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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.2 São Paulo May/Aug. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i2p262-275 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i2p262-275

DOSSIÊ

 

Psicanálise e educação escolar: ressonâncias de Sándor Ferenczi para uma pedagogia do cuidado

 

Psicoanálisis y educación escolar: resonancias de Sándor Ferenczi para una pedagogía del cuidado

 

Psychoanalysis and school education: resonances of Sándor Ferenczi for a care pedagogy

 

 

Alexandre Patricio de AlmeidaI; Alfredo Naffah NetoII

IPsicanalista, Docente da Universidade Paulista. Doutorando em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: alexandrepatriciodealmeida@yahoo.com.br
IIPsicanalista, Professor Titular em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: naffahneto@gmail.com

 

 


RESUMO

Pretende-se, neste artigo, explorar a possibilidade de propor uma ação educativa, respaldada na ética do cuidado, orientada pelas contribuições da teoria psicanalítica de Sándor Ferenczi. Para tanto, os autores iniciam o texto com uma breve discussão sobre a atual situação da educação escolar, apontando a necessidade de se atentar à dimensão do afeto e das emoções dentro do campo pedagógico. Em seguida, sustenta-se a discussão pela apresentação de alguns aspectos centrais do pensamento ferencziano. Por fim, postula-se, por meio deste diálogo entre psicanálise e pedagogia, construir uma conduta de ensino apoiada na empatia, na criatividade, na liberdade de expressão dos alunos e na autorreflexão dos professores.

Palavras-chave: psicanálise; Sándor Ferenczi; educação; escola.


RESUMEN

Se pretende, en este artículo, explorar la posibilidad de proponer una acción educativa, respaldada en la ética del cuidado, orientada por las contribuciones de la teoría psicoanalítica de Sándor Ferenczi. Para ello, los autores inician el texto con una breve discusión sobre la actual situación de la educación escolar, apuntando la necesidad de atentar a la dimensión del afecto y de las emociones dentro del campo pedagógico. A continuación, se sostiene la discusión por la presentación de algunos aspectos centrales del pensamiento ferencziano. Por último, se postula, por medio de este diálogo entre psicoanálisis y pedagogía, construir una conducta de enseñanza respaldada por la empatía, la creatividad, la libertad de expresión de los alumnos y la autorreflexión de los profesores.

Palabras clave: entre psicoanálisis; Sándor Ferenczi; educación; escuela.


ABSTRACT

In this article, we intend to explore the possibility of proposing an educational action, supported by the care ethics, guided by the contributions of Sándor Ferenczi's psychoanalytic theory. To do so, the authors begin the text with a brief discussion about the current situation of school education, pointing out the need to pay attention to the dimension of affection and emotions within the pedagogical field. Next, the discussion is supported by the presentation of some central aspects of Ferenczian thought. Finally, through this dialogue between psychoanalysis and pedagogy, it is postulated to construct a teaching behavior based on the students' empathy, creativity and freedom of expression.

Keywords: psychoanalysis; Sándor Ferenczi; education; school.


 

 

Desde a publicação de Freud e a educação: o mestre do impossível, em 1989, de autoria de Maria Cristina Kupfer, muito tem se discutido a respeito dos possíveis diálogos que poderiam existir entre a teoria psicanalítica e o contexto educacional contemporâneo, assim como a intersecção da obra freudiana com o arcabouço teórico da pedagogia. No entanto, apesar de passados trinta anos após uma publicação tão rica e original, pouco se tem pensado a respeito da relação da educação com as contribuições de outros autores do campo psicanalítico. Pensamos que a pedagogia, assim como a ação educativa, de fato, só tem a ganhar quando intercalada às tessituras desenvolvidas pelos estudiosos da psique humana. Neste artigo, nos debruçaremos sobre algumas das principais ideias de Sándor Ferenczi, tecendo algumas possíveis reflexões deste analista eminentemente clínico e sensível, a fim de construirmos uma breve noção do que denominamos de uma "pedagogia do cuidado", voltada ao tato, à delicadeza e à empatia do educador ao se colocar perante o seu educando. Fatores, esses, imprescindíveis aos nossos dias atuais.

 

A educação e uma psicanálise sensível

(...) Num quarto onde existe uma única vela, a mão colocada perto da fonte luminosa pode obscurecer a metade do quarto. O mesmo ocorre com a criança se, no começo de sua vida, lhe for infligido um dano, ainda que mínimo: isso pode projetar uma sombra sobre toda a sua vida. É muito importante entender a que ponto as crianças são sensíveis; mas os pais não o creem; não podem imaginar a extrema sensibilidade de seus filhos e comportam-se, na presença deles, como se as crianças nada sentissem diante das cenas excitantes a que assistem. (Ferenczi, 1928a/2011, p. 5-6)

Parece óbvio dizer que o processo educativo possui um impacto crucial sobre o desenvolvimento do ser humano. Contudo, por mais que esta afirmação soe um tanto quanto redundante, cremos que nunca foi tão urgente e necessário repensar a conduta e a prática dos educadores dentro do contexto educacional atual. Acreditamos que o mal-estar psíquico vivido na escola contemporânea não tenha explicações apenas no campo psicológico, pois ele está em sintonia com as transformações sociais em curso. A sempre mencionada crise nas instituições sociais de referência (como a família, o estado, a cultura, etc.) e todo o conjunto de mudanças paradigmáticas que as mesmas atravessam (e são por elas atravessadas) parecem sustentar o descrédito nas instituições de um modo geral, entre as quais a escola ocupa um lugar significativo.

