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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.19 no.1 Rio de Janeiro June 2016

 

ARTIGOS

 

A criança e a iminência de morte do progenitor: o desafio dos pais na comunicação das más notícias

 

Child and the imminence of death of a progenitor: the challenge of parent's in communicating bad news

 

 

Marceli Emer1,I,II; Mariana Calesso Moreira2,I; Sílvia Abduch Haas3,II

IUniversidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
IISanta Casa de Misericórdia de Porto Alegre

 

 


RESUMO

O cuidado ao paciente, frente a um processo de final de vida, deve ser estendido aos seus familiares, que também estão sofrendo com as repercussões da perda anunciada. Este trabalho teve como objetivo principal buscar compreender como ocorre a comunicação das más notícias junto às crianças que passam pela experiência de adoecimento e iminência de morte de um progenitor. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório, realizada através de entrevista semiestruturada, da qual participou o progenitor saudável da criança. Os dados obtidos foram examinados através do método de Análise de Conteúdo. Foram entrevistados quatro participantes, selecionados a partir dos critérios pré-definidos de inclusão. Como principal resultado destacou-se o ocultamento da verdade à criança no que tange a informação de morte iminente do paciente. Esta ocultação é sustentada por fatores que se inter-relacionam. Estes fatores dizem respeito a fantasia de que ocultar uma verdade dolorosa oferecerá proteção à criança e, além disso, demonstram que a não aceitação do adulto em relação à morte do companheiro e a subestimação deste em relação às capacidades cognitiva e emocional das crianças, também corroboram para a manutenção do silêncio.

Palavras-chave: cuidados paliativos; morte; comunicação; crianças.


ABSTRACT

Patient care during an end-of-life process should be extended to the family members, which are also suffering from the impact of the announced loss. This research had the main objective of understanding how does the communication of bad news work with children who goes through the experience of illness and the imminence of death of a progenitor. This is a qualitative and exploratory research, performed by using semi-structured interview attended by the child's healthy progenitor. Data obtained were examined by the content analysis method. Four participants were interviewed and selected according to the predefined inclusion criteria. The main result highlighted is the concealment of truth to the child regarding the information of the parent's imminent death. This concealment is supported by factors that are interrelated. These factors concern to fantasy that concealing a painful truth will provide protection to the child and, besides that, show that the rejection of the adult regarding the death of the partner and its underestimation with respect to the cognitive and emotional capacities of children also corroborate for the maintenance of silence.

Keywords: palliative care; death; communication; children.


 

 

Ao longo da vida passamos por inúmeras perdas, sendo a morte a mais concreta delas. Essas perdas podem ser simbólicas, ligadas àquilo que o objeto perdido simboliza, ou podem ser concretas, que levam ao fim de uma condição ou relação. Cada perda carrega consigo a potencialidade de desencadear um processo de luto, que nada mais é do que o trabalho psíquico para se adaptar à mudança imposta. A possibilidade de elaboração saudável de um luto por morte, dentre outros fatores, é influenciada pelas circunstâncias da perda. A morte decorrente de doença crônica oferece a oportunidade de viver a perda enquanto processo e pode oportunizar uma preparação para a separação definitiva.

Ao paciente sem possibilidades de cura, internado em hospital geral, vem sendo preconizado um investimento terapêutico que não mais visa a manutenção da vida a todo custo, mas sim, a preservação de sua dignidade até o final. Esta mudança de paradigma é sustentada pelos avanços do conhecimento em cuidados paliativos. A palavra paliativo é derivada do vocábulo latino pallium, que significa manto, cobertor, expressando um propósito de proteção contra as intempéries do caminho (Floriani & Schramm, 2007). Os cuidados paliativos têm como finalidade o alívio da dor e do sofrimento em pacientes cuja doença não apresenta mais possibilidades de cura (Sadock & Sadock, 2007). São, deste modo, descritos como estratégias de intervenção em pacientes considerados terminais. Sobre estas estratégias, autores destacam a importância de dirigi-las também ao familiar que, em muitos casos, passa despercebido pelo olhar da equipe assistencial. Estes enfrentam a difícil tarefa de encontrar recursos internos para confortar o paciente quando eles próprios encontram dificuldades para aceitar a doença, lidar com as perdas, a morte e o luto (Astudillo, Mendinueta & Larraz, 2002).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou princípios com a finalidade de reger a atuação da equipe multidisciplinar de cuidados paliativos. Além dos princípios que falam do alívio da dor e da não aceleração ou adiamento da morte, destacam-se aqueles que buscam integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente, que incentivam a autonomia deste, até o momento que for possível, que prestam suporte aos familiares durante a doença e no enfrentamento ao luto, considerando, desta forma, os aspectos biopsicossociais que são afetados em sua integralidade (Carvalho & Parsons, 2012).

