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Estilos da Clinica
Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.10 no.18 São Paulo June 2005
DOSSIÊ
Amor e rigor ou o que pode dizer a psicanálise sobre o documentário Ser e Ter
Love and severity or what can to say the psychoanalysis about the movie Être et Avoir
Marcelo Ricardo Pereira1
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Minas Gerais
RESUMO
O documentário Ser e Ter (Être et Avoir), de Nicolas Philibert, 2002, parece ir na contramão de outros tantos filmes que abusam da licença pedagógica, ao se inspirarem numa pedagogia sacrifical. Por que esses filmes são repetidamente reproduzidos nas instâncias de formação docente? E por que professores necessitam, de maneira disciplinar, mostrarem-se abnegados ou graciosamente polidos como são seus pares no cinema? Esse texto retorna a duas das assertivas da dialética freudiana _ desejo e poder _ para entender a visada maior do discurso pedagógico moderno em sua missão agostiniana e jesuítica.
Palavras-chave: Dialética do desejo, Dialética do poder, Sacerdócio pedagógico, Psicanálise, Educação.
ABSTRACT
The document movie Être et Avoir, by Nicolas Philibert, 2002, go on the contrary of others movies which abuse of teaching licence. Why those movies are reproduced in the instances of teaching formation? Why the teachers want to present disciplined, very genteel how the teachers from movies? That text approach two principles of the dialectic Freudian power and desire - for to understand the major objective of the discourse of the modern pedagogy whose influence are from saint Augustine and from Jesuits.
Keywords: Dialectic of the desire, Dialectic of the power, Teaching sacrifice, Psychoanalysis, Education.
"É em vão que se vagueia de ciência em ciência: cada um aprende somente aquilo que pode aprender."
(Goethe)
Certa vez, Freud (1925) afirmou que era "difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. Esta constituía, é verdade, uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores". Não deixa de ser inquietante a simplicidade de uma frase como esta, pois ela nos diz sem ornatos o quanto o aspecto relacional do trato pedagógico merece realce.
Nesse sentido, sempre me perguntei por que os filmes que abordam o trabalho docente, a relação pedagógica ou o universo escolar são, em regra, compostos por professores e professoras abnegados, dóceis e devotados a uma causa sacrifical. Seja o clássico Ao meu mestre com carinho, que teve uma canção memorável, além de levar um número infindável de pessoas às lágrimas e render uma segunda versão (uma espécie de Ao meu mestre com carinho anos depois); seja o professor-poeta do açucarado Sociedade dos poetas mortos, que quis impingir aos espectadores, principalmente à juventude da recém pós-modernidade, o aforisma carpe diem; seja a professora sul-africana, negra e militante da causa étnica, do insosso e não menos maniqueísta Sarafina; seja a outra professora, agora branca e atônita, que leciona em uma escola para adolescentes afro-descendentes, revoltados e indóceis de um bairro pobre norte-americano em Mentes perigosas; seja, ainda, o professor velho e sublime, partidário e atuante do movimento comunista frente à ditadura franquista da Espanha, que conduz seus estudantes, um em especial, ao mundo doce das borboletas em As línguas das mariposas; sejam tantos outros filmes. Todos tentam nos impingir, de maneira comovente, a idéia contida na tese que Eliane Lopes intitulou como Da sagrada missão pedagógica (2003). Eis uma profissão sacerdotal, jesuítica, cujo discurso religioso se sobrepõe, senão encapsula o pedagógico.
Evidentemente, objetarão os mais apressados, argumentando que igualmente há no universo do cinema filmes que abordam, ao contrário, professores e professoras indóceis, severos e repulsivos, capazes de acordar-nos toda nossa tirania e desprezo. Lembro-me, por exemplo, de The wall e seu professor de régua em punho a castigar seu aluno poeta. Mas são faces da mesma moeda. Há uma tautologia em ambas as formas de versar o labor docente. Tanto professores do amor, quanto professores do ódio reforçam, com base em suas atitudes contraditórias, o mesmo lugar de modelo e padrão social, para que as gerações em formação, pré-politizadas diria Hannah Arendt (2002) , possam se mirar e, à sua semelhança, devam também abnegar-se à causa romanesca de um mundo melhor e de uma sociedade mais humana como se fosse possível a cada um de nós ser "mais" ou ser "menos" humano. São ambos, em verdade, professores-sacerdotes de uma mesma causa, ainda que por atitudes distintas. Repetem o velho e dual preceito: Deus e Diabo, todos dois animam os céus.
