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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.2 São Paulo July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Vivência da gestação e parto de alto risco: uma reflexão a partir do referencial psicanalítico

 

Experience on gestation and high risk childbirth: a reflection from the psychoanalytic framework

 

 

Carolina Mastelini Amorim Miyazaki1; Silvia Nogueira Cordeiro2; Rebeka Pessoa de Almeida3; Flávia Angelo Verceze4

Universidade Estadual de Londrina – Londrina/PR

 

 


RESUMO

A gestação e puerpério são períodos de transição na vida da mulher, podendo ocorrer reorganizações psíquicas em que conteúdos arcaicos ligados a sua história podem ser reativados. O objetivo deste estudo foi conhecer as vivências de mulheres, da gestação, do parto via cesariana e do puerpério imediato numa maternidade pública do norte do Paraná, referência em atendimento a gestantes de alto risco. A pesquisa realizada teve caráter descritivo, de natureza qualitativa, caracterizada como pesquisa de campo. A análise dos dados se deu por meio da técnica de análise temática de conteúdo- leituras sucessivas do material coletado -, do diário de campo e avaliação pelos pares. Os resultados apontaram que a maioria destas mulheres utilizaram-se do corpo orgânico como uma via de expressão do sofrimento psíquico, desencadeados ou agravados na gestação. Também esteve presente nos relatos a expectativa do encontro com o bebê, permeada pela preocupação materna com o estado físico da criança, associada ao medo da morte. Tais aspectos destacam a importância do acolhimento psicológico, e de uma escuta diferenciada, que para além das questões do corpo-organismo, reconheça a subjetividade das mulheres.

Palavras-chave: gestação; cesariana; maternidade; psicanálise; saúde da mulher.


ABSTRACT

Gestation and puerperium are periods of transition in women's lives, and there may be psychic reorganizations in which archaic contents linked to their history can be reactivated. The objective of this study was to recognize the experience of pregnant woman who have had a cesarean delivery, at a Public Maternity in the north of Paraná. The research had a qualitative nature, it was a field research with a descriptive character. The data analysis was made through the thematic content analysis technique, through successive readings of the collected material, field diary and peer evaluation. It can be noticed that the majority of the women used their body as a resource for the representations of their gestational experiences, where somatic issues triggered or aggravated by pregnancy were prominent. Also, for the women, the expectation for the encounter with the baby, was permeated by maternal concern with the physical state of the child, associated with fear of death. These aspects highlight the importance of psychological welcoming and a differentiated listening that, in addition to body-organism issues, recognizes the subjectivity of women.

Keywords: gestation; caesarean; maternity; psychoanalysis; women's health.


 

 

Introdução

O ciclo gravídico puerperal se caracteriza por um período de transição existencial na vida da mulher, atingindo diferentes âmbitos, em que ocorrem significativas modificações, capazes de provocar novas adaptações e reorganizações intrapsíquicas. Tal período representa uma fase delicada para a saúde mental, pois ocasiões e eventos relacionados à gestação podem ressoar na história pregressa da mulher, reativando conteúdos arcaicos, como o seu próprio nascimento, por exemplo, em que novos níveis de amadurecimento, integração e expansão da personalidade são possíveis de ocorrer, revolucionando a ordem estabelecida. Também se caracteriza como fase de grande incidência de transtornos psíquicos tais como a depressão pré-natal e/ou pós-parto, que podem desencadear adversidades no desenvolvimento da gestação, parto e/ou puerpério, bem como prejudicar o vínculo entre mãe e bebê (Klaus e Kennell, 1992; Maldonado, 1997; Rennó e Soares, 2012; Szejer e Stewart, 1997).

Nesse sentido, a maternidade mobiliza desejos e fantasias que permeiam todo o contexto da gestação e permanecem envoltos em complexidade e mistério.

A partir do desenvolvimento da Psicanálise, encontramos subsídios teóricos para compreender os complexos fenômenos humanos, entre eles aspectos que envolvem a gestação e maternidade.

Considerações da Psicanálise Sobre a Maternidade

Devemos considerar que Freud postulou suas teorias sobre o desenvolvimento da sexualidade humana influenciado pelo contexto histórico e cultural de sua época. Neste contexto, as mulheres não tinham escolha quanto, por exemplo, ao trabalho e estudo, mas eram encarregadas da criação dos filhos e dos cuidados com a casa e tinham o objetivo de serem mães e esposas ideais (Domingues, 2009). Dessa forma, Freud postulou um modelo de sexualidade e, a partir disso, elaborou sua teoria sobre a sexualidade feminina.