Com relação ao suporte às famílias, deslocamos especial atenção àquelas com crianças pequenas, pois é fundamental instrumentalizá-las para abordarem com estas a questão da morte do familiar, desencorajando a manutenção de segredos. Para tal, faz-se necessário estar atento às aptidões cognitivas da criança para compreensão do fenômeno da morte, para que não haja sobrecarga ou superproteção (Walsh, 2005). Neste sentido, Torres (1979) aponta para o fato de que a criança, desde muito cedo, já possui uma representação da morte que vai evoluindo gradual e paralelamente ao desenvolvimento cognitivo. Gesell (1985), entretanto, alerta que, embora todas as crianças passem por fases semelhantes no desenvolvimento da percepção da morte, nem todas seguirão o mesmo calendário, ou seja, terão as mesmas aptidões ao mesmo período do desenvolvimento. Deste modo, salienta que estas variações sofrem influências das vivências pessoais e do tipo de vida da família, sendo assim, as normas etárias não podem ser tomadas como regra geral, pois poderão desmerecer as capacidades e vivências individuais de cada criança.

Desde idade muito precoce, a criança tem noção sobre a morte como experiência vivida. Quando bebê, mesmo que as separações sejam breves, as vive com sensação de abandono e aniquilamento. Com o desenvolvimento cognitivo, começa a perceber diferenças entre mortos e vivos, primeiro relacionadas aos aspectos perceptivos e concretos, como a imobilidade e a ausência de respiração, depois, passa a compreender aspectos mais abstratos, como a irreversibilidade, inevitabilidade e, posteriormente, a causalidade, até chegar à explicações lógico-categóricas, na adolescência (Kóvacs, 1994). Sendo assim, o ocultamento dos fatos tem repercussões na capacidade cognitiva e afetiva da criança, podendo deixar marcas em seu desenvolvimento.

Kubler-Ross (1969) observa que lidar com o sofrimento, de maneira construtiva, não é sinônimo de evitá-lo, mas sim, de facilitar o diálogo a respeito e o compartilhamento das emoções. Os sentimentos apresentados pela criança em situação de luto podem incluir tristeza, raiva, culpa e ansiedade. Se estes forem ignorados pelos adultos, serão manifestados de outras maneiras, como sintomas psicossomáticos ou desajustes de comportamento (Worden, 1998). Aberastury (1984) afirma que a ocultação e a mentira do adulto dificultam o trabalho de luto da criança. Sendo assim, é de suma importância que se compreenda a importância do diálogo claro e sincero, respondendo às perguntas, compreendendo as emoções e dando suporte para o enfrentamento ao luto (Veit, 2009). Kóvacs (2003) acrescenta que o luto mal elaborado está se tornando um problema de saúde pública, sendo significativo o número de pessoas doentes em vista da excessiva carga de sofrimento sem possibilidade de elaboração.

Para melhor compreensão do fenômeno do luto, buscamos em Freud (1915/1990) ampliar o entendimento acerca de sua etiologia. O autor esboça uma origem para o luto no confronto experimentado pela pessoa enlutada face à necessidade de libertar-se de todas as ligações com o objeto de vinculação, perante a irreversibilidade do seu desaparecimento físico. Para Parkes (1998), o luto consiste em um tipo singular de estresse, fazendo-nos dar menor atenção às perdas secundárias, como a privação ou as mudanças de papéis, pois se trata de uma reação tão poderosa que, por um período, obscurece todas as demais fontes de dificuldades. No entanto, segundo Worden (1998), esta é uma reação necessária para a adaptação à perda (efetiva ou iminente), que deve ser vivenciada pelo enlutado para que seu equilíbrio seja restabelecido.

Uma reação de luto poderá ser desencadeada a partir da ameaça de morte, antes mesmo da separação ocorrer efetivamente, precipitando um processo denominado de luto antecipatório. Este se caracteriza pela experimentação de sentimentos dolorosos a partir da notícia da existência de uma doença incurável ou da perda iminente de algum membro da família. As intervenções realizadas durante este processo podem prevenir o desenvolvimento de problemas no luto pós-morte (Fonseca, 2004).

Para entendermos o difícil percurso atravessado pelas famílias que vivenciam este processo de separação, recorremos à Bowlby (1985) e seu conceito de apego, através do qual ampliamos nossa compreensão acerca dos processos de vinculação e perda. O comportamento de apego, para este autor, promove a conservação por uma pessoa, da proximidade de alguma outra, diferenciada e preferida. No desenvolvimento sadio, este comportamento gera laços afetivos, primeiro entre a criança e o progenitor, depois entre outros adultos e tem como meta manter certo grau de proximidade com figuras discriminadas.