Ocorre-me, agora, a lembrança de um fenômeno que vejo também se repetir, principalmente, nas escolas particulares, que insistem na confusão conceitual entre o que é estudante e o que é cliente. É curioso e, talvez, lamentável que a escola pública, em tempos de mercado e qualidade total, muita vezes se percebe trilhando as mesmas exigências das escolas particulares, que ganharam em qualidades, mas perderam em paixões. Aqui, digo do fe nômeno que denomino de professora-aeromoça, que não deixa de seguir o mesmo preceito sacrifical daqueles e daquelas clamados no cinema. Remeto-os ao ensino infantil e aos quatro primeiros anos do ensino fundamental, quase sempre regido por mulheres daí o rótulo de aeromoça. Em regra, na entrada de cada turno as professoras acolhem seus alunos à porta da classe, do pátio ou da escola com sorrisos, falas, gracejos e simpatias de modo amorosamente pasteurizado. Recorda-me o comportamento, ainda que menos caloroso, mas também polido e incorrigível das aeromoças quando nos recebem nas salas de embarque dos aeroportos ou na porta de suas respectivas aeronaves. Não se trata de falsidades ou leviandades. Antes, ao contrário, trata-se de uma produção discursiva, tão disciplinar, quanto vigiada. As instituições às quais pertencem, as exigências das instâncias formativas, as necessidades de sobrevivência e emprego, bem como a educação familiar "humilde" e a conseqüente importação de atitudes e gestos, "fabricam" esses sujeitos que se desdobram em sorrisos diante dos pequenos. Mas por que tais professoras-aeromoças, assim como tais professores-sacerdotes necessitam, de maneira disciplinar, mostrarem-se abnegados ou graciosamente polidos?
Antes de desenhar qualquer resposta, vale voltarmos ao cinema. Estamos na classe de George Lopez, professor e personagem central de Ser e Ter (de Nicolas Philibert, 2002). Ele leciona numa escola de classe única, multi-seriada, em uma zona rural do interior da França. Sozinho, o professor prepara cada criança para o ingresso no collège-études secondaires (quinta série, no Brasil), ensinando-as não apenas a ler, escrever e calcular, mas também a conviver com a diferença, cooperar, brincar, raciocinar o mundo de várias formas. O trabalho de Philibert é um documentário de um ano letivo dessa classe única conduzida pelo professor Lopez que, no alto dos seus cinqüenta anos, está às vésperas de se aposentar.
Mas até aí esse filme não se distingue em nada dos muitos outros, que evocam, quase sempre, o mesmo matiz sacerdotal da profissão. Engano. A experiência de assistir Ser e Ter é bastante diferente daquela representada pelos filmes comuns sobre o tema da licença pedagógica. Há uma estética da simplicidade, sem a presença de arroubos de emoções ou de "moral da história". O filme parece tratar da "vida como ela é". Daí, sua genialidade. Em nenhum momento ele apela ao sentimentalismo absorto, nem sequer pretende ser uma apologia à vida simples, rural e romanceada, como poderiam pensar alguns. O documentário furta-se do panfleto ou da autopromoção, pois não resolve magicamente os conflitos profissionais, nem mesmo dá fim a algumas situações, nas quais os alunos e alunas metem-se em confusão. Lopez, que protagoniza o filme, não é uma figura excepcional, dotada de muitas qualidades ou muitos defeitos. Ele parece, realmente, uma alegoria da maioria dos professores e professoras comuns, vis e, às vezes, ridículos, que orbitam nossas vidas, quando não somos nós mesmos. Nas situações de conflito, o professor parece conduzi-las com mãos fortes, ainda que nunca excepcionais. Mas sua autoridade tranqüila desperta nossos sentidos.
