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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.2 Fortaleza June 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O sofrimento psíquico grave e a clínica com crianças

 

 

Lívia Milhomem JanuárioI; Maria Izabel TafuriII

IMestra e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília - UnB, pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise, do Instituto de Psicologia da UnB. End.: SQN 312, Bloco F, Apto. 104, Asa Norte, Brasília-DF. CEP: 70765.060. E-mail: liviamilhomem@hotmail.com
IIDoutora em Psicologia Clínica, professora Adjunta de Psicologia Clínica na Universidade de Brasília - UnB, coordenadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da UnB. End.: SHIN QL 15, CONJ. 9 CASA 18, Lago Norte, Brasília-DF. CEP: 71.535.295. E-mail: mitafuri@unb.br

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como foco o sofrimento psíquico grave na clínica com crianças utilizando a psicanálise como referencial teórico. Inicialmente, justifica-se a utilização do termo "sofrimento psíquico grave", expondo-se algumas dificuldades e problemas das classificações psiquiátricas, realizando-se, então, uma crítica a abordagens reducionistas e organicistas que acabam fazendo uma predição negativa do futuro da criança e dos pais, correndo o risco de paralisar a criança em rótulos. Assim, em vez da avaliação diagnóstica abrir o caminho para um processo terapêutico, ela acaba fazendo fechamentos e conclusões. Na segunda parte desse artigo, é explicitado o paradigma trazido por Melanie Klein sobre a aplicabilidade e a eficácia da utilização do método psicanalítico com crianças em sofrimento psíquico grave e o paradoxo de Kanner referente ao uso inadequado da noção de autismo. Por fim, são citadas algumas contribuições da psicanálise ao estudo do sofrimento psíquico grave onde adota-se a postura clínica de escutar o sujeito para além da patologia e do sintoma, pensando a criança como um ser com singularidades na qual sua forma de ser não se vincula somente à psicopatologia, mas sobretudo à constituição psíquica. Com essa postura, o analista abre espaço para que a experiência clínica seja fundada no acolhimento, na espontaneidade e na criatividade.

Palavras-chave: sofrimento psíquico, psicanálise, crianças, constituição psíquica, psicopatologia.


ABSTRACT

This article focuses on the serious psychic suffering in the clinic with children by using psychoanalysis as a theoretical reference point. Initially, the use of the term serious psychic suffering is justified, some difficulties and problems of the psychiatric classification are exposed, than a critic of reductionist and organicist approaches that predict negatively the future of the child - exposing him/her to a possibility of being frozen in labels - and the parents is carried out. Thus, instead of opening the way for the therapeutic process, the diagnostic evaluation ends up closing and concluding. In the second part of this article, Melanie Klein's paradigm about the applicability and efficiency of the psychoanalytical method with children in serious psychic suffering and Kanner's paradox regarding the inadequate using of the autism term are set out. Finally, some contributions to psychoanalysis are pointed out and also the adoption of a clinical posture based on listening the individual beyond the pathology and the symptoms, thinking the child as a being with his/her own particularities in which his/her way of being isn't bond only to the psychopathology, but above all to the psychic constitution. Along that attitude, the analyst opens the clinical experience to be founded on taking in, spontaneity and creativity.

Keywords: psychic suffering, psychoanalysis, children, psychic constitution, psychopathology.


 

 

O Sofrimento Psíquico Grave

"A prática psicoterápica pode evitar regras gerais, embora tenhamos necessidade delas e saibamos também que cada paciente está sempre num desvio em relação a elas". (Fédida, 1988, p.31)

Ao analisar o trabalho clássico de Foucault (1972) intitulado História da Loucura é possível observar o germe da noção de classificação das doenças mentais, aquilo que vai permanecer para além do desaparecimento da lepra: o sentido da exclusão e o da cura. A partir do século XV, os leprosários ficaram vazios com a regressão da doença na França. Conhecidos como "cidades malditas", esses espaços passaram a ser preenchidos pelos incuráveis, criminosos, pobres e loucos. O autor revela que, na época, estavam presentes o desejo de ajudar, a necessidade de reprimir, o dever de caridade e o da punição. Dessa forma, a loucura substitui a lepra como principal objeto de exclusão. Nas palavras de Foucault:

Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. (p. 8).

Foucault nos mostra a importância da existência dessa figura no grupo social, insistente e temida, que "não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado". Os leprosos são retirados do mundo, entretanto, continuam existindo como uma manifestação de Deus: a doença é uma punição pelos males cometidos e, ao mesmo tempo, um testemunho da existência de Deus e o círculo sagrado se fecha com a exclusão. Esse gesto abre ao leproso as portas da salvação: "o pecador que abandona o leproso à sua porta está, com esse gesto, abrindo-lhe as portas da salvação" (p.6). Para Foucault, as ações, tanto as de curar e quanto as de excluir, juntaram-se em uma só, encerraram-se no espaço sagrado do milagre. A loucura é a verdadeira herança da lepra, conclui o autor. Entretanto, antes de suscitar reações de divisão, de exclusão e de purificação, as obscuras práticas médicas ficam, por quase dois séculos, em estado de latência.