O criador da psicanálise, fundamentado nos atendimentos clínicos, baseou a sexualidade feminina na primazia do falo. Afirmou, em sua obra Feminilidade (1932/1996), que a menina, ao perceber as diferenças anatômicas de seu corpo, sente inveja do órgão que lhe falta e as questões do feminino só se estabeleceriam "se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica" (p. 128).

Segundo Freud, essa vivência compõe as fases do desenvolvimento infantil, em especial o Complexo de castração e de Édipo, caracterizados respectivamente como: conjunto de representações centrado na fantasia de castração, em que surge o enigma da diferença anatômica dos sexos, e conjunto de desejos amorosos e hostis sentidos pela criança em relação a seus pais, que orienta o desejo humano (Laplanche e Pontalis, 2001). Portanto, para o autor, a maternidade seria um caminho, considerado como uma das três formas de desenvolvimento para a feminilidade, de substituição do falo pelo desejo de ter um filho, análogo ao desejo de ter o falo, chamado por ele como um caminho normal para a feminilidade. Dessa forma, Freud identifica que a função fálica pode servir como organizadora da constituição feminina que perpassa tais complexos e do processo de construção da maternagem (Bonfim & Vidal, 2009; Farias e Lima, 2004; Freud, 1932/1996; Stellin, Monteiro, Albuquerque, e Marques, 2011). Apesar de Freud ser pioneiro no desenvolvimento da teoria da sexualidade feminina, terminou por afirmá-la como "continente negro" por ser um tema de caráter controverso, inclusive dentro da própria Psicanálise.

Outros psicanalistas se debruçaram sobre o tema. Todavia, foi Jacques Lacan que recebeu destaque, devido ao seu aspecto inovador em relação à Psicanálise, ao propor uma releitura da obra freudiana, em que possibilita pensar outras formas de satisfação, retirando a mulher da subordinação fálica, ao indicar a noção simbólica do falo e da castração (Domingues, 2009).

A princípio, Lacan se aproxima das ideias de Freud, ao postular, em seu 4º Seminário publicado, A relação de objeto (1956-7/1995), que o falo não deve ser confundido com o pênis e, embora a criança possa ser colocada no lugar de objeto pela mãe, não pode ser engendrada como objeto adequado, posta como solução para a falta feminina. O psicanalista observa que a mãe é um sujeito insaciável, referindo-se ao modo peculiar de como ela tenta obstruir a falta, que é constitutiva dos sujeitos falantes: "Esta mãe insaciável, insatisfeita [...] é alguém real, ela está ali e, como todos os seres insaciados, ela procura o que devorar" (p.199).

Esse processo será barrado pela metáfora paterna, que se caracteriza como a atribuição feita simbolicamente pela criança ao pai acerca da ausência da mãe, como aquele que detém o falo e justifica o desejo materno para além dela (Chemama, 1995), e se dá quando o significante do Nome-do-pai introduz uma distância entre o falo e a criança, uma vez que este é a nomeação daquilo que a criança supõe ser o desejo da mãe (Chemama, 1995). Tal significante divide o desejo materno, fazendo com que a criança perca a ilusória função de completude para mãe (Farias & Lima, 2004).

Com o desenvolvimento de suas elaborações sobre o tema, Lacan reconhece que a mulher não está excluída da lógica fálica proposta por Freud, pois o falo representa um significante com o qual poderá subjetivar sua sexualidade. Considera, entretanto, que algo escapa ao falo ao anunciar que o desejo materno não é inteiramente recoberto por esse significante, não é todo submetido a essa lógica. Uma vez que o filho não satura o desejo, permanecendo o gozo desconhecido, comportando uma ausência de limite, inserindo assim uma noção de gozo suplementar, remetendo-a para um além do falo. Dessa forma, a experiência da maternidade pode ser vista como uma das respostas à feminilidade, embora não haja uma relação de completude, já que esta é circunscrita pelo encontro com a falta, com a castração, lançando a mulher para uma lógica não-toda fálica (Bonfim, 2014; Farias & Lima, 2004; Ferreira, 2015; Lacan, 1972-1973/1982; Marcos, 2011; Silva, 2008; Souza, 2014).

