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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717On-line version ISSN 1981-0490

Cad. psicol. soc. trab. vol.11 no.2 São Paulo Dec. 2008

 

Trabalho e saúde no agrobusiness paulista: estudo com colhedores manuais de cana-de-açúcar da região oeste do Estado de São Paulo1

 

Work and health in São Paulo state agribusiness: a study on sugar cane manual harvesters in the western region of São Paulo state

 

 

Cassiano Ricardo RuminI; Vera Lucia NavarroII; Nelson Wanderley PeriotoIII

IFaculdades Adamantinenses Integradas
IIUniversidade de São Paulo, Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto
IIISecretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é resultado de pesquisa realizada com trabalhadores rurais empregados no corte da cana-de-açúcar. A pesquisa, de natureza qualitativa, teve como objetivo investigar, a partir da análise do processo de trabalho, as condições laborais na colheita da cana-de-açúcar e relacioná-las aos problemas de saúde relatados pelos trabalhadores. Os dados foram obtidos através de observações diretas do processo de trabalho, de documentação fotográfica e de entrevistas semidirigidas. Foram realizadas sete visitas ao campo e entrevistados 11 cortadores manuais de cana-de-açúcar (quatro mulheres e sete homens) com idades entre 24 e 63 anos, todos residentes no município de Pacaembu (SP); foi também entrevistado um profissional de saúde do município. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Os resultados demonstraram que a ação combinada da intensificação do trabalho e o aumento da dificuldade na execução de algumas tarefas podem determinar, ao trabalhador, elevação na ocorrência de adoecimentos relacionados à atividade laborativa; tais adoecimentos são expressos por cãibras constantes, por afecções do sistema osteomuscular (lesões por esforços repetitivos, bursites, tendinites, lesões na coluna vertebral) e pelas desidratações; mesmo quando o trabalho não ocasiona dano físico ele deixa suas marcas por meio do sofrimento psíquico.

Palavras-chave: Trabalho rural, Cortadores de cana-de-açúcar, Saúde do trabalhador, Trabalhadores rurais.


ABSTRACT

This article is the result of a study with rural workers employed in sugar cane harvesting. The qualitative study aimed at investigating, with basis on work process analysis, the labor conditions in sugar cane harvesting and at relating them to health problems reported by the workers. The data were obtained from direct observation of the work process, photographic documentation and semi-guided interviews. Seven field visits were performed and 11 sugar cane manual harvesters were interviewed (four females and seven males). They were 24 to 53 years old and all lived in the city of Pacaembu (SP). A health care professional living in the same city was also interviewed. The interviews were taped-recorded and fully transcribed. The results showed that the combined action of work intensification and increase in the difficulty to perform certain tasks can determine an increase in the occurrence of illnesses related to the workers' labor activity. Such illnesses are expressed by constant cramps, affections in the osteomuscular system (repetitive strain injuries, bursitis, tendinitis, spinal cord injuries) and dehydration. Even when work does not lead to physical damage, it leaves marks by means of psychic suffering.

Keywords: Rural work, Sugar cane harvesters, Worker's health, Rural workers.


 

 

Introdução

A agroindústria sucroalcooleira no Brasil destaca-se como um dos principais segmentos econômicos: além da grande participação no mercado interno, açúcar e álcool despontam como commodities no mercado internacional, com crescente exportação de álcool combustível.

O setor é também conhecido por sua capacidade de geração de empregos: apesar do crescente incremento do uso de tecnologias poupadoras de trabalho vivo, ele ainda emprega elevado número de trabalhadores, principalmente no corte manual da cana-de-açúcar (colheita). Baptistella, Vicente, Fredo e Francisco (2007) afirmaram que 1.055.793 trabalhadores estavam empregados em atividades rurais em junho de 2006 no Estado de São Paulo, dos quais 244.688 eram trabalhadores volantes, categoria na qual se enquadram os cortadores de cana-de-açúcar. Os autores afirmaram também que junho é o mês de "pico" da safra da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo. Nas últimas décadas observou-se grande intensificação do ritmo de trabalho nessa atividade. O pagamento por produção e outras formas de controle do trabalho impelem o trabalhador a um ritmo de trabalho perverso: alguns deles chegam a alcançar a marca de 20 toneladas de cana cortada ao dia (Instituto de Economia Agrícola, 2008). As duras condições de trabalho refletem diretamente nas condições de saúde dos trabalhadores.

Este texto apresenta resultados obtidos em uma pesquisa realizada com trabalhadores empregados no corte manual de cana-de-açúcar, residentes no município de Pacaembu, situado na região oeste do Estado de São Paulo, onde foram analisadas as condições de trabalho e sua relação com a ocorrência de danos ao quadro geral de saúde.

 

O contexto da pesquisa

A produção da agroindústria canavieira

A produção canavieira no Brasil cresceu cerca de 21% entre os anos de 2001 e 2005, impulsionada por fatores como a demanda do mercado externo por açúcar, pelo consumo interno de álcool como combustível de veículos automotores e pela adição de álcool anidro aos combustíveis fósseis, com o objetivo de reduzir a emissão de poluentes. Nessa perspectiva, a produção de açúcar aumentou 38% e a produção de álcool hidratado e anidro cresceu, respectivamente, 63% e 18% (União da Agroindústria Canavieira, 2007).

O Brasil conta com cerca de 360 unidades produtoras de açúcar, álcool e derivados em todo o território nacional, com produção superior a 416 milhões de toneladas de cana-de-açúcar na safra 2005-2006. Foram exportadas cerca de 14,6 milhões de toneladas de açúcar e 3,1 milhões de metros quadrados de álcool para Estados Unidos, Japão e Suécia, entre outros (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2007).

No período 2001-2005, a produção paulista de açúcar cresceu 35,7%, a de álcool hidratado 69% e a de álcool anidro 19% (União da Agroindústria Canavieira, 2007). O Estado de São Paulo figura como o maior produtor de açúcar e álcool do Brasil. Na safra 2005-2006, suas 168 unidades produtivas foram responsáveis por 63% da produção total de cana-de-açúcar do Brasil, que resultaram em 60,5% da produção de açúcar, 66% da produção de álcool anidro e 57% da produção de álcool hidratado (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2007).

