) aponta para o fato de que é essencial a descoberta, que as crianças fazem, de que os livros falam pela voz do Outro que os lê, e, desse modo, entrecruzam-se as imagens, as letras e o som, estruturando-se na relação com a voz do Outro que os interpreta e os diferencia.
"O desejo de aprender a ler e escrever poderá se desenvolver se por ali circular o enigma, o enigma que começou a ser tecido entre o livro, a voz, a imagem, os desenhos, as garatujas e o Outro. Pois o que se diz e se articula na voz pode ser escrito, e o que se escreve, inscrevendo-se num papel, pode ser dito (Levin, 1998, p. 121).
Na sala de aula Bruno pode perfeitamente distribuir as agendas dos colegas, que são idênticas, mas que têm o nome de cada um escrito na capa. Alguns retornos à cidade de origem ocorreram de modo esporádico e breve depois da vinda dessa família para São Paulo. Entretanto, após seu retorno da última viagem que para lá realizaram durante um mês, foi possível notar uma importante diferença na posição de Bruno.De imediato chega à primeira sessão escolhendo o que recortar. Após recortar a foto de um computador, ele mesmo escreve algo e depois solicita que a analista escreva. Respondendo a seu pedido, começa a escrever seu nome, porém, diferente de outras vezes, com sobrenome. Efeitos transferenciais do que pode ser resgatado sobre a filiação nesta família?
Ele solicita, puxando pela mão, para ir até a outra sala, onde fica um computador. Enlaçado ao que recortou no início da sessão, a analista toma seu gesto como um ato e decide ligar a máquina.
A princípio, Bruno restringe-se a copiar o que ele porta escrito em suas camisetas ou o que ele encontra pela frente. Digita com destreza, e a analista sugere que ao término leiam o que ele copiou.
Sem nenhuma intencionalidade, certa vez em que ele copia os algarismos 515, a analista lê "cinco, um, cinco". Ele insiste para que retorne e leia de novo, e só desiste quando é enunciado "quinhentos e quinze".
Mesmo que a hipótese ainda fosse de que sua escrita estivesse destinada apenas a pequenas diferenciações (letras/números, passar da letra impressa para a letra bastão, copiar palavras já escritas), a analista propõe escrever os nomes de alguns animais de plástico, que usou em suas brincadeiras e que foram levados numa pequena caixa para a frente do computador. A analista escreve o nome de cada animal em uma tira de papel. Ele copia esses nomes, mas também busca numa folha de jornal outros nomes para copiar: dos candidatos à presidência. Entretanto, na sessão seguinte, os nomes dos animais não estavam junto deles na caixa, e ele começa a escrever seus nomes antes que "a legenda" estivesse ali pra servir de cópia: Cavalo, "caalt"; galinha, "gatga"; vaca, "Vgcçca"; carro, "carro"; boi, "boi"; camelo, "camio"; leão, "leio"; tigre, "tige". Quando terminam os bichos da caixa, ele copia os números de um telefone. A analista arrisca ditar um número para que ele escreva, dizendo "cento e vinte e sete", e ele digita: 127. Em outra sessão, sugere levarem outros objetos na caixa. Ele aceita, apesar de sempre iniciar cada novo trabalho, fazendo cópia, e não escrita. Depois, cada nova fruta que a analista pega dizendo o nome, ele se volta para digitar: limão, escreve "limmao"; a analista diz laranja, e ele escreve "lataaga"; mexerica, "measriy"; tomate, "tomtwe"; ou ainda casa, "caasa"; e vaca, "Ycaa".
Ao mesmo tempo, o domínio de alguns comandos no computador parece fasciná-lo: aprende a dar "enter" para fazer o espaço entre as palavras, ocupa-se de certas teclas que fazem acender luzinhas no teclado, e outras que fazem surgir imagens na tela ou sons, copia o que está escrito nas teclas (Caps Lock, Scroll Lock, etc.), ou a marca do computador. Bruno sabe que deve aguardar para poder desligar.
Pommier (1996), em Nacimiento y renacimiento de la escritura, nos fala das intrincadas relações entre o visual e o auditivo no processo de leitura e escrita. Primeiramente ressalta que a escrita não resulta de uma tradução da sonoridade dos vocábulos.
