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Revista da SBPH
Print version ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.25 no.2 São Paulo July/Dec. 2022
https://doi.org/10.57167/Rev-SBPH.v25.490
PARTE III ABORTO LEGAL, PREMATURIDADE E ADOECIMENTO
Aborto legal: qualidade da assistência e vivência das mulheres que realizam a interrupção da gravidez
Legal abortion: quality of care and experience of women who perform the termination of pregnancy
Renata Alves FreireI; Karina Peruzzo Pereira ZimmermannII; Hudelson dos PassosIII
IMaternidade Darcy Vargas - Joinville/SC - re.freire@gmail.com
IIMaternidade Darcy Vargas - Joinville/SC - karinappzim@gmail.com
IIIDepartamento de Psicologia, Faculdade Guilherme Guimbala (ACE/FGG) - Joinville/SC - hudelson.passos@fgg.edu.br
RESUMO
Este estudo pretende traçar perfil sociodemográfico e caracterizar a vivência das mulheres que realizaram a interrupção da gravidez nos casos de violência sexual relacionando-as com a qualidade da assistência numa maternidade referência em aborto legal no norte de Santa Catarina. A pesquisa tem caráter descritivo exploratório. Será realizada pesquisa documental pela análise de prontuários de 2014 a 2020 e através da estatística descritiva simples. O perfil sociodemográfico foi predominantemente de mulheres na faixa etária de 22-30 anos (48.3%), brancas (89.7%), solteiras (65.52%), com ensino médio completo (48.3%), o autor é desconhecido (61.1%) e o uso da força física (50%) mais relatado. Em relação à assistência, as mulheres se sentiram acolhidas e houve resolutividade, mas ainda houveram algumas falhas referentes a julgamentos pessoais da equipe, informações em prontuário, atrasos no processo. É possível perceber o quanto a assistência interfere no estado emocional das mulheres e o quanto a escolha pelo aborto legal não se dá sem ambiguidade e sofrimento.
Palavras-chave: aborto legal; violência sexual; qualidade da assistência à saúde; psicologia.
ABSTRACT
This study intends to draw sociodemographic profile and characterize the experience of women who performed the interruption of pregnancy in cases of sexual violence relating them to the quality of care in a reference maternity in legal abortion in the north of Santa Catarina. The research has exploratory descriptive character. Documentary analysis will be carried out through medical records from 2014 to 2020 and through simple descriptive statistics. The sociodemographic profile was predominantly women aged 22-30 years (48.3%), white (89.7%), single (65.52%), with complete high school (48.3%), the author is unknown (61.1%) and the use of physical force (50%) was more reported. Regarding care, women felt welcomed and there was resolution, but there were still some failures regarding personal judgments of professionals, medical records, delays in the process. It's possible to realize how much care interferes with the emotional state of women and that the choice of legal abortion does not take place without ambiguity and suffering.
Keywords: legal abortion; sexual violence; quality of health care; psychology.
Introdução
No Brasil o aborto, apesar de prática constante ao longo da história, quase sempre foi condenado e está entre os países com legislações mais restritivas em relação à interrupção da gravidez (Silva, 2014), com forte influência da religião cristã. No código penal Brasileiro de 1940 (Decreto-Lei N° 2848/40), temos a prática do aborto penalizada oficialmente como Crime contra a vida (Art. 124, 125 e 126).
No entanto, existem duas exceções: nos casos em que a gestante corre risco de vida e não há outro meio de salvá-la e em caso de gravidez provocada por estupro. Nestes casos, o código penal no art. 128 autoriza a realização do aborto, são os considerados "abortos legais". Em 2012, incluiu-se o abortamento em casos de gestação de anencéfalo, autorizado desde então pelo Supremo Tribunal Federal (Silva, 2014).
Curioso observar que, apesar dos abortos autorizados desde 1940 pela legislação Brasileira, apenas em 1989 foi implementado o primeiro serviço de referência em aborto legal e apenas em 2005 foi publicada a portaria que regulamenta os procedimentos a serem realizados pelo SUS nos casos de violência sexual (Portaria Nº 1.508/2005).