Não é à toa que essa experiência é marcada por sentimentos intensos e ambivalentes, em que conteúdos arcaicos ligados à história prévia da mulher podem vir à consciência. É também caracterizado como um momento de elaboração da relação da mulher com a própria vivência edipiana, que a remete aos seus primitivos conflitos de separação (Boas, Braga, & Chatelard, 2013; Borsa, 2007; Moura, 2013).

Ainda sobre o tema, Tavares (2016) afirma que, durante a gestação, a mulher idealiza o bebê para além do estado e desenvolvimento biológico, atribuindo a ele um estatuto de sujeito através de um processo de representação denominado "bebê imaginário". Tal termo corresponde à inserção inicial da criança no mundo imaginário da mãe, que a possibilita construir uma imagem desta que ainda não conhece e investir libidinalmente em um espaço subjetivo para receber seu bebê, tomado como objeto de grande importância, já que sobre ele recai sua libido.

O parto é o evento que inaugura concretamente a maternidade, além de fazer parte de um complexo processo de construção da função materna, que permeia a gestação e puerpério (Donelli, 2003). Além disso, é o momento que marca a disjunção mãe - bebê, evidenciando a incompletude, uma experiência sentida no corpo através da irrupção violenta de separação dos corpos. Nessa vivência, a mulher pode ser atravessada, além das dores físicas do parto, pela angústia da perda, que está relacionada com lembranças remotas do seu narcisismo primário-investimento pulsional, amoroso, realizado sobre si mesmo, sobre sua própria imagem (Chemama, 1995; Rei, Ramírez, & Berlinck, 2014).

É importante considerar que a gestação traz em seu cerne a intrínseca noção de risco; mesmo que não haja manifestação de problemas, seu caráter de imprevisibilidade pode modificar o processo e comprometer o resultado, o que justifica, de certo modo, as ansiedades e temores característicos desse período. Situações pré-existentes ou posteriores à gravidez, de natureza médica, social ou psicológica, podem demandar intervenções específicas e tratamento diferenciado (Quayle, 1991).

Todo o processo psíquico descrito até então pode ser observado em mulheres que vivenciam uma gestação de baixo risco. Entretanto, quando se trata de uma gravidez com complicações para mãe ou bebê, consideramos importante indagar: quais são as repercussões psíquicas sob essas condições? Como é percebido tal processo de transição, uma vez que tanto a vida da mãe quanto a do bebê se encontram sob ameaça?

Aspectos Psíquicos em Gestação de Alto Risco

A gestação de alto risco é definida pelo Ministério da Saúde como a ocorrência de situações limítrofes, que apresentam maior probabilidade de evolução desfavorável, em que a vida da mãe ou feto/recém-nascido tem maiores chances de ser atingida. Os fatores são caracterizados por grupos de risco, a saber: 1- características individuais e condições sociodemográficas desfavoráveis, como faixa etária menor que 15 anos ou acima de 35, situação conjugal insegura, dependência química, entre outros, 2- história reprodutiva, como aborto anterior, pré – eclampsia, macrossomia fetal, 3- intercorrências clínicas crônicas, como cardiopatias, hemopatias, hipertensão arterial, doenças autoimunes e 4- doença obstétrica na gravidez atual, como hemorragias, pré – eclampsia, trabalho de parto prematuro, entre outros (Brasil, 2010).

Esses eventos podem concretizar os temores e ansiedades vividos até então e intensificam tanto o medo da perda da criança quanto a ameaça de morte da própria mulher. Além disso, pode manifestar-se na mulher, por conta da condição patológica, o receio de não ser capaz de gerar um bebê perfeito, forte e saudável, agravando o estado de ambivalência comum em gestações, em que amor e estranheza, alegria e medo, vida e morte estão implicados. Associadas a isso estão as alterações no cotidiano da gestante, que passa a receber cuidados médicos intensivos, com eventuais processos que acrescem os temores em relação ao desenvolvimento gravídico, como a inserção de medicamentos, procedimentos cirúrgicos, repousos e até internações hospitalares para o monitoramento da gestação, na tentativa de preservar a vida tanto da mãe quanto do bebê. Além disso, podem emergir sentimentos de culpa, censura e fracasso, repercutindo na vivência da gestação e retroalimentando a condição patológica devido à vulnerabilidade emocional (Pio, 2012; Quayle, 1991; Tedesco, 1997).