"Quando lemos ou escrevemos, não nos apoiamos sobre as letras às quais damos forma, mas sim sobre os vocábulos em que pensamos" (Pommier, 1996, p. 288).
Seguindo o que o autor propõe nesse mesmo trabalho, se lemos, é porque reconhecemos uma palavra da qual já tínhamos a posse, e aqui o que nos serve de apoio não são as letras alfabéticas, mas sim o significante.
Na leitura há uma distinção entre o que se vê e o que deve ser lido. Não lemos letra por letra, e, portanto, o que resulta numa leitura, isto é, a relação entre as letras, não está contido em sua imagem visual. O vínculo entre elas estará dado por uma imagem acústica que o visual não contém. Ou seja, não é pela imagem visual, nem letra por letra, que alguém pode advir à escrita ou leitura. Para que se possa ler, é necessário algo além do que se pode ver. O som não compreende a imagem, e vice-versa.
"Somente pelo lado do que falta a cada uma dessas consistências, sonora e visual, é que estas se associam e se lêem. O lado da falta permite uma leitura global, que não é nem globalização sonora nem globalização visual, mas sim articulação das faltas entre si, com a condição do recalque sucessivo de cada uma dessas consistências. O vínculo da imagem visual com a imagem acústica permite o passo da letra ao significante, passo que a dupla face da letra autoriza, já que a imagem, sonora em uma face, ela é, em outra, visual e associada assim a outras letras. A leitura roda sobre si mesma graças ao recalque sucessivo do que se vê e do que se ouve, de modo que um vocábulo escrito não se resume nunca a sua fonética e não se reduz tampouco a sua imagem" (Pommier, 1996, p. 289).
Pommier retoma o que Freud nos aponta sobre os sonhos para abordar aquilo de que se trata na leitura. Ele ressalta que é preciso esquecer seu valor de imagem, pictórico, para que os sonhos possam ser lidos, e assim se ter acesso ao sentido. É essa relação entre o visual e o acústico na leitura, em que a imagem será vista pelo que nela falta, que articula a imagem com o significante. Em outras palavras, estamos na ordem da representação da ausência.
Sendo assim, podemos pensar que a leitura depende de que algo na direção do recalque esteja operando. Mas, no caso deste menino, em que extensão?
Fragelli (2002), em seu trabalho Escreveu, não leu... A escrita na clínica das psicoses, conforme aparece no próprio título, discute as possibilidades distintas de que uma escrita compareça e tenha efeitos de subjetivação, ainda que restritos.
Podemos, então, perceber que a escrita dessas crianças indica que algum processo de inscrição ocorreu, mas não em toda a sua extensão. Lacan (1961-2) propõe, no Seminário sobre a identificação, a operação de instalação do significante como algo que é constituído em três distintos tempos. O primeiro tempo fala da inscrição do traço, ocorrendo seu subseqüente apagamento (recalque), e o terceiro tempo em que o sujeito fará a interpretação dessas marcas inscritas até ali. Para o terceiro tempo, além do recalque, o sujeito precisará contar com a instância que lhe permita interpretar o desejo materno nomeando-o metaforicamente: o Nome do Pai. Tal operação possibilitará que a criança, anteriormente proposta ela mesma como o termo desse desejo, seja lançada ao funcionamento da cadeia significante. Nesses intervalos, entre os significantes que metaforicamente se substituem, funda-se o sujeito, e o Nome do Pai permitirá ler essas marcas, produzindo uma significação para si mesmo a partir da qual poderá se designar enquanto UM para o discurso.
Como se vê, percorre-se um longo caminho na instalação da operação significante.
A princípio, para Bruno, letras e números apareciam colados nos olhos, atrelados à pura percepção, muito mais que recortados com um olhar. Na estereotipia, num real indiferenciado, não se pode reconhecer algo que aponte para o registro pulsional. Situadas no âmbito do tratamento, como uma abordagem possível do real, pouco a pouco, tais incidências foram sendo enlaçadas numa série significante possibilitando à criança representar-se além de seu corpo real. O que aparecia antes como letra morta5 sofre os efeitos do enlace imaginário, e faz marca, inscrevendo e fundando o primeiro tempo dessa inscrição. Sob os efeitos do recalque, essa marca sofre as rasuras necessárias e posteriormente é alçada, ainda que com restrições, ao estatuto significante. Poderíamos afirmar que para esse menino já é possível representar-se sem que possa dizer-se, e, portanto, não possamos ainda avistar os sinais de um terceiro tempo da inscrição significante.