Quem sai em desvantagem é a própria mulher, usuária dos serviços de saúde. O abortamento no Brasil já é uma questão de saúde pública e uma das principais causas de mortalidade materna (Ministério da Saúde, 2011). Segundo a norma técnica sobre abortamento do Ministério da Saúde (2011, p. 8), "No Brasil, estima-se a ocorrência de mais de um milhão de abortos inseguros ao ano". O problema se agrava na medida em que grande parte das mulheres ainda não tem acesso a serviços de saúde que realizem o aborto, mesmo quando previsto e permitido pela legislação. Por falta de informação sobre seus direitos ou por dificuldade de acesso a serviços seguros muitas mulheres, convencidas em interromper a gestação, recorrem aos serviços clandestinos de abortamento, frequentemente em condições inseguras e com graves consequências para a saúde, incluindo-se a morte da mulher (MS, 2011). E as consequências disso chegam todos os dias aos hospitais: complicações físicas dos abortos ilegais, curetas pós abortamento, além dos adoecimentos mentais e questões subjetivas geradas pela escolha e culpabilização e criminalização do aborto (MS, 2011).
Levando em consideração estes dados percebemos a relevância do tema para a saúde pública e o SUS. Ainda assim, estudos como o de Silva (2014) constatam que o número de pesquisas publicadas sobre o assunto é considerado baixo em vista de sua relevância.
Os autores Rocha e Uchoa (2013) citam a Organização Pan-americana da Saúde que considera a mortalidade materna como indício da qualidade da atenção prestada às mulheres. Levando em consideração que no Brasil o abortamento está entre as principais causas de mortalidade materna (MS, 2011) fica clara a necessidade e importância de olhar para a qualidade da atenção nos casos de abortamento e, no caso deste trabalho, da interrupção legal.
Com o presente estudo pretende-se compreender melhor a população que busca a instituição para aborto legal, traçando um perfil da mesma e apresentando um panorama da qualidade da assistência prestada, considerando esta um influenciador direto sobre a experiência emocional dessas mulheres. O melhor conhecimento e caracterização dessa população, possibilita criar uma assistência mais resolutiva focada nas necessidades dessas mulheres, ocasionando um melhor acolhimento e satisfação das mesmas num processo já tão complexo, difícil e estigmatizante.
Método
A pesquisa realizada se enquadra em um tipo de pesquisa quantitativa de cunho descritivo exploratório. O estudo foi realizado numa maternidade estadual no norte de Santa Catarina, referência em aborto legal. Os prontuários pesquisados foram de mulheres, acima de 18 anos, que tenham realizado a interrupção da gravidez. Foi realizada a análise documental através da estatística descritiva simples dos prontuários destas pacientes entre os anos 2014 a 2020. As informações analisadas foram retiradas dos prontuários eletrônicos e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN anexada àqueles. As variáveis analisadas foram agrupadas em 4 categorias de análise de acordo com a temática. A primeira categoria caracteriza o perfil sociodemográfico das mulheres (Idade, local de residência, escolaridade, estado civil, raça, profissão, religião, n° de gestações, histórico de saúde mental e idade gestacional), a segunda aponta para a avaliação da assistência (Quantidade de atendimentos da equipe multiprofissional e médica durante internação, tempo que a mulher esperou para internar e realizar a interrupção desde que procurou a maternidade pela 1a vez, dias de internação, tempo de internação até iniciar o procedimento, quantidade de vezes que veio ao hospital e se veio encaminhada de outra instituição), a terceira, caracteriza a violência (Perfil do autor da violência, outra violência associada, local onde ocorreu, meio de agressão utilizado) e a última demonstra como a mulher lidou com a violência (Estado emocional da paciente, se teve acompanhante na internação e se fez ou não Boletim de Ocorrência nos casos de violência).
A pesquisa foi orientada pela resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e a coleta de dados só foi realizada após aprovação do comitê de ética em pesquisa em 27 de abril de 2021, N° CAAE 43842721.2.0000.5363. O tamanho da amostra se deu por conveniência e foram excluídas da pesquisa prontuários de mulheres abaixo de 18 anos e que realizaram aborto legal por risco de vida materna ou anencefalia.
