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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.23 no.2 São Paulo Jul/Dec. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v23i2p175-188 

10.11606/issn.1981-0490.v23i2p175-188

ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

 

Pessoas transgêneras e o mundo do trabalho: desafios e reflexões sobre o compromisso ético e político da Psicologia

 

Transgender people and the world of work: challenges and reflections about the ethical and political commitment of Psychology

 

 

Heloisa Aparecida de Souza1; Gustavo Renan de Almeida da Silva2; Rômulo Lopes da Silva3; Carlos Henrique Ferreira da Silva4

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Campinas, SP, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na contemporaneidade, a não conformidade às normas de gênero produz discriminações nos diversos contextos sociais, incluindo o laboral. Compreendendo o trabalho como um elemento central na constituição do ser humano, no presente artigo, organizado como ensaio teórico, abordamos os desafios cotidianos enfrentados pelas pessoas transgêneras e seus impactos na inserção profissional, além de discutir o compromisso ético e político da Psicologia com essa população. Dessa forma, buscamos refletir sobre a importância de se abordar a temática "gênero" e "trabalho", de forma crítica, na formação e atuação profissional. Defendemos que é essencial que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, reflita criticamente sobre as possibilidades e situações de trabalho encontradas pelas pessoas trans e atue de forma a contribuir com o rompimento da visão que naturaliza e/ou atribui exclusivamente ao sujeito a responsabilidade pela exclusão social.

Palavras-chave: Psicologia, Transgeneridade, Trabalho, Discriminação.


ABSTRACT

In the contemporary world, non-compliance with gender norms produces discrimination in different social contexts, including at work. Understanding labor as a central element in the constitution of human beings, in this theoretical essay, we address the daily challenges faced by transgender people and their impact on professional insertion, in addition to discussing the ethical and political commitment of Psychology towards this population. In this way, we verify the importance of addressing the themes "gender" and "work" in a critical manner, in both professional training and performance. We argue that Psychology, as a science and profession, must reflect critically on the possibilities and work situations encountered by trans people and act so as to contribute to disrupting the view that naturalizes and/or attributes the responsibility for social exclusion exclusively to the subject.

Keywords: Psychology, Transgender, Work, Discrimination.


 

 

Apresentação

Tendo em vista a heterogeneidade e singularidade das vivências da população LGBT5 no Brasil, percebe-se que as pessoas transgêneras são vítimas de intensos e frequentes preconceitos e exclusões (Rondas & Machado, 2015; Souza, 2012). Tomando como ponto de partida a centralidade do trabalho na constituição da identidade, subjetividade e do posicionamento social do ser humano (Antunes, 1995; Coutinho, Krawulski & Soares, 2007), faz-se necessário compreender os desafios impostos a essa população para a sua inserção laboral na atualidade.

Utilizamos o termo "transgênero" para nos referirmos aos indivíduos que se identificam e/ou se expressam de maneira diferente daquela que, com base em sua constituição fisiológica, é esperada socialmente, empregando o termo "trans" com o mesmo sentido (Jesus, 2012). Dessa forma, pessoas transgêneras ou trans englobam homens e mulheres transexuais, travestis e outras expressões que subvertem a linearidade entre a anatomia genital e a expectativa de papel social de gênero. O termo "transfobia", por sua vez, é usado para fazer referência aos preconceitos e discriminações sofridos pelas pessoas transgêneras.

Em relação ao termo "trabalho", compreendemos sua polissemia e contradições na construção da subjetividade humana (Sato, 2009). Em sua essência, é uma categoria fundante da humanidade, o que implica na compreensão da centralidade do trabalho nos processos de humanização e constituição de sujeitos (Marx, 1844/1993). Contudo, devido a toda a complexidade, diversidade e heterogeneidade que o cercam no capitalismo contemporâneo, comumente, é compreendido como sinônimo de emprego (Antunes, 2000). Ou seja, muitos se dispõem a utilizar seu potencial físico e mental em troca de uma remuneração, encontrando pouco sentido na atividade que exercem visando garantir a subsistência e algum nível de inserção social (Singer, 1998). Tendo em vista essa realidade, neste texto, a compreensão de "mundo do trabalho" aproxima-se do entendimento de "classe-que-vive-do-trabalho" de Antunes (2000), que abarca trabalhadores da indústria, da prestação de serviços e do campo, incluindo os desempregados, considerando assim os diversos tipos de vínculos e relações, como o trabalho formal, informal, temporário, terceirizado, ausência de emprego, entre outros.

Considerando a realidade de pessoas trans, a precarização do trabalho é apenas uma das manifestações da transfobia no Brasil, que tem se mostrado bastante letal. Em 2018, foram registradas as mortes de 164 pessoas trans, segundo o Grupo Gay da Bahia (Michels, Mott & Paulinho, 2019). Constatou-se que 97,5% desses assassinatos foram de pessoas identificadas com o gênero feminino, das quais 65% eram profissionais do sexo e 60% morreram nas ruas, revelando a vulnerabilidade de travestis e mulheres transexuais no Brasil. Além disso, conforme o Transgender Europe, o país lidera o ranking mundial de assassinatos de travestis e transexuais (Benevides & Nogueira, 2019), sendo essas, em termos relativos, as pessoas mais vulneráveis a mortes violentas dentre a população LGBT (Michels et al., 2019).