ALGUNS DESDOBRAMENTOS NA LEITURA E NA ESCRITA: O ATENDIMENTO FONOAUDIOLÓGICO
Ao dar início ao processo de avaliação de linguagem de Bruno, algumas questões se põem, como efeito mesmo do diagnóstico de autismo: pode haver engajamento desse paciente num trabalho que visa a fala e/ou a escrita? Há indícios de que esse atendimento possa produzir efeitos terapêuticos próprios à clínica fonoaudiológica? Considerando-se que se trata de um paciente atendido em psicanálise, o que justificaria a entrada de um atendimento fonoaudiológico? Pode-se dizer que, subjacente a essas perguntas, uma indagação maior está presente: quais são as questões que o diagnóstico estrutural formula para a clínica fonoaudiológica, no que diz respeito a sua pertinência e até mesmo a suas limitações?
Na entrevista inicial, o pai me diz que Bruno "se desenvolveu muito" desde o início do tratamento psicanalítico. Ao chegar à Derdic, "era muito nervoso e não atendia ninguém". "Hoje", diz ele, "Bruno já atende e entende a fala dos outros. Mas não fala." A mãe relata que a professora não está conseguindo alfabetizá-lo, nem conseguindo fazer nada com ele. Segundo o pai, a professora teria dito que ele não faz nada, "só rabisco". O pai acrescenta, nesse momento, que Bruno "sabe os números". A mãe diz: "Mas ele não escreve nada ainda, nem lê". Ela prossegue dizendo: "Eu queria que ele falasse, para ele poder estudar". O pai afirma: "Nem eu nem ela tivemos estudo. Tudo o que eu pensei em dar ao meu filho eu não pude dar, porque ele não se desenvolveu". Ressaltando que Bruno é uma criança inteligente, o pai menciona que dá papéis velhos para ele jogar fora, mas, quando faz o mesmo com dinheiro ou passes, Bruno ri, e não os coloca no lixo.
Vê-se que os pais fazem diversas referências à ausência da fala e à ausência da leitura e da escrita. Chama minha atenção que a demanda de que Bruno fale apareça circunscrita à sua possibilidade de estudar.
Uma tensão entre um investimento na fala e um investimento na linguagem escrita é sustentada ao longo desse período de trabalho com a criança. De início, eu me ocupo igualmente de ambos.
Os atendimentos de Bruno são gravados, e o próprio ato de gravá-los converte-se num trabalho com a fala. No início de cada sessão, coloco uma fita no gravador e registro "Hoje é dia X, gravação do Bruno". Ponho esse trecho para ele escutar e digo: "Tudo o que a gente falar sai aqui; depois a gente pode escutar". Quando ele vocaliza algo mais audível, eu mostro a Bruno esse trecho da gravação, dizendo: "Você ouviu? É você quem está falando aqui". Durante algumas semanas, Bruno parece muito interessado nessas gravações: ele mesmo pega o gravador e uma fita no armário no momento em que vamos iniciar a sessão. Além disso, ele me pede repetidas vezes para escutar trechos da gravação em curso.
A produção vocal de Bruno, que é bastante esporádica, é também espelhada em minha fala. Às vezes é possível aproximá-la de alguma forma da língua, inserindo-a em cadeias/textos em que ela pode ganhar sentido. Por exemplo, num momento em que ele vocaliza "ó" ao folhear uma revista (sem apontar para nada), eu digo "Olha que legal!", apontando uma figura naquela página. Num outro exemplo, ele produz algo próximo a "fam, fam", e eu digo "Vamos? Cê tá dizendo `vamos'? Cê tá pedindo pra ir embora? Então vamos".
O interesse de Bruno pelas gravações perdura somente algumas semanas. Ele deixa de pegar o gravador ao escolher o que leva para a sessão, e já não pede para escutar o que é gravado.
Percebo que a escolha dos objetos com os quais Bruno se ocupa tem relação com a escrita. Como relatarei a seguir, seus movimentos em direção a esses objetos mostram-se mais consistentes. Desse modo, o trabalho com a leitura e a escrita vai, pouco a pouco, ganhando mais espaço nas sessões com a criança. Pode-se dizer que o investimento terapêutico incide sobre os objetos em relação aos quais eu posso ver sinais de uma abertura e um interesse maiores por parte de Bruno.
