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Revista da SBPH
Print version ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo 2019
ARTIGOS
Psicanálise e prática multidisciplinar no hospital: clínica e transmissão
Psychoanalysis and multidisciplinary practice in the hospital: clinical practice and transmission
Vinicius Anciães Darriba1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / RJ
RESUMO
O artigo interroga a questão da transmissão no âmbito da prática do psicanalista em contexto multidisciplinar no hospital. Sem entrar, neste momento, em uma casuística correlativa ao tema, aborda o modo como o problema da transmissão é tratado por Lacan. Recorremos a seu ensino para articular o problema a partir dos eixos que sustentamos aproximar à discussão da experiência que enfocamos: o saber, o semblante e a universalização promovidos pela ciência.
Palavras-chave: psicanálise; transmissão; prática multidisciplinar; hospital.
ABSTRACT
The article questions the transmission within the scope of the practice of the psychoanalyst in a multidisciplinary context in the hospital. Without entering, at this moment, a casuistry correlative to the subject, it approaches the way in which the problem of the transmission is treated by Lacan. We turn to his teaching to articulate the problem from the axis we hold to bring the discussion close to the experience we focus on: knowledge, semblant and universalization promoted by science.
Keywords: psychoanalysis; transmission; multidisciplinary practice; hospital.
Inseridos em contexto de prática multidisciplinar no hospital, na Unidade de Pediatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ), vimos interrogando nos últimos anos as condições, as possibilidades e a direção de tratamento da psicanálise no âmbito dessa experiência. Por se tratar de um trabalho multidisciplinar, diferentes questões devem ser levantadas pelo psicanalista, as quais precisam ser tratadas através de uma leitura clínico-conceitual que tenha por referência o campo efetivo de sua atuação e a verificação de seus efeitos. Dentre as questões que não podem ser tratadas em termos gerais, mas calcadas no particular de uma clínica, encontra-se a da transmissão, ou seja, o que se transmite, o que se pode transmitir em uma prática do psicanalista que se dá entre vários, referidos esses a distintos saberes e apoiados em diferentes discursos.
Entendemos que essa questão não é secundária ao trabalho em contexto multidisciplinar no hospital. Embora nossa presença enquanto psicanalista dependa sempre de uma demanda que se coloca a cada vez, e que só pode ser trabalhada no um a um, a pergunta sobre os efeitos desse trabalho, no âmbito ampliado do tratamento que ali se conduz, insiste em nos interpelar. O que conseguimos realizar a partirdas demandas que nos chegamencerra-sena efetividade do trabalho com o sujeito ali, reportável à transferência, ou algo se transmite para além desse domínio estrito? As demandas, em especial as da equipe, continuarão reiterando-seno mesmo lugar ou é possível pensar em algum giro discursivo em decorrência da presença do analista?
Ao situarmos assim a pergunta relativa à transmissão na prática multidisciplinar no hospital, é certo que as respostas deverão estar reportadas à casuística que lhes dê sustentação. Não pretendemos, contudo, neste momento, voltarmo-nos já à especificidade dos casos, mas circunscrever preliminarmente o próprio modo como se afigura a questão da transmissão, quando tomamos por referência Lacan. Antes disso, e dentro do cenário em que enunciamos o problema, voltemo-nos para o paradoxo do psicanalista trabalhar em equipe.
O psicanalista dentro da equipe
O dentro da equipe precisa ser problematizado, na medida em que seguimos Lacan (1966/2001) ao discutir o lugar extraterritorial da psicanálise na medicina. Como afirma François Ansermet (2014, p.4), psicanalista e médico com longa experiência de trabalho em hospitais, o psicanalista "não está ali para acrescentar sua especialidade à dos outros". Mais do que uma ressalva, trata-se para ele, com isso, de positivar o trabalho clínico que se pode desenvolver no âmbito de uma relação que se constitui no mal-entendido. Por um lado, o mal-entendido é assim sintetizado: "a psicanálise é convocada para o campo da medicina a partir de universais, ao passo que a operação analítica procede apenas do particular" (p.4). Por outro lado, não se preconiza que o mal-entendido precise ser contornado ou eliminado para que uma prática clínica se faça possível. Será sempre, de modo inexorável, uma clínica permeável ao mal-entendido. Para o psicanalista, na medida em que sustentamos fundar-se na fala e na linguagem o campo de nossa experiência, isso não configura uma condição impeditiva.