Os diversos contextos sociais, tais como o familiar e o escolar, em geral, são incapazes de acolher e oferecer suporte a pessoa trans, e essa realidade está intimamente ligada às dificuldades encontradas para a inserção profissional (Souza, 2012). Os complexos desafios cotidianos, no entanto, são pouco considerados pelas pesquisas desenvolvidas no Brasil. Pacheco, Rasera, Prado e Teixeira (2017) analisaram os trabalhos científicos brasileiros com interface entre Psicologia e transexualidades, obtendo como resultado que a temática é recente e as produções, em sua maioria, se organizam em torno do "diagnóstico" das transexualidades. Por isso, os autores discutem a necessidade de desamarrar as transexualidades do campo da saúde em direção à perspectiva da despatologização das identidades e da luta pela visibilidade e sociabilidade.

Nesse sentido, este texto, em forma de ensaio teórico (Meneghetti, 2011), busca problematizar os fazeres e saberes da(o) profissional de Psicologia com o intuito de enfatizar a necessidade de a categoria assumir compromisso com o enfrentamento dos desafios vivenciados pela população transgênera no mundo do trabalho.

Vale ressaltar que a aproximação da Psicologia com o mundo do trabalho é marcada por uma grande variedade de objetos de estudos, métodos e posicionamentos teóricos e políticos (Bernardo Oliveira, Souza & Sousa, 2017). No entanto, o Código de Ética Profissional do Psicólogo sinaliza para o dever da(o) profissional defender a liberdade, dignidade, igualdade e integridade do ser humano, além de procurar eliminar qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Conselho Federal de Psicologia, 2014). Portanto, entendemos que é papel de todas(os) psicólogas(os) compreender as questões de gênero e buscar contribuir, independentemente da área de atuação ou abordagem teórica, com a inserção social da população trans.

Para realizar tal discussão, utilizamos como referencial teórico autores da Psicologia Social do Trabalho (PST) que compreendem o trabalho de forma crítica e engajada com os interesses da classe trabalhadora, singularizando e analisando os fenômenos do atual contexto social e refletindo sobre sua relação com a subjetividade, dignidade e saúde dos trabalhadores (Coutinho, Bernardo & Sato, 2017). Recorremos também a Michel Foucault (1977/1997) para discutir os processos políticos e regulatórios presentes em nossa sociedade visando ao controle da população, estigmatizando e excluindo quem não se encaixa nas normas estabelecidas.

Inicialmente, discutimos a relação entre Psicologia e trabalho na contemporaneidade. Posteriormente, tecemos reflexões sobre a normatização de gênero e abordamos os desafios enfrentados pelas pessoas trans nos diversos contextos e suas implicações no mundo do trabalho. Por último, oferecemos reflexões sobre o compromisso da Psicologia com os direitos sociais, a inserção no trabalho das pessoas transgêneras e a necessidade de compreensão crítica sobre os elementos "gênero" e "trabalho" na formação em Psicologia, de forma a construir uma ciência e profissão cada vez mais engajada com as demandas das pessoas trans.

 

Psicologia e trabalho na contemporaneidade

As seguintes questões motivaram o presente texto: quais os desafios enfrentados pelas pessoas trans no mundo do trabalho? Se o trabalho é um elemento importante na constituição de identidades, ao ser dificultada a inserção e permanência de pessoas trans, como essa realidade afeta sua subjetividade? Como a Psicologia se relaciona com essas questões? Para refletir sobre tais questionamentos, é importante discutir sobre os sentidos e significados atribuídos ao trabalho na atualidade.

Ao longo da história, os significados do trabalho foram se modificando, assumindo papel central na formação das identidades individuais e na organização da sociedade. Atualmente, o trabalho é dotado de múltiplos significados, que se diferem de acordo com os contextos históricos, econômicos e políticos, assim como se diferencia nas representações individuais, implicando diretamente em diversas dimensões da vida humana (Antunes, 1995; Seligmann-Silva, 2011). Tendo em vista o polimorfismo e o papel na constituição de subjetividades, é importante para a Psicologia compreender as situações e os sentidos do trabalho ou não trabalho (desemprego) para o indivíduo.

A análise econômica do trabalho se tornou bastante frequente no meio acadêmico, enquanto a compreensão de sua função psicológica foi, durante muito tempo, negligenciada. No entanto, desde o final do século XX, há empenho de estudiosos em construir conhecimento que recupere o sentido psicológico que o trabalho ocupa no desenvolvimento humano. No Brasil, principalmente após os anos de 1980, a Psicologia Social do Trabalho (PST) tem oferecido importantes contribuições para se pensar o trabalho como uma atividade humana que se relaciona com a saúde, a subjetividade e a emancipação dos seres humanos, sendo marcado por contradições e situações laborais diversas (Coutinho et al., 2017).