É praticamente impossível, no entanto, falar da expressiva crise educacional que nos atinge, sem mencionar as relações afetivas que constituem as bases do meio escolar. Em função deste pressuposto, buscar subsídios que enriqueçam o processo de reflexão desta problemática, em outras áreas do conhecimento e das Ciências Humanas que não sejam somente derivadas diretas da pedagogia, parece ser uma condição imprescindível para sustentar e dar corpo a uma nova ação educativa que promova transformações relevantes no processo de ensino-aprendizagem. Para isso, faz-se necessário, primeiramente, a ampliação da visão de sujeito. Sujeito este que ocupa um lugar central dentro do constante desafio que circunscreve o árduo percurso de aprender (e vir a ser, como dizia Winnicott1).

Nesse sentido, é necessário que nos atentemos à dimensão da complexidade que envolve o ato de educar. Realizar um trabalho docente, que compreenda a visão de sujeito, abrangendo os seus devidos aspectos cognitivos, sociais e emocionais é um desafio que ultrapassa as barreiras impostas pela atual formação do professor. É preciso ir mais a frente, e buscar recursos que auxiliem o educador a compreender o próprio sentido de sua atividade docente. Estamos falando, aqui, de um movimento intrínseco, uma reflexão a partir de sua própria prática. Esse exercício de "olhar para si", a nosso ver, pode ser o primeiro grande passo para nos atentarmos às condutas engessadas que tanto prejudicam os processos de aprendizagem. Philippe Meirieu, em seu livro O cotidiano da escola e da sala de aula: o fazer e o compreender, aponta a conduta técnica e mecânica exercida por alguns professores que se acostumam a uma prática dogmática – fator que, gradativamente, os faz perder o contato direto com a dimensão sensível necessária ao lidar com o ser humano. Citamos o autor:

Portanto, ensinar não significa apenas pôr em prática um conjunto de competências separadamente: escolher um exercício e fazer com que reine a ordem, explicar um texto e corrigir trabalhos... Significa tudo isso sem dúvida, mas com "alguma coisa mais", "alguma coisa" que, de resto, os alunos reconheçam suficientemente bem, "alguma coisa" que não é redutível ao carisma individual e, menos ainda, a uma capacidade relacional. "Alguma coisa" que, ao contrário, remete a uma "força interior", uma "força" que expressa uma coerência e testemunha um projeto. Uma força da qual emana o sentimento de que o homem e a mulher que ensinam aqui estão no lugar certo. Seu ofício tem sentido para eles. (Meirieu, 2005, p. 18)

As observações de Meirieu assinalam o que, a nosso ver, corresponde a real essência do ato de educar. Ensinar não exige do professor, unicamente, uma conduta dirigida somente pela afetividade. O exercício docente demanda planejamento; organização; didática; comprometimento com o saber; mas, sobretudo, exige "alguma coisa mais". Logo, pensamos que essa "alguma coisa" que Meirieu se refere ao longo de seu texto está voltada ao nosso autoconhecimento, às nossas próprias indagações e, acima de qualquer coisa, à nossa capacidade de se transformar e transformar o outro. Sob essa óptica, o uso da psicanálise é inegável.

Contudo, a aproximação entre psicanálise e educação nunca foi pacífica. Vejamos:

Desde Freud, os psicanalistas tem chamado a atenção a diversas distorções e sofrimentos oriundos do processo educativo, mas a possibilidade da psicanálise contribuir direta ou indiretamente para o trabalho do educador não é algo facilmente aceitável. Se em algum momento Freud supôs que a pedagogia, esclarecida pela psicanálise, pudesse reformar os seus métodos e seus objetivos a fim de minorar o sofrimento neurótico, ele acabou por desistir desta possibilidade. Alguns autores sustentam enfaticamente que não é possível uma "pedagogia analítica", e que, compreensivelmente, o mesmo indivíduo não pode ocupar ao mesmo tempo o lugar de educador e analista. (Gurfinkel, 2016, p. 17)

Ora, antes de qualquer coisa, para embasarmos essa discussão no âmbito epistemológico e histórico, é indispensável que recorramos às bases estruturais do arcabouço psicanalítico, para que, por meio delas, possamos trilhar uma possível interlocução entre a ciência freudiana e a educação escolar. Em 1913, o próprio Freud, em um texto chamado O interesse da psicanálise para as ciências não médicas, se propõe a articular, através de um subitem intitulado O interesse para a pedagogia, algumas das colaborações fundamentais de sua ciência à educação. Ele nos dirá que:

A psicanálise revelou os desejos, pensamentos, processos de desenvolvimento da criança; todos os esforços anteriores eram incompletos e errôneos, porque deixavam completamente de lado o importantíssimo fator da sexualidade em suas manifestações físicas e psíquicas. [...] Quando os educadores tiverem se familiarizado com os resultados da psicanálise, acharão mais fácil admitir certas fases do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não correrão o perigo de superestimar impulsos instintuais socialmente inúteis ou perversos que surgirem nas crianças. (Freud, 1913/2012, p. 361-362)

Neste recorte, percebemos o quanto o mestre de Viena nos convida a repensar o papel do educador, tomando como referência as descobertas psicanalíticas – aqui, mais precisamente, ele destaca a importância constitutiva do papel da sexualidade no desenvolvimento da criança. Todavia, "o 'interesse pedagógico' da psicanálise, conforme os termos de Freud (1913), está longe de ser um campo de grandes acordos no decorrer dos tempos. Nele ressoa, inevitavelmente, a história do debate mais amplo sobre a aplicação da psicanálise além da cura" (Lajonquière, 2017, p. 244). A própria noção de sexualidade infantil ainda é, lamentavelmente, bastante esquecida e pouco mencionada nos vértices da formação pedagógica.