Na paisagem imaginária da Renascença, Foucault nos mostra o lugar privilegiado ocupado pela "Nau dos Loucos", um estranho barco que navega errante pelas águas da Renânia. Essas naus de loucos "assombraram a imaginação de toda a primeira parte da Renascença" e se tornaram "navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão" (p.10). E Foucault formula uma questão essencial: por que teria surgido essa barca com uma tripulação insana que invade as paisagens mais familiares? Segundo Foucault, "a loucura e o louco tornam-se personagens maiores em sua ambigüidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens" (p.14)

No início do século XX, surgem os Manuais de Classificação das Doenças Mentais, a Classificação Internacional de Doenças (CID) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Surge uma nova maneira de organização das doenças a partir de uma semiologia médica de observação e de sistematização de signos. Um enorme esforço descritivo que tem uma lógica interna. "Os dicionários, repertórios e compêndios que trazem as síndromes e seus componentes são uma evidência do progresso cientifico em medicina. Contudo, este esforço tem um motor lógico: visa um retorno à realidade objetiva concreta" (Martins, 2005, p. 25). A experiência com o insensato não se oferece ao investigador diretamente. A noção de diagnóstico na prática clínica muitas vezes deixa de lado o encontro necessário com o fenômeno e com a linguagem.

Podemos observar que o diagnóstico na clínica atual é algo impregnado de nominalismo. Martins (2005) nos mostra que o grande risco de o nominalismo ser pervertido é a dedicação obsessiva pelas próprias palavras, tornando-as virtualmente vazias, sem remeter para o trabalho do médico e a efetividade da clínica. Esse autor afirma que "poderíamos chamar essa perversão de Logolalia (do grego, logos mais logos): a palavra da palavra, a descrição da descrição, o discurso de discurso, etc." (p. 25). E, mais uma vez, recorremos ao pensamento de Foucault sobre a semiologia médica que, desde o seu nascimento, com reivindicação de cientificidade, foi e é, essencialmente, nominalista.

Na tentativa de não nos deixarmos impregnar por esse nominalismo estrito, compartilhamos da mesma inquietude apresentada por Ileno Costa (2003b):

relembrando a alegoria da caverna de Platão, metaforicamente, podemos dizer que a 'nossa caverna', no caso da 'esquizofrenia/loucura', é onde estamos atrelados (presos por fortes grilhões), a saber, alguns conceitos e concepções que não nos permite ver nada mais além de sombras, falsas realidades, que nos dão um parco e falso senso de realidade sobre o assunto. (p. 96).

Costa (2003a) nos apresenta uma saída para não perpetuarmos a perversão de uma logolagia ao nos referirmos ao sofrimento do sujeito dito esquizofrênico, autista e/ou psicótico. Optamos em utilizar a expressão "sofrimento psíquico grave", cunhada por Costa em detrimento de palavras vazias, como as de psicose, de esquizofrenia e de autismo. Consideramos que esses termos já esgotaram suas potencialidades explicativas e podem gerar imprecisões e confusões. A tese de Costa é a de que o sofrimento daquele considerado louco se refere, na verdade, ao sofrimento "do qual se é impossível falar, definir, delimitar com conceitos simples", e que o sofrimento psíquico grave se refere ao que "não é da 'ordem do comum', do 'simples', do 'normal', beirando a ordem do 'inadministrável' "(p.30-31).

A utilização dessa expressão é uma tentativa de ampliar as reflexões sobre o patológico, em especial sobre o autismo, para além da noção de doença mental. Objetivamos introduzir questões essenciais para se compreender o sujeito, levando-se em conta toda sua complexidade. Não se trata de responder, mas de questionar o rótulo de doente mental. Por meio desse questionamento, esperamos compreender o sofrimento psíquico grave de um sujeito em desenvolvimento para além da descrição de uma síndrome. Optamos ainda por utilizar essa expressão com o intuito de evitar o determinismo que vem das classificações das estruturas de base (neurose, psicose e perversão) e das classificações psiquiátricas e, ao mesmo tempo, privilegiar a questão do sofrimento do sujeito.

Tentamos evitar, dessa forma, o reducionismo da patologia, na qual a doença passa a ser o si mesmo. Procuramos tomar cuidado com as falas mecanicistas e psicopatológicas que reduzem o paciente ao seu adoecimento. Lembramos da afirmação de Fédida, utilizada no início do texto: "A prática psicoterápica pode evitar regras gerais, embora tenhamos necessidade delas e saibamos também que cada paciente está sempre num desvio em relação a elas". (Fédida, 1988, p.31). Isso porque não se trata de rejeitar essas classificações ou as regras gerais, mas sim de deixá-las em suspenso, utilizando-as de uma forma mais esclarecida do que obscurecida.

Caminhando nesse sentido, voltamos ao pensamento de Martins (2005) que, ao repensar a semiologia clínica diante do sujeito, coloca em questão toda uma tradição de entendimento das "doenças mentais", a partir de uma semiologia somente indicial. O autor afirma que todas as síndromes "envolvem complexidade semiológica e exigem o conhecimento e o aprofundamento do sentido, da história e da apreciação da subjetividade. O estudo do exterior é fundamental, mas não é suficiente em clínica". (p. 209). Com essa forma de pensamento, o autor chama atenção para os aspectos do particular e da história de cada sujeito, aspectos esses que são irredutíveis e fundamentais para a compreensão do sofrimento psíquico do sujeito, ressaltando ainda a importância do conhecimento adquirido a partir da própria experiência clínica com o sujeito.