O trabalho oferece possibilidades de inserção social, prazer, inovação, resistência e criatividade. Em contrapartida, os atuais contextos sociais, políticos e históricos afetam suas formas de organização, produzindo diferentes modos de exploração e sofrimento. A precarização do trabalho gera o sentimento de humilhação, indignidade e até de não pertencimento da condição humana, sendo fonte de desgaste mental, sofrimento e adoecimento das(os) trabalhadoras(es) (Seligmann-Silva, 2011). Ademais, desempregados são alvo de preconceitos e de exclusão social, pois aqueles que permanecem fora do mercado de trabalho por algum tempo, independentemente dos motivos, são rotulados, com frequência, como incompetentes, desinteressados e/ou preguiçosos, individualizando uma questão que é social, visto que não há possibilidade de trabalho para todos (Souza, 2012).

A PST convida-nos a analisar a integração dos elementos macro e microestruturais, buscando entender os aspectos gerais e singulares, objetivos e subjetivos presentes nas relações de trabalho (Coutinho et al., 2017). Ou seja, ao considerar o trabalho como um elemento complexo e essencial para o ser humano, entende como imprescindível lançar um olhar atento para os diversos elementos que compõem as situações laborais de um indivíduo. Ou ainda, conforme sugerido por Hirata (2014), incluir a interseccionalidade de diversos marcadores sociais, tais como raça, gênero e classe social, na compreensão dos sentidos atribuídos ao trabalho.

A PST tem múltiplas influências teóricas, aproximando-se de estudos de diversos temas que nos ajudam a compreender os fenômenos do mundo do trabalho, com grande convergência com o pensamento social crítico latino-americano (Coutinho et al., 2017). Apesar de Michel Foucault não compor as principais referências da PST, compreendemos que essa integração teórica é pertinente à discussão da articulação entre papel de gênero e trabalho para as pessoas trans, visto que esse autor, além das importantes contribuições aos estudos de sexualidade e gênero, compreende o trabalho como um instrumento de hierarquização, oferecendo subsídios que sinalizam o grau de dominação e utilidade dos sujeitos.

... o investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso (Foucault, 1977/1997, p. 28).

Dessa maneira, para o autor, o trabalho pode ser considerado um dispositivo normativo, assim como sexualidade e gênero, conectando-se diretamente com as relações de poder em nossa sociedade, atribuindo utilidades aos corpos por meio do estabelecimento de padrões físicos ou comportamentais que são considerados ideais. Nesse sentido, como discutiremos mais abaixo, a inserção das pessoas trans no mundo do trabalho exige constantes adaptações, subversões e/ou negociações com as normas sociais. Apesar de haver poucos dados e estudos abordando a realidade de trabalho da população trans, Souza (2012) e Rondas e Machado (2015) apontam que é comum restar-lhes a informalidade, precariedade ou a total exclusão do mercado de trabalho.

Se a Psicologia negligenciou a relação entre trabalho e subjetividade humana durante muito tempo, mirando, muitas vezes, apenas o trabalho formal e contribuindo para adaptar os indivíduos às situações de dominação (Bernardo et al., 2017), na atualidade, perante às diferentes faces do trabalho, a Psicologia é convidada a assumir um compromisso com os indivíduos que atuam em trabalhos formais, informais ou que estão desempregados, dando visibilidade à população em situações precárias de trabalho e contribuindo com a construção de políticas de proteção social.

Assim, diante da realidade das pessoas trans que, em geral, sofrem um "duplo preconceito", primeiramente pela sua expressão de gênero e em seguida pelo lugar que ocupam no mundo do trabalho, é necessário que a(o) profissional de Psicologia compreenda a complexidade das situações de trabalho e sua relação com a subjetividade humana, comprometendo-se com os interesses das pessoas trans e intervindo de modo a contribuir com a diminuição da exclusão desses indivíduos.

 

Gênero e transgeneridades: normatização e exclusão em diversos contextos

Partindo da compreensão de que toda a trajetória de desenvolvimento de pessoas transgêneras costuma ser marcada por exclusões (Mattos & Cidade, 2016; Souza & Bernardo, 2014), impactando diretamente suas possibilidades no mercado de trabalho, buscaremos, neste tópico, discutir as normas sociais (Foucault, 2001) e seus reflexos em diversos contextos. Dessa forma, precisamos considerar que as dificuldades vivenciadas nos diferentes espaços de socialização, tais como nas famílias, espaços escolares e comunidades, geram dificuldades para a inserção profissional.

Primeiramente, cremos ser imprescindível pontuar que, na sociedade contemporânea ocidental, a noção de gênero e sexualidade está ancorada em perspectivas cisheteronormativas, termo utilizado por abarcar a intersecção entre as normativas de identidade de gênero e de orientação sexual (Veiga, 2017). Vale salientar que, segundo Diehl e Vieira (2017, p. 190), identidade de gênero corresponde à "percepção subjetiva de uma pessoa sobre seu gênero", isso é, o modo como ela se reconhece e se identifica (por exemplo, homem, mulher ou identidades não binárias), enquanto orientação sexual "refere-se à atração física, romântica e emocional de uma pessoa em relação a outra" (Diehl & Vieira, 2017, p. 191). Portanto, as perspectivas cisheteronormativas esperam uma identidade de gênero conforme o sexo designado no nascimento, com base na genitália6 (vulva-mulher-feminino ou pênis-homem-masculino), ou seja, cisgênera, e experiências afetivo-sexuais exclusivamente heterossexuais.