Desde as primeiras sessões de avaliação, observo uma série de indícios de que a escrita _ aqui entendida como um Outro, isto é, como um funcionamento lingüístico-discursivo representado pela escrita daqueles que já escrevem (Mota, 1995) _ já produziu algumas marcas na produção de Bruno. O modo pelo qual ele ocupa o espaço do papel não é qualquer. Seus traçados são produzidos da esquerda para a direita, numa direção horizontal. Ao chegar à borda da folha, ele pára, ou então passa a produzir traços embaixo dessa primeira linha, sempre numa orientação horizontal e da esquerda para a direita. [Figura 1]. Esses dados são reveladores de um certo grau de enlaçamento desse sujeito pela escrita, dado que nossa escrita organiza-se ao longo de linhas horizontais, da esquerda para a direita.
Num primeiro momento, os traçados de Bruno são quase sempre circulares. Seu gesto custa a se interromper, de maneira que essas formas assemelham-se a "novelinhos" (são quase "preenchidas" por dentro). Um outra observação importante em re lação à produção de Bruno é que esses traçados sempre se dispõem numa série. Ou seja, ele não produz um "novelinho", mas uma seqüência deles. Vejo aí um outro indício de que se trata de uma criança de algum modo capturada pela escrita. Nossa escrita (alfabética) exige letras dispostas em séries.
Na maioria das vezes, um "novelinho" é emendado ao seguinte: ainda que seu gesto de traçar interrompa-se para dar início a um outro "novelinho", Bruno não deixa espaço entre as formas que produz. Mais raramente ele deixa um pequeno vazio entre um "novelinho" e o próximo. Vale notar que nenhum desses dois modos de traçar é estranho à nossa escrita, dado que na escrita cursiva as letras são emendadas umas às outras, ao passo que na escrita com letras de fôrma produzimos um pequeno espaço vazio entre elas.
Se, por um lado, todas essas observações são indicativas de que a escrita do Outro inscreveu suas marcas naquilo que Bruno produz numa folha de papel, noto que não se poderia falar em diferenciações internas em sua produção. Ele não produz distinções entre um elemento da série e o(s) outro(s), como uma escrita constituída exige (se produzimos, por exemplo, OI, trata-se de escrita, ao passo que, se produzimos OOOOO, não se poderia mais falar em escrita). Não se observa, nas seqüências traçadas por Bruno, uma forma circular seguida de uma outra não circular, por exemplo, ou, ainda, uma forma circular preenchida, e a seguinte, vazia. As "diferenças" entre um novelinho e outro (pois eles não são idênticos) parecem aleatórias, e não assinalam a inscrição de uma distinção, de uma oposição entre formas.
Há momentos, contudo, em que Bruno utiliza lápis de cores diferentes, produzindo assim uma primeira forma de diferenciação em suas seqüências. É interessante observar que isso ocorre pela primeira vez num momento em que ele toma uma folha em que eu vinha fazendo anotações sobre a sessão e produz traços por cima de minha escrita. Seria essa diferenciação por meio das cores um efeito de minha escrita, segmentada, em cima da qual ele traça? O uso de cores variadas aparecerá em outros momentos, e de modos variados: um "novelinho" de cada cor, uma linha de cada cor etc.
Minhas tentativas de introduzir outros materiais que permitam a
Bruno escrever não produzem efeito. Levo letras prontas (dados de letras, letras imantadas), mas ele as deixa de lado, continuando a produzir seus traçados no papel. Decido então "segui-lo" nessa direção, isto é, privilegiar o trabalho de produção desses traços.
Num dos primeiros atendimentos, quando ele conclui sua produção e deixa a folha de lado, eu escrevo "Bruno" e a data da sessão na parte inferior da folha. A partir daí, ele passa a me entregar a folha e a caneta quando termina seus traçados. Eu interpreto esse gesto como um pedido para que eu escreva seu nome, e o faço para ele. Depois de algumas sessões em que isso se repete, eu devolvo a caneta a ele, e proponho escrever seu nome "a duas mãos". Seguro a mão de Bruno e vou guiando seu movimento de traçar: escrevemos "Bruno". Isso volta a ocorrer na sessão seguinte.