Esses indicadores econômicos, aliados ao caráter do moderno aparato tecnológico incorporado às diferentes etapas da produção, contrastam com as precárias condições laborais e arcaicas relações de trabalho predominantes nesse setor. Andrade (1994) enfatiza esse atributo histórico ao destacar que a agroindústria sucroalcooleira no Brasil "realiza notáveis avanços técnicos ao mesmo tempo em que preserva na essência as formas de expropriação da mão-deobra e acentua a concentração de propriedade e de renda. Assim, até certo ponto, o crescimento se faz pela preservação do passado, no futuro" (p. 14). Em dissonância com a promissora desenvoltura do setor, seus trabalhadores sofrem o impacto do processo de reestruturação produtiva na canavicultura, que implicou em redução dos postos de trabalho na colheita manual de cana-de-açúcar, em maior intensificação da atividade, com prejuízos ao quadro geral de saúde dos trabalhadores e, conseqüentemente, em agravos às suas condições de vida (Alessi & Navarro, 1997; Silva, 2004).

O crescimento das exportações e a penetração de capital internacional no controle acionário das usinas e destilarias

O álcool anidro, transformado em commodity ambiental, passou a ser exportado para países como China, Índia e Estados Unidos para ser misturado à gasolina, com o intuito de reduzir os níveis de emissão de poluentes por veículos automotores. Em 2004, a exportação de álcool atingiu a marca de 2,4 bilhões de litros e gerou saldo de US$ 465,3 milhões, segundo Torquato e Peres (2006). De acordo com os autores, no primeiro semestre de 2005 a Índia destacou-se na compra de álcool, importando 314,2 milhões de litros de álcool anidro. A Comunidade Européia, desde 2005, adiciona 2% de álcool à sua gasolina, volume que deve ser elevado para 6% a partir de 2010. Países como Canadá, Peru, Colômbia, Paraguai e Venezuela já adicionam álcool à gasolina na proporção de 10% (Torquato & Peres, 2006).

A lucratividade da agroindústria canavieira brasileira, associada a fatores como as perspectivas internacionais de utilização de álcool anidro misturado à gasolina e como substituto de combustíveis fósseis para consumo automotivo contribuíram para a penetração de capital internacional no controle acionário das usinas brasileiras processadoras de cana-de-açúcar. Também figura como atrativo para a realização de lucros no mercado internacional a perspectiva da comercialização de créditos de carbono para Europa, Japão e Estados Unidos após a ratificação do Protocolo de Kyoto. Estimativas do Banco Mundial indicam que tal mercado atinja cifras de US$ 10 bilhões em 2007 (Vende-se ar limpo, 2005). O Protocolo de Kyoto prevê que países industrializados, emissores de grande quantidade de dióxido de carbono, podem "investir no cultivo de campos e florestas com capacidade para absorver o excedente de gases [dióxido de carbono] não reduzido, ou financiar projetos de energia renovável ao invés de reduzir sua atividade industrial" (Vende-se ar limpo, 2005). Assim, a colheita de cana-de-açúcar sem o desfolhamento por fogo, associada à co-geração de energia elétrica a partir da queima de palha e bagaço da cana-de-açúcar são atividades que se enquadram nos mecanismos de desenvolvimento limpo previstos no Protocolo de Kyoto para a geração de créditos de carbono. Por essas razões, a participação de capital internacional na canavicultura brasileira é percebida com clareza na reordenação do controle de capital das usinas paulistas.

Pasin e Fava Neto (2007) – ao discutirem a questão das fusões, das aquisições e internacionalização da agroindústria sucroalcooleira – afirmaram que a concentração e internacionalização do controle de capital das empresas intensificaram-se no Estado de São Paulo a partir do ano de 2000. O Grupo Cosan iniciou o processo de concentração e internacionalização com a aquisição da Usina Rafard, situada na cidade de Rafard (SP). Em 2001, as aquisições do grupo Cosan envolveram a Açucareira da Serra (em Ibaté, SP) e, em Jaú (SP), a Usina Diamante. A união do Grupo Cosan com o capital internacional representado pela Union SDA e a Sucden possibilitou a aquisição de outras usinas e destilarias paulistas. Essa fusão determinou a criação da joint venture FDA (Franco Brasileira Açúcar e Álcool), que comprou, em 2000, a Ipaussu S/A Açúcar e Álcool, situada em Ipaussu (SP). Em 2001, a FDA adquiriu a Usina Univalem (Valparaíso, SP) e, em Piracicaba (SP), a Usina Santo Antonio (Pasin & Fava Neto, 2007). Os mais recentes elementos do processo de concentração e internalização efetivado pelo Grupo Cosan foram a aquisição de duas novas usinas no oeste paulista, nos municípios de Bento de Abreu e Mirandópolis. Esta última usina recebe um nome consoante com a expectativa de direcionamento de sua produção: Usina Mundial. O Grupo Cosan iniciou sua expansão no Estado de Goiás com a Cosan Centroeste (Projetos de Estudo, 2008).

O modelo de participação internacional e concentração no controle acionário de usinas brasileiras envolve duas particularidades ligadas diretamente à mobilização dos trabalhadores rurais no questionamento dos modos operantes de exploração no cotidiano laboral. A primeira refere-se à maior dificuldade de estabelecer negociações trabalhistas em virtude do movimento sindical de trabalhadores rurais deparar-se com grupos econômicos mais poderosos e organizados em prol da acumulação a partir da exploração do trabalho vivo. A segunda envolve o interesse do capital internacional em reproduzir seu volume de investimentos a partir da espoliação da mão-de-obra. Este contingente populacional vivencia a pressão sobre os salários e a intensificação do trabalho a propósito do incremento da eficiência produtiva das agroindústrias, o que confere capacidade aos produtos oriundos da canavicultura industrial do Brasil para competir no mercado internacional. Nesse sentido, a expropriação dos trabalhadores rurais brasileiros atrai também o interesse de investidores internacionais.