Para Arán e Peixoto Júnior, "o ato de nomear é, ao mesmo tempo, a repetição de uma norma e o estabelecimento de uma fronteira" (2007, p. 134), isso é, a naturalização entre sexo e gênero tem início na interpelação médica sobre o bebê, que torna-se um enunciado performativo a partir da nomeação "é menina" ou "é menino". Assim, organizam-se expectativas sociais, as quais estabelecem um marcador entre o que é considerado "normal" e as demais experiências, que são consideradas transgressoras, anormais, patológicas, indesejadas e/ou subalternas. Foucault (2001) utilizou o termo "monstros" para se referir aos indivíduos demarcados por transgredirem as normas estabelecidas, que por inspirarem temores e dúvidas, devem ser corrigidos, destruídos ou anulados, literal ou simbolicamente. Dessa forma, a transgeneridade deixa de ser vista apenas como "uma dentre muitas possibilidades humanas de determinação do próprio gênero" (Arán, Murta & Lionço, 2009, p. 1148) para ocupar esse espaço de anormalidade e exclusão.

Ocorre que, para manter a hegemonia das práticas normativas, é preciso, constantemente, demarcar, excluir e/ou patologizar tudo o que foge dos padrões vigentes, visto que a norma é frágil e necessita de mecanismos para ser sustentada (Foucault, 1979/1997). Ressalta-se, no entanto, que cada trajetória de vida deve ser analisada de forma individual (Tenório & Prado, 2016), pois é impossível considerar que todas as pessoas trans enfrentarão as mesmas dificuldades; porém, existem indícios de desafios que são comuns, os quais muito frequentemente impactam a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.

Souza (2012) constata que a maioria das famílias não se encontram preparadas para proteger e defender as crianças trans, sendo, em grande parte das vezes, a primeira instituição a violentá-las, exigindo que mudem o seu comportamento e se adequem às normas de gênero. A autora afirma ainda que a não aceitação da identidade de gênero por parte da família e as práticas de punição fazem com que seja frequente, ainda na adolescência, o rompimento das relações nesse contexto. Portanto, diferentemente do que acontece em outros grupos estigmatizados devido a marcadores como raça/etnia ou religiosidade, nos quais família e comunidade costumam ser pontos de apoio e de desenvolvimento de estratégias de enfrentamento ao preconceito vivenciado, no caso de pessoas LGBT, é frequente que essas próprias instituições sejam fontes de discriminação e exclusão para o indivíduo (Drescher, 2014).

O ambiente escolar também é apontado como um espaço adverso para as pessoas trans, com vivências marcadas por preconceitos, desrespeitos e humilhações (Bento, 2011; Souza & Bernardo, 2014). A escola costuma exigir que todos os indivíduos se comportem de acordo com o que é esperado para o seu gênero designado, marcando e excluindo quem subverte essa regra. As práticas discriminatórias nesse ambiente costumam ir da proibição do uso do nome social, passando pela dificuldade no uso dos banheiros e chegando às chacotas dos colegas, à exposição e ao desrespeito à expressão de gênero e sexualidade por parte de professores e demais funcionários.

Não obstante, Jesus, Souza e Silva (2015) chamam a atenção para o silenciamento e a negação da diversidade sexual nas escolas, perpetuando manifestações preconceituosas. Já Bento (2011) afirma que a escola, frequentemente, apresenta-se como um "espaço de terror" para as pessoas trans, devido à reiteração das normas de gênero e sexualidade; a autora considera que o ambiente inóspito provoca a "expulsão", muito mais do que uma mera "evasão" dessas(es) estudantes. Não nos surpreende, assim, pesquisas que apontam que 72% das pessoas transnão concluíram o Ensino Médio, 56% delas concluíram o Ensino Fundamental e somente 0,02% acessaram a universidade (Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 2018).

Considerando que a sociedade capitalista valoriza o ensino formal e compreende a pouca escolaridade como sinônimo de despreparo para o ingresso no exigente mercado de trabalho, não é difícil depreender o impacto de tais exclusões nas dificuldades encontradas por pessoas trans para se inserirem profissionalmente (Souza & Bernardo, 2014). Além disso, a transfobia presente em nossa sociedade faz com que, com frequência, essas pessoas se sintam constrangidas, humilhadas e expostas quando buscam uma atividade remunerada.

Perante essa realidade, são poucas as oportunidades encontradas pelas pessoas transexuais no mundo do trabalho formal, tornando imprescindível repensar e problematizar o enfrentamento dos obstáculos para a inserção social do grupo em questão. Em outras palavras, se a realidade de violência e preconceitos é encontrada desde a infância pelas pessoas que não se enquadram aos padrões de sexualidade e gênero, impondo grandes desafios para sua inserção social e no trabalho, não é suficiente falar exclusivamente em ações voltadas para a inserção no mercado de trabalho. Diante disso, é necessário enfrentar a cisheteronormatividade, considerando-a como uma construção regulatória que nega e exclui o "diferente", gerando sofrimentos significativos e socialmente determinados.

