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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.14 no.3 São Paulo Dec. 2012
RESENHA BIBLIOGRÁFICA
Resenha do livro Lev Vigotski: mediação, aprendizagem e desenvolvimento. Uma leitura filosófica e epistemológica, de Janette Friedrich
Edna Martins; Vanessa Dias Moretti
Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos – SP – Brasil
O livro de Janette Friedrich, com tradução do francês de Anna Rachel Machado e Eliane Gouvêa Lousada, reúne um apanhado de pontos primordiais da obra de Lev Sémionovitch Vigotski (1896-1934) e aponta, em textos escritos pelo psicólogo russo, a crise vivida pela psicologia de seu tempo, por um caminho que marca o desenvolvimento das ciências do homem, situando as principais escolas psicológicas constituídas no século XX. Nos cinco capítulos que compõem a obra, o leitor poderá ter acesso a discussões concisas sobre a crise da psicologia como ciência, os métodos da nova psicologia proposta por Vigotski, conceitos relacionados ao desenvolvimento do psiquismo, a ideia de instrumentos psicológicos e a atividade mediatizante, a formação dos conceitos na criança e a importância da escola para o desenvolvimento humano.
Na introdução, ao destacar Vigotski como um dos grandes fundadores da chamada ciência do homem, a autora realiza, num movimento histórico, uma breve volta às raízes das ciências humanas, apontando o papel da filosofia e localizando alguns autores e escolas que buscaram, a partir de métodos empíricos, as bases de construção e consolidação de uma psicologia científica comprometida com o funcionamento do homem. Na sequência, faz-se uma clara proposta de discutir as principais ideias de Vigotski a partir do interior de sua obra. Nesse sentido, apresenta-se uma nota biográfica de Vigotski com objetivo de esclarecer o leitor sobre sua ligação estreita com seus colaboradores (Alexandre R. Luria e Alexis N. Leontiev) que formaram o que se denominou "a troika". Importantes episódios da vida política da Rússia nos anos em que viveu o pensador, a proibição de suas obras pelo partido comunista da União Soviética em 1936 e as publicações posteriores no Ocidente a partir da década de 1970 são contemplados nessa biografia.
O primeiro capítulo aborda as principais questões tratadas por Vigotski no livro O significado histórico da crise da psicologia, publicado em 1927, que é comparado aos prolegômenos de Emanuel Kant, no qual se buscou desenvolver bases sólidas para a construção de uma ciência psicológica. Nessa obra, Vigotski descreve a crise vivida pela psicologia da época, sobretudo pela falta de unidade em seu corpo teórico com a coexistência de vários sistemas e concepções que não se articulavam e que frequentemente se opunham, com leis divergentes e dados demasiadamente heterogêneos. Dessa forma, Vigotski se propõe a fazer uma espécie de estado da arte da psicologia e assim esboça o que acredita ser os princípios fundamentais para a constituição de uma psicologia científica. Na análise da crise da psicologia, Vigotski denuncia a naturalização dos fatos científicos difundido pelas ciências, apontando o caráter historicamente determinado de um dado fenômeno. Em seu diagnóstico dessa crise, ele aponta três correntes psicológicas. A primeira, também chamada de psicologia introspectiva ou ciência da consciência, tinha como método a introspecção aplicada nas pesquisas de estados psíquicos e conteúdos conscientes dos sujeitos. A segunda corrente diz respeito à ciência do comportamento (Pavlov e Bekhterev) que propunha compreender a psique humana via observação do comportamento exterior. Por fim, a terceira corrente que concebia os fenômenos psíquicos como uma realidade que sem o auxílio da psicanálise não seria acessível à consciência humana. Dessa forma, o autor declara a multiplicidade de objetos de estudos da psicologia e consequentemente a de princípios de explicação diferentes para cada corrente.
Por meio de uma análise crítica à psicologia geral, discutida por Ludwing Binwanger (1881-1966), Vigotski tenta mostrar que o conhecimento científico não se produz por meio de fatos, experiências e percepções acerca da realidade, mas pelo estudo sobre o conteúdo real dos conceitos. Com base em exemplos de conceitos emprestados das ciências naturais, aponta a importância de trabalharmos com o conteúdo e as escolhas de determinados construtos teóricos para construção de conhecimento sobre a realidade. Esse capítulo propõe uma discussão das premissas fundamentais da obra de Vigotski que diz respeito ao modo como se constrói o conhecimento científico. Para ele, portanto, há uma realidade que é correspondente ao mundo real explicado, por exemplo, pela física e utilizado em forma de conceitos pela ciência, ainda que essa realidade não seja perceptível ou captada pelas nossas observações.
No segundo capítulo, a autora dedica-se à apresentação do método científico proposto por Vigotski a partir da crise vivida pela psicologia de seu tempo. Visando apontar como o pensador faz a correlação entre o conhecimento e a realidade, Friedrich percorre as críticas denominadas por Vigotski de "método direto", no qual se concebe que o conhecimento da realidade só é possível a partir da experiência imediata, por meio de observações típicas do behaviorismo ou sob a forma de introspecção, próprio do que ele chama de psicologia do homem normal. Nessa direção, a autora chama a atenção para o "método indireto" de caráter interpretativo e reconstrutivo, próprio das ciências históricas e, portanto, defendido por Vigotski.