Relacionando a teoria do apego às questões inerentes ao processo de luto, o autor destaca que esses processos podem seguir um curso que leva, com o passar do tempo, à renovação da capacidade de estabelecer e manter relações de amor; ou podem seguir um curso que enfraquece essa capacidade, em graus variados. Assim como os termos sadio e patológico são aplicáveis aos diferentes cursos seguidos pelos processos fisiológicos de cura, também podem ser aplicados aos diferentes cursos seguidos pelos processos de luto (Bowlby, 1985).

Frente ao exposto, fica evidente o papel dos adultos no processo de luto das crianças. A elaboração da perda sofrerá influência do que lhes é dito, bem como, da maneira como lhes é comunicado, somado à forma como as famílias facilitam ou dificultam a expressão emocional (Lima & Kovács, 2011). A dificuldade dos pais para acolher esta demanda pode desencadear em seus filhos sentimento de culpa e persecutoriedade, aumentando preocupações e sofrimentos. Sendo assim, intervenções terapêuticas e educativas mostram-se de grande relevância para famílias que passam por um processo de separação, perda e luto (Carvalho & Parsons, 2012). Portanto, considerando a importância que a inclusão das crianças representa no contexto de cuidados paliativos, tanto para uma melhor vivência da separação como para a prevenção de um luto complicado, mostra-se relevante o desenvolvimento de estudos sobre o tema, que possam servir de instrumento para pais, familiares e para profissionais da saúde, especialmente, àqueles que atuam neste contexto. Desta forma, a presente pesquisa tem como objetivo compreender como ocorre o processo de comunicação de más notícias às crianças que vivenciam a internação de um progenitor em cuidados paliativos, através da percepção de seu progenitor saudável.

 

Procedimentos metodológicos

Trata-se de um estudo qualitativo de cunho exploratório, realizado no Hospital Santa Rita (HSR), da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. O referido hospital é referência no estado e no país para o diagnóstico e tratamento do Câncer. Atualmente, conta com 203 leitos, sendo 103 leitos de internação e 10 leitos em unidade de terapia intensiva (UTI). Além disso, o hospital conta com atendimentos ambulatoriais, bem como, unidades para tratamento quimio e radioterápico.

Participaram da pesquisa quatro adultos (um homem e três mulheres), pais de crianças cujo outro progenitor encontrava-se internado em cuidados paliativos, devido à incurabilidade da doença. Todos os participantes viviam em união estável com os respectivos pacientes. Visando a inclusão do participante no estudo, certificou-se de que o mesmo estava ciente quanto à incurabilidade do paciente, pois foi informado pela equipe médica e tal informação estava registrada em prontuário. Para fins deste estudo, foram incluídas famílias de crianças de 02 até 12 anos. Além disso, cabe ressaltar que foram excluídos pais menores de 18 anos e aqueles que desconheciam o prognóstico do paciente.

Os participantes da pesquisa foram recrutados através das solicitações de atendimento que chegaram ao serviço de psicologia do HSR, bem como, através da busca ativa pelos prontuários. Foram examinados os casos em que o paciente tinha filhos na faixa etária mencionada neste projeto. Cumprindo os requisitos exigidos, o progenitor saudável da criança foi convidado a participar da entrevista. Esta foi realizada nas dependências do próprio hospital, contando com a privacidade e o sigilo necessários.

O estudo seguiu as recomendações éticas para a realização de pesquisas com seres humanos, de acordo com as orientações das Resoluções nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Além disso, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, sob o número de parecer 1.148.452. Sempre que detectada alguma dificuldade emocional relacionada ao enfrentamento do processo de adoecimento e hospitalização, mobilizada ou não pela entrevista, foi feita solicitação de avaliação e acompanhamento para o Serviço de Psicologia do Hospital Santa Rita. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a participação no estudo foi voluntária.

O instrumento de coleta de dados baseou-se em um roteiro de entrevista aberta com questões norteadoras formuladas pelas pesquisadoras. Os temas abordados na entrevista foram: o conhecimento da criança acerca do diagnóstico e prognóstico do paciente; as reflexões realizadas que pautaram a comunicação com a criança; levantamento das principais dificuldades encontradas, por parte do progenitor saudável, no que tange à comunicação das más notícias junto às crianças; mudanças no comportamento da criança e percepções acerca de sua capacidade de enfrentamento da perda. Os dados foram coletados no período de julho à setembro de 2015. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas.