Com a confirmação de alto risco na gestação, a mulher, por vezes, vivencia o luto da gravidez idealizada, em que a descrença, o impacto e a negação são manifestados como mecanismos de defesa capazes de, em determinados graus, comprometer a gestação. Ao não conseguir suportar a realidade de risco e as limitações impostas, a mulher pode sabotar as alternativas oferecidas para o tratamento, negar sua condição ou ainda acreditar não ser real a existência de conflitos, expondo-se a riscos que acabam por agravar o processo, protelando o tratamento específico ou a realização de exames. Tais aspectos podem acarretar dificuldades para o vínculo do binômio mãe-bebê, cristalizando o laço como fragilizado ou vivenciando-o como "doente" (Pio, 2012; Quayle, 1991; Tedesco, 1997).

O problema pode ser ainda mais acentuado quando a gestante é privada de informações sobre a sua condição, atrelado a situações socioeconômicas deficitárias, como pobreza extrema e vulnerabilidade social, efeitos da desigualdade social. Tal conjuntura repercute em uma precariedade subjetiva em relação ao manejo de acontecimentos conflituosos, como os decorrentes de uma gestação de alto risco, por exemplo. A precariedade subjetiva, atada à dificuldade de simbolização dos conflitos, reflete na maneira como esses sujeitos elaboram os acontecimentos da vida, muitas vezes se utilizando do corpo biológico como via de expressão do sofrimento psíquico. Pode-se considerar como uma resposta singular, uma alternativa possível a ser utilizada, repercutindo muitas vezes em lesão do órgão, traduzido por patologias psicossomáticas que privilegiam o sofrimento do corpo biológico (Ávila, 2002; Cerchiari, 2000; Cordeiro e Ortiz, 2015; Fernandes, Reys, Besset & Veras, 2015; Fonsêca, 2013; Oliveira & Mandú, 2015; Silva, 2005).

Embora no presente estudo não tenha sido possível abordar a origem e o desenvolvimento da condição patológica das entrevistadas, consideramos relevante tratar, mesmo que de forma breve, a questão psicossomática, uma vez que, com a análise dos resultados, pode-se perceber uma forma peculiar de comunicação, restrita de recursos simbólicos, que se relaciona com a precariedade subjetiva citada.

Considerações Sobre o Parto

Aspectos históricos ligados à mulher e sua posição social, tal como a fecundidade, a maternidade e os processos que envolvem a assistência ao parto, sofreram modificações ao longo do tempo. Considerado previamente como evento fisiológico e natural protagonizado pela mulher e conduzido e auxiliado por parteiras, o parto foi transformado pela medicina em um fenômeno patológico, em que há a necessidade de intervenção médica e/ou cirúrgica, institucionalizado no ambiente hospitalar. Dessa forma, o trabalho não intervencionista do parto natural vem sendo substituído progressivamente por um parto instrumentalizado (Crizóstomo, Nery & Luz, 2007; Maldonado, 1997).

A partir do desenvolvimento da industrialização e de técnicas em Medicina, a gestante passou a ser submetida a intervenções marcadas por excesso de cuidados médicos, que podem afetar o seu estado emocional, com procedimentos que desconsideram os aspectos sociais, afetivos e emocionais e priorizam a concepção biológica do período gravídico puerperal. Tais procedimentos tornaram-se uma constante no modelo biomédico, como, por exemplo, a demasia de recursos tecnológicos que podem repercutir em fatores de estresse materno e oscilações na autoconfiança da mulher. Contudo, as contribuições do progresso tecnológico e a institucionalização do parto foram significativas, trazendo benefícios para a gestação e parto de alto risco, diminuindo as taxas de mortalidade materna e perinatal, embora ainda sejam altas (Gaíva & Tavares, 2002).

Nesse sentido, a operação cesariana tornou-se um procedimento técnico seguro devido a progressos que ocorreram na Medicina, em especial na área da Obstetrícia, e foi significativamente importante para a melhoria de resultados obstétricos maternos e perinatais. (Brasil, 2001).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza modificações no atendimento a gestantes centrados predominantemente em intervenções técnicas e nas rotinas hospitalares que caracterizam o modelo de parto como institucionalizado e medicalizado, as quais muitas vezes geram riscos com caráter iatrogênico para mãe e bebê, com procedimentos excessivamente intervencionistas considerados desnecessários. Todavia, as recomendações não caracterizam a eliminação de intervenções técnicas, mas a redução por meio de medidas humanizadoras, tornando os atendimentos menos agressivos e mais naturais (Tornquist, 2002).