Martins aponta também para a urgência de se ultrapassar a forma de pensar os fenômenos tipo sintoma dentro de uma perspectiva puramente causal e proporcionar o entendimento dos fenômenos como portadores de sentido e de história. Com isso, buscamos entender um pouco mais sobre a constituição e a estruturação da subjetividade e passamos a compreender o significado da experiência psicopatológica, considerando o sofrimento psíquico grave também como um esforço do sujeito em direção à saúde.

A utilização do termo "sofrimento psíquico grave" nos coloca mais próximos daquilo que é o pathos, de acordo com Martins, "uma disposição originária fundamental do sujeito que está na base do humano". (Martins, 2005, p.36). Pathos, esse que nos remete a um questionamento do sofrimento humano a partir da constituição psíquica do sujeito, para além das descrições de quadros psicopatológicos.

 

Algumas Dificuldades e Problemas das Classificações Psiquiátricas

Desde o início do estudo dos conceitos de autismo, de psicose e de esquizofrenia é possível notar uma diversidade de teorias tanto biológicas quanto psicológicas, psicanalíticas, entre outras. Lebovici e Duché (1991) apontam para o esvaziamento desses conceitos na medida em que se encontram impregnados pelos grilhões teóricos de cada corrente de pensamento. Winnicott, por exemplo, ao enfatizar a importância essencial do diagnóstico como guia da ação terapêutica, afirma que "se fôssemos melhores em diagnósticos, pouparíamos a nós mesmos e a nossos pacientes, um bocado de tempo e desespero". (Winnicott, 1968/2005b, p. 182). Esse autor alerta ainda para o cuidado que a tarefa de diagnóstico exige, uma vez que o diagnóstico do paciente não apenas fica cada vez mais claro à medida que a análise prossegue como também se altera. Assim, "uma histérica pode se revelar uma esquizofrênica subjacente, uma pessoa esquizóide pode vir a ser um membro sadio de um grupo familiar doente, um obsessivo pode se revelar um depressivo", o que aponta para a necessidade de uma elaboração contínua de diagnóstico durante o processo de análise e para mudanças em relação às demandas do sofrimento do sujeito e, conseqüentemente, no tipo de clínica realizada. (Winnicott, 1965/1983a, p. 121).

Por outro lado, muitos casos também não satisfazem os critérios de enquadramento diagnóstico exigidos. Em alguns casos, até a delimitação das fronteiras entre normal e patológico e entre as próprias patologias é complicada. Ao discutir essa problemática, Freud (1924/1996a), por exemplo, em Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, chama atenção para complexidade da definição de um comportamento dito normal. Para o pai da psicanálise, um comportamento sábio é aquele que combina reações neuróticas e psicóticas, isto é, repudia a realidade tão pouco quanto em uma neurose, mas, por outro lado, se esforça para alterar essa realidade como em uma psicose.

Essa dificuldade de delimitação e enquadramento também está ligada à heterogeneidade das formas clínicas desses conceitos. Diante dessa heterogeneidade, Costa (2003) afirma que não existe "a psicose", mas "as psicoses", e Rocha (1997) prefere a utilização do termo "autismos" em vez de "autismo", o que, segundo Joel Birman seria "uma maneira delicada e pontual de poder se referir à singularidade inquietante de cada um dos autistas" e assim também de cada um dos "psicóticos". (Birman, 1997, p. 11).

Para exemplificar essa dificuldade de classificação e de enquadramento dos diagnósticos, utilizamos aqui o caso do pequeno Dick, de Melanie Klein (1930), que é um caso clássico na psicanálise com crianças em sofrimento psíquico grave.

O pequeno Dick fora diagnosticado como um caso de demência precoce, aos três anos e meio de idade, pelo Dr. Forsyth que o encaminhara à psicanalista para tratamento. Para Klein, o diagnóstico fora realizado segundo o modelo classificatório da psiquiatria, ou seja, levaram-se em conta apenas os sintomas da criança. Nas palavras da autora:

ele se caracterizava por ausência quase total de afeto e ansiedade, considerável afastamento da realidade, inacessibilidade, falta de ligações emotivas, comportamento negativo em alternância com sinais de obediência automática, indiferença à dor, repetição - sintomas típicos da demência precoce. Além disso, o diagnóstico também é confirmado pelo fato de se poder excluir a presença de qualquer doença orgânica, primeiro porque o exame do Dr. Forsyth não revelou nenhuma e, segundo, porque o caso pôde ser influenciado pelo tratamento psicológico. (Klein, 1930/1996, p. 261).