Como discutiremos a seguir, é necessário intensificar o compromisso da Psicologia com os indivíduos que vivenciam exclusão social nos diversos contextos. Mais especificamente em relação ao trabalho, cabe a essa, como ciência e profissão, direcionar "suas práticas para promover o fortalecimento dos trabalhadores e trabalhadoras, ao invés de contribuir para sua manutenção em relações de submissão e dominação" (Bernardo & Pereira, 2017, p. 150).

 

Compromisso da Psicologia com os direitos sociais e com a inserção das pessoas transgêneras no mundo do trabalho

O saber psicológico deve estar a serviço de toda a sociedade, evitando que o bem-estar de alguns se fundamente no desconforto de outros e impedindo que a busca por interesses exija a desumanização de sujeitos (Martin-Baró, 1996). Sendo assim, após termos refletido sobre alguns dos desafios cotidianos vivenciados por pessoas trans, acreditamos ser de grande valia retomarmos documentos normativos do Conselho Federal de Psicologia, que orientam a prática das(os) psicólogas(os) acerca das questões de gênero, além de retomar algumas conquistas da população trans nos últimos anos e defender a necessidade de um posicionamento crítico da Psicologia perante a atual situação sociopolítica na busca por maior igualdade.

Existem múltiplas possibilidades de atuação da Psicologia em relação ao mundo do trabalho e, como discutido acima, a discriminação social vivenciada pela população trans nos diversos contextos tem implicações na sua inserção profissional. Assim, nossa discussão neste tópico não se restringe somente à denominada "Psicologia no Trabalho e Organizações". Defendemos que, para contribuir com a inserção social e no trabalho das pessoas trans, a atuação de todas(os) Psicólogas(os) deve estar em consonância com o código de ética da profissão, que evidencia que é dever das(os) profissionais de Psicologia promover o bem-estar do ser humano, procurando eliminar toda forma de discriminação, compreendendo os contextos sociais e culturais e considerando as intensas e conflituosas relações de poder existentes na contemporaneidade.

Princípios Fundamentais

I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.

... VII. O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste Código (Conselho Federal de Psicologia, 2014, p. 7).

Com base nos princípios fundamentais, é possível afirmar que, independentemente de abordagem, posicionamento político ou área de atuação, a(o) psicóloga(o), na atualidade, precisa se comprometer efetivamente com as pessoas que estão mais vulneráveis à discriminação social e no trabalho, como é o caso das pessoas trans.

A Psicologia se omitiu e pouco contribuiu com a discussão crítica sobre o conceito de gênero em diversos momentos da história. Como exemplo disso, podemos citar os diversos testes psicológicos que abordam as características de homens e mulheres como se fossem inatas (Santos, 2013) e o discurso binário de gênero presente em livros de desenvolvimento humano (Anjos & Lima, 2016). Da mesma forma, isso fica evidente ao considerarmos que a visão patologizante das transexualidades ainda é a predominante e que tudo isso reforça as normas de gênero e a sensação de inadequação das pessoas trans, gerando rótulos e sofrimentos.

A transexualidade, que na décima edição da Classificação Internacional de Doenças (CID) configurava como Transtorno da Identidade Sexual (Organização Mundial da Saúde, 1993), deixou de ser considerada um diagnóstico no eixo de transtornos mentais na 11ª edição do referido manual (Organização Mundial da Saúde, 2018), passando a ser denominada como Incongruência de Gênero, figurando no eixo relativo à saúde sexual. Tal mudança de classificação, segundo a própria OMS, é condição de acesso aos serviços de saúde e representa um avanço no entendimento das vivências de pessoas trans, pois deixa de considerá-las com um transtorno mental. Contudo, na prática, sabemos que é difícil romper com os regimentos cisheteronormativos e considerar os diferentes modos de subjetivação.

O fortalecimento do posicionamento ético-político da Psicologia exige também uma visão crítica dos manuais médicos e a busca por outros instrumentos e recursos para realizar intervenções. Nesse sentido, Tenório e Prado (2016) defendem que um dos instrumentos primordiais das(os) psicólogas(os) é a escuta das experiências das pessoas trans, procurando fugir da lógica normativa de controle da vida. Prado (2018) também relata a experiência em um Ambulatório de Transexualidades do SUS, no qual, em meio às normas técnicas e ações protocolares, se busca adotar, no cotidiano, práticas que visam ao respeito e à despatologização dos gêneros e dos corpos. Porém, realidades como essas ainda são raras no país e têm pouco registro na área do trabalho e organizações.

Não podemos desconsiderar que, apesar do histórico patologizante e naturalizante da Psicologia em relação às identidades trans, temos avançado no sentido de respeito e inclusão dessa população. A Resolução nº 1, de 22 de março de 1999 (Conselho Federal de Psicologia, 1999), que estabeleceu normas de atuação para as(os) psicólogas(os) em relação às questões de orientação sexual, ressaltando as ações éticas de não discriminação e promoção de bem-estar de todos, explicitou que a homossexualidade não deveria ser tratada como patologia e criticou as teorias e terapias que visavam à manutenção da heteronormatividade. Outro grande marco nos debates de gênero e sexualidade dentro da categoria profissional foram as Resoluções nº 1, de 29 de janeiro de 2018, e nº 8, de 5 de agosto de 2020, que visam proteger as pessoas trans de violências transfóbicas praticadas no cotidiano e indicam a necessidade de maior comprometimento ético-político da Psicologia com a temática (Conselho Federal de Psicologia, 2018, 2020).