A reestruturação produtiva na agroindústria canavieira e controle social do trabalho

A reestruturação produtiva na agroindústria canavieira, intensificada nas últimas décadas, envolve a adoção de novas variedades de cana produzidas a partir de biotecnologia, o uso de maquinários e equipamentos informatizados, a intensificação do corte mecanizado e a adoção de novas técnicas de controle do processo produtivo e do controle social do trabalho. Para os trabalhadores, esse processo resultou em intensificação do ritmo de trabalho, precarização das condições e relações de trabalho e em desemprego.

De acordo com Thomaz Júnior (2002) a reestruturação produtiva do setor representa uma nova reordenação da relação capital-trabalho:

a crescente e cada vez mais significativa participação do conhecimento técnico-científico no delineamento do ritmo e da intensidade do processo de modernização do complexo agroindustrial sucro-alcooleiro, a partir da incorporação de novas tecnologias e equipamentos no processo de produção, nas diferentes etapas da cultura e na industrialização da cana, vem dando uma nova tônica ao processo de valorização e reprodução ampliada do capital (p. 136).

Na cultura canavieira, a redução do trabalho vivo dá-se através da mecanização de etapas do processo de cultivo e da colheita da matéria-prima. O uso de máquinas na colheita da cana-de-açúcar é crescente em todo o Estado de São Paulo e gerou curiosa polêmica: quando o setor é chamado a discutir o problema do desemprego causado pela mecanização de processos produtivos, a tendência é apontar como solução a manutenção do corte manual, que exige, segundo os empresários, a queima da cana (com conseqüentes prejuízos à saúde coletiva e ao meio ambiente). Por outro lado, quando a pauta da discussão é a questão ambiental, o que pressupõe o corte da cana crua, a resposta do empresariado tende para o fim do corte manual, ou seja, a adoção do corte mecanizado. Resulta então que, aos trabalhadores, resta apenas a opção do trabalho duro ou a ausência de trabalho. Entretanto, vários outros fatores se entrecruzam na discussão sobre a mecanização da colheita: a topografia, o controle de pragas nos canaviais, a imobilização de capital na aquisição de maquinário para a colheita, a presença em menor ou maior grau de impurezas na cana colhida e a remuneração reduzida oferecida aos colhedores manuais de cana-de-açúcar.

A topografia das áreas ocupadas com canaviais no Estado de São Paulo permite que cerca de 60% da área plantada seja passível de colheita mecanizada (Gonçalves, 2002), o que permite a coexistência de colheita mecanizada e manual.

Registra-se também uma tendência de deslocamento das áreas de cultivo de cana-de-açúcar para outras regiões do Estado de São Paulo e do Brasil, em busca de topografias favoráveis à mecanização (Andrade, 2001). O deslocamento das áreas cultiváveis também seguiria critérios como a proximidade dos mercados consumidores da região sudeste, a constituição de um forte centro consumidor no mercado platino e a qualidade do solo. Essas situações viabilizaram a estruturação acentuada da agroindústria canavieira no centro-sul do país (Andrade, 2001).

A implementação da colheita mecanizada, sem o uso de queimadas, é dificultada por fatores como o aumento dos custos no controle de pragas radiculares e dos colmos da cana-de-açúcar (Gonçalves, 2002). Também destacam-se a imobilização de capital na aquisição de maquinário e a depreciação decorrente de seu uso. Desse modo, é presumível o progressivo investimento em mecanização da colheita pelas empresas que contam com reservas de recursos financeiros e a predominância da colheita manual naquelas que apresentam restrições orçamentárias, favorecendo a acumulação de capital.

É necessário ressaltar que a decisão pela utilização predominante da colheita mecanizada de cana-de-açúcar crua implica na reordenação da atividade produtiva e não apenas da atividade de colheita. Tal decisão tem implicações na qualidade final da matériaprima para a industrialização, pois o corte mecanizado gera aumento na quantidade de impurezas vegetais, que reduzem a capacidade de moagem (o que implica em redução na produção de açúcar) e "aumenta a cor e os teores de amido e de cinzas no caldo extraído; aumenta também a quantidade de impurezas minerais, que ocasionam o desgaste por abrasão dos equipamentos utilizados na alimentação, preparo e moagem da cana e no tratamento do caldo com a perda de sacarose nesta última etapa" (Cana Limpa, 2006). Assim, o ideal, do ponto de vista do capital, é queimar a cana-de-açúcar e colhê-la mecanicamente, desempregando trabalhadores e poluindo o meio ambiente. Veiga Filho (2003) estimou que seriam perdidos entre os anos de 2000 e 2007, de 65,6 a 71,2 mil de postos de trabalho no corte da cana-de-açúcar.

O impacto da mecanização para o trabalhador é o desemprego e a precarização do seu trabalho dado que nem toda a área de plantio de cana é mecanizável. A cana não colhida mecanicamente o será manualmente, ou seja, a máquina corta os melhores talhões e ao trabalhador cabem as piores áreas, em terrenos íngremes, onde a cana fica deitada ou é torta e, portanto, exige maior esforço físico para ser colhida. É bom lembrar que, sempre que possível, haverá substituição de trabalhadores por máquinas: essa é uma tendência histórica, pois o capitalismo sempre pretende que o lucro máximo ocorra num tempo mínimo e com o mínimo de força de trabalho humano empregada.

 

O universo empírico da pesquisa

A presente pesquisa foi realizada com trabalhadores rurais residentes no município de Pacaembu, empregados no corte da cana-de-açúcar em usinas da região. A escolha de um município do oeste paulista para o desenvolvimento deste estudo deveu-se ao fato de o setor sucroalcooleiro apresentar nessa região: a) internacionalização e concentração da agroindústria de açúcar e álcool; b) migração de capital oriundo da canavicultura nordestina para o Estado de São Paulo; c) direcionamento da produção das usinas de açúcar instaladas para a produção de álcool utilizado como combustível e, d) substituição de trabalhadores pela colheita mecanizada. O oeste paulista, no período entre 1997 e 2003, apresentou expressivo crescimento das áreas cultivadas com cana-de-açúcar para processamento industrial (44,5%), com aumento de 51,8% da produção em toneladas (Instituto de Economia Agrícola, 2005). Coexistem nessa região a expansão da produção, a reestruturação produtiva da canavicultura industrial, contingentes de trabalhadores rurais expropriados do acesso a terra e a fragilidade de organização do sindicalismo rural (Thomaz Júnior, 2002).