Do lado da equipe médica e dos demais profissionais, o trabalho se validará no nível de seus efeitos, os quais poderão ser verificados na clínica, mas não inteiramente elucidados por uma significação compartilhada. Se o mal-entendido não é superado, e nem precisa ser para que haja uma clínica na qual o psicanalista inscreva a especificidade de seu ato, não cabe pretender um compartilhamento do saber psicanalítico que se harmonize com a posição do médico. Trata-se aí da "aposta que permite abrir as fronteiras da medicina ao que está em jogo na clínica analítica" (Ansermet, 2014, p.5), não no sentido de acessar o saber da medicina, mas o real da ciência em jogo. Isso porque, como indica Lacan (1971-1972/2012, p.136), "o discurso analítico não é um discurso científico, mas um discurso cujo material a ciência nos fornece".
Na operação aí implicada não se trataria, no que concerne ao saber, de soma, mas de subtração, o que indaga a ideia de integralidade a que se associa o trabalho multidisciplinar. Há que se partir de que a integralidade não pode equivaler à soma das especialidades. Mas se constatamos que a soma das especialidades é o modo como se concebe a integralidade nesse ambiente, como recusar o lugar de especialista sem ficar imaginariamente de fora? Se ficamos de fora, encarnamos a ideia de que o que vem a completar completa desde fora. É o caso, então, de recusar o lugar de especialista e não ficar de fora, apostando assim em recusara complementaridade: afirmar que o lugar do de fora é dentro, sustentar haver algo que sempre escapa à - ou é produzido pela - tentativa de integralização, ao ser representada pela soma das especialidades. Ou seja, delineia-se uma posição na qual se faz parte da equipe, mas, para não recair no lugar de especialista, trabalha-se em torno do que escapa ou do que resta.
Saber e transmissão
O psicanalista não se coloca, desse modo, nem como questionador de um saber nem como portador de um saber a mais. A divisa da psicanálise se constituirá, sempre, pela aposta em uma nova relação com o saber. Chegando assim a Lacan (1968-1969/2008, p.158),vemos ele indicar que, em função do que aconteceu com o valor do saber, cuja transmissão passou a se inscrever em unidades de valor, "gostaria que as pessoas se dessem conta de que já não é possível desempenhar o papel que convém à transmissão do saber sem ser psicanalista". Isso foi um ano antes de vincular a questão do saber aos quatro discursos, onde, nos termos do discurso universitário, teria se instituído, "no lugar do senhor, uma articulação eminentemente nova do saber, completamente redutível formalmente" (Lacan, 1969-1970/1992, p.76). Desse modo, a instauração do mandamento "Continua a saber sempre mais" faz com que "toda pergunta sobre a verdade" (p.98) que faz agir essa modalidade do saber fique velada.
Frente à opacidade da verdade incrementada pela "nova tirania do saber" (Lacan, 1969-1970/1992, p.30), na psicanálise, segundo Lacan (1968-1969/2008, p.195, grifo do autor), teríamos de modo diverso: "existe um saber que diz: Há em algum lugar uma verdade que não se sabe, e é ela que se articula no nível do inconsciente. É aí que devemos encontrar a verdade sobre o saber". Com isso, voltamos à passagem em que é associada a possibilidade da transmissão do saber ao lugar do analista, na qual, no que chama de uma "exorbitância delirante" (p.158), Lacan propõe que, no futuro, essa condição se estenderia a todo contexto de formação. Aquele que se encontre nessa posição, "mesmo que se trate de matemática, de bioquímica ou de qualquer outra coisa, fará bem em ser psicanalista" (p.158). Anos depois, com relação à experiência efetiva de um Departamento de Psicanálise em Vincennes, Lacan (1975/2003, p.316) mantém-se declarando, quanto às disciplinas de que provêm os ensinamentos em que o psicanalista deve se apoiar, que "não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda universitária, mas de que essas ciências encontrem em sua experiência [do analista] uma oportunidade de se renovar".
O modo como se encontra situado o psicanalista nas proposições acima remonta ao que Lacan (1968-1969/2008, p.158) acrescentou à primeira delas, na qual aquele é definido como "alguém para quem existe a questão da dependência do sujeito em relação ao discurso que o sustenta, e não que ele sustenta". No Seminário do ano seguinte (Lacan, 1969-1970/1992), essa indicação de que o analista se sustenta em seu discurso - discurso do analista - acrescida aos demais discursos (do mestre, da histérica e universitário) exacerba a distinção entre o discurso que sustenta e o discurso sustentado. Esse último, na prática a que nos voltamos nessa discussão, é proferido como saber. Um saber que se sabe, saber exposto, enunciado; ao passo que a inserção necessária do analista, conforme vemos Lacan apontar, procede da interrogação sobre o discurso que sustenta a cada um em dada enunciação, o qual sopesa o que se enuncia.