Seus alunos e alunas também merecem menção. Igualmente protagonistas, eles habilmente compõem a crônica cotidiana a que o documentário se propõe. É fascinante observá-los todos em ação, não tanto por serem personagens estigmatizadas ao extremo como comiseradas, rebeldes ou poetas, próprias de filmes do gênero. Ao contrário, as crianças e suas famílias são todas comuns, evidentemente, guardadas as diferenças que encontramos em qualquer sala de aula. É envolvente perceber e entender a indisciplina contida de Jojo, que empresta seu rosto ao cartaz do filme, ou a arrogância presunçosa de Marie, a menina de traços orientais, ou, ainda, os dilemas pré-adolescentes de Julien, Olivier e Nathalie. Esta última, em especial, não abre a boca e é tida como problemática. O professor os conduz algumas vezes com rigor, outras com simpatia, outras vezes mais com uma certa moral irredutível, própria da profissão, mas nunca com muitos excessos. Ele motiva cada aluno e aluna a encontrar suas marcas, sair do bolo, dar um novo passo. Para isso, estimula-os a vencer medos e dificuldades sem mimos e sem superproteção. O tempo todo é como se ele dissesse a cada um que ele ou ela é suficientemente inteligente para descobrir isso ou aquilo por si mesmo.
Alguns podem julgá-lo severo, pois há ausência de sorrisos de aeromoça ou de uma bondade noviça, mas as crianças são maciçamente transferidas a ele. Há, sim, uma confiança desarmada, uma admiração por ele vibrar com quem aprende. E todos querem aprender, estar ali e ter algum reconhecimento do mestre. Enfim, o documentário, mais do que isto, o filme, mostra a vida como ela deve ser realmente, ou seja, uma obra viva, que nesse caso é baseada no amor e no rigor.
É sobre tais princípios que pretendo agora examinar o material de Philibert. Amor e rigor talvez sejam os desdobramentos de duas assertivas freudianas, a saber, desejo e poder. A modernidade inventou a psicanálise, e só ela poderia, pois com base num cogito, tão claudicante, quanto intencionalmente axiomático, toda uma gama de descentramentos se fez necessária. Freud, Nietzsche, Marx, os lingüistas e tantos outros, cada um a seu modo, depuseram um propósito iluminado da mística moderna ao anunciar o sujeito como efeito das relações de desejo, de poder, da materialidade histórica, do discurso; ou seja, anunciaram um sujeito opaco, residual, descontínuo. Eles dão a conhecer, em verdade, a opacidade subjetiva ou aquilo que falta ao sujeito para se pensar esgotado pelo cogito faço aqui mencionar, com efeito, o cogito cartesiano "penso, logo existo", decerto iluminado, mas igualmente perpetrador de uma dúvida.
Não podemos deixar ofuscar o brilho desse leitmotiv, qual seja, da herança dos que depuseram a motriz iluminista de explicação do sujeito. Não podemos deixar, pois, soçobrar esse legado, suavizando nossos exames com frases de efeito ou mensagens estereotipadas de filmes ou emblemas literários que corroboram para que sujeitos, indistintamente imersos nas massas, não talhem suas marcas e não se façam diferentes. Mas por que será que os filmes que inspiram uma pedagogia sacrifical ou o sacerdócio professoral insistem em ser repetidamente reproduzidos nas inúmeras salas de aula das instâncias formativas de docentes? Por que tais filmes evocam os mais bem intencionados entusiastas a proferirem análises rasas e frases de efeito, capazes de cegar os mais dóceis e matar a fome apenas de invertebrados?
Ora, para que a "implicação" de cada sujeito à sua própria causa ou diferença seja evitada. Para que o domínio pedagógico retorne ao seu nunca distante capital original, a saber, sua missão jesuítica de arrebanhar e doutrinar ovelhas. Para que os ideais protestantes e católicos da respectiva reforma e da contra-reforma de multiplicar seus seguidores, prescrevendo-lhes padrões e modelos a se imitar, sejam-lhes conferidos. Mas o discurso pedagógico lida não com ovelhas, mas com sujeitos cuja inadequação, a opacidade e a inefabilidade os induzem à subversão - inspiro-me, evidentemente, em Lacan e nos seus escritos sobre Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960).
É nesse viés que evoco a psicanálise, mesmo porque dela sou se quaz e é ela que anima meu trabalho e meu trato acadêmico. Evoco-a para nos orientar no exame do desejo e do poder, requeridos para dar conhecimento ao que traduzi em Ser e Ter como amor e rigor. Retorno aos dois princípios que me inspiram esse escrito.