Esta pesquisa teve como objetivo investigar, a partir da análise do processo de trabalho, as condições laborais no corte da cana-de-açúcar e relacioná-las aos problemas de saúde relatados pelos trabalhadores.

 

O trabalho de campo

Neste estudo, de natureza qualitativa, os dados foram obtidos através de observações diretas do processo de trabalho, de documentação fotográfica e de entrevistas semidirigidas. Foram realizadas sete visitas no campo e, em três ocasiões, as observações estenderam-se do início ao final da jornada dos trabalhadores, incluindo o percurso de sua casa até a lavoura, assim como o percurso inverso, ao final da jornada de trabalho, o que permitiu o acompanhamento e observações das condições de transporte, das intempéries a que os trabalhadores são submetidos, do trabalho em si, das pausas para refeição, do relacionamento entre os trabalhadores e destes com a chefia.

A documentação fotográfica permitiu a captura de imagens do ambiente e do processo de trabalho, dos instrumentos e de trabalhadores que posaram com suas vestimentas e acessórios improvisados. As fotos tomadas no início da pesquisa foram utilizadas durante as entrevistas como técnica projetiva; essa técnica é denominada por Collier Junior (1973) como can opener. A visualização das fotografias pelos entrevistados atua como uma técnica projetiva: ela estimula elementos da memória que permitem o surgimento de novas informações pertinentes à pesquisa. Tal técnica permite também que o entrevistado comente elementos registrados nas fotografias, auxiliando o entendimento do pesquisador sobre o assunto estudado.

A observação do processo de trabalho e as conversas informais com os trabalhadores no início da pesquisa contribuíram para a adequação do roteiro das entrevistas. Foram entrevistados 11 cortadores manuais de cana-de-açúcar (quatro mulheres e sete homens), com idades entre 24 e 63 anos, residentes no município de Pacaembu. Foi também entrevistado um profissional de saúde do município, com o intuito de obter-se informações acerca das enfermidades mais comuns apresentadas pelos trabalhadores rurais que procuravam o serviço de pronto atendimento. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra.

 

Organização, processo e relações de trabalho na colheita da cana-de-açúcar

Todos os entrevistados residiam na zona urbana e de lá deslocavam-se diariamente para os campos de cana-de-açúcar. Se for levado em consideração o tempo gasto no deslocamento entre a residência e a lavoura, a jornada de trabalho dos cortadores de cana inicia-se bem cedo: o embarque nos veículos de transporte ocorre entre 4h45 e 5h25. A maioria dos entrevistados relatou o embarque às cinco da manhã. O transporte é feito em ônibus, que nem sempre apresentam condições adequadas. O trajeto até a lavoura pode durar entre uma e uma hora e meia. Antes mesmo de começar o trabalho alimentam-se com parte da comida levada para o almoço. Em uma das usinas a jornada se iniciava às sete da manhã e findava às quatro da tarde. Nas demais, a jornada iniciava-se às sete da manhã e terminava às 15h20. Em ambos os casos, o tempo de permanência nos canaviais estende-se entre oito horas e vinte minutos e nove horas. Nesse período o trabalhador pode realizar uma parada para o almoço e outra para uma refeição à tarde.

(...) dá umas oito horas de serviço bem batido, tirando já uma hora praticamente de descanso, meia hora bate um rango, um almoço, e meia horinha pra tomar um café (Entrevistado 3).

Dado que a remuneração dos trabalhadores é determinada pela quantidade de cana-de-açúcar colhida, os intervalos no trabalho para a realização das refeições e descanso são encolhidos pelos trabalhadores, conforme relatou um dos entrevistados:

E o horário de descanso, como a gente está de empreita, quanto menos ficar parado melhor pra você que rende mais o trabalho (Entrevistado 8).

Essa "autonomia" do trabalhador para organizar seus horários de almoço e de descanso mascara uma estratégia de coação ao trabalho pois, na prática, origina a eliminação do espaço de sociabilidade durante a jornada de trabalho, com o conseqüente aumento da extração de mais valia absoluta (Marx, 1982).

Inibir as conversas entre os trabalhadores é outra estratégia de coação, que visa a eliminação do espaço de sociabilidade do trabalho: ao serem questionados a respeito da autonomia do trabalhador para fazer pausas para o descanso ou para conversas com outros trabalhadores obtivemos a seguinte resposta:

Era muito difícil [parar para descansar], das veiz sentava, sentava numa rodinha de colega, fazia a turminha assim, mas o fiscal não gostava não. Das veiz, se a gente conversava assim, mandava a gente se afundá pro meio dos eito de cana, ficava sentado ali, mas é a coisa mais difícil que tem. Ia trampá até as 16 horas (Entrevistado 3).

A jornada semanal era organizada da seguinte forma: parte dos trabalhadores trabalhava seis dias corridos e descansava um (de segunda-feira a sábado), a chamada jornada "6x1"; parte trabalhava cinco dias e descansava um (jornada "5x1"). Segundo relatos de alguns trabalhadores, uma das empresas que utilizava os trabalhadores de Pacaembu tentou, na colheita do ano de 2000, implementar a jornada "7x1", o que resultou em alto nível de absenteísmo e influenciou a eficiência do suprimento de cana-de-açúcar para a indústria. Tempos depois, a empresa voltou a utilizar-se da jornada "6x1".

Nas empresas sucroalcooleiras que organizavam a jornada "6x1" era estabelecido o pagamento dobrado no domingo, ou seja, havia um adicional de 100% sobre o valor pago pela quantidade cortada de cana-de-açúcar. Os trabalhadores não eram obrigados a trabalhar aos domingos. Entretanto, as empresas "solicitavam" a sua "cooperação" para manter o fluxo ininterrupto de matéria-prima para a indústria. Essa suposta cooperação, porém, pode ser entendida como uma estratégia de coação ao trabalho, pois muitos trabalhadores se queixavam que os melhores canaviais eram reservados para aqueles que trabalhavam aos domingos.