Resultados e discussão
Entre 2014 e 2020 foram realizados 43 acolhimentos para interrupção legalizada da gestação na nossa maternidade. A média de acolhimentos por ano foi de 6 mulheres e 4 interrupções efetivas. Do total de acolhimentos, 4 eram adolescentes e 10 não realizaram a interrupção, ou porque a gestação já estava mais avançada ou porque os relatos e datas não eram compatíveis com a ultrassonografia. Por isso, 29 prontuários foram analisados no total e 24 variáveis foram observadas. Estas foram divididas em 4 categorias:
Perfil das mulheres
As mulheres que procuram a nossa maternidade para aborto legal são predominantemente mulheres na faixa etária de 22-30 anos (48.3%), brancas (89.7%), solteiras (65.52%), com ensino médio completo (48.3%), o que é compatível com o perfil das mulheres que buscam interrupção legalizada em outros estudos (Da Silva, Zucco & Neto, 2019; Dos Santos & Angerame, 2017; Lima et al. 2019; Drezett, Pedroso, Gebrim, Matias, Macedo & Abreu, 2011; Machado, Fernandes, Osis & Makuch, 2015; Madeiro & Diniz, 2016; Ministério da saúde, 2008): mulheres jovens, solteiras e escolarizadas. Ou seja, esse seria o perfil de mulheres que poderíamos classificar como mais vulneráveis a violência sexual.
Destas mulheres, 89.7% referiram se identificar como da raça branca, o que chama a atenção se considerarmos que as mulheres negras geralmente são mais vulneráveis a violência sexual (Cerqueira e Coelho, 2014; Engel, 2015; Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019). Poderíamos justificar esse fato pela predominância da população branca no estado (89,3%) como nos aponta Delziovo et al. (2017). No entanto, em outras pesquisas em diferentes Estados (Lima et al., 2019; Drezett et al., 2011; Dos Santos & Angerame, 2017, entre outros) a maioria das mulheres que buscam aborto legal, também são brancas, o que nos leva a questionar se o acesso aos serviços e à informação estariam menos disponíveis para as mulheres negras.
Apesar de escolarizadas, a maioria das mulheres era "do lar" (55.2%). Dentre as que trabalhavam fora (41.4%), as profissões eram de cabeleireira, técnica de enfermagem, auxiliar de limpeza, costureira, artesã, vendedora, auxiliar de automação, professora, musicista e agente/assessor comercial. Interessante observar que, neste ponto, o perfil da nossa maternidade difere dos demais estudos em que as mulheres, em sua maioria, trabalham fora (Dos Santos & Angerame, 2017; Lima et al., 2019; Machado et al., 2015; MS, 2008). Diferenças significativas em relação a nossa realidade.
Relativo à religião as mulheres se autodeclararam, em sua maioria, católicas (50%) e a maioria se identificou com alguma religião (82,2%), assim como o estudo do Ministério da Saúde (2008), evidenciando que esta não parece ser um impedimento para a busca pelo aborto legalizado. Num momento de crise e ameaça dos projetos de vida pessoais, estes parecem se sobrepor às doutrinas religiosas (Silva, 2014). Em relação a residência, a maioria das mulheres eram de Joinville 55.2%, enquanto 44.8% vinham de municípios próximos como São Francisco do Sul, Jaraguá do Sul e Barra Velha.
Dentre estas mulheres, a maioria eram multíparas (82.7%), sendo 58.6% com mais de 3 gestações e apenas 17.2%, primigestas. Foi possível identificar que 7 dessas mulheres tiveram novas gestações na nossa maternidade após a interrupção. Já em relação a idade gestacional em que as mulheres estavam no momento da interrupção, a grande maioria, 62.1%, estava no 2o mês de gestação (entre 5-8 semanas), 27.6% estavam no 3o mês (9-12 semanas) e apenas 10.3% no 4o mês de gestação (13-16 semanas). Segundo a norma técnica sobre Atenção humanizada ao abortamento (MS, 2011) a aspiração manual intrauterina (AMIU) seria o procedimento de escolha para tratamento do abortamento, principalmente até as 12 semanas de gestação, sendo recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) devido seus benefícios para a mulher tais como: possibilidade de ser realizada com anestesia local, apresentar menos complicações, ter custos menores e maior facilidade no controle da dor e tempo de espera pelo procedimento (Madeiro & Diniz, 2016). No entanto, na nossa maternidade, apesar da maior incidência de idade gestacional no primeiro trimestre, quase todos os desfechos foram indução com misoprostol e curetagem, apenas uma mulher teve que realizar sonda de krause devido não progressão do processo por indução com miso.