Apesar das diferenças estruturais (e ideológicas) que existem entre a psicanálise e a pedagogia2, acreditamos que um educador que "beba da água freudiana", seja pelo viés do estudo teórico, ou pela prática subjetiva, fruto de sua própria análise pessoal, nada terá a perder no trato diário com seus alunos e na conduta didática de suas aulas. Muito pelo contrário, a psicanálise abarca uma série de questões e assuntos que não foram diretamente desenvolvidos pela pedagogia, mas tem em comum, o mesmo fio condutor: o ser humano e todas as suas dimensões que o estruturam. Nesse sentido, podemos realizar muito mais aproximações do que distanciamentos. No entanto, este desdobramento "exige, como primeira medida, deixar de lado a ilusão profilática de forma a liberar a aplicação da psicanálise de toda a tendência técnico-instrumental traiçoeira da ética psicanalítica" (Lajonquière, 2017, p. 252).

Freud, não apenas pensou na possibilidade reducionista (e ilusória) de uma suposta "pedagogia analítica", mas finalizou o seu texto de 1913, propondo que "laços" entre outros saberes e a psicanálise, pudessem ser construídos de modo enriquecedor (e visionário). Em suma, não se trata de pressupor que Freud, num primeiro momento, iludiu-se com a possibilidade da institucionalização real (e prática) de uma educação menos repressora. Ao contrário, suas ideias sugeriam uma espécie de intervenção criativa e ousada na conduta dos adultos em relação às crianças, ou seja, "Freud almejava que os adultos pudessem vir a endereçar a palavra às crianças em nome de outra coisa que não a moral de seu tempo" (Lajonquière, 2017, p. 255). Contudo, apesar de ter se colocado contra a pedagogia hegemônica de sua época, Freud abandonou o tema educacional ao decorrer da evolução de sua obra. Foi Sándor Ferenczi (1928), conhecido como um analista otimista e sensível, quem resgatou a proposição de Freud de que o processo analítico poderia ser chamado de uma "pós-educação" e, foi ainda mais adiante, com uma profecia um tanto quanto idealizada:

Freud chamava à psicanálise uma espécie de pós-educação do indivíduo, mas as coisas tornaram-se de tal natureza que não tardará muito para que a educação tenha muito mais a aprender da psicanálise do que o inverso. A psicanálise ensinará aos pedagogos e aos pais a tratar suas crianças de modo a tornar supérflua qualquer pós-educação. (Ferenczi, 1928a/2011, p. 14)

De acordo com uma matéria publicada em janeiro de 20193, na revista Nova Escola, o nosso país está entre os 10 mais desiguais do mundo, possuindo quase 12 milhões de analfabetos e mais da metade dos adultos entre 25 e 64 anos não concluíram o Ensino Médio. Além disso, temos quase dois milhões de crianças e jovens de 4 a 17 anos fora da escola e 6,8 milhões de crianças de 0 a 3 anos sem vaga em creches. Esse cenário, no entanto, é o reflexo de décadas de descaso de uma nação que nunca colocou a Educação entre as prioridades dos planos políticos e estruturais. Soma-se a esses dados a completa falta de infraestrutura presente nas instituições públicas escolares: 14,3% das escolas não possui energia elétrica, esgoto, água e banheiro dentro do prédio e 55,2% não possui biblioteca ou um espaço para leituras.

Mediante a um contexto educacional que beira os farrapos e o colapso (percebido pela leitura dos dados acima), não seria o momento de apostarmos numa perspectiva mais otimista? O que nos faz pensar o quanto a infância da contemporaneidade demanda um cuidado específico que é pouco ponderado dentro do paradigma educacional. Aliás, as questões afetivas, quando trabalhadas por um professor que esteja munido deste conhecimento, consegue ultrapassar obstáculos que, lamentavelmente, ainda estão presentes em nosso cenário educacional. A escuta de um educador presente; a sensibilidade de se envolver com a história pessoal do aluno; e, a capacidade de sentir com ele suas próprias dificuldades, são fatores que podem amenizar o sofrimento imposto ao campo educacional por meio do descaso do Estado. Ao fecharmos a porta de nossas salas, a relação que se estabelece entre professor-aluno é um universo potencial para ocorrer transformações. Porém, isso não é nenhuma novidade4. O que ocorre, é que há tempos essa conduta vem sendo desvalorizada e esquecida pela imposição de um ensino mecânico que priorize resultados, apenas, no rendimento quantitativo.

Nesse ponto, vamos de encontro ao pensamento de Sándor Ferenczi. Ao nos dizer que "a psicanálise ensinará aos pedagogos e aos pais a tratar suas crianças de modo a tornar supérflua qualquer pós-educação" (Ferenczi, 1928a/2011, p. 14), ele acredita que o estudo da teoria psicanalítica tende a possibilitar ao cuidador o desenvolvimento de uma conduta mais sensível e empática diante do ser humano que está em formação – o infante. Esse autor inovador (e corajoso) nos permitiu refletir sobre a existência de um manejo psicanalítico ancorado na empatia e no tato do analista5. Recursos que, por sinal, também são indispensáveis ao exercício pedagógico. Citamos Ferenczi:

Adquiri a convicção de que se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico, de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada [...]. O tato é a faculdade de "sentir com" (Einfühlung). (Ferenczi, 1928b/2011, p. 31, itálicos do autor)

Ao nos depararmos com a obra de Ferenczi, ficamos com a sensação de dúvida e indignação de como um psicanalista desenvolveu ideias tão revolucionárias, em uma época onde a ortodoxia da clínica interpretativa imperava. O autor húngaro foi um dos fundadores da psicanálise, ao lado de Freud, mas ao mesmo tempo, um clínico irreverente e um pesquisador incansável, contestando tudo que acenasse para uma suposta estagnação. O que caracterizou, especialmente, o arcabouço ferencziano foi a sua preocupação com a técnica e o manejo clínico e, diferente de Freud, suas teorias estavam diretamente ligadas à sua atuação prática, o que lhe conferiu um caráter inquieto, de um psicanalista não preocupado com as normatizações da psicanálise, mas comprometido com o cuidado de seus pacientes.