O conceito de instrumento psicológico, tal como foi desenvolvido por Vigotski, é abordado no terceiro capítulo. Para Janette Friedrich (2012, p. 53), a ideia de que "todas as funções psíquicas superiores [...] surgem com o auxílio dos instrumentos psicológicos" constitui a tese central contida nos textos escritos por Vigotski (1991, 2000). Nesse capítulo, apresentam-se experimentos mostrando como, de fato, o objeto do ins trumento psicológico não se encontra no mundo externo, mas na atividade interna do sujeito, como um meio que influencia o indivíduo, "um meio de autorregulação e de autocontrole" (FRIEDRICH, 2012, p. 57), o que o diferencia substancialmente de ferramentas de trabalho que utilizamos na transformação da natureza. A partir de análise de casos clínicos relatados por autores da época, como Kurt Goldstein (1878- 1965) e Lévy-Bruhl (1857-1939), Vigotski conclui que as funções psicológicas superiores são mediatizadas pelos instrumentos psicológicos que são produtos das relações sociais interiorizadas historicamente pelos seres humanos.
O quarto capítulo tem como tema a formação de conceitos na criança. A autora apresenta as críticas de Vigotski aos métodos denominados por ele de método da definição e método da abstração. O primeiro, ao identificar o conceito à palavra, não considera o pensamento como processo realizado pela criança em sua relação viva com a realidade. O segundo define o conceito como uma representação do espírito, resultante de um processo de abstração e generalização de objetos. Partindo da questão de como desenvolver o estudo experimental de conceitos com base na ideia vigotskiana de que as funções psíquicas superiores são processos mediatizados, a autora propõe a discussão sobre o método desenvolvido por Leónid S. Sakharov, colaborador de Vigotski. Para isso, apresenta também os estudos experimentais de Narziss Ach que, embora globalmente insuficientes na visão de Vigotski, teriam servido de ponto de partida para Sakharov/Vigotski. Discutem-se, portanto, a concepção de linguagem em Vigotski e a constatação de que "o pensamento e a linguagem não representam dois processos independentes um do outro, se desenrolando em paralelo e se articulando de vez em quando, mas constituem um único e mesmo processo" (FRIEDRICH, 2012, p. 87). Nesse capítulo, também são apresentadas as etapas de formação de conceitos decorrentes do método experimental vigotskiano – conceitos sincréticos, complexos, pseudoconcei to e conceito verdadeiro –, empregando-se a noção de superação compreendida conforme o método materialista histórico-dialético que fundamenta a produção de Vigotski.
O quinto capítulo apresenta uma discussão sobre adistinção entre conceitos cotidianos e científicos, a contribuição da escola no processo de formação de conceitos e a relação entre aprendizagem e desenvolvimento. A seguir, são apresentados exemplos que permitem ao leitor compreender o processo de formação de conceitos científicos como a generalização de generalizações, uma vez que estes são entendidos como generalizações de segunda ordem. Nessa parte do texto, a autora propõe uma aproximação "inabitual", entre o pensamento de Vigotski e de Wittgenstein. Dos exemplos apresentados sobre o processo de formação conceitual, a autora introduz a conclusão de Vigotski sobre as duas neoformações principais relacionadas com a escola: a tomada de consciência e o domínio ou intervenção da vontade, destacando a in terdependência entre elas no pensamento do psicólogo russo. Para finalizar, Friedrich apresenta a crítica de Vigotski às concepções então vigentes que abordavam aprendizagem e desenvolvimento como processos totalmente independentes, ou como um único processo.
Em suma, o capítulo faz uma síntese da concepção vigotskiana sobre a formação de conceitos em diálogo com a produção de Wittgenstein. Exatamente por isso, a obra pode dar margem a apropriações precipitadas da teoria para quem está adentrando a leitura de Vigotski. No mais, é um material bastante interessante para quem já transita teoricamente pelas contribuições de Vigotski, instigando o leitor a estabelecer e avaliar as relações propostas pela autora. 192 Psicologia: teoria e prática, v. 14, n. 3, p. 189-192, 2012 Edna Martins, Vanessa Dias Moretti
Referências
FRIEDRICH, J. Lev Vigotski: mediação, aprendizagem e desenvolvimento. Uma leitura filosófica e epistemológica. Campinas: Mercado de Letras, 2012. [ Links ]
VIGOTSKI, L. S. El método instrumental en psicología. In: VIGOTSKI, L. S. Obras esco gidas. Madrid: Visor, 1991. t. I
VIGOTSKI, L. S. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. In: VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. 2. ed. Madrid: Visor, 2000. t. III.
Endereço para correspondência
Contato
Edna Martins
e-mail: emartinsunifesp@gmail.com
Tramitação
Recebido em junho de 2012
Aceito em agosto de 2012