Atualmente, no Brasil, tramita no Sistema Legislativo o projeto de Lei PL 3635/2019 que tem como propósito oferecer à mulher a possibilidade de optar pela via de parto cesariano, mesmo que sem indicação médica, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir da 39º semana de gestação ou ainda solicitar analgesia quando escolhido o parto normal. O governo do estado de São Paulo, em agosto de 2019, foi o primeiro a sancionar a Lei. Embora tal projeto se sensibilize com o processo de parir e com a autonomia da mulher, tornou-se alvo de críticas de especialistas de entidades médicas, gerando polêmica, uma vez que contradiz as recomendações da OMS supracitadas e pode ser entendido como incentivo ao procedimento cirúrgico.

O Ministério da Saúde (2012) recomenda, essencialmente em casos de gestação de alto risco, como é o caso do presente estudo, quando não há mais possibilidade de manter uma gestação em que o risco seja elevado tanto para a gestante quanto para o feto, a antecipação do parto por meio de técnicas de indução, levando em consideração os conhecimentos técnicos científicos, e a validação da gestante, companheiro e familiares como agentes de decisão do processo. No entanto, quando há contra indicação absoluta à indução de parto vaginal, a cesariana é o método disponível como medida preventiva.

Tais medidas são de extrema importância quando consideramos que o parto não é apenas um evento biológico, mas envolve aspectos psíquicos e afetivos do binômio mãe-bebê, do pai e familiares.

Diante dessas reflexões teóricas sobre a maternidade e parto, tendo em vista que tal período é marcado como de transição na vida da mulher e que pode movimentar conteúdos psíquicos capazes de remetê-la à sua história pregressa, objetivou-se com este trabalho conhecer a vivência de puérperas que tiveram gestação de alto risco e parto via cesariana, atendidas na maternidade de um hospital regional do norte do Paraná e discutir as possíveis repercussões psíquicas dessa experiência a partir do referencial psicanalítico.

 

Método

A pesquisa realizada teve um caráter descritivo, de natureza qualitativa, caracterizada como pesquisa de campo.

As puérperas foram abordadas em seu leito, de forma aleatória, de acordo com o critério de inclusão: puérperas que passaram pelo procedimento de parto cesáreo. Após o aceite, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido exigido pela resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Foram convidadas a falar sobre sua gestação, parto e puerpério por meio de uma entrevista semiestruturada. Os temas que nortearam as entrevistas foram: vivências da gestação, as expectativas imaginadas para o parto, os sentimentos que permearam esse período e suas percepções em relação ao atendimento recebido. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra. A busca por novas entrevistas foi interrompida quando houve redundância e repetição dos dados, caracterizando a saturação das informações coletadas (Denzin & Lincoln, 1994).

A análise dos dados foi executada através da técnica de análise temática de conteúdo, que se deu por meio de leituras sucessivas do material coletado, dados registrados em diário de campo e avaliação pelos pares (Minayo, 2007). As mulheres foram nomeadas como pacientes (abreviado pela letra P) e receberam um código numérico sequencial (P01, P02, P03... P10) para garantir o sigilo do depoimento.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina (Parecer n.1.934.603). Este artigo é resultado da Iniciação Científica da autora.

 

Resultados e Discussão

Caracterização dos Participantes da Pesquisa

O estudo abrangeu 20 mulheres com idades entre 19 e 45 anos, a maioria delas multíparas. Todas elas apresentaram algum risco associado à gestação; entre as patologias e condições estão a hipertensão arterial, seja crônica ou gestacional, diabetes, doenças autoimunes, cardiopatia, obesidade, perda gradual de líquido amniótico e idade avançada. As participantes eram de níveis de escolaridade variados, embora a maioria delas tenha completado o ensino médio. A maior parte era casada e exercia uma profissão de forma remunerada. Todas declaram ter uma religião.

Foram três eixos temáticos elegidos por meio da análise de conteúdo decorrente da entrevista: "Gestação: uma vivência do corpo", "A expectativa do encontro com o bebê" e "O ato de parir - uma vivência de separação".