Klein ressalta um ponto central para a compreensão do sofrimento psíquico do pequeno Dick em contraponto à descrição sintomatológica da doença mental. Para a psicanalista, Dick não poderia ser enquadrado completamente na classificação psiquiátrica de esquizofrenia descrita por Bleuler (1911) em oposição à utilização do conceito de demência precoce dominante à época. Ela concluiu: "contra o diagnóstico de demência precoce havia o fato de a principal característica do caso de Dick ser a inibição do desenvolvimento e não a regressão". (Klein, 1930/1996, p. 262). E ainda acentuou que no quadro clínico da esquizofrenia, observa-se a presença do isolamento da realidade acompanhado de pensamentos fantasiosos. Dick, em contrapartida, apresentava um tipo de isolamento diferenciado daquele conhecido nas esquizofrenias. Aquela pequena criança não apresentava pensamentos fantasiosos, ou seja, o estado de isolamento não estava acompanhado de uma vida fantasiosa própria. Assim, a grande dama da psicanálise chega a uma conclusão importante, o caso do pequeno Dick poderia ser classificado como a primeira manifestação da esquizofrenia. Para tanto, seria necessário ampliar a noção bleuleriana das esquizofrenias, considerando-se o estado de isolamento da pequena criança e a incapacidade de simbolizar a realidade.

Consideramos a conclusão de Melanie Klein sobre a ampliação da compreensão das esquizofrenias como um importante marco na história da psicanálise. Mais do que uma reflexão sobre a clínica, a psicanalista demonstra o lugar que a psicanálise pode ocupar no âmbito do conhecimento sobre as doenças mentais e, sobretudo, a respeito da constituição do psíquico. Ao acentuar a inibição egóica do pequeno Dick face o isolamento patológico descrito nos quadros de demência precoce e de esquizofrenia, a psicanalista enfatiza a capacidade da criança de se constituir como sujeito falante. O quadro de isolamento e a impossibilidade de simbolizar a realidade foram compreendidos por ela para além da visão sintomatológica de uma doença mental, seja ela denominada de esquizofrenia, de demência precoce ou de autismo.

Dessa forma, Melanie Klein diferencia o isolamento do Pequeno Dick do das crianças ditas esquizofrênicas, apontando para uma inibição egóica precoce o suficiente para impedir a função psíquica de fantasiar a realidade, ou seja, a impossibilidade de Dick em simbolizar e fantasiar a realidade foi vista por Klein como uma primeira manifestação da esquizofrenia. Essa forma de compreender o sofrimento psíquico grave de uma jovem criança serviu de alavanca para o avanço da clínica psicanalítica com crianças isoladas, posteriormente denominadas de autistas.

Na década de 1940, o autismo, termo empregado originalmente por Bleuler em 1911, para descrever os pensamentos fantasiosos dos pacientes diagnosticados como "esquizofrênicos" deixa de ser um sintoma secundário das esquizofrenias e passa a ser sintoma primordial de uma nova síndrome, denominada por Kanner (1943) de "autismo infantil precoce". Percebemos então que o termo autismo, antes utilizado para designar os pensamentos fantasiosos dos "esquizofrênicos", passa a ser utilizado na classificação de crianças que não apresentam pensamentos fantasiosos, o que leva Tafuri a enunciar um paradoxo: "como denominar de autista uma criança que não apresenta pensamentos fantasiosos?". (Tafuri, 2003, p. 13).

Além disso, Tafuri mostra que Bleuler - ao criar o termo autismo pela subtração do eros da expressão auto(erot)ismo com o intuito de descrever o mundo interno do esquizofrênico - restringe o uso da palavra autismo apenas no campo da patologia. Essa mudança teve conseqüências e influências negativas no desenvolvimento dos pensamentos posteriores a respeito do autismo e é uma visão contrária aos ensinamentos de Melanie Klein sobre o caso do pequeno Dick. A psicanalista, além de ter demonstrado que as interpretações psicanalíticas permitiam a saída do isolamento social em que aquela pequena criança se encontrava, salientou também a impossibilidade de se empregar o termo autismo no caso de Dick.

Diferentemente de Klein, o termo autismo passou a ser empregado por Kanner para descrever um quadro de isolamento em crianças, semelhante ao apresentado por Dick. Curiosamente, Kanner não fez qualquer menção ao trabalho de Melanie Klein e passou a usar o termo autismo como um sintoma patognomônico o que segundo Tafuri (2003), levou o autismo "a ser signo de um déficit cerebral inato, biologicamente determinado, que incapacitaria o indivíduo a estabelecer relações normais com as pessoas e situações do mundo externo, desde o nascimento". (Tafuri, 2003, p.12).

Vemos também que Klein, com o caso Dick, caracteriza um estado psicopatológico precoce em que a criança apresenta uma inibição egóica que a impossibilita simbolizar a realidade e se refugiar em um mundo fantasioso autístico, ou seja, Klein descreve um estado de isolamento não acompanhado de pensamentos autísticos, que seria uma primeira manifestação das esquizofrênias. Por outro lado, Kanner descreve uma síndrome, denominada de autismo infantil precoce, a ser aplicada para crianças semelhantes ao pequeno Dick, crianças isoladas que não apresentam pensamentos fantasiosos.