Relativo à quantidade de registros do histórico de saúde mental, 33.3% das mulheres já tiveram ou estavam no momento da internação diagnosticadas com depressão, apenas 8.3% com ansiedade e 8.3% com transtorno bipolar. Destas apenas uma estava em uso de medicação psicotrópica (8.3%) e uma apresentava histórico de tentativa de suicídio anterior com recidiva do quadro durante internação. Dos registros identificados, 33.3% das mulheres faziam acompanhamento psicológico. Importante observar que a informação sobre histórico de saúde mental só constava em 9 prontuários. Segundo, Blake et al. (2015) a violência sexual seria um fator predisponente para o desenvolvimento de transtornos mentais, sendo essa informação, portanto, importante para a melhor assistência dessas mulheres.
Caracterização da violência
Em relação ao local em que ocorreu a violência (n=15), 53.3% ocorreram fora da moradia, em via pública ou festa. Já em relação ao perfil do autor da violência (n=18), 61.1% eram desconhecidos e 38.8% conhecidos, dentre estes estavam, ex-namorados, irmãos, vizinhos, pessoas conhecidas em sites de relacionamentos. As ocorrências em espaços públicos podem ser justificadas pelo perfil do agressor apontado como desconhecido, na maioria dos casos. O mesmo resultado foi encontrado na maioria das pesquisas sobre violência sexual (Delziovo et al., 2017; Engel, 2015; Nunes et al., 2017). No que se refere a quantidade de registros de agressão (n=11) o meio mais utilizado foi a força corporal, 36.84%, seguido de ameaças com 31.58%. O uso de objetos, tais como armas de fogo e objetos perfurocortantes, foi informado em 21.05% dos casos e apenas 10.53% dos autores estariam sob influência do uso de substâncias psicoativas. Encontramos mais de um tipo de violência associada a violência sexual (n=13), constando em 50% dos relatos, violência física. O maior índice de violência física associada à força corporal, confirmam estudo realizado no Estado de Santa Catarina (Delziovo et al., 2017) que mostrou que "71% das mulheres sofreram lesões físicas em decorrência da agressão, demonstrando o uso da força física pelo agressor".
Como a mulher lidou com a violência
Segundo consta na portaria N° 1.508, não é obrigatória a realização do Boletim de ocorrência para efetuar o aborto legal, ainda assim, 80% das mulheres, cuja informação constava em prontuário, tinham realizado o B.O. antes de procurar a instituição. Não fica claro se a realização do B.O. se dá por desinformação por parte das mulheres ou porque realmente desejam realizá-lo. Em relação a presença de acompanhante, nos prontuários em que a informação foi identificada (n=11), 63.6% das mulheres possuíam acompanhante durante a internação. Esse número nos dá uma referência de quantas mulheres compartilharam a violência sofrida e a escolha pelo aborto legal com pessoas conhecidas. Em ambas as variáveis, o que chama a atenção é o número de prontuários que não possuem nenhuma informação, tanto sobre o B.O. (14) quanto sobre a presença de acompanhante (18), o que dificulta uma análise mais fidedigna. Por outro lado, os dados se assemelham ao encontrado em outras pesquisas com maior número de participantes.