Sabemos, desde a antropologia, que o animal humano nasceu prematuro, frágil e desprovido de um corpus biológico capaz de sobreviver aos caprichos da tempestuosa natureza. Ainda que tenhamos sido munidos de visão tridimensional, bipedismo, polegares opositores, trato ereto e intimidador, entre outras tantas sofisticações orgânicas, tivemos de correr contra o tempo ou contra a morte. Nenhuma tecnologia natural fora capaz de antecipar-nos à nossa prematuridade. Daí, tornarmo-nos sujeitos de um destino. Esse destino é o Outro o Outro da linguagem , que ora cuidador, ora encarne de uma lei, impele-nos uma tração. Nossa precocidade nos faz pulsão, antes do instinto. Fomos e somos levado a demandar teimosamente um Outro que nos eduque. O humano tem a necessidade de educadores para nutri-lo, amá-lo, orientá-lo ou guiá-lo permanentemente, pois somos pela própria natureza mal-acabados.
Cada sujeito, então, é impulsionado pela linguagem a buscar no Outro o signo de sua ignorância. Mas, o pior: o Outro também é desprovido desse signo, mesmo que o sujeito suponha que a ele nada falte. Ora, esse signo que falta, esse buraco, esse desamparo: esse ex-nihilo! E o que mais faz o sujeito senão recusar tal ex-nihilo, o nada, o vazio absoluto, que é perceber-se não mais sob o manto emudecedor da natureza, mas tão-somente sob o manto manquejante de um Outro criado pela linguagem!
Desse modo, todo sujeito se faz avançar tracionado pela presença desse Outro suposto saber ou suposto não faltar. Reconheçamos, com De Lajonquière, que "tudo aquilo que aninha-se no sujeito, em última instância, é do Outro. As pulsões são o efeito do pulsionar do Outro, pois ele é aquele que sustenta, pulsiona o sujeito a viver avançando" (1992, p. 159).
Lopez, no filme, pode muito bem ser aquele que encarna esse Outro, como lugar, para cada sujeito que a ele se destina ou por ele é pulsionado: Jojo, Marie, Olivier, Julien, Nathalie e muitos dos demais. Em outra parte, afirmei (Pereira, 2003) que a aprendizagem tem o Outro como visada e enfatizei que a presença de um professor, de uma professora, colocados numa determinada posição, pode ou não forjar o ideal pedagógico. Nesse sentido, ressalto que a aprendizagem se dá via discurso do Outro, já que diz da dispersão daquele que o enuncia. Nos discursos sempre se fala de algum lugar que não permanece idêntico. Quando o professor Lopez ensina, coloca-se a falar ou faz fazer é como se encarnasse plenamente o mestre, sem falhas, que seu desejo o impulsionou a ser. Mas o fato é que sua finitude o induz a posicionar-se de modos diferentes a cada instante ou a cada insurgência do real. Ele jamais permanecerá idêntico a si mesmo. Isso quer dizer que Lopez, ou qualquer outro, como sujeito que ocupa um lugar de mestria, é marcado por um impossível de educar, uma vez que jamais poderá plenamente encarnar esse lugar. Sabemos que o mestre é aquele que supostamente suportaria ser idêntico ao seu próprio significante, como bem acredita o militar que afunda com seu barco. Entretanto o discurso pedagógico é disperso o suficiente para que qualquer ilusão de colagem significante seja pouco exeqüível.
Ora, por mais diplomado ou experiente que seja, Lopez sabe (ou nos dá a entender) que, dadas insurreições do real, contradições do cotidiano e imprevisibilidades de gesto, que lhe é impossível colocar em prática métodos suficientemente sólidos, que lhe garantam resultados precisos. É talvez com base nessa noção que ele porta um desmentido ao parecer flanar pelas intempéries cotidianas que o atravessam. Ele pode bem abrir mão dos incitamentos de ansiedade ou dos arroubos de emoção, pois sabe que sua prática é demasiadamente pouco firme para que ele possa exigir-lhe excelências. Ao contrário, Lopez parece mesmo assentir com a idéia de que um professor não é um mestre identificado exclusivamente com o seu próprio significante. Melhor que isso: ele assente com a idéia de que um professor só é um mestre por instantes, nunca capturáveis, apenas desejados.
Do outro lado, temos Jojo, por exemplo, uma criança emblemática que expressivamente parece submeter seus objetos de criação ao olhar do professor. Ou, no dizer de Freud, seu caminho da ciência passa tão-somente através daquele docente. Jojo, por sua vez, aprende com um professor que não é qualquer um, mas aquele revestido por ele de uma importância especial, pois torna-se a figura a quem será endereçado seu desejo enquanto sujeito Não há como negligenciar que os aspectos relacionais são fundamentais na ligação pedagógica, pois ambos, professor e aluno, prestam-se a servir um ao outro, sob a tutela de um desejo que foge ao sentido, mas instaura essa servidão voluntária.