Nesse sentido, Ferenczi irá nos apontar a fragilidade (ou narcisismo) do analista que nega suas inseguranças através da imposição de certezas. Ao questionar a prática clínica ortodoxa, ele abre espaço para pensarmos a própria dimensão formativa do analista, questionando a postura inflexível e autoritária exercida por alguns deles. Citamos o autor:

Nada de mais nocivo em análise do que uma atitude de professor ou mesmo de médico autoritário. Todas as nossas interpretações devem ter mais o caráter de uma proposição do que de uma asserção indiscutível, e isso não só para não irritar o paciente, mas também porque podemos efetivamente estar enganados. [...] Do mesmo modo, a confiança em nossas teorias deve ser apenas uma confiança condicional, pois num dado caso talvez se trate da famosa exceção à regra, ou mesmo da necessidade de modificar alguma coisa na teoria em vigor, até então. (Ferenczi, 1928b/2011, p. 36)

Ao questionar a postura rígida e narcísica de alguns analistas, Ferenczi assinala a necessidade da 2ª regra fundamental da psicanálise, ou seja, quem quiser ser analista, deve ser ele próprio, muito bem analisado. Será durante a sua própria análise que essa postura autoritária que camufla a fragilidade e a insegurança do analista, poderá receber outro sentido, sendo, aos poucos, dissolvida. Ferenczi prioriza, portanto, a capacidade do analista desenvolver humildade e rever, constantemente, durante a sua prática clínica, os seus possíveis erros. Deste modo, as fundamentações teóricas e, sobretudo, clínicas da psicanálise ferencziana e dos princípios de uma educação mais humana se intercruzam indubitavelmente. Em outras palavras, podemos dizer que a escola é um espaço único que tende a promover os aspectos cognitivos, emocionais, e psíquicos dos alunos, contemplando os três, de modo efetivo, quando comprometida com a ética do cuidado. Isso significa que a função escolar não se restringe somente à delimitação de tarefas pedagógicas e de uma rotina tecnicista, pois para além do que é explicitado, existe um mundo implícito, subjetivo e invisível, repleto de manifestações emocionais, não verbais, que agem nas entranhas do aluno, podendo levá-lo ao sucesso ou, lamentavelmente, ao fracasso. Daí a importância da discussão sobre a participação do inconsciente no processo de produção do conhecimento e das relações sociais que emergem do universo educacional, o que acaba por justificar, também, a necessidade de uma constante revisão da conduta docente, dissolvendo a imposição autoritária de certezas que delimitam direta e indiretamente o espaço disponível para dúvidas e aproximações.

A análise do professor, realizada durante a sua prática docente tende a promover mudanças em seu próprio interior, tanto ao que tange a seus aspectos pessoais, quanto aos profissionais. Um educador que revê constantemente a sua conduta, desenvolve a humildade para reconhecer os seus erros e, por conseguinte, modifica-los. Isso produz um enriquecimento do próprio sujeito como ser humano e, sobretudo, como um profissional capaz de transformar a inércia de uma prática engessada.

Iniciamos esta introdução com uma citação do texto "A adaptação da família à criança" (1928a), uma obra extremamente significativa de Ferenczi que colore o seu amadurecimento teórico. O psicanalista de Budapeste nos diz que é fundamental entender "a que ponto as crianças são sensíveis", ao passo que também afirma a importância do desenvolvimento de uma infância saudável e emocionalmente equilibrada, distante, na medida do possível, de qualquer experiência traumática e dolorosa. Isso nos faz pensar que uma conduta abusiva (ou indiferente) de um professor em nossa infância pode resultar nas mais profundas sombras que nos obscurecem (e atormentam) em inúmeros momentos de nossa vida adulta. Essa postura (fria, mecânica e distante), somada a todos os problemas que atravessam o campo educacional de nosso país, resultaria, muito provavelmente, em um caos total do processo de desenvolvimento da criança.

Ferenczi, em seu artigo de 1928a, afirma que "o ambiente precisa se adaptar àquele que chega, acolhendo-o de maneira ativa" (Kupermann, 2017, p. 21). Através deste texto, tão importante ao arcabouço psicanalítico, percebemos que:

A hospitalidade se apresenta, assim, como o primeiro princípio da ética do cuidado na psicanálise, de modo a permitir aos pacientes "(...) desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos de vitalidade positivos e razões para continuar existindo (Ferenczi, 1959, p. 51)". (Kupermann, 2017, p. 21)

Ampliamos a discussão, promovendo algumas possíveis reflexões acerca da ética do cuidado na educação – parafraseando Kupermann. O pensamento inovador de Ferenczi nos tira de uma posição confortável, produzindo inquietações que, muito embora, sejam difíceis de aceitar a princípio, libertam o professor das amarras de uma técnica mecanicista e afastada da dimensão humana. Que possamos, então, desenvolver a capacidade de ter mais empatia às nossas crianças, "introduzindo impulsos de vitalidade positivos", ao obter o conhecimento da necessidade dos cuidados depreendidos nos primórdios da vida, para que as sombras das mãos não ofusquem o brilho emitido pela luz das velas das experiências iniciais, que são sustentadoras dos nossos impulsos vitais. Para isso, é necessário que aprendamos a deixar fluir o brilho de nossos alunos e, assim, permitir que a criatividade se desenvolva, ao respeitar as linhas que bordejam a essência do seu ser – o que não nos impede também de estendê-las ou ampliá-las.

 

Por que Ferenczi na educação?