Passam-se algumas semanas em que ele não produz nada no papel (que continua disponível sobre a mesa). Ele se ocupa de folhear revistas durante boa parte das sessões (às vezes durante sessões inteiras). É difícil dizer até que ponto se trata de uma leitura. Em certos momentos, ele parece simplesmente folhear revistas até o fim, sem se deter em nada. Outras vezes, os números parecem ser o foco de sua atenção. Há uma sessão em que ele percorre um longo livro de crônicas, parando a cada página terminada em 1: 1, 11, 21, 31, 41, até o final. Por duas sessões seguidas, ele olha longamente para uma foto que mostra os participantes do Big Brother Brasil6. Outras vezes, ele olha mais longamente para os textos do que para fotos ou figuras. O tempo de atenção é também muito variável.
Tento produzir alguma extensão dessa atividade. Pergunto se quer que eu leia algo para ele e também se há algo na revista que ele queira recortar, mas essas falas não parecem fazer efeito sobre ele. Com outra revista, faço colagens (de letras, de desenhos), propondo a ele que participe disso. Ele continua a folhear sua revista e parece ignorar o que estou fazendo.
Quando Bruno volta a trabalhar com papel e lápis, observo uma diferença significativa em sua produção: seu traçado apresenta-se ao mesmo tempo mais retilíneo, e ele se produz numa direção vertical. O efeito disso é uma semelhança com uma escrita em letras de fôrma. Às vezes ele deixa espaços entre as "letras". As diferenciações internas às seqüências continuam a ocorrer pelo uso de cores diferentes. Numa dessas produções, Bruno traça uma forma muito semelhante a um N [Figura 3]. Ao fazê-lo, ele interrompe a seqüência e deixa a folha sobre a mesa. Fica muito dispersivo, tenta ir embora da sala e não volta aos papéis nessa sessão.
Na mesma época, os atendimentos passam a incluir um novo jogo, que desempenhará um papel muito importante no trabalho fonoaudiológico com esse paciente. Entre outros brinquedos que se encontram sobre a mesa, Bruno escolhe o Cara-a-Cara. Ele levanta todas as figuras do tabuleiro e me puxa pela mão, apontando, com meu dedo, o nome escrito sob cada rosto. Tomo isso como um pedido de que eu leia para ele. Trata-se de algo que nunca havia ocorrido antes (com livros, revistas ou qualquer outro material que comportasse escrita). Eu leio o nome apontado, e Bruno passa à figura seguinte do tabuleiro, fazendo isso com todas elas (24 figuras), da esquerda para a direita, fileira por fileira. Pergunto-me se seu percurso "fileira por fileira" sinaliza outra marca de seu enlaçamento pela escrita: ao ler, nos movimentamos "linha por linha". Nesse momento, quem lê sou eu, mas considero possível que os gestos de Bruno já se encontrem de algum modo marcados pela atividade de leitura de um outro (penso no gesto de alguém que lê passando o dedo sob a linha, da esquerda para a direita). Ele repete esse jogo com o outro tabuleiro e, a seguir, com os dois tabuleiros ao mesmo tempo. Nestes, as figuras estão dispostas na mesma ordem. Bruno indica uma pessoa, espera que eu leia seu nome, aponta a mesma pessoa no outro tabuleiro, espera que eu leia de novo o mesmo nome, e então passa à figura seguinte.
Bruno retorna ao Cara-a-Cara durante muitas sessões. O jogo descrito acima se repete algumas vezes. Num dado momento, em vez de ler o nome apontado por ele, eu digo algo diferente: "menino", por exemplo, ou "menino que usa óculos". Ele insiste na leitura do nome, apertando meu dedo sobre a figura até que eu a tenha produzido. A observação de que Bruno não aceita uma outra fala que não seja a leitura do nome produz um efeito importante sobre minha interpretação de sua participação nesse jogo. Embora me ocorra a idéia de que ele possa ter memorizado os nomes (e a relação entre eles e as figuras), eu penso, pela primeira vez, que ele pode de fato estar lendo. Ainda que se trate apenas de uma possibilidade, isso provoca uma reinterpretação do que veio antes. Poderia o pedido de leitura que Bruno me dirige ser, na verdade, um pedido para que eu "emprestasse minha voz" à sua leitura?