Gestação: Uma Vivência do Corpo

O primeiro eixo, Gestação: uma vivência do corpo, refere-se à forma como as mulheres puderam dizer sobre a experiência da gestação, ou seja, uma experiência predominantemente percebida pelas alterações concretas no corpo-organismo. As falas se limitaram a retratar as condições físicas da gestação. Além disso, por se tratar de gestantes de alto risco, seus relatos enfatizaram a patologia associada aos acontecimentos concretos do período gestacional, representadas pelas falas a seguir:

A minha gestação foi muita tontura, muita queimação, muita azia, não consegui nem dar aula direito de tanta tontura, e depois deu diabetes gestacional (P01).

Foi bem complicada, tive descolamento da placenta, pressão oscilava bastante, tive hipotireoidismo na gestação, usava bombinha para asma, usava várias coisas… foi bem complicada mesmo, idas e vindas para o hospital… tive seis infecções de urina, uma atrás da outra (P07).

Observa-se, nos exemplos acima, uma dificuldade das entrevistadas em relatar as vivências emocionais desencadeadas pela experiência da gestação; seus sentimentos e desejos pouco apareceram. Os relatos demarcaram os aspectos somáticos da gravidez, em uma descrição das patologias desencadeadas pela gestação ou mesmo no agravo de doenças já existentes.

A utilização do corpo biológico como via de expressão do sofrimento psíquico é objeto de estudo da Psicossomática. Em uma revisão da literatura científica sobre o tema, Cerchiari (2000) aborda diversos autores e vertentes que se debruçaram sobre tal campo de saber e com base nos estudos de Taylor (1990) expõe que tal fenômeno é relacionado com uma maneira peculiar de comunicação, denominada de alexitimia (falta de palavras para as emoções), quer seja em detrimento das condições psicossomáticas clássicas, quer seja por defesa singular de processos psíquicos associados a questões internas arcaicas.

É sabido que o período gestacional movimenta aspectos psíquicos da vida da mulher, concomitantemente ao processo psíquico de preparo à função materna, além de trazer à tona sentimentos ambivalentes estreitamente relacionados a sua história pregressa. Dessa forma, a gestação é também um momento de elaboração de conflitos arcaicos, como os da relação da mulher com seus próprios pais, da vivência do triângulo edipiano e conflitos de separação, convocando-a assim a sua própria castração (Boas et al., 2013; Borsa, 2007; Klaus & Kennell, 1992; Maldonado, 1997; Moura, 2013).

Desse modo, a partir da literatura consultada, pode-se interpretar que a escassez de recursos simbólicos observado nos relatos das participantes referindo-se às vivências da gestação, recorrendo aos processos fisiológicos, seja da gestação em si, seja da patologia concomitante ao período gravídico, marcado por um discurso voltado aos acontecimentos concretos do período, pode ser entendida como maneira singular de comunicação, que resguarda a mulher a entrar em contato com aspectos psíquicos de conteúdo primitivo, possivelmente conflituosos e ambivalentes. Tais aspectos podem estar associados a questões vivenciadas, no início da vida, com as figuras parentais, bem como a sua vivência edipiana ou, ainda, à elaboração da relação da mulher com sua própria mãe, remetendo-a aos seus conflitos primitivos de separação.

Além disso, a condição econômico-financeira das mulheres, considerando o fato sociológico de desigualdade social estrutural no Brasil, indica não apenas que a pobreza material pode refletir uma precariedade subjetiva, mas que os recursos materiais para gerir os acontecimentos da vida estão associados a essa precariedade. Isso deixa rastros da posição de sujeito em relação ao seu desejo (Fonsêca, 2013), perceptíveis nesses relatos e no modo como perceberam a gestação.

A Expectativa do Encontro com o Bebê

O eixo, A expectativa do encontro como o bebê, aborda as expectativas das mulheres em relação ao encontro com o bebê. Foram, predominantemente, a preocupação com a condição física da criança e os anseios relativos ao primeiro encontro entre mãe e filho, expressos nas falas a seguir:

Minha expectativa era para o bebê ter saúde, eu morria de medo de, na hora do parto, descobrir que tinha alguma doença, alguma coisa... essa parte assim que a gente fica preocupada com o bebê (P01).