Acreditamos que se trata de mau uso do termo autismo, evidenciado pelo próprio Kanner em 1956, contudo, segundo ele, um reconhecimento tardio para se fazer uma mudança terminológica da síndrome que já estava sendo amplamente utilizada no meio científico. E o mais grave, o termo autismo passou a ser considerado sinal de déficit cerebral. As crianças autistas passaram a ser vistas como deficitárias, e a síndrome, considerada crônica, incurável. Se pelo viés psicanalítico abriu-se uma rica vertente de possibilidade de tratamento de crianças isoladas, pelo meio psiquiátrico o tratamento ficou restrito à área médica e pedagógica, com um impedimento de base, o da deficiência e o da cronicidade.

Caminhando nesse sentido, Fédida (1991) chama atenção para a concepção biologizante da síndrome e para as discussões acerca da etiologia do autismo. Segundo o autor, são explicações que apresentam limites, ficando presas em etiologias genéticas ou neurobiológicas e não dialogam com intervenções de outras naturezas, como a psicológica ou a psicanalítica. Por outro lado, no contexto psicanalítico, o autismo passou a ser visto como paradigma do psíquico (Berlinck, 1999; Fédida, 1991; Tafuri, 2003).

 

Algumas Contribuições da Psicanálise ao Estudo do Sofrimento Psíquico Grave

Winnicott (1965/1983a), ao escrever sobre a contribuição da psicanálise à classificação psiquiátrica, mostra três aspectos importantes de Freud, no que diz respeito ao sofrimento psíquico:

1. a relação do sujeito com a realidade;

2. a formação de sintomas

3. a etiologia que exigia do clínico uma atenção com relação à história do paciente.

Além desses três aspectos, acreditamos que a grande contribuição de Freud e de outros psicanalistas como Melanie Klein e Winnicott para a compreensão do sofrimento psíquico do sujeito é mostrar que formas de funcionamento psíquico, antes restritos ao campo da patologia, fazem parte do desenvolvimento e do processo de estruturação e de constituição psíquica do sujeito.

Melanie Klein, ao estudar os estágios mais iniciais do desenvolvimento, mostra uma nova forma de se compreender o patológico. Conforme visto anteriormente, Klein aponta para a necessidade de pensar o patológico como um fenômeno mais generalizado e comum do que até então se supunha. Essa psicanalista chega "à conclusão de que é preciso expandir o conceito de esquizofrenia em particular e de psicose em geral, no que diz respeito à sua ocorrência na infância". (Klein, 1930/1996, p. 268).

Outra contribuição de Klein é o desenvolvimento dos conceitos de posições esquizo-paranóide e depressiva. A teoria do desenvolvimento mental desenvolvida por ela é pensada em termos desses dois modos básicos de funcionamento psíquico que se organizam e se alternam ao longo da vida.

A posição esquizo-paranóide é a que interessa aqui ressaltar, visto que ela refere-se a um período no desenvolvimento de uma criança, caracterizado por mecanismos e ansiedades arcaicas de natureza paranóide e esquizóide. Nessa posição, a ansiedade predominante é a persecutória (paranóide) e o estado predominante do ego é fragmentado e cindido (esquizo). Para Klein, as "ansiedades, mecanismos e defesas do ego, de tipo psicótico, da infância, têm influência profunda sobre todos os aspectos do desenvolvimento, inclusive sobre o desenvolvimento do ego, do superego e das relações de objeto". (Klein, 1946/1991, p. 21).

Com esse conceito, a autora evidencia o dinamismo existente no funcionamento psíquico, e fornece contribuições para pensar aspectos anteriormente vistos no campo da patologia como fazendo parte do desenvolvimento e do processo de estruturação e de constituição do sujeito, em outras palavras, mecanismos, defesas e relações de objeto que constituem a base de um sofrimento psíquico grave fazem parte, ao mesmo tempo, do desenvolvimento psíquico do sujeito.

Winnicott, tendo como base idéias como as de Klein, afirma que essas idéias não envolvem apenas "a idéia de uma fase de loucura no desenvolvimento infantil, mas apesar disso, deve-se deixar aberta a porta para a formulação de uma teoria em que uma certa experiência de loucura, seja o que for que isso possa significar, é universal". (Winnicott, 1965/2005a, p. 96). Sendo universais, essas experiências fazem parte do desenvolvimento do sujeito.

Winnicott, a partir de sua experiência clínica com bebês e pacientes em sofrimento psíquico grave, constata que, nos estágios iniciais do processo maturacional, verificam-se os mesmos fenômenos que aparecem nas várias formas de "esquizofrenias", podendo-se equiparar bebês e esses pacientes, no que se refere à falta de constituição de "si-mesmo", ao estado de não-integração e à ausência de contanto com a realidade externa. No entanto, nos bebês isto é devido a sua imaturidade e nos pacientes em sofrimento psíquico grave a uma falha ambiental precoce no seu desenvolvimento emocional. Entretanto pode-se observar "a gradação natural entre as fraquezas comuns da natureza humana e a doença psicótica. Essas doenças psicóticas representam não mais que um exagero aqui e ali, e não implicam numa diferença essencial entre a sanidade e a insanidade"(Winnicott, 1952/2000b, p. 311).