Contudo, ao considerar as demandas da população LGBT e as resistências oferecidas por setores conservadores da sociedade e presentes na própria profissão, verificamos que há um longo e conflituoso caminho pela frente. Lionço (2017) afirma que, na atualidade, a Psicologia é alvo de muitas ofensivas fundamentalistas contra o posicionamento ético da profissão em defesa de grupos estigmatizados e, mais do que nunca, é preciso zelar pelos princípios da laicidade e democracia em nossa sociedade. Em um cenário de fundamentalismo religioso e conservadorismo extremo, os estudos de gênero são atacados com veemência, principalmente por meio da propagação do combate à chamada "ideologia de gênero".

Segundo Mattos (2018), a expressão "ideologia de gênero" passou a ser utilizada por grupos ultraconservadores que se opõem à concepção de ideologia como forma de ocultamento das desigualdades sociais e naturalização de regras e normas arbitrárias. Ao contrário disso, tem sido um rótulo que contribui para promover o descrédito da discussão crítica junto à sociedade sobre gênero e sexualidade, com a concepção de que essa reflexão promoveria "a destruição da diferença sexual e, no limite, da família tradicional (heterossexual, cisgênera, nuclear), ao pressupor que o indivíduo pode escolher, arbitrariamente, seu gênero" (Mattos, 2018, p. 577).

Perante esse contexto de intensos conflitos sociais, torna-se importante destacar algumas importantes conquistas que foram alcançadas pelas pessoas trans nas últimas décadas, garantindo mais dignidade e possibilidade de inclusão social:

– No dia 29 de janeiro de 2004, uma comitiva composta por pessoas transgêneras foi recebida pela primeira vez pelo Congresso brasileiro, tornando pública a luta e as reivindicações dessa parcela da população. Esse dia tornou-se o "dia nacional da visibilidade Trans" (Cidade & Bicalho, 2017);

– Quatro anos depois, o Ministério da Saúde instituiu a portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008, que previa o tratamento de "redesignação sexual" às mulheres transexuais no âmbito do SUS e, anos depois, ampliou o acesso ao processo transexualizador às travestis e homens transexuais por meio da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013 (Ministério da Saúde, 2008, 2013);

– No ano de 2009, as pessoas transgêneras passaram a ser atendidas pelo nome social no SUS, direito garantido pela portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009 (Ministério da Saúde, 2009);

– Em 2014, o Ministério da Educação ofereceu a opção de utilização do nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) (Moreno, 2014) e, em 2015, passou a ser possível adotar o nome social nas instituições de ensino (Brasil, 2015);

– Ainda em 2014, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais estabeleceu parâmetros para a inclusão dos itens "orientação sexual", "identidade de gênero" e "nome social" nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais no Brasil (Brasil, 2014);

– Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), perante a morosidade e possível negligência do legislativo brasileiro em cumprir sua função em aprovar leis que garantam direitos às pessoas trans, reconheceu o direito a alteração do gênero e do prenome sem a necessidade de autorização judicial ou cirurgia de readequação sexual e, em 2019, equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo (Supremo Tribunal Federal, 2019).

Apesar desses significativos avanços, Rocon, Sodré & Rodrigues (2016) defendem a necessidade de um olhar crítico, pois muitas das conquistas sociais ratificam a judicialização e medicalização das vidas trans, mantendo a matriz cisnormativa e binária de gênero. Nesse mesmo sentido, Pacheco et al. (2017) sinalizam para o aumento das publicações na área de Psicologia sobre as transexualidades na última década, contudo, alegam que a aproximação da Psicologia com a temática seria paradoxal, com muitos posicionamentos que defendem o diagnóstico e alguns que abordam sua despatologização.

Além disso, considerando a ausência de políticas públicas que promovam o acesso ao trabalho e/ou geração de renda para pessoas trans, há necessidade de uma atuação crítica e engajada das(os) psicólogas(os) com os interesses dessa população, atuando na busca de novos direitos e intervindo nos microambientes, como é o caso das organizações do trabalho.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Organização Internacional do Trabalho, 2015), lançou um documento que visa à conscientização sobre os desafios enfrentados por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas vivendo com HIV/Aids para se inserirem nas organizações, conclamando toda a sociedade a expressar responsabilidade social na garantia dos direitos dessa população. Essa mesma publicação afirma que, diante dos inúmeros preconceitos, as pessoas trans enfrentam uma dificuldade ainda maior, sendo, com muita frequência, excluídas das oportunidades de emprego.

Não obstante, somente nos anos 1990 o tema da diversidade se tornou pauta nas organizações brasileiras, influenciadas por práticas estrangeiras. Surgiu, assim, a compreensão e divulgação de que as políticas de gestão da diversidade cultural nas empresas tendem a atrair e desenvolver novas competências e adicionar valor ao negócio (Fleury, 2000). Na prática, essa visão ainda é incipiente e cercada por polêmicas. Contudo, a fomentação dessa ideia contribuiu com o debate do tema.