É preciso ter tido uma vivência afetiva, ter experimentado na própria carne, para atingir um grau de certeza que mereça o nome de "convicção". Assim, o médico que só estudou psicanálise nos livros, sem ter submetido pessoalmente a uma análise profunda nem adquirido a experiência prática junto dos pacientes, dificilmente poderá estar convencido da correção dos resultados da análise. (Ferenczi, 1912/2011, p. 213)

Dando continuidade ao que propusemos anteriormente, a citação de Ferenczi de 1912, novamente nos atenta à necessidade da empatia. O mais importante dessa afirmação é priorizar a "vivência afetiva", "na própria carne", para que uma experiência possa levar à convicção e certeza de alguma coisa. Ou seja, uma vivência meramente intelectual não serve para transformações significativas de quem quer que seja.

A escola atual, preocupada em ocupar os primeiros lugares do pódio correspondente ao desempenho intelectual dos alunos (obtido, obviamente, por notas e escalas quantitativas), tem priorizado os aspectos cognitivos e deixado em segundo plano o cuidado com o desenvolvimento emocional das crianças. Não é raro de ouvir de profissionais da área, que as escolas que estão em evidência nos rankings são as mais procuradas pelos pais para matricularem os seus filhos – algumas dessas escolas "famosas" chegam a ter filas de espera. No entanto, em decorrência dessa cobrança excessiva, os aspectos emocionais são postos de lado, o que acaba produzindo uma ocorrência bem maior de transtornos psicológicos, como a ansiedade e depressão, por exemplo. Uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo6, em abril de 2018, aponta que as taxas de suicídio de crianças e adolescentes no Brasil têm aumentado nas últimas décadas. De 2000 a 2015, os suicídios aumentaram 65% entre pessoas com idade de 10 a 14 anos e 45% de 15 a 19 anos – mais do que a alta de 40% na média da população. Dados que são, no mínimo, preocupantes.

Além disso, é grande o número de sujeitos que chegam às escolas, já muito comprometidos emocionalmente, pela ação ou omissão de cuidados durante o seu amadurecimento. Aquelas crianças mais bem-aventuradas, cujo desenvolvimento emocional transcorreu satisfatoriamente até o momento de ingresso na vida escolar, tornam-se os alunos idealizados dos professores, pois, provavelmente, irão atender às expectativas acadêmicas e sociais do ambiente pedagógico, e não criarão tantos problemas para o público, em geral.

Portanto, para falarmos em termos de saúde individual dentro do campo escolar, é imprescindível discutir a função do próprio ambiente. O "ambiente" é um conceito dinâmico e vivo que pode ser descrito em termos de movimentos circulares que vão se ampliando ao longo do desenvolvimento do sujeito. O ambiente é, portanto, essencialmente humano, mutável e imprevisível. A função do ambiente se cumpre em uma dialética entre oferecer uma sustentação7 e introduzir gradativamente o princípio de realidade (Gurfinkel, 2016, p. 18). Ora, esta dupla função que oscila entre cuidado e conhecimento, deve ser considerada durante todo processo educativo. Alicia Fernández (2001), uma expoente referência da psicopedagogia nos dirá:

Escutamos, muitas vezes, pais e professores dizerem "Tal menino aprende porque é inteligente". Perde-se de vista que, se ele está conseguindo aprender, também é graças à interferência afetiva. Tal como dizia O Pequeno Príncipe: "O essencial é invisível aos olhos". Os aspectos de amor e sustentação, ainda que só sejam visíveis quando se colocam como obstáculo, são a condição necessária para que qualquer aprendizagem seja possível. Necessitamos também lhe dar um lugar próprio na teoria. (Fernández, 2011, p. 41)

Sendo assim, ambiente e afeto estão completamente interligados ao processo educativo. Ou seja, o espaço educacional deve se preocupar com a promoção das capacidades, não só cognitivas, mas também emocionais dos alunos que nele estão inseridos. Deste modo, torna-se possível pensar que um meio acolhedor, guiado pela escuta e pela solidariedade, pode promover mudanças nas estruturas psicológicas do sujeito, garantindo certa estabilidade emocional, centralizada pela confiança no outro (que virá a se desdobrar, então, numa autoconfiança). O vínculo professor-aluno, indispensável à construção do saber, ampara-se pelas condições de empatia oferecidas por uma prática respaldada no cuidado com o outro.

Ao dizer que "é preciso ter tido uma vivência afetiva, ter experimentado na própria carne", Ferenczi nos lança questões sobre a própria formação psicanalítica, denunciando algumas falhas e aberturas que havia nesse processo. "O princípio da empatia foi o que conduziu Ferenczi a buscar uma atuação clínica mais referida ao 'coração' do que à 'cabeça', como se encontra no Diário Clínico (1932)" (Kupermann, 2017, p. 23). O autor denuncia, em seus escritos, a hipocrisia relacionada à recusa dos próprios afetos por parte do analista, sendo essa uma das principais causas de resistência dos pacientes ao trabalho elaborativo (Kupermann, 2017). Alguns analistas, por mais surpreendente que isso possa soar, esquecem que, na prática da psicanálise, o alvo principal deve ser o paciente (e toda a complexidade e fragilidade que o configura). Aqui, qualquer semelhança entre uma psicanálise que se esquece do paciente como prioridade, com uma educação que não vê o seu aluno, em sua totalidade, seria mera coincidência? Acreditamos que não. Diante da atual situação educacional, cremos que ética do cuidado8, embasada pela empatia e afeto, precisa ser discutida e apresentada ao campo escolar – em seus mais variados desdobramentos (professores, alunos, família e comunidade).