[…] eu não via a hora de ver o rostinho, a carinha do meu filho né, e ver que ele chorou, e está vivinho da silva (P18).

A espera desse encontro também esteve associada com o medo da morte:

Eu tive medo dele não respirar... Deus me livre, enquanto eu não vi chorar... eu quase morri… eu acho que medo né, medo, desespero né, se não der certo, aí você cria expectativa, e depois não dá certo, nossa desesperador…" (P05).

Fiquei apreensiva né... não sabia se ia dar certo, se não ia dar, com medo de acontecer alguma coisa com o neném… eu fiquei com medo, né, de perder meu neném... mas graças a Deus deu tudo certo (P10).

Na gestação, a mulher simboliza o ideal de filho por meio da representação de um bebê imaginado, em que se institui o contato da mãe com o ainda desconhecido bebê; tal processo possibilita à mulher a supor um sujeito em alguém que ainda nem conhece (Tavares, 2016; Stellin, et al., 2011). O bebê imaginado é compreendido como "objeto psíquico" do imaginário da mãe, constituído a partir do seu desejo narcísico e equivalente a esse ser que habita seu corpo (Lebovici, 1987; Soulé, 1987). Isso se dá na mesma medida em que ela mesma foi introduzida como sujeito no mundo, possibilitando assim fazer o correspondente com seu bebê. Tal processo viabiliza a mulher investir libidinalmente na criança, promovendo um espaço subjetivo para recebê-la (Tavares, 2016).

Nesse sentido, a mulher encontra no bebê um representante fálico da castração, um objeto que supostamente possa cobrir sua falta (Farias & Lima, 2004). Este aspecto podemos exemplificar pela fala a seguir:

[...] era meu sonho, me senti completa, eu sou completa hoje, foi um milagre na minha vida... é um sentimento... que não tem como descrever a grandeza (P18).

Dessa forma é possível pensar, a partir do relato dessas mulheres, que, para além da preocupação materna com a saúde e condição de vida de seus bebês, há também, do ponto de vista psíquico, uma possível vivência de ameaça de perder esse representante fálico que se desenvolveu em seu ventre e simbolicamente pode receber o ilusório sentido harmonioso de completude, uma preocupação com o objeto que imaginariamente faz suplência à sua castração (Farias & Lima, 2004).

Alguns significantes como: "me senti completa" e "é tudo para mim agora" podem exemplificar o que Lacan afirma, através do desenvolvimento das ideias de Freud, de que a maternidade opera algo da ordem do desejo. A forma com que essas mulheres se expressaram sobre a expectativa do encontro diz sobre o lugar subjetivo em que colocam a criança que esperam, o lugar de objeto. Esta, que vem representar simbolicamente o falo, uma vez que a mulher não está excluída da lógica fálica, desenvolvendo assim um caminho possível para a feminilidade, ou seja a maternidade. Entretanto o psicanalista destaca sobre a necessidade desse objeto não ser considerado como adequado, ou como solução para a falta feminina, e que a entrada do Outro na relação, é que irá dividir o desejo materno, fazendo com que a criança perca a ilusória função de completude para mãe (Bonfim, 2014; Farias e Lima, 2004; Ferreira, 2015; Lacan, 1972-1973/1982; Marcos, 2011; Silva, 2008; Souza, 2014). Todavia, tal processo é complexo e compõe, de forma singular, a vivência subjetiva de cada mulher com o seu bebê, não sendo possível ser captada a ocorrência desta operação em uma única entrevista, nesta pesquisa.

O Ato de Parir - uma Vivência de Separação

A palavra parto, na língua portuguesa, designa o momento do nascimento de uma criança; tal vocábulo também pode ser utilizado na conjugação do verbo partir. Assim, à vivência do nascimento do filho pode ser atribuída como sentido de "partida". O parto é comumente considerado como marcante na vida de uma mulher, no qual estão implicados a angústia da separação e demais afetos pertencentes a uma mudança interna e atualização de uma perda (Rei et al., 2014).

O relato das entrevistadas sobre o parto corrobora o fato de ser um evento que marca a separação, podendo ser gerador de angústia. A percepção das mulheres esteve envolta de sentimentos de medo, ansiedade, pavor e uma sensação de difícil descrição:

[...] eu sempre tive medo... eu sentia pavor, [...] É que assim, eu tinha medo dos dois partos na verdade, eu tinha medo de sabe... eu não sei descrever (P18).