A partir da evolução em prontuário, pudemos identificar o estado emocional dessas mulheres conforme avaliado pela equipe. A grande maioria dos relatos são de intenso sofrimento psíquico, estado emocional que abarca entre as descrições sentimentos como ansiedade, fragilidade emocional, angústia, tristeza, choro, abalo emocional, instabilidade de humor, dentre outros. Também se mostrou de certa relevância os sentimentos de raiva, vergonha, medo, culpa, que confirmam sentimentos relatados por estudos como o de Lima et al. (2019), Drezett et al. (2011) e do MS (2008). Estes sentimentos podem significar o quanto a violência sexual ainda permanece no imaginário social e das mulheres como responsabilidade das vítimas e não do agressor. Se considerarmos ainda o número de mulheres que não tinham acompanhante (4) ou que não foi possível sua identificação (18), corroboram a sensação de constrangimento e medo na busca por ajuda. Segundo Machado et al. (2015) "O principal desejo [das mulheres] após vivenciar a violência sexual foi o de não divulgar a situação sofrida e, com isto, fazer com que o evento fosse esquecido".
Dificuldades na rotina diária se apresentaram através de insônia, inapetência e impossibilidade de continuar as atividades cotidianas. Algumas mulheres demonstraram agravamento de quadros emocionais ou início de sintomas psiquiátricos. Destas, duas relataram ideação suicida, três sintomas depressivos e uma sintomas de estresse pós-traumático. Segundo Chen (2010, apud Blake et al., 2015) existiria uma relação entre violência sexual e um risco aumentado de transtornos psiquiátricos, os quais depressão, ansiedade, sintomas de estresse pós-traumático e ideação suicida estão incluídos.
Interessante observar que onze mulheres relataram certeza da decisão pelo aborto, três sentiram-se aliviadas após o procedimento e seis se mostraram tranquilas. A chegada ao serviço e a descoberta da possibilidade de interrupção trouxeram as mesmas sensações de alívio e tranquilidade na pesquisa de Machado et al. (2015). Já Drezett et al. (2011) e MS (2008) pontuam que o grande motivo da escolha pelo aborto tem a ver com sua relação com a violência sexual, o que não aconteceria em outras gestações indesejadas. A gravidez e a violência estão intrinsicamente relacionadas para essas mulheres e manter a gestação significaria a continuidade da violência sofrida. E diferente do que se poderia imaginar, a decisão pelo aborto não é fácil e nem é permeada por indiferença ou desprezo pela maternidade (Drezett et al., 2011)
Avaliação da assistência
A média de vezes que as mulheres tiveram que ir até a instituição para realizar o aborto legal foi de aproximadamente 3 vezes, mas a maioria das mulheres veio 2 vezes (48.3%). Relativo aos dias de espera para internação, 41.4% das mulheres esperaram de 1 a 6 dias para internar. A média de dias de internação foi de 3 dias, sendo que 44.8% tiveram 2 dias de internação. A mulher que teve maior tempo de internação, entretanto, foi de 10 dias e o motivo foi a demora e suspensão da indução devido objeção de consciência da equipe médica por motivos religiosos e éticos e devido risco de rotura uterina por conta das cesáreas anteriores. Interessante observar que a objeção de consciência foi declarada em 3 casos diretamente, porém em 8 casos a indução foi atrasada ou interrompida. Outro motivo alegado foi a incompatibilidade de datas do dia da violência e da DUM (data da última menstruação), porém as mulheres já estavam internadas, já haviam sido atendidas pela equipe multi e uma delas havia realizado B.O. Vale lembrar que a objeção de consciência é um direito garantido aos profissionais da saúde, porém este não pode ser maior do que o acesso a um direito assegurado às mulheres, tanto que a normatização do Ministério da Saúde (2011) exige que os gestores garantam sempre na equipe profissionais que não sejam objetores. Branco, Brilhante, Vieira e Manso (2020) chegam a concluir que o direito à objeção acaba sendo utilizado como instrumento de entrave à realização da interrupção e punição da vítima.
Esse atraso se reflete no tempo de internação das mulheres até iniciar a indução, apesar de 65.5% das induções terem começado no mesmo dia da internação, 34.4% das induções iniciaram apenas no segundo dia em diante, algumas devido às interrupções já explicitadas.