A análise do material coletado nas entrevistas se deu por meio de análise de conteúdo, baseada no desenvolvimento de categorias temáticas pautadas na relação do conteúdo das entrevistas com a literatura (Hsieh & Shannon, 2005). Tratando-se de um estudo exploratório, as categorias temáticas foram definidas a posteriori de modo que a análise fosse menos influenciada por expectativas que decorreriam do uso de categorias pré- definidas. Após a leitura do material realizou-se o recorte de falas significativas frente ao objetivo da pesquisa e, a partir desse recorte, identificou-se a emergência de três categorias de análise, que foram desdobradas em eixos temáticos para melhor exploração dos dados.

 

Resultados

Conforme a análise de conteúdo desenvolvida, três grandes categorias emergiram dos dados coletados: Comunicação das Informações à Criança; Aceitação da Morte pelo Progenitor Saudável; Capacidade de Compreensão da Criança. A seguir tais categorias serão apresentadas, sempre ilustradas com falas dos participantes para a melhor sistematização dos conteúdos dispostos.

A primeira categoria, Comunicação das Informações à Criança, diz respeito ao processo de comunicação com a criança, principalmente no que se refere as ponderações feitas pelo adulto que oferece as notícias e seus impasses. Para realizar esta análise, dividiu-se a categoria em dois eixos temáticos. O primeiro eixo trata das reflexões que determinam o conteúdo do que é comunicado à criança, ou seja, no que pensam os pais para elaborar seu discurso nas informações passadas aos filhos. O segundo refere-se às dificuldades apontadas por eles em abordar o tema da morte com a criança.

Dentre as reflexões desenvolvidas destaca-se o discurso da proteção, tendo como base a ideia de que omitir a realidade da morte próxima preservará a criança do sofrimento que os adultos estão enfrentando. A fala que segue trata da resposta dada pela esposa do paciente quando questionada acerca do que ela estava comunicando ao filho de oito anos:

Olha, eu....eu digo que o pai dele tá doente, é a única coisa que eu falo pra ele. Mas esses dias a minha cunhada teve lá em casa, e ele tem oito anos né, ele é uma criança, e ela chegou e falou: "é, porque teu marido tem poucos dias de vida". Na frente do guri, sendo que eu nunca toquei nesse assunto com ele. Daí eu só olhei pra ela e fiz um sinal pra ela ver que o guri tava ali e ele disse assim: "é, né mãe, ela falou que o meu pai tem poucos dias de vida", daí eu disse: "ai filho, vai lá brincar, depois tu vem". E ele disse: "eu sei que é meu pai". Aí ele foi brincar com as crianças perto do pátio. Mas eu tenho certeza que ela enxergou ele, mas por quê fazer isso? Por quê falar isso na frente da criança? Eu não ia falar isso pra ele, só depois que acontecesse alguma coisa. Eu, na minha opinião, o que a gente tá passando eu não quero pra ele, entendeu? (participante 4)

Estas reflexões, embasadas na ideia de proteção, apareceram em todas as entrevistas realizadas, através das quais percebe-se que as crianças estavam sabendo do adoecimento do progenitor, mas desconheciam o fato de que este, muito provavelmente, morreria em breve e não mais voltaria para casa, como estavam esperando. Abaixo seguem outros relatos que corroboram com esta compreensão. O primeiro deles trata da fala de um marido, cuja esposa, de 36 anos, estava internada em cuidados paliativos. Juntos tiveram quatro filhos. Neste relato ele menciona a comunicação dos fatos à filha mais nova do casal, de sete anos de idade:

(...) nesse momento assim ela sabe que veio pro hospital tudo com estima de melhora. Eu não cheguei a contar pra ela que a mãe dela veio, mas não vai voltar. (participante 1)

A terceira participante da pesquisa, esposa do paciente, fala sobre a comunicação com o filho mais velho, de onze anos. Esta participante tem também uma filha de quatro anos de idade, com a qual, em outro momento da entrevista, refere estar tendo mais dificuldade para comunicar os fatos do que em relação ao irmão. Porém, no trecho que segue, é possível perceber que mesmo com o filho mais velho a comunicação fica limitada àquilo que entende que este poderá suportar:

Meu filho, ele tá sabendo que o pai vai passar por um processo, mas também ele tá achando que quando passar esta etapa, vai passar, ele não tá sabendo que também vão ter outras etapas de quimio, também, se for o caso, enfim, que vai indo, ele não tá sabendo isso né, ele tá achando que fez a quimio e passou, o pai vem pra casa. (participante 3)