Se nos voltamos, agora, para o caso específico do médico, encontramos na alocução de Lacan (1966/2001, p.13), referindo-se à posição do analista, que "ela é a única de onde o médico pode manter a originalidade de sempre da sua posição, qual seja daquela de alguém que tem que responder a uma demanda de saber". Na medida em que o poder generalizado da ciência "dá a todos a possibilidade de virem pedir ao médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato", Lacan interroga, do lugar de psicanalista, "onde está o limite em que o médico deve agir e a quê deve ele responder" (p.10). As duas balizas que, segundo Lacan, a psicanálise proveria seriam a distinção entre demanda e desejo e o gozo do corpo. Quanto à primeira, ele diz tratar-se de algo facilmente constatável, mesmo na experiência do médico, mas que apenas seu ensino articulou estruturalmente: a falha entre demanda e desejo. Também é outra falha, entre saber e corpo, que define a segunda baliza. O que a relação nomeada como "epistemo-somática" exclui, retorna na evidência de que "um corpo é algo feito para gozar" (p.11).
É, portanto, com relação à leitura do que se passa com a função do médico devido ao desenvolvimento da ciência, e buscando no discurso analítico uma possibilidade de resposta aos problemas que passarão a se colocar, que o "lugar da psicanálise na medicina" é entendido por Lacan (1966/2001, p.8). Como nas demais passagens que vimos acima, trata-se do que o discurso do psicanalista pode operar, promovendo um giro discursivo. No contexto de sua intervenção em 1966, ele evocava particularmente: "foi sempre como missionário do médico que me considerei" (Lacan, 1966/2001, p.14), o que se alinha à dita exorbitância em considerar a questão colocada pelo lugar do psicanalista incontornável ao que se possa chamar de um contexto de formação, mesmo no âmbito das disciplinas diversas.
Saber e semblante
Como vimos, é em relação ao que se passou na ordem do saber que esse lugar do psicanalista frente às demais disciplinas, de seu discurso na relação com os demais discursos, se justifica. Considerando que não há semblante de verdade, na medida em que a verdade não é aqui tomada como o que lhe seria contraposto, mas como algo que já se articula em termos discursivos, Lacan (1971/2009) diz não se sustentar mais a ideia que se tem de conhecimento. Isto é, não se pode cogitar "conhecer alguma coisa pela via da percepção, da qual extrairíamos sabe-se lá que quintessência, e sim por meio de um aparelho que é o discurso" (p.26). A ideia de conhecimento, que justamente a ciência teria vindo a destituir, é traduzida, por Lacan, como uma metáfora sexual, da relação sexual "que falta no campo da verdade" (p.139).
A questão da verdade seguirá concernindo ao psicanalista. Mas se o discurso é semblante, e não semblante de uma verdade, ela deve estar articulada ao que o real de Lacan conjuga. Ele afirma que, no discurso científico, o real é encontrado como o "que faz furo nesse semblante em que consiste" (Lacan, 1971/2009, p.27) tal discurso. A psicanálise atesta esse real da ciência, em A ciência e a verdade, nos termos de sua "impossibilidade do esforço" (Lacan, 1966/1998, p.875) de suturar o sujeito. Mais tarde, a atestação se reitera em razão de a ciência só ter "como referência a impossibilidade a que conduzem suas deduções" (Lacan, 1971/2009, p.27). Ao articular os discursos, contudo, Lacan ressalta que o então nomeado Discurso Universitário, que se tomaria por suporte do saber científico, procede da colocação do saber em lugar de semblante. Se, em função do impossível, os quatro discursos constituem de maneira tangível algo de real (Lacan, 1971-1972/2011, p.61), é preciso que o semblante (saber no lugar de semblante, no Discurso Universitário) seja posto em causa para isso operar.
No contexto multidisciplinar a que aqui nos referimos, a função do psicanalista encontrar-se-ia associada, portanto, ao abalo do saber como semblante. É só no encontro com o impossível, índice do real nos discursos, como apontado reiteradamente por Lacan (1968-1969/2008, p.319; 1971/2009, p.27; 1971-1972/2012, p.40), que há lugar para sua função, que desde aí visaria promover um giro discursivo. Badiou (2017, p.28) nomeia "acontecimento" esse gesto através do qual se mostra "como o real é sempre aquilo que se descobre ao preço de que o semblante que nos subjuga seja arrancado", considerando que "esse semblante faz parte da própria apresentação do real escondido". Gesto de ter a máscara arrancada por algo que vem de alhures, mas de um alhures interior. Sob essa perspectiva, vemos Zizek (2014), por seu lado, distinguir o acontecimento como o que põe em causa uma multiplicidade inconsistente. Configura, em vista disso, um efeito que excede a causa, um exterior que habita, excedendo-o, um interior.