Winnicott, ao descrever sobre o que acredita ser a essência da loucura, afirma que "a loucura se relaciona com a vida comum. Na loucura encontramos, ao invés de repressão, os processos do estabelecimento da personalidade e da autodiferenciação ao contrário". (Winnicott, 1963/1983c, p. 198). O autor mostra que no sofrimento psíquico grave os processos maturacionais como integração, personalização e realização (relações objetais) são invertidos e, assim, tem-se desintegração, despersonalização, desrealização e perda de contato com a realidade. Características relativas ao sofrimento psíquico são vistas, por Winnicott, como inverso do desenvolvimento emocional primitivo.

Ao estudar os textos de Winnicott, percebe-se que a classificação winnicottiana dos chamados "distúrbios mentais" segue um critério maturacional e não sintomatológico, o que abre portas para se pensar o sofrimento psíquico grave de forma mais ampla, possibilitando novas reflexões, reflexões estas que levem em consideração o desenvolvimento psíquico, o desenvolvimento emocional e o ambiente do indivíduo.

Winnicott (1966/1997a), por exemplo, em Três Revisões de Livros sobre Autismo, ressalta a importância de primeiro se estar preocupado com o desenvolvimento emocional do indivíduo e com os desvios do normal nesse desenvolvimento, em seguida com os fatores quantitativos que necessitam um diagnóstico e, por último, com a anormalidade física que, segundo ele, em certos casos está por trás do transtorno do desenvolvimento emocional.

Winnicott mostra que o rótulo de autismo fornece uma falsa trilha na qual se pode colocar casos de autismo convenientemente em um grupo com uma fronteira artificialmente clara. Artificialmente, porque não existe uma fronteira definida, visto que "qualquer um dos muitos elementos descritivos pode ser examinado separadamente e pode ser encontrado em crianças que não são autistas, e mesmo em crianças que são chamadas de normais e sadias". (Winnicott, 1967/1997c, p. 194).

Winnicott chega a afirmar que o autismo não é uma doença e sim um problema de desenvolvimento emocional, e que, para termos de classificação seria melhor descrito como "esquizofrenia da infância inicial ou da infância posterior". Porém, o autor prossegue afirmando que "quando estamos examinando concretamente o problema, podemos atirar a classificação aos quatro ventos, e observar casos, e examinar detalhes sob o microscópico, por assim dizer". (Winnicott, 1966/1997b, p. 181).

Acreditamos que o grande diferencial de Winnicott, especificamente, é pensar o sofrimento psíquico sem obrigatoriamente pensar em déficit ou procurar transformar o sofrimento em uma entidade psicopatológica. Com essa forma de pensamento, passamos a valorizar o desenvolvimento emocional humano e o relacionamento do processo maturacional do indivíduo com a provisão ambiental que pode ou não facilitar esse processo.

Winnicott, ao relacionar etiologicamente o sofrimento psíquico à falha ambiental - falha em facilitar o processo de maturação - contribui para a compreensão teórica e o acolhimento clínico de pacientes em sofrimento psíquico grave. Ele estabelece um elo entre o sofrimento psíquico e os estágios do desenvolvimento emocional do indivíduo. Na sua concepção, saúde é maturidade emocional, maturidade de acordo com a idade. Para ele, "os distúrbios mentais não são doenças; são conciliações entre a imaturidade do indivíduo e reações sociais reais, tanto apoiadoras como retaliadoras". (Winnicott, 1963/1983c, p. 200). Nesse sentido, para o autor, o quadro clínico do sujeito em sofrimento varia de acordo com a atitude ambiental.

Em acordo com o pensamento de Klein, Winnicott também questiona a descrição bleuleriana das esquizofrenias, já que "a esquizofrenia pode ser o estado normal de um indivíduo em crescimento ou que cresceu em um meio ambiente dominado por pessoas com traços esquizofrênicos". (Winnicott, 1965/2005a, p. 97). Assim, o sofrimento psíquico passa a ser entendido também como uma forma de se desenvolver e de se adaptar ao próprio ambiente. O autor chega a afirmar que "às vezes pode ser mais normal para uma criança estar doente do que estar bem". (Winnicott, 1931/2000a, p.58). Com isso, ele chama atenção inclusive para a normalidade que tantos sintomas têm na infância, apontando para o fato de que alguns sintomas, em algumas crianças que vivem em determinado contexto, estão muito mais dentro do campo do comportamento dito normal do que do campo patológico.

Winnicott revela a importância de levar em consideração tanto o processo de desenvolvimento do sujeito quanto o ambiente no qual ele está inserido. Para o autor, "normalidade significa tanto saúde do indivíduo como da sociedade, e a maturidade completa do indivíduo não é possível no ambiente social imaturo ou doente". (Winnicott, 1963/1983b, p. 80). Para Winnicott, é fundamental, na análise do sofrimento humano, levar em consideração vários fatores, entre eles a hereditariedade, o ambiente e o sujeito. "Em um extremo há a hereditariedade; no outro extremo há o ambiente que apóia ou falha e traumatiza; e no meio está o indivíduo vivendo, se defendendo e crescendo". (Winnicott, 1965/1983a, p. 125). O autor também chama atenção para a capacidade de o indivíduo de participar na criação, na modificação ou na manutenção do ambiente. Ele ressalta a capacidade do próprio indivíduo de se curar, de se desenvolver e de amadurecer apesar de uma falha ambiental.