As dificuldades relatadas pelos pais, no que tange a comunicação sobre a morte com seus filhos, em um primeiro momento, parecem estar relacionadas a dúvidas sobre a capacidade de compreensão da criança, mas, logo, percebese que também são relativas às suas dificuldades e inseguranças em oferecer suporte para as possíveis reações emocionais advindas da notícia. O recorte de entrevista que segue pertence a segunda participante da pesquisa, cujo esposo estava em cuidados paliativos,internado em unidade de terapia intensiva. Neste trecho ela comenta as principais dificuldades encontradas para comunicar as notícias para sua filha de apenas três anos de idade:

Usar as palavras certas. Usar as palavras certas. Assim, até pra não chocar e pra não falar demais, porque tem muita coisa que pra uma criança não precisa falar, não tem o porquê falar, então assim, usar as palavras certas é o mais difícil, pra não abalar ela, pra não traumatizar ou pra diminuir o sofrimento né, acho que seria mais, essa foi minha maior dificuldade. (participante 2)

Na mesma direção, outro participante, já mencionado anteriormente, fala das dificuldades sentidas em relação aos dois filhos mais novos, de onze e de sete anos:

Ah, a dificuldade de dizer que, que a mãe deles não vai voltar. Isso aí, isso aí foi a mais difícil, muito difícil. Porque a outra eu não falei por enquanto, eu não tive nem coragem. Porque primeiro eu tenho que me acostumar com a ideia, que isso vai acontecer e tem que tá firme. É mais fácil, que nem eu desabar sozinho, do que na frente deles, entendeu? (participante 1)

Das quatro entrevistas realizadas foi unânime a postura dos progenitores entrevistados em relação a não contar a seus filhos sobre a morte próxima de seu outro progenitor. A fantasia de proteção e a dificuldade para falar sobre morte parecem ocupar lugar central nesta dinâmica, corroborando para o "pacto do silêncio".

A próxima categoria de análise trata da Aceitação da Morte pelo Progenitor e tem relação direta com sua disposição para abordar ou não este tema com a criança. As entrevistas demonstram que a não aceitação do adulto, referente ao prognóstico, interfere na comunicação do mesmo junto ao seu filho. Tal categoria dividiu-se em dois eixos temáticos. O primeiro diz respeito à dificuldade do adulto em pensar sobre a morte e o segundo aos mecanismos de defesa utilizados na vivência da perda.

Neste sentido, o desafio do adulto pode estar, muitas vezes, no fato de falar sobre a morte com a criança quando ele próprio está com dificuldades para aceitar esta realidade, esforçando-se para afastar pensamentos que remetam a ela, como, por exemplo, o que pode ser observado no trecho a seguir:

Tem coisas que eu não questiono o doutor, ontem ele me disse que o meu marido ia passar por uma turbulência, daí eu pensei, cada corpo reage de uma maneira, não questionei o que seria, deixa, eu encaro, eu imaginava passar mal, vomitar, não sei, não era isso, era oxigênio, dar a volta na respiração, era o sangramento, eu acredito porque eu vi isso, de repente tem outras coisas mais perigosas e que também não me interessa saber. (participante 3)

Sendo assim, quanto mais difícil for a aceitação do progenitor frente ao prognóstico do companheiro, possivelmente mais regressiva será a defesa utilizada e, consequentemente, maior será a dificuldade para pensar e falar sobre a morte e para transmitir tal realidade para o filho. Na fala dos participantes foi possível identificar o uso da negação, através da qual o progenitor saudável fala em melhora do paciente e retorno para casa, mesmo tendo sido informado pelo médico que o paciente morreria em breve.

Na primeira semana me doía muito a cabeça, eu pensava muito, muito, muito, eu pensava, pensava... acho que eu não tava aceitando, hoje eu aceito, tu entendeu? Eu aceito a possibilidade de uma vida nova, essa esperança né, então eu me medico e choro também né, procuro me acalmar, não choro na frente dele, sempre mostro força pra ele, mostrando esse lado, que vamos vencer juntos, enfim, eu digo: "olha, tu lutou e agora vai lutar pra viver, pra ficar com a gente. (participante 3)

Que nem agora o fato de eu não contar pra ela: "oh teu papai pode morrer", Por quê eu vou falar isso? Então assim oh, claro se ele piorar, até porque eu acreditava muito na melhora dele e, Graças ao bom Deus, nesse final de semana ele teve, sabe assim, uma, uma boa melhora, eu acho, até quero falar com a médica pra confirmar isso...e... porque eu não consegui ainda sabe, então como eu acreditava muito na melhora dele pensei: não, eu vou poupar. (participante 2)

Vale ressaltar que, em todos os casos, o paciente morreu em menos de uma semana após a realização da entrevista. O esposo da participante de número três, assim como a esposa do participante de número um, morreram dois dias após a realização desta.