Assim, além de poderem atuar com a promoção da diversidade no ambiente de trabalho, as(os) psicólogas(os) que atuam nas organizações, inserção mais tradicional da psicologia em interface com o mundo do trabalho, não devem compactuar com a discriminação nos processos seletivos. Essas(es) profissionais precisam estar atentas(os) para detectar práticas discriminatórias no cotidiano das organizações e contribuir com o combate a elas, favorecendo o desenvolvimento de consciência e responsabilidade social no que se refere à inclusão da diversidade de expressão de gênero nas empresas, incentivando a acolhida e permanência das pessoas trans e contribuindo para tornar menos penosa a sua inserção profissional.

Considerando as peculiaridades do contexto social brasileiro que dificultam o acesso e permanência das pessoas trans ao mercado de trabalho formal, os saberes e fazeres da Psicologia precisam encontrar formas para intervir também junto às pessoas trans que estão desempregadas e nos diversos trabalhos informais. Assim, cabe à Psicologia, em todas as áreas de atuação, compreender a realidade social e de trabalho e se posicionar contra os sofrimentos provocados pelas rígidas normas de gênero e sexualidade presentes em nossa sociedade, denunciando, assim como afirmam Pacheco et al. (2017, p. 215), "a transfobia como elemento central no cerceamento dos direitos das pessoas transexuais".

Portanto, compete à Psicologia, enquanto ciência e profissão embasada na promoção dos direitos humanos, assumir, nos diversos espaços, incluindo o acadêmico e de geração de conhecimentos, o compromisso de abordar de forma crítica a discussão sobre a inclusão social e no trabalho das pessoas transgêneras. Ou seja, precisamos refletir e agir, produzindo e propagando estudos e práticas que busquem compreender as vivências subjetivas nos diferentes contextos sociais, ressaltando a liberdade e a autonomia dos sujeitos, denunciando práticas que geram sofrimentos, compensando a escassez históricas de publicações e intervenções com tais enfoques na Psicologia (Pacheco et al., 2017).

 

Compreensão crítica de gênero e trabalho na formação em Psicologia

Aproximando-nos do final deste texto, cremos ser oportuno discutir também a necessidade de se abordar de forma crítica a temática "gênero" e "trabalho" desde a formação inicial da(o) profissional de Psicologia. Na modernidade, de acordo com Borges, Canuto, Oliveira e Vaz (2013), a Psicologia e outras ciências humanas se tornaram importantes disseminadoras da discussão sobre gênero e sexualidade. Contudo, grande parte dos estudos apresentam conclusões que reforçam a compreensão normativa e disciplinar dos corpos. Da mesma forma, Bernardo et al. (2017) sinalizam que as visões adaptacionistas e naturalizantes do tema "trabalho" permanecem hegemônicas nos cursos de Psicologia.

Além disso, estudos também apontam que nas graduações em Psicologia não há discussões consistentes e críticas sobre as normas de gênero e, de modo geral, nossas universidades continuam formando profissionais com visão pragmática, rígida e pouco preparados para lidar com o assunto (Borges et al., 2013; Soares, Massaro & Campanini, 2010). Não é incomum, nas universidades/faculdades, a ausência de disciplinas obrigatórias que abordam as questões de gênero e sexualidade – quando existem, geralmente a abordagem ocorre em matérias optativas ou que apenas tangenciam o assunto, tal como Psicologia Social ou Políticas Públicas. Além de carecer de diálogo interdisciplinar e crítico, há poucos profissionais atuando nos estudos de gênero na Psicologia (Borges et al., 2013; Soares et al., 2010). Ademais, como já apresentado acima, Pacheco et al. (2017), ao estudarem o estado da arte da produção da Psicologia brasileira sobre transexualidades, constatou que a maioria dos trabalhos adotam olhar patologizante e binário.

Em relação à área do trabalho, é necessário incentivar que a(o) estudante de Psicologia desenvolva um olhar amplo e crítico das complexas e heterogêneas relações laborais existentes na atualidade. Para isso, é preciso fornecer subsídios para que compreenda as contradições presentes no mundo do trabalho e esteja apta(o) a realizar intervenções que vão além do espaço das organizações formais, alcançando a população desempregada e os diversos segmentos do mercado informal (Bernardo et al., 2017). Nesse sentido, Souza (2012) destaca a importância de intervir junto à população trans que se encontra apartada do mercado de trabalho ou inserida em setores marcados por precarização e negligências.

De acordo com Borges et al. (2013, p. 731), as universidades constituem "locais de (re)produção do saber". Compreende-se, assim, que corroboram não apenas para a formação profissional, como também para a manutenção ou não de discursos sociais. Desse modo, as compreensões naturalizantes e individualizantes não perpassam apenas a sociedade leiga, mas também o meio acadêmico (Soares et al., 2010), o que afeta a formação, o arsenal explicativo e a prática profissional de psicólogas(os). Por conseguinte, isso acaba por contribuir para a reiteração da cisheteronormatividade e da naturalização das situações precárias de trabalho.