Eu tiro quinhentos reais por mês. (...) Agora, esse mês já foi mais porque entrou no domingo aí vai sair (...) setecentos. (...) quando vai de domingo o pagamento é mais.

Observou-se, nas diferentes propriedades produtoras de cana-de-açúcar da região estudada, que o trabalhador, ao chegar ao campo, encontrava a cana já queimada e, a cada um deles era destinada uma área denominada de eito, composta por cinco linhas, existindo ainda algumas variações de acordo com a existência ou não de curvas de nível. Foram observadas variações no tamanho do eito, que dependiam da existência ou não de curvas de nível na área cultivada, o que revela que as características topográficas e as medidas corretivas adotadas também são fatores que dificultam o trabalho e aumentam o desgaste do trabalhador.

É dividido pra cada pessoa cinco ruas, geralmente a gente pega a curva [de nível] também. Chegou na curva vai ter que levar três ruas, quatro ruas, tem gente que leva seis ruas o que geralmente é muito difícil (Entrevistado 1).

O solo da região oeste do Estado de São Paulo é, em boa medida, arenoso, pouco estruturado, com baixa capacidade de retenção de nutrientes, que são facilmente "lavados" pelas águas das chuvas e também facilmente levados pela erosão. Uma das formas de minorar os efeitos das chuvas é o estabelecimento de curvas de nível e, nas propriedades visitadas, visualizamo-nas em grande número, sendo a cana-de-açúcar plantada sobre elas. O corte da cana plantada sobre as curvas de nível implica em que o trabalhador tenha que se movimentar pelo declive ou aclive transportando os colmos nos braços.

(...) tem a curva de nível que os tratores fazem que é pra rebater a água. Então, geralmente eles plantam duas ruas em cima da curva de nível. Fica aquela baixada da curva de nível. Então, quer dizer que fica três ruas na baixada e tem que levar as ruas de cima, o caso é que é bem mais difícil você cortar a cana em cima e jogar lá embaixo no monte onde está feito. Quando a curva de nível é meio baixa, tudo bem, mas tem curva de nível que é alta e você obriga muito mais o corpo. Aí você tem que ficar baldeando a cana no braço pra poder jogar aquelas duas ruas no monte. As três ruas de baixo tudo bem, né... normal, as duas de cima com certeza vai ter que baldear (Entrevistado 1).

Em geral, nas áreas onde o terreno é mais plano e não há curvas de nível, o trabalhador adentra o eito cortando duas ruas de cana, que são depositadas em montes junto às ruas que foram cortadas. No trajeto de volta, o trabalhador corta a cana das três ruas restantes.

Pra cortar geralmente eu pego duas ruas indo e faço o pé dela na segunda rua que é pras outras três eu vir derrubando e jogando na mesma posição de virar, que eu não posso ficar toda hora carregando cana, eu vou lá, pego, abraço um monte de cana lá de trinta canas (Entrevistado 1).

Os trabalhadores alegaram encontrar maior dificuldade na atividade de colheita das canas oriundas dos canaviais novos, denominadas "canas de primeiro corte", que são mais espessas em decorrência dos tratos culturais recebidos no momento do plantio. Elas exigem que o trabalhador curve-se ainda mais para poder alcançar a base da soqueira que, no primeiro corte, fica abaixo da linha do solo.

A cana "pesada" é uma cana de primeiro corte, né... ela foi bem tratada, ela é uma cana forte, pesada, ela nasceu com aquela força toda que ela nunca teve corte né... então, é uma cana pesada de se trabalhar com ela. (...) a gente que é mulher tem menos força, como ela é pesada então a gente não pode abraçar muito senão não agüenta jogar ela no monte (Entrevistada 2).

Existe a diferença da cana de primeiro corte que é mais pesada e mais dificultosa pra trabalhar porque tem sulco, o sulco é fundo então aí a gente tem que ficar subindo de lombada em lombada, e vai pra lá vem pra cá, dia inteiro, né. Então desgasta mais os nervo da perna (Entrevistado 1).

O trabalho na colheita da cana-de-açúcar é marcado pela presença do fiscal, que determina a divisão dos eitos. De modo geral, essa divisão atende a critérios individuais de produtividade no trabalho. A partir dos depoimentos verificou-se que os trabalhadores mais experientes e mais produtivos são colocados lado a lado, o que contribui para exacerbar a competitividade entre eles.

Os cara que cortam mais cana já punha junto (...) cê colocava comigo, que comecei no ano passado [2002], um cara que já cortou cana vinte anos, com certeza esse cara vai varar quinhentos metros na minha frente e eu ficaria com cinqüenta metros cortado na beira do carreador. Então, eles colocavam os caras praticamente por etapa, as pessoas que cortam igual. (...) Eu mesmo pegava com pessoa mais fraca, né, que cortava mais ou menos o mesmo tanto que eu, que ficasse um pouquinho mais na frente, mas pouca coisa (Entrevistado 1).

O processo de trabalho na colheita da cana-de-açúcar consiste em envolver com um dos braços um feixe de cana, flexionar o tronco para baixo lateralmente e golpear com o podão2 a base dos colmos o mais rente ao solo que conseguir. Esses movimentos, ao serem repetidos ao longo de toda a jornada de trabalho tornam-se automatizados3. Depois de cortados os feixes de cana, o trabalhador, com o auxílio do podão, ajeita os colmos e os levanta do solo, gira o corpo, curva-se e os deposita nos montes.

Então, a cana eu abraço ela e do jeito que eu corto, eu já ponho o facão embaixo, levanto o monte [contido nos braços] e jogo no monte (Entrevistado 3).