É impressionante a quantidade de relatos de revitimização, julgamentos e novas violências sofridas pelas mulheres a procura de aborto legal em quase todos os estudos pesquisados, confirmando os achados desta pesquisa. Dentre as 29 mulheres, 5 relataram terem sido maltratadas, questionadas e culpabilizadas pela violência nos serviços que buscaram para ajuda (UBS e delegacia), destas 3 não conseguiram realizar B.O. Uma, peregrinou por vários serviços até chegar à instituição por falta de informação dos próprios serviços. Na maternidade, uma mulher foi cobrada da decisão judicial mesmo sem que esta seja necessária (MS, 2011), uma tem relato em prontuário de ter se sentido julgada pela equipe devido divergência de datas e interrupção da indução. Em relação ao registro dos prontuários também podemos perceber muitas evoluções com relato da descrição da violência aberta a toda equipe, bem como informações pessoais que não seriam relevantes para a equipe e palavras com teor de julgamento e desconfiança de seus relatos:
Encaminhada para assistência social e psicologia para averiguação [grifo nosso] dos fatos e andamento. (2020)
Paciente refere abuso sexual de seu vizinho (...) vindo somente [grifo nosso] agora a querer interrupção da gestação. (...) médicos (…) orientam que ou ela adere a conduta ou não terá alta com consentimento médico (2019)
Confirmando outros estudos na área (Branco et al., 2020; Lima et al., 2019; MS, 2008; Dos Santos & Angerame, 2017) percebemos que os profissionais ainda lidam com a interrupção com receio e desconfiança e acabam assumindo uma postura investigativa: "À mulher resta o ônus da prova, em um momento delicado em que necessita de cuidado, quando a própria legislação não exige" (Branco et al., 2020). Segundo esses autores alguns profissionais alegam receio de estar pactuando com um relato inverossímil ou pela falta de provas e serem acusados de cumplicidade no crime, evidenciando claro desconhecimento das equipes em relação às leis e normativas, já que pelo Código Penal (Art. 20, § 1º) o médico que praticar o aborto está isento de pena visto que a palavra da mulher tem ônus de veracidade (Ministério da Saúde, 2012).
Então, apesar de identificarmos com os dados analisados que houve certa agilidade e resolutividade na assistência na nossa maternidade, não foi sem alguns entraves e esforço de parte da equipe para que o direito da mulher fosse garantido. Ou seja, o acolhimento tal como preconizado na normativa (MS, 2011), a escuta sem julgamento e imposição de valores e o sigilo fica ainda prejudicado, sendo estes fundamentais para minimizar as consequências emocionais, já tão devastadoras, da violência.
Por outro lado, podemos verificar que em relação à assistência em termos da quantidade de atendimentos da equipe e suporte emocional, considerando os atendimentos da psicologia, houve um número adequado de atendimentos. No total foram realizadas 189 evoluções médicas nos prontuários, o que nos dá uma média de ≅ 6 atendimentos médicos por paciente durante a internação. Já no caso da equipe multidisciplinar, temos uma média de ≅ 14 atendimentos da enfermagem, ≅ 2,5 da psicologia e ≅ 1,5 do serviço social.
Referente ao encaminhamento de outras instituições (n=10), foi possível identificar que 90% das mulheres foram encaminhadas por outros serviços tais como ONG, delegacia da mulher, Creas, UBS, entre outros. De qualquer forma, essas foram as mulheres que conseguiram chegar à maternidade para pedir ajuda após a descoberta da gravidez, mas o fato é que ainda existe clara subutilização do serviço. Se considerarmos que Santa Catarina apontava como o quinto Estado em ocorrência de violência sexual no país segundo dados da segurança pública (Delziovo et al., 2017) e que o maior índice de consequência da violência sexual é a gravidez (Nunes et al., 2017), podemos afirmar que 43 acolhimentos em 6 anos de serviço é um número muito inferior a quantidade de prováveis gestações decorrentes da violência sexual, realidade comum a diversos serviços no Brasil (Silva, 2014). Isso significa que as mulheres não estão buscando os serviços de saúde, seja para a profilaxia após o estupro, seja para o aborto legalizado. A partir dos dados e da literatura, pressupõe-se que isso se deve: pela dificuldade das mulheres em falar sobre a violência sofrida; pelo impacto emocional frente a violência, com possíveis consequências patológicas; e, principalmente devido à falta de acesso à informação (Da silva et al., 2019; MS, 2008; Machado et al., 2015; Blake et al. 2015), o que fere o princípio de acesso e resolutividade da assistência (MS, 2011). Além de ocasionar maior procura pelo aborto ilegal e, consequente aumento da mortalidade materna (MS, 2011), o alarmante número de mulheres que não realizam profilaxia, assim como nesta pesquisa, evidenciam a falha na promoção e prevenção da saúde (Silva, 2014).