A última categoria elencada trata sobre a Capacidade de Compreensão da Criança em relação à morte. Nela observou-se dois eixos temáticos para sintetizar a análise das entrevistas. O primeiro eixo refere-se à Percepção dos Pais em relação à capacidade cognitiva e emocional da criança para lidar com notícias relacionadas à iminência de morte do paciente. O segundo eixo diz respeito aos sinais que a criança apresenta, incluindo manifestações comportamentais, que dão indícios de sua efetiva compreensão e enfrentamento da realidade.

Através da análise da percepção dos pais, identifica-se uma tendência a subestimar a capacidade cognitiva e emocional da criança para lidar com a situação, fato que contribui para o ocultamento da verdade, dificultando a comunicação relativa à morte; como pode ser percebido na verbalização de uma mãe em relação ao que compreende que seu filho de oito anos tem capacidade de absorver:

Não, ele sabe que o pai tá doente, eu não falei muito grave nem que doença é, porque isso aí, ele não entende nada de câncer, ele é criança, ele entende de brincar, ele entende bronquite, doença que ele conhece, mas esse negócio de doença grave, de câncer, não. (participante 4)

Abaixo, a terceira participante da pesquisa fala sobre a dificuldade em relação a sua filha menor, de quatro anos de idade. Demonstra insegurança em relação a capacidade que esta possui para lidar com a realidade:

Me parece que eu tenho mais dificuldade com a pequena do que o maior, o maior eu consigo me comunicar mais aberto, agora a pequena eu não pensei nessa parte assim de dizer, porque pra ela o pai vai voltar, eu não comento dessa morte, querida, tu entendeu? (...) acho que eu vou deixar acontecer, pra ela, querida, entendeu? Eu vou deixar acontecer. (participante 3)

No segundo eixo, destacamos aquilo que pôde ser captado através das entrevistas, em relação ao comportamento dos filhos, demonstrando que a compreensão de que o outro progenitor irá morrer pode estar mais presente nas crianças do que os pais conseguem perceber.

As crianças mencionadas nos trechos que seguem têm, respectivamente, quatro e três anos de idade, são as mais novas contempladas pela pesquisa e, apesar da pouca idade, demonstram, em seu comportamento, sinais de que estão captando a perda, mesmo sem isso estar sendo dito. Porém, suas mães não apresentaram esta crítica ao relatar os fatos:

E a maninha então esse processo, mas eu percebo ela muito mais sensível do que ele, porque ela questiona muito como que é isso, colocando algum filminho infantil que falece, inclusive O segredo dos animais, falece o pai da vaquinha, ela se emociona, ela passa essa parte. (participante 3)

Mas eu noto assim que ela evita falar dele, ela evita falar dele, ela evita lembrar, ela não quer que fale, tem que ser nos momentos dela, por isso que eu, essa é... usar as palavras certas, não é em qualquer situação que ela quer falar sobre isso, ela não quis fazer o trabalhinho do dia dos pais, não quis fazer, ela fez uma parte só. (participante 2)

Os resultados obtidos através da análise do conteúdo das entrevistas permitiram uma aproximação maior ao contexto da comunicação entre pais e filhos no que tange a internação de um dos progenitores em cuidados paliativos. A seguir, os dados encontrados neste estudo serão contrastados com outras pesquisas e reflexões teóricas desenvolvidas sobre o tema, em diferentes propostas teóricas e metodológicas.

 

Discussão

Os resultados deste estudo demonstram que as crianças estão sendo excluídas do processo de morte de seu progenitor. O progenitor saudável, cujo argumento apoia-se no discurso da proteção, omite a realidade da morte próxima compreendendo que isto poupará seu filho de passar pelo sofrimento que ele e os demais membros da família estão passando. Kovács (2008), ao falar da conspiração do silêncio, traz elementos que corroboram com este achado. A autora menciona que existe uma tentativa de mútua proteção, embora esta denuncie várias fragilidades, uma vez que, ao esconder os fatos, o adulto acredita estar protegendo a criança que, por sua vez, sente-se confusa e desamparada, sem ter com quem falar e, até mesmo, pensar sobre o ocorrido.