Tais movimentos corporais atendem a exigências das mudanças na organização da produção, que objetivam o carregamento da cana com o menor teor possível de impurezas. No método de corte anteriormente utilizado, conhecido como corte de cana esteirada, as canas cortadas eram dispostas no solo ao longo das ruas, sem empilhar. Seu empilhamento era feito mecanicamente por um trator e as canas eram posteriormente apanhadas por uma garra mecânica, que as depositava na carroceria de caminhões de transporte que a conduziam às usinas. Ocorre que o uso de tal sistema de corte implicava no carregamento de muitas impurezas vegetais e minerais junto com as canas.

A exigência do empilhamento uniforme, oriunda das mudanças implementadas na organização do processo de trabalho, é positiva para as usinas dado que permite que a cana seja apanhada pelas garras mecânicas seja mais limpa. Novaes (2007, p. 100) explicou que as usinas do Estado de São Paulo, no intuito de reduzir impurezas da cana, implementaram programas de treinamento, dentre eles o Cana Limpa, que, além de aumentar a qualidade da matéria prima destinada à moagem, também elevou o nível de produtividade, que pode ser atribuído tanto às novas formas de organização do trabalho, quanto à adoção de premiações ao trabalhador.

Para os trabalhadores, tais mudanças, que objetivam melhorias técnicas e aumento da produtividade, resultaram em maior esforço e aumento do desgaste físico, que pode ser atestado inclusive pela adoção de programas de ginástica laboral pelas usinas: "O programa também enfoca questões relacionadas à melhor postura física durante o corte e evidencia a importância da ginástica laboral para minimizar as conseqüências do trabalho no corpo" (Jornalcana, 2005, apud Novaes, 2007, p. 100).

(...) a hora de cortar é uma coisa, agora, cortar, carregar e amontoar, você já movimenta pra caramba, né? Sobe, desce, desce, sobe: é movimento pra caramba. Sempre carregando peso nos braços, né? E o facão na mão, ainda, por baixo pra segurar a cana, pra ajudar (Entrevistado 4).

(...) de dois em dois metros é feito os monte, ali você vai jogando ela e depois você só tira os ponteiros, mas os monte têm que ficar bem arrumado pra na hora que as máquinas vir carregar o caminhão não ter problema de ficar cana no chão (Entrevistado 1).

A preocupação com a excelência do produto contrasta com despreocupação com a saúde e com a duração da vida dos trabalhadores.

Para Novaes (2007), "o aumento da produtividade, advindo da implantação de programas de melhorias da qualidade dos serviços, impõe aumento do desgaste físico dos trabalhadores para a realização de novas tarefas (...)" (p. 100).

O trabalho no corte da cana é considerado muito pesado e sua intensidade pode ser dimensionada considerando-se o volume de trabalho atribuído aos indivíduos, à freqüência e à rapidez dos movimentos desenvolvidos.

A gente faz muito movimento, segundo os caras que corta cana mais tempo que eu... eles falam que o movimento é cinco mil movimentos por minuto, então, você tem um movimento no corpo geral, tanto você movimenta o braço, como perna, olho, cabeça, movimenta o corpo em geral, então, é cansativo (Entrevistado 1).

A aceleração do ritmo de trabalho é induzida pelo pagamento por produção, que "(...) age como um elemento externo ao processo de trabalho, no sentido do aumento da produtividade do trabalho, porque atua sobre o psíquico do trabalhador. O pagamento por produção significa que se trabalhar mais ganhará mais (...)" Alves (2007, p. 35).

Entre os anos de 1969 e 2005, a quantidade média de cana-de-açúcar colhida aumentou de três para nove toneladas/homem/dia no Estado de São Paulo (Instituto de Economia Agrícola, 2006). Na década de 1970 a média de produtividade dos cortadores de cana-de-açúcar alcançava três toneladas/homem/dia. Na de 1980, ultrapassou quatro toneladas/homem/dia, valor que passou a sete na década de 1990 e, em 2005, alcançou 12 toneladas/homem/dia. Tal aumento na produtividade do trabalho representou intensificação de 300% no ritmo de trabalho.

Paralelamente ao aumento do ritmo de trabalho, observado nas últimas décadas, vimos crescer a incidência de doenças e de acidentes de trabalho nessa atividade. Ainda que faltem estudos que revelem numericamente tal crescimento no Estado de São Paulo, pesquisas recentes – dentre elas as de Silva (1999), Alves (2007), Novaes (2007), Scopinho et al. (1999), Andrade (1994), Thomaz Junior (2002) – registraram depoimentos de trabalhadores que comprovam essa realidade.

Alguns entrevistados nesta pesquisa relataram ter sofrido, ou testemunhado em colegas, um quadro de adoecimento por eles denominado birola:

A pessoa começa a vomitar, dá cãibra demais, eu mesmo já tive esse problema na roça. Então, é a birola, dá tudo, dor de cabeça, muita ânsia de vômito, cãibras demais, esse é o problema que dá na pessoa na cana. (...) Eu fiquei internado três dias com esse negócio de birola. Eu nem sabia o que era isso. Todo mundo falava que era birola e eu dizia: não sei se é isso não. Em mim deu uma vez e eu nunca mais quero ter, fiquei três dias internado (Entrevistado 1).

Outro trabalhador dá mais detalhes a respeito do adoecimento de um integrante de sua turma de trabalho:

Ele começou a passar mal, ter dor de cabeça, sintoma de frio e, de repente, ele caiu na minha frente. Eu vi ele se estrebuchando, a boca começou espumar e o pessoal correu acudi ele. Ele estava em cima de um monte de cana, caído, e o pessoal deu água na boca dele pra desenrolar a língua e ele não conversava mais, só gemia, só gemia, a boca dele com muita água. (...) Ele ficava se batendo, até fez xixi na calça de dor (Entrevistada 7).

Os entrevistados relataram ingerir soro caseiro (solução de água, sal e açúcar) quando manifestam tonturas, náuseas e cãibras durante a jornada de trabalho. Relatam também que, por vezes, a sintomatologia não é contida pela reposição eletrolítica e que o quadro pode evoluir para desmaios seguidos, às vezes, de convulsões. Na região de Ribeirão Preto, já faz algum tempo que os cortadores de cana ingerem um tipo de energético durante a jornada de trabalho para repor sais minerais e carboidratos. Nessa região, as usinas, orientadas por nutricionistas, "(...) estão distribuindo um componente à base de glicose aos trabalhadores, depois do meio-dia, quando, em razão do aumento do dispêndio de energia, há muitas manifestações de cãibras e fortes dores na coluna (...)" (Silva, 2004, p. 48).