Portanto, é de extrema urgência às universidades/faculdades repensarem seus discursos, pesquisas, ensinos e práticas, o que Borges et al. (2013) apontam como bastante desafiante, mas também profícuo à Psicologia. Nesse mesmo sentido, Parker (2014) afirma que os inúmeros embates sociais apresentados à Psicologia na atualidade devem ser encarados como possibilidades de ação que favoreçam a transcendência dos pensamentos cristalizados, por meio de práticas, experiências e técnicas que contribuam para a justiça e a emancipação do ser humano.

Assim, é preciso preparar Psicólogas(os) que compreendam as consequências dos preconceitos e da exclusão na subjetividade dos indivíduos, que tenham oportunidade de realizar estudos críticos em relação aos temas gênero e trabalho e de desenvolver práticas de estágio supervisionado comprometidas com as populações que são, constantemente, sujeitas a preconceitos em espaços que abranjam o trabalho informal e o desemprego.

 

Considerações finais: possibilidades e desafios

Visto que o trabalho é um elemento essencial nos processos de subjetivação e inserção social na contemporaneidade, em uma sociedade marcada por rígidas regras normativas, sexistas e excludentes, constata-se que as pessoas transgêneras vivenciam grandes desafios para se inserirem profissionalmente. Nesse cenário, a Psicologia, enquanto ciência e profissão, também lida com desafios que impõem a necessidade de se posicionar de forma ética e comprometida com os interesses dessas pessoas, buscando favorecer a inserção social e a consolidação de direitos.

Diante da escassez de produções científicas que abordem a vivência cotidiana das pessoas trans, ao considerar a dimensão do trabalho, buscamos, com este estudo, oferecer contribuições, ainda que singelas, para que a realidade desses indivíduos seja mais conhecida e respeitada socialmente, bem como para a construção de um posicionamento mais crítico e atuante da Psicologia em relação a essa temática.

Conforme apresentado neste artigo, tais dificuldades extrapolam o âmbito do trabalho, perpassando também a família, a escola e até mesmo a própria ciência, as quais, muitas vezes, reiteram a cisheteronormatividade e dificultam a aproximação das pessoas trans ao mundo do trabalho. É inegável que se trata de uma problemática complexa e que demanda diversos níveis de reflexão e atuação para reais mudanças. Assim, destaca-se que o posicionamento ético-político das(os) psicólogas(os), independentemente de área de atuação ou abordagem teórico-metodológica, precisa estar fundamentado nos princípios do Código de Ética da profissão. Nesse sentido, é essencial que a atuação das(os) profissionais de Psicologia vise facilitar a inclusão e permanência das pessoas transgêneras nos diversos contextos em que são estigmatizadas, excluídas e marginalizadas, inclusive no trabalho.

Salientamos ainda, conforme apontado por Parker (2014), que o discurso de "saber neutro" é falso e perigoso, cabendo a(o) psicóloga(o) atuar de modo ético e político, em seus diferentes campos, para a promoção de uma ciência e de uma profissão que corroboram com a resistência e transformação do cotidiano das pessoas transgêneras. Portanto, acreditamos que a Psicologia possa desempenhar, com ainda mais potencialidade, o seu papel de ser promotora da liberdade, da dignidade e da inclusão de todos os seres humanos, auxiliando, efetivamente, no enfrentamento dos desafios vivenciados pelas pessoas trans – e esse posicionamento precisa ser estimulado desde a formação de novas(os) profissionais.

Todavia, vale ressaltar que tais transformações não cabem apenas à Psicologia, devendo envolver também instituições governamentais, empresas e diferentes atores sociais. Apresenta-se, assim, como imprescindível o desenvolvimento de ações junto à sociedade, a coletivos e movimentos sociais para o fortalecimento da resistência à transfobia, assim como para a sua superação.

Por fim, revela-se indispensável a realização de mais produções e estudos científicos, tal como nos propomos neste ensaio, que elucidem as vivências cotidianas e os direitos das pessoas transgêneras, tendo em vista a denúncia e erradicação de práticas que geram sofrimentos para tal população. Eis aí uma das nossas formas de enfrentamento da transfobia na vida cotidiana. Que essa ação provoque e motive outras atuações, as quais facilitem a efetivação do direito de todas as pessoas transgêneras de estarem inseridas na atividade do trabalho, sobretudo com dignidade.

 

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Endereço para correspondência:
heloisa_apsouza@yahoo.com.br
gustavo.renan.almeida@gmail.com
romulo.lopes@outlook.com
chfsilva10@gmail.com

Recebido em: 21/01/2020
Revisado em: 01/09/2020
Aprovado em: 29/09/2020

 

 

1 https://orcid.org/0000-0002-0297-0858
2 https://orcid.org/0000-0002-1012-1717
3 https://orcid.org/0000-0002-2164-8119
4 https://orcid.org/0000-0001-8025-8930
5 Acrônimo utilizado para descrever pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, mas não nos esquecendo também de outras possibilidades nas discussões de diversidade sexual e de gênero, tais como assexuais, intersexuais, queer, dentre outros. Toda a população LGBT sofre com preconceitos, contudo, devido à heterogeneidade, focaremos na realidade das pessoas trans.
6 Ressalta-se que a cisheteronormatividade pressupõe corpos "machos" e "fêmeas" antagônicos, não considerando possibilidades que transcendam esse binarismo, como no caso da intersexualidade.

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