O modo como a criança é capaz de enfrentar um processo de perda relaciona-se à fatores internos (intrapsíquicos) e externos (do meio). Dentre os externos destaca-se o acesso que a criança tem às informações, bem como, a possibilidade de comunicação sobre o que acontece, estando assim, em estreita relação com a possibilidade de enfrentamento do progenitor saudável (Franco & Mazorra, 2007)

Os resultados obtidos na presente pesquisa, corroboram com a literatura encontrada quando relaciona a capacidade de enfrentamento da criança à capacidade do progenitor saudável. Percebeu-se que as crianças receberam informações restritas àquilo que os pais pareciam poder suportar. Desta maneira, algumas tiveram mais acesso que outras acerca da gravidade do quadro do paciente, porém nenhuma delas recebeu a informação sobre a possibilidade de morte do mesmo. Assim, frente ao interdito, as crianças parecem se calar, sustentando, também, a manutenção do silêncio. Em apenas uma das entrevistas observou-se questionamento da criança em relação ao risco de morte do paciente, porém, este não associado à abertura do diálogo, mas sim, a uma conversa que a criança escutou, mas que, salientou a mãe, não era para ter escutado.

Lima e Kóvacs (2011), em uma pesquisa similar que investigou a comunicação com a criança sobre a morte de um dos genitores, salientam que a elaboração da perda na criança tem relação direta com o conteúdo e a forma como são passadas as informações. Este padrão de comunicação, por sua vez, traduz a maneira como o adulto lida com suas expressões emocionais e, no caso da morte de um dos pais, pelo modo como o progenitor saudável reage e espera que a criança se comporte e se manifeste.

Os resultados das entrevistas mostraram que a dificuldade encontrada para manejar a comunicação relativa à morte com a criança parece ter relação, também, com a dificuldade de aceitação deste desfecho por parte do adulto, que passa a utilizar-se de estratégias defensivas para afastá-lo. Em um estudo sobre as intervenções psicológicas no processo de aceitação da perda, os autores destacam a utilização da negação, ressaltando que o uso inconsciente desta estrutura defensiva afastava a possibilidade insuportável da realidade de uma morte próxima (Melo, Zeni, Costa & Fava, 2013). No presente estudo, este também foi o mecanismo de defesa mais recorrente. Todavia, faz-se importante compreender que o mecanismo da negação pode ser algo necessário, pois, segundo Anthony (1972), é uma etapa entre a recusa e a aceitação da realidade, sendo, com frequência, a primeira reação diante da iminência de perda de uma pessoa próxima. Entretanto, se o adulto mantém este mecanismo como o único possível para lidar com a ameaça advinda da perda, encontrará dificuldade para passar para as outras fases de elaboração do luto.

Kóvacs (2008) refere que a criança também gostaria de negar a morte, mas quando os fatos reais contradizem o que lhe informam, fica completamente perturbada e frustrada. Assim como observado no presente estudo, a autora traz que muitos adultos têm dificuldade em conversar com seus filhos pequenos sobre a morte, argumentando que as crianças não entendem nada a respeito deste tema, porém, a ocultação da verdade provoca um sentimento de estarem sendo enganadas ou consideradas ingênuas, podendo ter impacto profundo na relação de confiança entre pais e filhos, justo em um momento tão delicado do ciclo vital.

Além dos mecanismos de defesa acionados frente a ameaça real, a presente pesquisa chama a atenção para outro fator que interfere na comunicação da morte junto às crianças. Este fator diz respeito à mobilização psíquica que o termo convoca, ou seja, pensar na morte do outro faz lembrar a própria vulnerabilidade. Neste sentido, um estudo relacionado à forma como o cuidador principal do paciente em cuidados paliativos vivencia este processo, ressalta aspectos emocionais mobilizados pelo contato com a perda, na medida que esta faz emergir a precariedade da condição humana, provocando reflexões acerca da finitude do próprio ser (Guimarães & Lipp, 2011). Além da necessidade de proteção da criança (e de si), fantasias acerca da capacidade de enfrentamento que as crianças possuem corrobora para o silêncio instituído, o que atenta para consequências negativas geradas pelo pensamento fantasioso e afastado dos dados de realidade. De acordo com Forrest, Plumb, Ziebland, & Stein (2006), mães que não contam pare seus filhos sobre sua doença fazem com que o processo de elaboração na família fique mais complicado uma vez que elas acabam por subestimar a capacidade emocional das crianças, que podem se sentir excluídas.