Esse momento do atendimento teve grande importância, pois, embora não fosse possível responder a essa pergunta, sua simples formulação teve efeitos sobre minha aposta de que Bruno poderia ler (caso já não estivesse lendo àquela altura).
O atendimento é então interrompido por pouco mais de um mês, pois a família viaja para sua cidade natal para o aniversário de casamento dos avós de Bruno. Nesse período, as discussões do caso com a psicanalista trazem novos elementos para sustentar a hipótese de que Bruno esteja lendo, pois ela relata que ele reconhece (e não aceita) os "erros" de leitura que ela faz propositadamente (lendo LULA por CIRO, por exemplo).
Quando o atendimento é retomado, passo a "jogar" com a leitura dos nomes do Cara-a-Cara. Bruno aponta Roberto, e eu "leio" Rogério. Ele aponta Fernando, e eu "leio" Fernanda. Ele ri e continua apontando com meu dedo, até que eu tenha lido corretamente. Eu insisto: "Mas é José que está escrito aqui!" (quando ele aponta João). Ele segura meu dedo com força sobre a figura. Digo a ele: "Que legal, Bruno, você sabe ler!" Nesse momento, essa não é uma fala que antecipa algo que ainda não está presente, que toma como leitura aquilo que ainda não é. Bruno já pode ler, embora não seja possível caracterizar com clareza de que "modo de leitura" se trata7.
O efeito disso é a tentativa de produzir o que me parece uma importante extensão nesse jogo. Leio o nome das figuras apontadas por Bruno e, em seguida, o escrevo numa
folha (sincronizando a escrita do nome com sua leitura em voz alta). Busco "descolar" as palavras do tabuleiro do Cara-a-Cara. A palavra lida deve passar ao papel, espaço que Bruno já vinha ocupando com sua escrita embrionária. O desdobramento que desejo produzir nesse momento é que as palavras que podemos ler possam também ser escritas. Bruno aceita essa extensão, atento. Passa a colocar meu dedo sobre a figura e, a seguir, conduzir minha mão até o papel, para que eu escreva cada nome.
Tento um novo desdobramento desse jogo: escrevo um nome, recorto e dou para Bruno. Ele pega a tira de papel, mas logo a deixa de lado. Eu a coloco sobre a figura correspondente. Ele tira. Faço o mesmo com mais alguns nomes: escrevo, recorto e coloco sobre a figura. Ele sopra e faz os papéis voarem. Depois os recolhe e os põe, empilhados, sobre o tabuleiro. Na semana seguinte, vejo que ele sustenta em parte essa extensão: quando eu termino de escrever a lista de nomes, ele procura a tesoura e a põe em minha mão. Dessa vez, ele indica o nome no papel, e eu o recorto.
Há uma outra observação interessante, nesse momento: quando Bruno aponta a figura da Maria, no tabuleiro, eu digo "mamãe" (Maria é o nome de sua mãe). Ele não aceita e continua apontando a figura. Eu digo "Ué, mas a mamãe não se chama Maria?", e Bruno solta meu dedo. Esse dado faz pensar que os nomes lidos nesse jogo não necessitam retornar de forma sempre idêntica, isolada de outros elementos, para que o jogo se realize. Ele pode escutar como tal "o nome" inserido numa cadeia.
Num momento posterior, volto a propor que os nomes recortados do papel sejam colocados sobre as figuras correspondentes. Eu começo a fazê-lo, e Bruno, de início, os retira. Eu o "provoco", dando a ele uma das tiras e dizendo: "Quero só ver se você sabe onde põe!" Ele pega a tira com o nome escrito e procura a figura no tabuleiro, depositando-a sobre o rosto correspondente. Logo a retira, mas faz o mesmo com todos os nomes do jogo (pondo-os sobre as figuras, embora não os deixe ficar ali). Nesse momento, me dou conta de que vinha escrevendo os nomes em maiúsculas, com letra de fôrma, ao passo que, no tabuleiro, os nomes são grafados em letra de imprensa, com apenas as iniciais em maiúsculas. Observo que essa diferença não representa um obstáculo para Bruno.
Em certos momentos, enquanto eu produzo uma leitura silabada, sincronizada ao meu gesto de escrever, Bruno produz movimentos articulatórios, numa espécie de fala sem som.