A formação de professores deve buscar desenvolver a capacidade de estabelecer com as crianças relações cordiais, acolhedoras, sintonizadas, estimuladoras e balizadoras de limites. Como o professor repete, na relação com a criança, suas experiências infantis, ele precisa confrontar-se em um grupo de formação profissional e reconhecer suas próprias emoções, para poder estabelecer uma relação segura com a criança e construir conhecimentos em clima de amor e compreensão. A mesma denúncia de Ferenczi se faz útil sobre a educação escolar: não há como ser professor sem considerar as suas próprias demandas de afeto e sentimentos. Em seu Diário clínico, Ferenczi nos dirá:

É verdadeiramente impossível [ao analisando] levar a sério seus movimentos internos, quando me sabe tranquilamente sentado atrás dele, fumando meu cigarro e reagindo no máximo, indiferente e frio, com a pergunta estereotipada: o que ocorre a esse respeito? (Ferenczi, 1932, p. 72, colchetes nossos)

Não se pensa aqui na ilusória possibilidade do professor se tornar uma espécie de psicanalista infantil, totalmente centrado nas condições afetivas e negligenciando os aspectos cognitivos. Não é disso que estamos falando, afinal de contas, a escola ainda é um espaço primordial para a aprendizagem. O que propomos, por meio da leitura ferencziana, é uma visão da situação de ensino redirecionada pela ética do cuidado. A formação dos professores deve trabalhar certos sentimentos que a atuação profissional lhes desperta, e estimulá-los a examinar os conflitos surgidos na relação interpessoal com a criança (e também sua família).

É claro que ao falarmos de uma prática guiada pelo cuidado e empatia, estamos nos referindo à singularidade dos alunos, pois cada sujeito interpreta determinado acontecimento de acordo com suas vivências prévias. Caminhando nesta via, podemos observar atentamente o que nos propõe Ferenczi:

De fato, há crianças que apresentam uma constituição tão robusta que suportam da parte de seus pais as medidas mais absurdas; mas são exceções e observamos amiúde que, mesmo quando superam essa educação insensata, deixam escapar uma parte da felicidade que a vida teria podido propiciar-lhes. Isso deveria incitar os pais e educadores a prestar muito mais atenção às reações da criança para assim saber avaliar as suas dificuldades. (Ferenczi, 1928a/2011, p. 6)

A singularidade é algo que fica em evidência no trecho citado. Ferenczi afirma que cada criança reage a uma situação ambiental de modo diferente da outra, ou seja, o mesmo fato pode ser assimilado de maneira divergente, sendo mais ameno para alguns e mais traumático para outros. Contudo, o tempo destinado à superação do evento traumatizante, assim como a parte do psiquismo que trabalha em sua ressignificação, poderia ser utilizado para produzir momentos mais felizes e enriquecedores. Daí a importância atribuída pelo autor à sensibilidade necessária aos pais e educadores para poderem observar as demandas de atenção e reações da criança frente aos episódios cotidianos.

Posto isso, entendemos que dentro de uma sala de aula, a postura da mesma professora pode ser interpretada de modo completamente singular por cada aluno, ou seja, uma bronca, um castigo uma atitude de desprezo e indiferença, por exemplo, podem simbolizar um episódio traumático para alguns, e uma situação irrelevante, para outros. O que estamos tentando demonstrar é que o educador deve manter-se atento aos impactos de sua conduta sobre os alunos, percebendo que suas atitudes influenciam, diretamente, o campo emocional de sua turma, movimentando os elos que entrelaçam a situação de aprendizagem.

Porém, sabemos que, perante a nossa realidade educacional, isso não é nada fácil. Ao ingressar numa escola, o educador se depara com as frustrações e angústias inerentes às suas expectativas e idealizações. Os professores, acuados em um beco sem saída, responsabilizam a tudo e a todos pelo insucesso de sua profissão. Apenas alguns pensam a respeito de sua conduta educacional e refletem diante de suas próprias atitudes pedagógicas. O processo de autoconhecimento é doloroso e exige certo grau de subjetividade que não se aprende nas universidades. O que percebemos é que nos últimos tempos, infelizmente, esse jogo de empurra-empurra tem se agravado ainda mais. É comum vermos pais delegando a função educativa totalmente à escola, assim como também é frequente ouvirmos as queixas dos professores "culpando" a instituição, a política, o sistema, a família e principalmente o aluno pelos altos índices de baixo desempenho escolar que temos presenciado nos dias de hoje.

Ao considerarmos todas essas questões delineadas ao decorrer de nosso texto, o que podemos, contudo, ponderar a respeito da tarefa educativa guiada pela noção da ética do cuidado, amparada pelo conceito de tato apresentado no arcabouço ferencziano?

Primeiramente, é preciso que o professor enxergue sentido em seu exercício profissional. É claro que dentro de um Estado onde a educação é fortemente desvalorizada, essa empreitada se torna ainda mais desafiadora. Ser professor dentro do nosso país é ter coragem para arriscar-se num ofício que exige, sobretudo, vocação – dadas as condições precárias de trabalho, salários desumanos e doses cavalares de horas extras, dedicadas à elaboração de aulas, estudo e correções. Acrescentaríamos, aqui, também, que além da vocação, deve haver certa inclinação por compartilhar conhecimentos – no sentido restrito da frase, pois é do saber de todos, que muitos professores conhecem tanto, mas compartilham muito pouco.

Apesar de existirem inúmeros problemas na sociedade, na cultura e na instituição em que trabalhamos, pensamos que é urgente encarar a tarefa de ensinar (e aprender) como uma missão aliada à ética e à formação do ser humano. São essas atitudes que nos irão separar das condutas medíocres que se propagam com frequência em nosso meio, colocando o aluno como um mero coadjuvante de sua própria história.