A interrogação sobre a possibilidade de transmissão apoiada no discurso do psicanalista remonta ao que vemos designar, segundo a concepção acima,a noção de acontecimento. Não o impossível que não cessa de não se escrever, mas o que cessa de não se escrever (Lacan, 1971-1972/2012); a cada vez, um a um, reportando ao contingente. Coloca-se, contudo, a pergunta sobre tal possibilidade em um contexto onde a ciência é a referência, se verificamos que ela se apresenta ali sob a égide da universalização que promove com seu desenvolvimento (Lacan, 1967/2003a; 1967/2003b).
Universalização e transmissão
Sabemos ser sustentado por Lacan (1953/1998, p.322) que a prática da psicanálise exige, daquele que nela se engaja, "alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época". Ele o faz renovadamente quando interroga os efeitos da presença da ciência no mundo, dentre os quais situa a universalização por ela induzida (Lacan, 1967/2003a). Nossa questão passaria a ser, assim, interrogar a possibilidade da transmissão, apoiada em uma experiência que tem por pivô o que se produz na contingência do encontro singular, em um cenário em que prepondera o empuxo à universalização sob a designação do científico. A prática multidisciplinar no hospital encarnaria, portanto, o viés universalizante que veio a ser assumido pelo discurso científico, por "sua imisção em nosso mundo" (Lacan, 1966/1998, p.869). Nesse âmbito em que tal universalização tende a reger as relações que se articulam em torno ao eixo do saber, qual transmissão pode se dar quanto ao que se passa em uma experiência apoiada em um discurso outro, que parte do que não é universalizável, ou mesmo do que tem aí lugar de resto?
Como vimos anteriormente, Lacan (1966/1998, p.875) assinalou que a questão do sujeito surge do próprio fracasso da ciência em suturá-lo, constituindo-se em seu "correlato antinômico". Isso, no entanto, não é evidenciado pelo próprio discurso científico. Trata-se, antes, do que a experiência psicanalítica atesta, na medida em que "não implica outro sujeito senão o da ciência" (p.878). É ela que opera sobre esse sujeito, o que não se conjuga à "questão de saber se a psicanálise é uma ciência" (p.878). A psicanálise se ocupa, portanto, do resto imanente ao procedimento pelo qual o discurso científico impele à universalização. Em sua leitura de tal teorização em Lacan, Milner se apoia na referência daquele à Koyré (Lacan,1966/1998), para indicar que "o sujeito sobre o qual a psicanálise opera, sendo um correlato da ciência moderna, é um correlato do contingente" (Milner, 1996, p.51).
Tal dedução se sustenta nos traços que Koyré (1966/1991) combina para definir a ciência moderna: a empiricidade e a matematicidade. Segundo Milner (1996), a associação da matemática com o necessário e o eterno, que é herdada dos gregos, confronta-se, conforme a implementação de uma física matemática, inaugural na ciência moderna, com a propriedade do empírico de estar sempre vindo a ser ou deixando de ser. Sendo então o empírico, em princípio, anti-matemático, como veio a ser abarcado por uma ciência matemática na física do século XVII? Recorrendo à epistemologia de Popper, que, embora distante da de Koyré, é aqui associada, Milner introduz no problema a noção de contingência. Para isso, se volta inicialmente para a questão da refutabilidade, tal como apresentada na teoria de Popper.
Segundo Popper (1982), o que define o status científico de uma teoria é sua capacidade de ser refutada. Entende-se como refutável a proposição cuja negação não é logicamente contraditória nem invalidada pela observação. Nos termos que importam a Milner (1996, p.50), a refutabilidade implica que o referente da proposição "deve poder – lógica ou materialmente – ser outro que é", o que constitui, segundo ele, a própria definição da contingência. Desse modo ele conclui que a ciência é sempre ciência do contingente. Retomando a problemática koyreana, lida por Milner, o que deve ser conciliado, portanto, é uma ciência matemática com uma ciência do contingente. A ciência matemática deve apreender o contingente.