Em meio a esse quadro de superexploração do trabalho, começaram a surgir, na região de Ribeirão Preto, denúncias de mortes de trabalhadores durante ou logo após a jornada de trabalho, supostamente em função do desgaste excessivo pelo trabalho. Segundo a Pastoral do Migrante, que encaminhou denúncia ao Ministério Público, foram cerca de 13 mortes entre 2004 e 2005. Tal fato chamou atenção de entidades como a Procuradoria Geral da República de São Paulo e a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DHESC Brasil), que, em 2005, com apoio do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV/PNUD) e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, organizaram audiências públicas sobre o tema, a primeira delas em Ribeirão Preto (Silva, 2006).

Os depoimentos colhidos nesta pesquisa revelam como se processa o desgaste e o adoecimento dos trabalhadores:

(...) estava cortando cana e eu senti, já tinha passado da hora do almoço aquele dia, então a gente estava esforçando demais e (...) eu senti que estralou, deu um estralo no nervo foi isso dentro do braço, né, e aí começou a doer. Eu falei pro fiscal que estava doendo meu braço, aí ele falou que eu tinha que terminar aquele talhão (...), depois eu tomava um remédio em casa e melhorava. Eu continuei trabalhando (...) à noite eu fui dormir e não agüentei de dor no meu braço, ele adormecia, adormecia demais e doía o pulso (...) no outro dia fui trabalhar com o braço doendo e eu não podia parar porque lá, se você está com dor, tem que trabalhar (...) eu trabalhei quinze dias com dor no braço, meu braço começou inchar, inchar, inchar e foi aonde um fiscal me aconselhou que eu fosse até o médico (...) o médico olhou meu braço e constou que eu estava com LER porque eu fiquei muito tempo trabalhando machucada e deu LER no braço (Entrevistada 11).

Os trabalhadores também alegaram que a atividade leva ao envelhecimento precoce:

Se você tem que viver 50 anos, você vive 40 (...). É porque é um serviço que você, além de desgastar muito, vai ficando velho mais rápido. Então, tem pessoas que trabalha há 20 anos na cana que hoje elas têm 35 anos e está com cara de 50 anos. Por quê? Porque o trabalho é muito esforçado, é um trabalho que você recebe por empreita, então, se não esforçar você não ganha (Entrevistado 5).

O esforço realizado pelo colhedor manual de cana-de-açúcar está associado também à inspiração da fuligem oriunda da queimada da cana-de-açúcar. A intensa atividade física exigida na execução do trabalho acelera o ritmo respiratório, aumentando a inspiração da fibra vegetal carbonizada. As dificuldades respiratórias relatadas pelos trabalhadores podem se restringir a dificuldades respiratórias ou chegar até mesmo, conforme descrição do Ministério da Saúde (2002), a um quadro de bissinose em históricos prolongados de exposição ocupacional, em razão do depósito de partículas da fibra vegetal carbonizada nas cavidades pulmonares.

A fuligem proveniente das queimadas também pode apresentar elementos carcinogênicos que atingem a boca, os tratos respiratório e digestivo. Esses elementos seriam os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA). Numa análise que envolveu 39 colhedores manuais de cana-de-açúcar durante a safra 2002-2003, foi detectado um nível de HPAs nove vezes maior que o apresentado pelo grupo controle (Fumaça Sobre a Saúde, 2005).

Outro aspecto de destaque sobre a análise dos padrões de saúde de um grupamento populacional refere-se à remuneração recebida no desenvolvimento de atividades produtivas. A análise dos valores pagos por tonelada de cana-de-açúcar colhida manualmente no Estado de São Paulo, no período 1995-2005, indica que o valor médio pago por tonelada colhida de cana-de-açúcar passou de R$ 1,43 para R$ 3,11 (Instituto de Economia Agrícola, 2006). Verifica-se que a mediana dos pagamentos por tonelada de cana-de-açúcar colhida manualmente apresenta valor inferior àquele da média de remuneração por tonelada colhida que, no período analisado, evoluiu de R$ 1,10 para R$ 2,50. A partir dessas informações e da quantidade média colhida por trabalhador em uma jornada de trabalho, foi possível estimar os valores das jornadas mensais de trabalho. Para o ano de 2005, o valor médio e a mediana de remuneração mensal estimada estiveram, respectivamente, 78% e 43% acima do piso salarial acordado pela Convenção Coletiva da Categoria (Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de São Paulo, 2006) que estabeleceu o valor mínimo de R$ 377,35.

A elevação dos salários acima do piso salarial da categoria está diretamente ligada à exigência de aumento da produtividade via estratégias de controle da organização do trabalho. Os registros estatísticos (Instituto de Economia Agrícola, 2008) demonstram tal afirmação: o valor máximo de cana cortada manualmente, em um dia, por um único trabalhador se aproxima de duas dezenas de toneladas: 18 toneladas em 2002, 20 toneladas em 2003 e também em 2004 e 18 toneladas no ano de 2005. O efeito combinado dos esforços demandados para a manutenção da elevada produtividade do trabalho e o padrão salarial estimado para esse grupo de trabalhadores leva a crer na ocorrência de acentuada deterioração do quadro geral de saúde desses trabalhadores.

 

Considerações finais

O trabalho rural na agricultura canavieira do Estado de São Paulo é regido, predominantemente, por relações assalariadas de trabalho. Caracteriza também o trabalho nessa cultura a crescente mecanização do corte em todas as regiões do Estado e, em especial, na região de Ribeirão Preto. A mecanização do corte gerou e tem gerado desemprego, pressionou os salários, enfraqueceu o movimento sindical e contribuiu para o agravamento das condições de trabalho.