Em seu artigo "Elasticidade da técnica psicanalítica" (1928b), Ferenczi salienta a sua ideia a respeito das transformações psíquicas que ocorrem no terapeuta durante as sessões. Novamente, o nosso autor lembra aos analistas que eles não estavam somente na posição de escutar o paciente e lhe comunicar uma interpretação, mas deveriam se debruçar constantemente sobre a dialética subjetiva que envolve não só a relação com o paciente, mas também consigo próprio. "O conforto se tornou, por assim dizer, um sinal de alerta" (Pinheiro, 2016, p. 103). Algo "vai mal" no processo terapêutico quando o analista se acomoda ao procedimento. Essa mesma postura de indagação e autorreflexão pode (e deve) ser destinada aos professores que exercem há anos a sua profissão. Tomados por um comodismo automático, as relações subjetivas que percorrem o cotidiano escolar advindas de uma rica dinâmica interpessoal, passam despercebidas frente a seus olhos. Phillippe Meirieu propõe alguns apontamentos interessantes a respeito dessa discussão. Citamos o autor:

O pedagogo, por sua vez, ouvindo e respeitando os que fazem suas escolhas, coloca o problema de outra maneira. Ele está convencido de que a especificidade dos saberes escolares é justamente que eles devem ser, ao mesmo tempo, ferramentas de integração em um determinado contexto. [...] É o pedagogo que garante que o grupo não caia na idolatria; é ele que encarna a busca da verdade e a rejeição a qualquer dogmatismo, duas exigências que são absolutamente necessárias transmitir aos alunos ao mesmo tempo que os próprios saberes, no mesmo ato. Assim, a sala de aula torna-se o lugar onde se aprende a desvencilhar-se do conflito de opiniões, da tentação do "é pegar ou largar", um lugar onde se deve justamente discutir, examinar antes de aceitar, pôr em funcionamento sua inteligência. (Meirieu, 2005, p. 68)

Complementando a citação de Meirieu com o pensamento ferencziano, podemos chegar à seguinte expressão: nada é mais nocivo para a educação do que um professor autoritário que não se questiona, não se revê, impõe condutas e, acredita numa educação dogmática, tradicional e imutável. Num espaço onde não se pode pensar em conjunto, não há como haver uma aprendizagem transformadora. Ferenczi denuncia o narcisismo da convicção analítica. Nós, tomando seus pressupostos como referenciais, denunciamos uma educação embasada pelo autoritarismo e pela convicção cega. A certeza não permite dúvidas (como já dissemos anteriormente). Não se aprende sem perguntar (nem que as questões sejam para si mesmo). É este movimento reflexivo que gera o amadurecimento cognitivo e emocional.

A escola é o local onde se pretende compartilhar com as novas gerações todo o acervo cultural em seu sentido mais amplo. É da generosidade e da empatia que deve nascer a busca criativa pela metodologia de ensino mais adequada. Essa é a mola propulsora de um trabalho verdadeiramente educativo.

 

Algumas palavras finais

"Ferenczi não é somente um dos pioneiros da psicanálise, ele é, depois de Freud, o protagonista mais importante dos primórdios de sua história. Junto com Freud, foi um dos grandes militantes da causa psicanalítica" (Pinheiro, 2016, p. 179). O que orientava a clínica de Ferenczi era a ética e o compromisso com os seus pacientes. Questionou o lugar do analista e formulou a hipótese de que o trabalho do analista poderia ser muitas vezes, um mero instrumento a serviço de suas próprias resistências e dificuldades. Ferenczi criou teorias sobre a técnica, criticou a si mesmo com veemência, mas nunca desistiu do compromisso de possibilitar melhoras à saúde mental de seus pacientes. Procurou, até o final de sua vida, resolver as questões que os impasses clínicos lhe apontavam (Pinheiro, 2016).

Ao ler algumas das ideias que fecundam o pensamento deste grande autor pioneiro da psicanálise, fomos movidos a pensar como a sua conduta psicanalítica poderia servir de base para os educadores redirecionarem a sua ação educativa. Perante um sistema que toma como alicerce mais certezas do que questionamentos; que impõe às crianças verdades absolutas e não abre espaço para debates ou trocas de ideias, refletir sobre a postura do próprio professor poderia ser um bom recurso para caminharmos na contramão deste retrocesso educativo.

Ao questionar a psicanálise como um processo que deveria priorizar o paciente, assim como as demandas de afeto e empatia do analista, Sándor Ferenczi teve de pagar um alto preço no meio psicanalítico, ficando por muitos anos esquecido, e nem sequer citado por autores que temiam "vestir a camisa" de sua ousadia. A prática sensível de qualquer professor, certamente, apontará que dentro de uma escola não é só a dimensão cognitiva que deve ser considerada, mas também a afetiva, e que o investimento nesse aspecto favoreceria as relações interpessoais e, portanto, o acesso ao conhecimento.

Em seu texto "Psicanálise e pedagogia" de 1908, Ferenczi dirá de modo bem preciso e pontual que "a pedagogia cultiva a negação das emoções e das ideias" (Ferenczi, 1908/2011, p. 40), criticando claramente o sistema repressor e tradicional pertinente ao campo pedagógico de sua época – o que tanto fez Paulo Freire. Ao final deste mesmo artigo, o autor ainda afirma que:

(...) o remédio para essa doença da sociedade (a neurose) só pode ser a exploração da personalidade verdadeira e completa do indivíduo, em particular do laboratório da vida psíquica inconsciente que hoje deixou de ser totalmente inacessível; e o meio preventivo: uma pedagogia fundada, isto é, a ser fundada na compreensão e na eficácia, e não em dogmas. (Ferenczi, 1908/2011, p. 44)

Muitos autores humanistas procuram há décadas, tentar ensinar às pessoas que o "essencial é invisível aos olhos", como dizia a Raposa do Pequeno Príncipe9. Entretanto, mesmo depois de muitos anos de uma teoria que lançou luz sobre um assunto que há muito jazia na escuridão, poucos, aliás, muito poucos educadores são capazes de sentir empatia pelo aluno (e captar) este "essencial". A maioria não alcança esta capacidade, justamente por não ter sido captada "essencialmente" durante o seu processo de desenvolvimento como ser humano. Isto é, quem não teve a sua "essência" afetivo-emocional apreendida no decorrer da vida, jamais conseguirá se colocar no interior do outro. E, aqui, não estamos apenas nos referindo à formação pessoal do professor, mas, também, ao processo de formação profissional. O curso de pedagogia, muitas vezes, não abrange, em sua matriz, disciplinas relacionadas às questões afetivas e emocionais dos próprios alunos – um problema que não caberia ser amplamente discutido na proposta deste texto.