Ao se teorizar com Cristina Kupfer (1992), reconhecemos que, na relação pedagógica, uma transferência de amor se produz quando o desejo de saber do aluno aferra-se a um elemento particular, que é a pessoa do professor. O aluno atribui, então, um sentido especial àquela figura determinada pelo desejo. O professor, por sua vez, esvaziado de seu próprio sentido, torna-se objeto de investimento de algo pertencente ao aluno, que lhe fixou um outro sentido tão singular, quanto inconsciente. Contudo, todo docente, de uma maneira ou de outra, tende a apoderar-se desse sentido singular investido em sua pessoa pelo aluno. Dessa posse deriva-se um poder, pois a transferência de sentido, operada pelo desejo, é também uma transferência de poder. Daí, desejo e poder.
O aluno quer que seu professor suporte esse lugar do amor e permaneça ali onde o colocou, mas não é tão fácil. Esse professor é também um sujeito marcado pelo seu desejo inconsciente, que o impulsionou à mestria e o fará exercer seu poder. Se assim for, todo professor antes da prudência, antes da antecipação, tenderá a abusar do lugar que ocupa, subjugando seu aluno, impondo-lhe suas próprias concepções, valores e modelos predeterminados.
Ser e Ter remete-nos ao jogo dialético do desejo que, invariavelmente, induz qualquer professor ao impossível. De um lado, como sujeito, há o desejo que o impele a ocupar o lugar de mestre; do outro, precisa renunciar a esse desejo para tornar-se um depositário esvaziado dos sentidos imprimidos por um aluno. Lopez, assim o vejo, ora parece existir e ora parece desaparecer; ora age com rigor e mestria, ora deixa-se declinar, pois admite que sua permanência é fugaz e sua incompletude é o seu limite. Ele parece substituir o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo. É nesse sentido que Freud pode asseverar que não há, propriamente, uma wissentrieb (pulsão de saber), que tudo visa dominar, garantindo ao mestre o saber pleno sobre o que professa. Por isso, esse saber efetivo é, genuinamente, meio de gozo. Entretanto, antes de qualquer pulsão de saber, há no humano uma pulsão escópica, nunca inteiramente sublimada, que nos induz ao "amor à verdade" à"paixão pela ignorância", diria Lacan, ou seja, nos induz a uma ausência de sentido (de saber) que explique precisamente a experiência (Pereira, 2000). O trabalho pedagógico se efetua ao fazer com que o mestre que o compõe desapareça. Sua prática sempre revela um não-sentido, uma ignorância, no qual se encontra uma verdade subjetiva impossível de esclarecer-se em palavras. Para isso, o lugar do professor é um lugar desejado na ilu são de que haja um saber mestre que diga qual é o sentido do sujeito. É um lugar que precisa permanecer vazio, pois também é trabalho do professor, da professora, tornar possível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão excluídos dele, mas que o desejam e pelo qual não poderiam desejá-lo se já estivesse preenchido por um mestre todo saber. Como afirmou Marilena Chauí (1979), porque existe o lugar do professor, mas existe como lugar vazio, todos podem desejá-lo e ninguém pode preenchê-lo senão sob o risco de destruí-lo.