Milner (1995, p.52) pontua, assim, que "cada ponto de cada referente de cada proposição da ciência surge como podendo ser infinitamente outro que é" e que a "letra matemática" o fixa como não podendo ser outro que é. A necessidade afirmada não resulta, então, na abolição da contingência. Por esse caminho, Milner direciona a discussão para a fórmula lacaniana segundo a qual a ciência busca suturar seu sujeito (Lacan, 1966/1998). Para que a letra da ciência assuma os traços do necessário, é preciso não querer saber do que ela arrasta consigo: a contingência que está em sua origem. Nos termos por Lacan afirmados, é justamente aí que se infiltra o sujeito de que trata a psicanálise. Daí a observação de Milner (1995), vista acima, de que, sendo um correlato da ciência moderna, esse sujeito é um correlato da contingência. Mas tal evidência dependeu e segue dependendo da instalação do dispositivo clínico inventado por Freud, o qual situa a questão da transferência e sua concatenação ao sexual como centrais.
Voltando a um tempo da clínica que ainda não era o nosso, Desrosières (2010) mostra, em sua História da razão estatística, como o método numérico encontrou, na origem de sua implementação na medicina, resistência por parte dos médicos. A doença e seu tratamento foram considerados pelos médicos, por muito tempo, um evento único. O modelo matemático, visando agrupar a experiência de modo generalizador em categorias, era considerado ameaçar a singularidade do encontro entre o médico e o doente. Foi apenas quando se tomou a doença como um problema coletivo, requerendo soluções globais, que, no registro das epidemias e de sua prevenção, uma forma de estatística médica pode se estabelecer. Do colóquio singular com o doente, o médico passou a intervir no debate público e na organização da sociedade. Na clínica médica, contudo, a aceitação dos métodos quantitativos seguiu sofrendo resistências, em particular quando se propunha submeter à prova estatística a eficácia comparada dos diferentes modos de tratar um doente.
Desrosières (2010) indica, assim, que, no início do século XIX, se estabeleceu uma controvérsia relativa ao modo de relacionar os casos na clínica médica: de um lado a emergente estatística médica, de outro a tradição. Segundo Piquemal (1974), para os entusiastas do método numérico, era preciso classificar as doenças, avaliar comparativamente os tratamentos e buscar relações constantes entre umas e outros. Para isso, apoia-se nos procedimentos das outras ciências naturais. A comparação estatística dos resultados, baseada nos percentuais de cura dentro de uma amostragem, era, contudo, criticada pelos que consideravam que o resultado dependia sempre da individualidade do caso. Para esses últimos, é da arte de um homem de experiência, para o qual a tradição foi transmitida, que depende o resultado, reportável ao que se passa no colóquio singular entre um médico e um paciente. Voltando ao tempo que é o nosso, sabemos para onde a medicina pendeu.
Vale, ainda, olhar para o caso de um personagem, Claude Bernard, que, segundo Desrosières (2010), não se enquadraria em nenhum dos dois polos, introduzindo uma questão mais complexa. Ele fez progredir o método científico na medicina, mas refutava o método numérico. Interessava-lhe, pelo método experimental, a busca das causas precisas de cada doença, da cadeia determinista de causas e efeitos. Desde esse ponto de vista, a estatística na ciência médica desviaria a atenção da questão da causa, em prol da probabilidade, da aproximação. Essa última posição, que, empenhada no estabelecimento de uma medicina científica, acusa o método numérico de falta de rigor, somada às duas anteriores, seguiriam existindo e concorrendo, como mostra Desrosières (2010), até os dias de hoje.
Em uma equipe, em uma instituição e em um momento específicos, as distintas posições descritas acima compõem, em cada caso, configurações particulares para o discurso médico. A experiência do analista toma em consideração as coordenadas em jogo em dado contexto, mas introduz uma posição que não se confunde com nenhuma daquelas, nem tampouco com alguma combinação das mesmas. O que nossa transmissão visa estaria para além da tradição, do número ou da causa no âmbito da ciência médica, o que nos leva, em nossa investigação, a tentar cerni-la desde o interior da experiência em equipe multidisciplinar no hospital. Já sabemos até aqui, apoiados em nossa experiência e no suporte encontrado na teorização desenvolvida, que as condições para a transmissão passam pelo modo como se articulam, no bojo de uma configuração específica, os efeitosdo empuxo universalizante e pela possibilidade de localizar o limite ao mesmo, o que só se verifica em ato.
Referências
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Agência de fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
1 Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Bolsista Produtividade CNPQ (nível 2); Bolsista Prociência UERJ; Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Psicanalista. Contato: viniciusdarriba@gmail.com.