Uma ação educativa pautada na reflexão, no respeito e na empatia, é o que fundamenta a teoria ferencziana. Ferenczi pensou num modo de libertar o sujeito da repressão e de permitir a elaboração de ideias construídas com base na coletividade. Uma crítica realizada no início dos anos 1900, mas que cabe perfeitamente em nossos dias atuais. A aprendizagem só ocorre de forma eficaz quando possibilita ao sujeito a expressão e o desenvolvimento de sua verdadeira personalidade. Qualquer imposição de dogmas nos remete a estados repressivos e inibidores da criatividade e da originalidade. Nesse aspecto, pensamos que a educação pode aprender, em muitos sentidos, com as formulações teóricas de Sándor Ferenczi, ao construir uma conduta de ensino respaldada na empatia, na criatividade e na liberdade de expressão dos alunos.

Carl Rogers, um grande pesquisador da psicologia humanista, mencionou, certa vez, que são três os princípios básicos que deveriam reger a relação professor-aluno: consideração positiva incondicional, empatia e congruência10. Tais princípios, contudo, não podem ser aplicados como um manual técnico, ou seja, o professor precisa incorporar essas ações em sua conduta didática, tornando-os próprios, atribuindo seu olhar pessoal sobre eles. Nesse sentido, a ideia de Ferenczi sobre a análise do analista recai sobre o professor, que deve, constantemente, analisar a sua própria conduta. Não estamos falando, aqui, de uma análise pessoal com um psicanalista, pois temos plena ciência das condições de salários e da qualidade de vida dos professores na atualidade. Estamos falando de um movimento intrínseco, de descobrir os erros, redimensionar as falhas e, a partir dessa humildade, transformar a ação educativa em um projeto digno de prosperidade.

Estas considerações nos permitem formular alguns apontamentos, ainda que bastante gerais, para balizar o trabalho do educador. Cabe ao professor – em extensão aos afazeres realizados junto aos pais e ao restante da equipe pedagógica – a função de proporcionar a seus educandos um ambiente humano que dê a sustentação necessária para que os processos de desenvolvimento possam seguir o seu curso, de forma espontânea e criativa. Para que a humanidade possa, cada vez mais, caminhar rumo à compensação dos déficits impostos pela ausência do Estado. Defendemos, por fim, a noção de uma prática educativa que permita ao educador exercer, sobretudo, a sua capacidade de viver quanto de deixar viver; na qual o outro possa ser sempre objeto de empatia e de tato – como bem nos disse Ferenczi – estando disponível para sentir com seus alunos as suas dores, as suas angústias, as incertezas, mas que, também, os possibilite vibrar e compartilhar cada conquista advinda dessa mutualidade.

 

Referências

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Recebido em maio/2019 – Aceito em agosto/2019.

 

 

1 Para uma leitura inicial das ideias de Winnicott, recomendamos, aqui, ao profissional da área da educação que não teve contato com a teoria desse psicanalista, o livro Por que Winnicott de Leopoldo Fulgêncio, publicado pela Editora Zagodoni, em 2016.
2 Mais sobre o tema pode ser lido no item 3.3 do livro Psicanálise e Educação Escolar: contribuições de Melanie Klein. Almeida, A. P. São Paulo: Zagodoni, 2018.
3 Dados obtidos da matéria intitulada "Os desafios da Educação brasileira em 2019: linhas e cores", de autoria de Alessandra Gotti, publicada na revista Nova Escola, em 30 de janeiro de 2019. Acessada pelo link: https://novaescola.org.br/conteudo/15432/os-desafios-da-educacao-brasileira-em-2019-linhas-e-cores, em 29 de agosto de 2019.
4 Paulo Freire – que hoje é tão atacado pelo atual governo – já nos dizia isso em suas obras. Ver "Pedagogia do oprimido", de 1968 e "Pedagogia da autonomia", de 1996. Esses livros são apenas alguns exemplos da riqueza teórica (e prática) deste autor.
5 Kahtuni & Paraná Sanches, 2009, p. 369, nos indicam: "Empatia é a tendência de o sujeito, no caso, o analista, ser sensível às comunicações verbais e não-verbais de seu paciente, podendo colocar-se em seu lugar, sem, entretanto, perder os referenciais próprios (...). A empatia, dessa forma, indica uma habilidade relacional de identificação. Tato, por sua vez, designa tanto a capacidade de distinguir e escolher o momento justo da intervenção terapêutica adequada do analista quanto o modo de realizar essa intervenção. O tato se relaciona com o ritmo e o tom da intervenção".
6 Dados obtidos da matéria intitulada "Suicídio de adolescentes avança, e casos recentes mobilizam escolas de SP", de autoria de Marina Estarque, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 24 de abril de 2018. Acessada pelo link: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/04/suicidio-de-adolescentes-avanca-e-casos-recentes-mobilizam-escolas-de-sp.shtml, em 29 de agosto de 2019.
7 O que Winnicott chamou de holding.
8 Sugerimos como leitura o livro Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica, de autoria de Daniel Kupermann. Publicado em 2008 pela editora Civilização Brasileira.
9 No original "Le Petit Prince" de Aintoine de Saint-Exupéry.
10 Para quem se interessa sobre o assunto, recomendamos a leitura do artigo Consideração Positiva Incondicional no sistema teórico de Carl Rogers de autoria de Laurinda Ramalho de Almeida. Publicado na revista "Temas de Psicologia" N. 1, Vol. 17. Ano 2009. P. 177-190.

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