Já do ponto de vista da dialética do poder, podemos afirmar, desde as recolocações de Freud (1937) acerca das premissas de Kant, que o ofício de educar (bem como o de governar e analisar) exprime um "poder nu" sobre o sujeito - termo mencionado por Enriquez (2001) -, ou seja, um poder sem mediação. Esse poder se exerce diretamente sobre o corpo daquele que aprende, sem necessariamente haver a obrigação de ser intermediado por uma técnica ou por um conjunto de prescrições e procedimentos a se seguir. Diferentemente de um advogado ou de um engenheiro, por exemplo, o professor não pode, com efeito, gozar de resultados externos à sua prática. Seu ofício faz com que o sujeito que a ele se submete interiorize o sistema de normas em vigor e se comporte segundo o modelo dominante prescrito pela sociedade, mas sempre de maneira singular, nunca padronizada. Isso é diferente de defender uma causa judiciária ou produzir uma peça mecânica, cujos resultados são, primordialmente, externos. Lembremo-nos, por exemplo, das cenas em que o professor Lopez exerce seu governo sobre o subversivo e dissimulado Jojo ao fazê-lo lavar-se após determinada atividade pouco asseada ou ao fazê-lo permanecer realizando seu exercício escrito, nunca terminado. Ambas as tarefas foram por demais proteladas, a despeito da condução de Lopez. O professor parece segurar bem essa corda. Por mais que intervenha, ele demonstra saber que não terá uma peça, uma causa judiciária, ou mesmo, um exercício ou as mãos tecnicamente limpas ao final do processo. Ele terá de se contentar com o impossível do pleno exercício do poder e terá de tolerar as expressões do real do corpo, isto é, do modo como esse corpo se coloca. Por isso, muitas intervenções ficam sem respostas, muitas exigências caem no vazio. Como diz Freud, é necessário pôr a prudência antes do gozo, antecipar-se à repetição. Um docente prudente entende que seu trabalho, com efeito, é sempre um eufemismo das mais severas ortopedias pedagógicas.
A personagem central de Ser e Ter parece mesmo ser sabedora de sua prudência, mas não mestre dela. Trata-se, antes, de um saber não sabido, sobre o qual um mestre não admitiria não saber. Lopez não opera através de risos graciosos de aeromoça, tampouco através da abnegação sacerdotal exigida pela ortopedia pedagógica e pelas engenharias da obediência. Não precisa. Ele já tolera em si a marca da finitude. Ele pode bem deixar a cena, pois seu desejo de ser mestre apenas o humaniza e seu exercício de poder apenas o re mete ao impossível de tudo conquistar a partir dele. A imortalidade reclamada pelo mestre parece fazer muito pouco sentido no que concerne a Ser e Ter. Talvez, agora, estejamos em melhor posição para responder porque as professoras-aeromoças, assim como outros professores-sacerdotes necessitam, de maneira disciplinar, mostrarem-se abnegados ou graciosamente polidos. Pelo gozo da imortalidade, ou, pelo menos, da imortalidade da palavra, da sua palavra. Pelo gozo de triunfar sobre a natureza e de ter o signo da inversão do nosso destino antropológico prematuro. Pelo gozo de se identificarem com o significante da mestria que os impulsionam a comandar os seus barcos e até morrer (sem morrer simbolicamente) por eles. Quiçá queiram mesmo espelhar o mestre maior conferido ao discurso pedagógico moderno, desde as reformas, desde os motivos jesuíticos, o "mestre interior" ao qual Agostinho (1973) se referira: Cristo. Quem mais poderia ser senão aquele que, mesmo sendo filho, como cada um de nós, permanece sendo mestre? Quem mais poderia ser tão inesquecível ou tão imortal ao mesmo tempo que é carne? Quem mais mereceria meu maior e mais inculcado espelhamento?
Estou persuadido a concluir que o ato cotidiano do professor Lopez diante daquele grupo de alunos documentado no material de Philibert é um ato de amor, longe das impregnações folhetinescas ou religiosas emprestadas a esse termo. Seu ato declina em si esse verbo, mestre ideal, revestido de imagens, sabedor de tudo, para fazer valer um professor que admite-se em sua impossibilidade, que inventa o caminho e que faz criar no sujeito sua marca de inclusão. Sua autoridade tranqüila, acredito, faz implicar um sujeito na sua pura diferença, retira vozes imaginárias das exigências ortopédicas e faz esvaziar as regras moralizantes do trato pedagógico. O professor mostrou-se capaz de renunciar a sua figura, aos benefícios imaginários de sua função e, assim agindo, sob a tutela do desejo, permitiu talvez um garante das leis estruturantes daqueles sujeitos. Ele pouco ou nada sabe disso: trata-se de um saber não sabido, somente precipitado em ato, que remete o sujeito a um traço simbólico, e não, à sua imagem de professor em seu desejo de domínio. Esse professor parece captar seu acometimento oportuno, mesmo de maneira ignota, sendo que, para isso, não precisa fazer semblantes de aeromoça e nem gestos de sacerdotes, que tanto mais abnegados, mais serão decerto impostores.
Referências Bibliográficas
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Recebido em setembro/2004
Aceito em novembro/2004
1 Psicanalista, professor da FAE/UEMG.