No que se refere aos prontuários, foi possível observar muitas falhas como informações incompletas, fichas de SINAN não incluídas no prontuário eletrônico, deixando a dúvida se foram realizadas ou não, atendimentos relatados porém não evoluídos, profissionais sendo citados apenas pelo nome sem identificação de qual categoria profissional pertencem. Segundo Vasconcelos, Gribel & Moraes (2008) o registro faz parte dos critérios para avaliação da assistência e é reflexo da qualidade da assistência prestada, o que já nos dá um indicativo de grandes falhas na nossa assistência.
Considerações finais
O Perfil sociodemográfico das mulheres que realizaram aborto legal na nossa maternidade foram de mulheres jovens, brancas, solteiras, escolarizadas, o que parece ser o perfil de mulheres mais vulneráveis a violência sexual.
Considerando os princípios das normas técnicas (MS, 2011; MS, 2012), tais como acolhimento, acesso a informação, resolutividade, suporte emocional, identificamos que a assistência na instituição parece ter atingido seu objetivo. No entanto, olhando de forma mais aprofundada, ainda encontramos alguns entraves e dificuldades, principalmente no que se refere à interferência de crenças pessoais na assistência prestada. Resultados muito similares aos demais estudos na área (Lima et al., 2019; MS, 2008; Machado et al., 2015; Madeiro & Diniz, 2016; Blake et al., 2015) evidenciando o quanto a temática ainda é envolta de polêmicas e a norma de difícil efetivação.
Fica clara a necessidade de sensibilizar os profissionais e capacitá-los no atendimento as mulheres que buscam o aborto legalizado, assim como é preconizado nas normas técnicas do Ministério da Saúde (2011; 2012). Além disso, podemos perceber que ainda falta uma melhor integração e capacitação da rede assistencial, já que 5 mulheres relataram terem sofrido violência nos serviços de saúde.
É possível perceber, ainda, que a violência e a decisão pelo aborto parecem ser permeadas de intenso sofrimento psíquico. E considerando o contexto, os sentimentos envolvidos (medo, culpa, vergonha, tristeza), observamos o quanto a assistência interfere no estado emocional dessas mulheres e na forma como lidam com a situação, tanto positiva quanto negativamente. Se sentem aliviadas, mais seguras, conscientes e certas da escolha quando são acolhidas e, julgadas, envergonhadas, culpadas quando sentem algum tipo de crítica da equipe, seja por algum comentário, pelos atrasos na indução, por ter que repetir o relato da violência.
A pesquisa apesar de ter encontrado resultados significativos e muito coerentes com os demais estudos realizados, nos dá um panorama geral do perfil e qualidade da assistência, mas ainda não abarca todas as nuances da temática. O número de prontuários analisados foi baixo, assim como o número de entrevistas realizadas. Por isso, ainda se faz necessário pesquisas com maior número de participantes e análises mais complexas, relacionando as diferentes variáveis para maior aprofundamento do tema.
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Renata Alves Freire - Psicóloga especialista em saúde materno infantil pelo programa de residência multiprofissional da maternidade Darcy Vargas do Estado de Santa Catarina.
Karina Peruzzo Pereira Zimmermann - Psicóloga da Maternidade Darcy Vargas e preceptora do programa de residência multiprofissional em saúde materno infantil da Maternidade Darcy Vargas.
Hudelson dos Passos - Mestre Professor do dEpartamento de Psicologia da Faculdade Guilherme Guimbala.