A área de cultivo de cana-de-açúcar para a indústria, no Estado de São Paulo, aumentou cerca de 700 mil hectares durante a década de 1990 (cerca de 32,5%) e abrandou o impacto da redução absoluta do número de postos de trabalho em atividades agrícolas. Tais postos de trabalho passaram a ser ocupados majoritariamente por migrantes das regiões norte e nordeste, trabalhadores, em sua maioria, do sexo masculino. Algumas empresas sucroalcooleiras limitam o número de mulheres em cada turma, enquanto outras proíbem a utilização de mão-de-obra feminina no corte manual de cana-de-açúcar. Mulheres e trabalhadores mais velhos passaram a ser aproveitados, em sua maioria, nas atividades de plantio e manutenção dos canaviais (Silva, 1999). Tais atividades, tão penosas quanto o corte manual de cana-de-açúcar, têm remuneração menor dado que os trabalhadores recebem por dia de trabalhado (diária) e não por produtividade (empreita).

A nova organização do trabalho passou a exigir do trabalhador uma "plasticidade funcional". Durante a safra, predominantemente, o trabalhador participa da colheita da cana-de-açúcar e, ao seu final, passa a executar o plantio de novas áreas e os tratos (manejo) culturais nos canaviais (controle químico de pragas, carpa, dentre outros). Mesmo durante a safra, o colhedor manual de cana-de-açúcar pode ser direcionado ao plantio de novas áreas e ao manejo de cultura. A utilização de máquinas na colheita da cana-de-açúcar permite a manutenção do fornecimento de matéria-prima para a indústria, o que minimiza a utilização de trabalho vivo nessa etapa da atividade produtiva.

A degradação da saúde dos trabalhadores do corte da cana-de-açúcar é também associada à dificuldade de acesso aos serviços de atenção básica de saúde, dado que o horário de funcionamento desses serviços coincidem com o horário de trabalho: ao serviço de saúde então cabe apenas o atendimento de urgências e emergências. É necessário destacar que os municípios do oeste paulista envolvidos direta ou indiretamente neste estudo não desempenham quaisquer ações voltadas à saúde desses trabalhadores, seja de cunho fiscalizador, através dos serviços de vigilância sanitária, seja de cunho curativo, através de serviços especializados na atenção à sua saúde.

Os resultados demonstraram que a ação combinada da intensificação do trabalho e o aumento da dificuldade na execução da tarefa pode determinar, ao trabalhador, elevação na ocorrência de adoecimentos relacionados à atividade laborativa. Eles são expressos por cãibras constantes, por afecções do sistema osteomuscular (lesões por esforços repetitivos, bursites, tendinites, lesões na coluna vertebral) e por desidratações.

Mesmo quando o trabalho não ocasiona dano físico, ele deixa suas marcas por meio do sofrimento psíquico: o estresse e a doença dos nervos são expressões da invasão do espaço subjetivo, familiar e do tempo fora do trabalho pelas exigências da organização do trabalho.

Muitas são as propostas que podem ser estabelecidas a curto prazo para a melhoria das condições de trabalho e saúde dos trabalhadores, dentre elas podemos destacar: a) que o Estado melhore e faça cumprir a legislação de proteção ao trabalhador, através de ações fiscalizatórias constantes e efetivas; b) que os sindicatos articulem a defesa dos interesses dos trabalhadores, lutando pela manutenção e pela ampliação dos direitos trabalhistas e por melhorias salariais; é também missão e dever dos sindicatos fazerem-se presentes nos locais de trabalho e denunciar condições que coloquem em risco a vida e a saúde dos trabalhadores; c) que as universidades e institutos de pesquisa orientem sua produção de forma a gerar conhecimento capaz de eliminar, ou ao menos minimizar, os efeitos decorrentes da insalubridade da colheita manual e dos tratos culturais hoje necessários à produção de cana-de-açúcar.

A curto e médio prazos são necessárias mudanças que impliquem no enfrentamento da questão agrária. Ainda que nos limites do capitalismo, é urgente o estabelecimento de uma efetiva reforma agrária no país que permita àqueles trabalhadores que migram em busca de trabalho a possibilidade de fixarem-se em seus locais de origem, onde possam trabalhar a terra regidos por outra lógica que não esta que determina o sucateamento de sua força de trabalho na agroindústria canavieira. A longo prazo, não podemos perder de vista que será somente em uma sociedade onde o trabalho não seja meio por excelência de exploração, de dominação de uma classe sobre a outra que se construirá uma nova sociabilidade firmada como fonte de criação, de prazer, de humanização, onde não haja espaço para aceitação dessas formas vis de exploração. Francisco de Oliveira (2007) afirmou ter a agroindústria canavieira fome de forçade-trabalho e vaticinou: "(...) como os mais velhos já foram moídos, como a cana que cortam nas moendas, [agora] são recrutados apenas os mais jovens, mas estes ainda não têm a força muscular requerida; ainda não podem ser moídos, mas serão (...)".

 

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Endereço para correspondência
E-mail: casrumin@usp.br, vnavarro@usp.br, nperioto2@gmail.com

Recebido em: 03/03/2008
Revisado em: 28/07/2008
Aprovado em: 12/08/2008

 

 

1 Este artigo apresenta dados extraídos da dissertação de mestrado do primeiro autor (Rumin, 2004).
2 O principal instrumento de trabalho do cortador de cana-de-açúcar é o podão, que é um tipo de facão de folha larga utilizado para golpear e seccionar os colmos da cana. O podão é fornecido pelas usinas, nem sempre em número suficiente, já que, com o uso diário, ocorre desgaste com muita rapidez. É comum o trabalhador adquirir, com recursos próprios, seu instrumento de trabalho e realizar sua manutenção, afiando-o quando necessário. De acordo com a estatura do trabalhador, por vezes é necessário aumentar o comprimento do cabo de forma a reduzir o encurvamento do corpo na atividade do corte.
3 Baseado em documento apresentado pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho (Plataforma DHSC), que investiga as mortes de trabalhadores ocorridas no corte da cana no Estado de São Paulo. Silva et al. (2006) afirmaram que um trabalhador que corta 10 toneladas de cana por dia desfere cerca de 9.700 golpes de facão a cada jornada de trabalho.

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