No presente estudo, é possível observar uma negligência em relação aos aspectos emocionais da criança oriunda da subestimação de sua capacidade para enfrentar situações dolorosas. Existe uma fragmentação entre assuntos de adultos e assuntos de criança. Uma das participantes entrevistadas chega a verbalizar que criança deve entender de brincar e não de doença e de morte. Neste sentido, foi possível observar uma discrepância entre a compreensão dos pais acerca do que seus filhos estavam entendendo, em relação àquilo que efetivamente demonstravam compreender. Como por exemplo, na situação em que a criança de quatro anos pede para a mãe pular a cena do filme em que o pai do personagem morre. A mãe conta este fato sem fazer qualquer relação com a possibilidade de a criança estar falando da morte do pai. No entanto, quando estes sinais não são captados pelo adulto e quando estes desconhecem a capacidade da criança de enfrentar a perda, as oportunidades de abordar o tema são desperdiçadas e a criança segue percorrendo às margens do processo.

Em estudo similar, conduzido por Lima e Kóvacs (2011), investigou-se a comunicação da morte de parentes à criança, objetivando verificar sua adequação ao seu nível de desenvolvimento cognitivo e compreender o papel da família na elaboração do luto, no que tange às informações e sentimentos compartilhados. Os resultados apontam para a importância de uma comunicação aberta e clara com a criança, além de adequada ao seu nível de compreensão. Por outro lado, salientam os benefícios de se compartilharem sentimentos e demonstram a força do apoio da família extensa no período pósmorte. Este estudo concluiu que, apesar de difícil, a comunicação da morte de um parente próximo à criança é imprescindível e deve ser revestida de alguns cuidados por parte do comunicador, que deve ser alguém com quem a criança tenha fortes laços afetivos.

Assim, a presente pesquisa demonstra a importância de abordar o tema da comunicação de más notícias às crianças e evidencia as dificuldades que os adultos encontram para lidar com esta situação. Demonstra que na base desta dificuldade está a fantasia do adulto relacionada à ideia de ocultamento como proteção, bem como, o seu próprio sofrimento, uma vez que precisa achar meios de dar continência à criança quando ele próprio vive um intenso processo de luto antecipatório.

 

Considerações finais

Este estudo buscou compreender como ocorre o processo de comunicação de más notícias às crianças que vivenciam a internação de um progenitor em cuidados paliativos. Focou-se a investigação na comunicação da iminência de morte, levando-se em conta a certeza deste desfecho.

Observou-se que as crianças não estão sendo comunicadas acerca da morte próxima de seu progenitor e que esta ocultação é sustentada por fatores que se inter-relacionam. Estes fatores dizem respeito a fantasia de que ocultar uma verdade dolorosa oferecerá proteção à criança, bem como, à não aceitação do adulto em relação à morte do companheiro e à subestimação deste em relação às capacidades cognitiva e emocional das crianças.

Ao longo do desenvolvimento deste estudo foi possível identificar fatores limitantes de seus resultados e conclusões. O primeiro deles foi o fato de o progenitor saudável ser o único informante da pesquisa, pois, levando-se em conta às múltiplas configurações familiares e a possibilidade de outro membro da família ter vínculo mais estreito com a criança do que o próprio progenitor, deixou-sede oportunizar a escuta de outros atores envolvidos no processo e que poderiam contribuir de forma consistente para os dados levantados. Um segundo fator limitante foi o fato de não ter sido observada a criança, em situação de jogo ou testagem, o que certamente ampliaria o entendimento de sua compreensão.

Partindo da compreensão de que intervenções realizadas no período que antecede a morte podem ter consequências importantes para uma melhor elaboração do processo de luto e levando-se em conta a escassez da literatura frente ao tema abordado, sugerimos que mais estudos sejam realizados com a finalidade de ampliar o conhecimento desta temática, podendo estender o olhar ao papel da equipe assistencial, em especial do psicólogo, dentro deste contexto e, ainda, adentrar as possibilidades de intervenções capazes de auxiliar as famílias que passam por este processo.

Por fim, frente aos resultados obtidos, alerta-se para a importância de envolver a equipe multidisciplinar para que possa estar atenta às famílias nas suas mais complexas dinâmicas de funcionamento. Para isso, é preciso trabalhar com empatia, com esta fundamental capacidade de colocar-se no lugar do outro e, deste lugar, perceber que os pais, mais do que ninguém, desejam o melhor para seus filhos e que qualquer conduta, por mais inadequada que possa parecer, tem como finalidade última protegê-los. A tarefa de toda a equipe que assiste a estes casos deve ser, através do conhecimento técnico e das habilidades interpessoais, ajudá-los a encontrar os meios mais saudáveis para enfrentar o que será, provavelmente, um dos momentos mais difíceis de suas vidas.

 

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1 Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. E-mail: marceli.psico@gmail.com.
2 Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. E-mail: marianacalesso@gmail.com.
3 Sílvia Abduch Haas - Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. E-mail: silviahaas16@yahoo.com.br.

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