Meu movimento seguinte é o de "convidá-lo" a escrever os nomes no papel. Numa dada sessão, quando ele me dá a caneta para escrevê-los, digo que não quero mais escrever sozinha e lhe devolvo a caneta, indicando que ele os escreva. Bruno me devolve a caneta, insistindo no pedido. Sugiro, então, que ele segure a caneta para que eu possa ajudá-lo a escrever, segurando sua mão (numa escrita a "duas mãos", como
havíamos feito anteriormente com o nome dele). Ele aceita, e escrevemos juntos toda a seqüência de 24 nomes: Bruno aponta o nome, eu o leio e ele segura a caneta sobre o papel, à espera de que eu pegue em sua mão para escrever. Ele ri ao escrever.
O trabalho é interrompido pelas férias. Quando o atendimento é reiniciado, no ano seguinte, observo que o traçado que Bruno produz sozinho mostra marcas de nosso jogo de escrever a lista de nomes. Por várias vezes, ao chegar à sessão, Bruno levanta todas as figuras do Cara-a-Cara, pega uma folha de papel e então produz os "novelinhos", agora de cima para baixo na folha, num arranjo espacial que faz pensar numa lista.
Continuo propondo uma escrita a duas mãos, e Bruno se engaja nela, bastante atento ao movimento de nossas mãos sobre o papel. Pouco a pouco, vou diminuindo o movimento de condução da escrita, tentando deixar o traçado cada vez mais por conta dele. Cabe destacar um momento importante nessa "escrita a duas mãos". Escrevemos "Clara". No momento em que chegamos ao A final, Bruno não solta a caneta (como usualmente faz, voltando-se para o tabuleiro a fim de indicar a figura seguinte). Ele segura a caneta sobre esse ponto do papel, como se quisesse continuar a traçar a partir dali. Eu volto a segurar sua mão, sem propriamente conduzir seu movimento (pois não sei o que será traçado ali), e ele produz uma forma circular (uma letra a mais? uma letra o?) [Figura 4]. Em seguida, ele larga a caneta, interrompendo a seqüência (o que é também um acontecimento novo, pois, até então, Bruno só abandonava esse jogo quando os 24 nomes tivessem sido escritos), e não volta a escrever nessa sessão. Na hora de ir embora, Bruno pega essa folha de papel, amassa e a joga no lixo.
Figura 4
Figura 5
Na sessão seguinte, Bruno mais uma vez me dá a caneta para que eu escreva os nomes. Quando eu digo que não quero escrever sozinha, ele segura em minha mão, invertendo o que ocorrera nas sessões anteriores. Novamente, eu vou pouco a pouco diminuindo a condução de nosso traçado e tentando deixar os movimentos por conta dele. Ele sorri enquanto escrevemos. Eu digo: "Que legal! Você está escrevendo". Ao final da sessão, ele amassa essa folha e a joga no lixo.
Essa escrita a duas mãos volta a ocorrer na sessão seguinte. Dessa vez, Bruno troca de posição comigo
diversas vezes: ora me dá a caneta e segura em minha mão, ora segura a caneta à espera de que eu pegue na mão dele. Tento deixar o movimento cada vez mais solto, para que ele o conduza. Embora ainda não seja possível dizer que Bruno escreve sozinho, trata-se de algo próximo disso [ver Figura 5]. Além disso, observo, pela primeira vez, que ele volta o olhar para as peças do Cara-a-Cara durante a escrita de um nome, como se precisasse "ver como é que se escreve". Mais uma vez, amassa a folha em que escrevemos e a joga fora antes de ir embora.
Depois disso, Bruno pára de escrever. Não se trata de algo inédito em seu atendimento, pois isso ocorreu antes, embora ele tenha retornado à escrita após algumas poucas sessões. De todo modo, esse "desaparecimento" suscita uma série de questões: o que teria possibilitado a Bruno sustentar tantos movimentos importantes ao longo de um período de meses de atendimento? E como se poderia entender essa "interrupção"? Quais terão sido os efeitos desse trabalho sobre Bruno e sobre sua possibilidade de ler/escrever? A continuidade do atendimento talvez me possibilite avançar no entendimento dessas questões.