[...] Parecia que eu ia surtar lá dentro (centro cirúrgico) porque a sensação que eu tinha era muito ruim, a vontade que dava era de levantar e falar, para aí que daqui a pouco eu volto (risos)... mas não tem jeito (P05).

Nossa! Já entrei (centro cirúrgico) chorando, entrei morrendo de medo, medo da anestesia e do corte (P16).

Observa-se nessas falas que, para essas mulheres, este momento, apesar de ser muito esperado, ao se aproximar, gerou medo e apreensão.

Sabe-se que o parto é o momento crucial em que se inaugura a maternidade, um momento de separação dos corpos e, ao mesmo tempo, o encontro entre mãe e bebê; isso é suficientemente importante para despertar conteúdos primitivos relacionados às vivências de separação vividas ao longo da vida.

Segundo Rei et al. (2014), a vivência do parto é caracterizada, para além das dores físicas do parir, como uma experiência de angústia de perda que assinala a disjunção da unidade mãe-bebê, além de fazer renascer afetos de questões primitivas de separação, já que é o acontecimento que encerra a plenitude de poder gerar uma vida dentro de si mesma, dois num só corpo, sendo o ápice da vivência narcísica.

Esses aspectos não são explicitados diretamente por essas mulheres, pois tratam de questões subjetivas que permeiam a vida psíquica; entretanto, são suficientemente importantes para influenciar as vivências das mulheres no momento do parto (Pio, 2012; Quayle, 1991; Tedesco, 1997). Considerando que as mulheres entrevistadas, tiveram gestação de alto risco, e que seu estado de saúde ameaçava sua própria vida, podemos pensar que o parto, evento que inaugura a maternidade, pode ter sido um momento sentido como de intensa angústia de separação, percebido pelas entrevistadas como ainda mais acentuado uma vez que o encontro entre mãe e bebê poderia não ter acontecido já que havia o risco eminente de morte para ambos.

 

Conclusão

Com a análise dos dados, foi possível perceber que algumas mulheres tiveram dificuldade em relatar as vivências da gestação. O relato das puérperas parece estar associado com uma forma peculiar de comunicação que as resguarda de entrar em contato com conteúdos inconscientes que podem ser desencadeados por esse período. Além disso, foi possível observar uma escassez de recursos simbólicos para expressar essas vivências, suas falas deram destaque aos problemas orgânicos desencadeados ou agravados pela gestação ao invés de falar sobre sentimentos e possíveis sofrimentos psíquicos decorrentes deste processo.

As entrevistadas também relataram uma preocupação com a saúde e condição de vida de seus bebês, o que parece estar associado a uma possível vivência de ameaça de perda do representante fálico, materializado na criança, que recebe o ilusório sentido de completude. Além disso, esteve presente, nos relatos, o momento do parto, enfatizado como gerador de angústia e medo, marcando a separação dos corpos e inaugurando a maternidade.

Tendo em vista tais aspectos, se faz relevante pensar no acolhimento psicológico de gestantes e puérperas, em especial aquelas que estão sujeitas à condição de alto risco, pois além das questões de caráter físicos e psíquicos que a gestação provoca, acrescentou-se a essas vivências, o agravo de doenças e a ameaça de morte. Tais aspectos podem agir como dificultadores desse processo de mudança. Portanto, se faz significativo ofertar uma escuta distinta do modelo médico, uma escuta clínica que, para além das questões concretas do corpo, reconheça a subjetividade destas mulheres.

Nessa pesquisa a oferta de um espaço de escuta, através das entrevistas realizadas, pode ter operado como um dispositivo para que estas mulheres pudessem se escutar e com isso abrir a possibilidade de um questionamento sobre si através do recurso da palavra.

 

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Agência de Fomento: Universidade Estadual de Londrina (UEL).

 

 

1 Psicóloga pela Universidade Estadual de Londrina –miyacarol@gmail.com.
2 Professora Doutora adjunta do Depto de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina –silvianc2000@gmail.com.
3 Graduanda no Curso de Psicologia na Universidade Estadual de Londrina –re.pessoa.almeida@gmail.com.
4 Psicóloga especialista em saúde da mulher pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), especialista em clinica psicanalítica pela UEL e Mestre em psicologia pela UEL –vercezeflavia@gmail.com.

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