Além das idéias de Klein e de Winnicott, outros autores como Margaret Mahler e Frances Tustin, ao descreverem etapas do desenvolvimento infantil, chegam, em um momento de suas obras, a colocar o autismo no campo da "normalidade". Nessa fase de seus escritos, o autismo poderia ser visto como um estágio normal e provisório do desenvolvimento. Mahler (1979/1983), ao distinguir duas fases no estágio do narcisismo primário descrito por Freud em 1914, denomina o primeiro momento como sendo de um narcisismo primário absoluto de "autismo normal". Tustin (1972) descreve o estado de autismo primário em vez de utilizar o conceito de narcisismo primário de Freud. Nesse período, os processos mais arcaicos, como o estado de auto-sensualidade, próprio do estado de autismo normal, protegem o bebê de um encontro brutal com a realidade.

Na década de 1980, Thomas Ogden, influenciado pelas idéias de Klein, Winnicott, Bion e Tustin, afirma que existe uma organização psicológica mais primitiva do que a posição esquizo-paranóide descrita por Melanie Klein em 1946. O autor denomina essa posição de autista-contígua. Ela é uma forma pré-simbólica que está "associada ao modo mais primitivo de atribuir significado à experiência. É uma organização psicológica na qual a experiência do self está baseada na ordenação da experiência sensorial". (Ogden, 1996a, p. 135). A agonia predominante é a do colapso da sensação de demarcação sensorial, sobre a qual estão baseados os rudimentos da experiência de um self coeso. A experiência com objetos é sob a forma de "relação" com objetos autísticos sendo que, "o uso de formas e objetos autísticos não é de modo algum um fenômeno exclusivamente associado a uma doença psicológica grave. A relação com formas autísticas constitui uma parte do desenvolvimento normal do bebê, da criança e do adulto". (Ogden, 1996b, p. 170).

Para Ogden, existem três estados básicos de ser que constituem o contexto de toda experiência humana: o autista-contíguo, o esquizo-paranóide e o depressivo. "Cada modo gera um estado vivencial caracterizado por suas próprias formas distintas de angústia, tipos de defesa, graus de subjetividade, formas de relação de objeto, tipos de processos de internalização, etc". (Ogden, 1996a, p. 135). Nesse contexto, o termo autismo é utilizado pelo autor "para fazer referência a características específicas de um modo universal de gerar experiências e não a uma forma severa de psicopatologia infantil ou suas seqüelas". (Ogden, 1996b, p. 169). Características autísticas podem ser vistas também como algo que, segundo Fédida, "atravessa a nosografia e diz respeito sobretudo as patologia não-psicóticas nas quais se verifica o esquema que revela configurações autísticas." (Fédida, 1991, p. 168).

Concluímos então que, segundo as idéias de Klein, Winnicott, Mahler, Tustin, Ogden e Fédida, experiências autísticas, psicóticas ou esquizofrênicas fazem parte do desenvolvimento do sujeito e são também fenômenos universais no processo de constituição e de estruturação do ser humano. Nessa forma de pensamento, tentamos compreender os autismos, as esquizofrenias e as psicoses para além dos grilhões do nominalismo, das descrições sintomatológicas das doenças mentais.

 

O Sofrimento Psíquico Grave e a Clínica com Crianças

Em seu estudo sobre Psicanálise e psiquiatria com crianças, Cirino (2001) revela que no início do século XX não havia nada que pudesse ser chamado de psiquiatria infantil. Ele mostra que a clínica psiquiátrica com crianças, enquanto clínica específica com conceitos e métodos próprios, só se estabeleceu a partir da década de 30, o que leva o autor a chamar atenção para o fato de que a clínica psiquiátrica com crianças constituiu-se depois do advento da psicanálise, enquanto a clínica psiquiátrica do adulto é essencialmente pré-psicanalítica.

Ao analisar esse fato, Cirino ressalta que durante décadas pediatras e psiquiatras infantis utilizaram a teoria psicanalítica em sua formação e, em especial, os trabalhos de Anna Freud e Melanie Klein. Influenciados por esses trabalhos, alguns pediatras e psiquiatras infantis desenvolveram conceitos e hipóteses psicanalíticas principalmente no campo do autismo e das psicoses infantis, entre eles o autor cita Renné Spitz, Margareth Mahler, Donnald Winnicott, Serge Lebovici, Françoise Dolto e Maud Mannoni.

Bercherie (1983), ao realizar um estudo histórico da clínica infantil, destaca a existência de três grandes períodos na estruturação dessa clínica.

O primeiro período refere-se aos setenta e cinco anos iniciais do século XIX, no qual se discute o retardamento mental, tal como estabelecido por Esquirol, a partir da observação de adultos sob o nome de idiotia. Nesse período, não se acreditava na existência da "loucura" na criança, e as grandes discussões referiam-se ao grau de irreversibilidade do retardamento mental. De um lado, havia as opiniões dos médicos (Pinel e Esquirol) para os quais o déficit é global, definitivo e o prognóstico inteiramente negativo. De outro lado, havia as dos educadores (Séguin e Delasiauve) que consideravam o déficit parcial e o prognóstico positivo no caso de utilização de métodos educacionais especiais. Percebe-se então que, em sua origem, a psiquiatria infantil sofre influência de dois ramos: o da educação, no qual o objeto era as crianças consideradas "ineducáveis"; e o ramo saído da psiquiatria e da psicopatologia do adulto, no qual se procurava encontrar na criança os quadros nosográficos conhecidos na psiquiatria de adultos.