UM PERCURSO INTERDISCIPLINAR
A aproximação entre clínicas não é certamente uma questão simples de se abordar, primeiro, porque encontramos em muitos pontos uma sobreposição entre as intervenções e, segundo, porque aqueles que se ocupam da clínica sabem bem que em vários aspectos sua prática ainda está por se escrever.
Em ambos os tratamentos, é possível reconhecer intervenções que encontram pontos de sobreposição. Sejam elas na fala ou na escrita, tais intervenções visam a extensão simbólica e têm efeitos sobre a constituição do sujeito. Certas diferenciações que comumente ouvimos, em que o fonoaudiólogo opera com a linguagem e o psicanalista com o sujeito, não fazem sentido. É preciso, pois, diferenciar o sujeito do indivíduo, do biológico, e, fundamentalmente, do sujeito da compreensão (o eu em Freud). A palavra "sujeito" aqui faz referência à função significante, tal como ela nos é apresentada por Lacan. O sujeito é efeito da entrada na linguagem, mas ele mesmo existe na condição de que seja ex-sistente, ou seja, que não se reduza a nenhum de seus termos. Por definição, um significante representa o sujeito para outro significante.
Certamente alguma experiência interdisciplinar nos permitia a clareza de que não buscávamos, com nossa decisão, que os distintos saberes pudessem se somar, produzindo uma ilusão de complementaridade. Situar um atendimento em uma nova clínica não significa, tampouco, que um ou outro dos profissionais abandone suas especificidades.
Tal aproximação visava antes produzir efeitos no tratamento mesmo. Primeiro, porque, a partir de que uma fala se dirija a um outro, ins-
taura-se uma instância simbólica que possibilitará desdobramentos, desprendendo o imaginário no qual essa fala a respeito da criança pode estar capturada. A entrada de um terceiro pode ser considerada, então, como um elemento importante no próprio dispositivo do tratamento.
O segundo elemento importante na direção da interdisciplinaridade nos parece ser o fato mesmo da particularidade do objeto que cada um pode recortar e que se desdobrará na escolha de uma especialidade. Assim, queremos propor, como nos aponta Coriat (1997), que o especialista em qualquer campo, pelo seu interesse e estudo de uma disciplina, contará com mais elementos que um outro para pensar, recortar, classificar, registrar e desdobrar um objeto, de modo que proponha, quando possível, um brincar mais eficaz. A título de exemplo, o corpo ganha extensões mais intensas e interessantes com um psicomotricista, o brincar com a voz com a fonoaudióloga, as articulações do saber com os psicopedagogos. A autora ressalta que não se trata de demonstrar e exercer nosso saber na cena terapêutica, mas que ali interessa desdobrar o saber da criança e certamente cada especialista poderá despertar o trabalho na criança, desde um lugar e com extensões bem diferentes.
Os relatos clínicos aqui apresentados permitem entrever que os modos pelos quais o psicanalista e o fonoaudiólogo recortam e desdobram a produção do paciente _ neste caso, a produção da escrita _ assumem contornos particulares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_________ (2002). Razão e método para apresentação de casos clínicos. Seminário proferido em 18/3/2002, na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, no prelo. [ Links ]
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NOTAS
1 Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios de Audição, Voz e Linguagem, da PUC-SP.
2 BERA, sigla para o nome em inglês do método de avaliação eletrofisiológica dos potenciais evocados auditivos do tronco cerebral.
3 Emissões Otoacústicas é o nome dado ao método de avaliação eletrofisiológica da função coclear.
4 Pai-avô é uma sugestão deste trabalho, já que Gepeto é pai, pela nomeação, mas avô pela imagem proposta nos livros, e pelo valor dessa conjugação no caso desse menino.
5 Tal proposta aparece indicada por Laznik em seu livro Rumo à palavra, a respeito do que Daniel Marcel aponta, sobre as estereotipias, para o fato de que "o papel organizador pré-simbólico destes atos ficaram letra morta" (Laznik, 1997, p. 70).
6 É possível que, nesse caso, a escolha tenha relação com a presença reiterada das formas B e Br no título do programa em questão.
7 Talvez se trate de uma leitura "em bloco", na qual as substituições ainda não podem operar, como requer a leitura de uma palavra nova a partir de uma palavra que já se lê ("ano", a partir de "Ana", por exemplo).
Recebido em maio/2003
Aceito em junho/2003.