O segundo período começa na segunda metade do século XIX e vai até o primeiro terço do século XX, mas só se manifesta no fim da década de 1880, com a publicação da primeira geração dos tratados de psiquiatria infantil nas línguas francesa, alemã e inglesa. Esse período, intitulado por Bercherie de "A loucura (do adulto) na criança", se caracteriza pela constituição de uma clínica psiquiátrica da criança que é o decalque da clínica e da nosologia elaboradas no adulto. Os psiquiatras procuravam encontrar, na criança, as síndromes mentais descritas nos adultos, o que impediu a clínica com crianças a se constituir como campo autônomo de prática e de investigação.

O terceiro período começa na década de 1930 e se estende até hoje. Para Bercherie, o que caracteriza esse período é a influência dominante das idéias psicanalíticas na clínica infantil. A descoberta freudiana de que a neurose do adulto é resultado de um conflito psíquico infantil inverte a antiga perspectiva de aplicar o sofrimento do adulto às crianças, uma vez que se constata a contribuição da clínica com crianças para a compreensão da constituição e da estruturação do psiquismo humano.

Bercherie ressalta que a clínica com crianças é fundada sobre uma ampla base empírica, e que sua formação é permitida principalmente pela constituição de uma psicologia da criança e de seu desenvolvimento. Não somente a infância passa a ser vista como portadora de características próprias, como seu estudo também gera compreensões sobre o sofrimento psíquico do adulto. Com isso, a clínica com crianças surge não apenas sobre a influência de teorias psicanalíticas como também possui uma estreita relação com estudos sobre o desenvolvimento infantil e com sua própria prática clínica, o que pode ser observado nos trabalhos de Klein e de Winnicott, por exemplo.

No Brasil, Cirino (2001) mostra que o momento de formação da psiquiatria infantil está basicamente centrado nas décadas de 50-60, a partir da influência da psiquiatria francesa e da chamada psicodinâmica divulgadas por Stanislau Krynski, que é quem prefacia, em 1969, a tradução brasileira do livro de Melanie Klein, A psicanálise da criança.

Atualmente, Cirino ressalta que a relação dos psiquiatras infantis com a psicanálise mudou bastante, existindo uma disputa no campo da atenção à saúde mental da criança entre os mais diversos especialistas: neurologistas, pediatras, psicólogos, psicopedagogos, psicanalistas, fonoaudiólogos e psiquiatras infantis. Segundo o autor, nesse contexto, a psiquiatria infantil busca, cada vez mais, se estabelecer como especialidade médica independente, encontrando na concepção psiquiátrica americana a sua principal referência. Cirino mostra que, assim, difunde-se a defesa das neurociências e das pesquisas diagnósticas e terapêuticas, bem como os manuais classificatórios (DSM-IV e CID-10), a fim de respaldar a psiquiatria infantil como disciplina, o que, segundo o autor, leva a uma "clínica da medicação", na qual se concede espaço apenas para as teorias comportamentais e cognitivas, excluindo-se a psicanálise.

Outra particularidade da clínica com crianças é o fato de o clínico, além de precisar lidar com outros profissionais, lidar com as pressões e as ansiedades da escola e dos pais. Com relação a isso, Hachet (2006) alerta que o analista de crianças precisa ter cuidado para não ter seu papel pervertido, funcionando como "agente de normalização", desempenhando o papel de normalizar e educar as crianças de acordo com os padrões sociais e educativos, papel esse desempenhado, muitas vezes, à custa da subjetividade da criança, já que a psicanálise não é uma imposição ortopédica. Ao analisar a clínica com crianças, observamos que ela é marcada por uma diversidade de linhas teóricas, de objetos e de formas de atendimento. Estão envolvidos profissionais de abordagens diversas, que têm de lidar com premissas, terapêutica e objetivos muitas vezes divergentes.

 

Considerações Finais

Neste trabalho, optamos por utilizar o termo "sofrimento psíquico grave", cunhado por Costa (2003) para nos referirmos às crianças ditas autistas e/ou psicóticas. Fizemos uma crítica ao sistema classificatório das doenças mentais e apontamos para o grande risco de o nominalismo ser pervertido, em função da dedicação obsessiva pelas próprias palavras.

Mostramos que o termo autismo sofreu, ao longo dos anos, desde a descrição de Bleuler (1911), uma transformação conceitual que o tornou, aos nossos olhos, virtualmente vazio. Consideramos, a partir da crítica realizada por Martins (2005) sobre o sistema classificatório das doenças mentais, que, com o conceito de autismo, houve uma perversão de logolalia: a palavra da palavra, a descrição da descrição, o discurso do discurso, etc.

Seria ingênuo pensar a realidade do encontro com uma criança como equivalente a uma coisa (res) a ser nomeada logo que revelada por intermédio do processo de diagnóstico. Como se viu, o germe do sistema classificatório das doenças mentais consiste em encontrar um termo para cada dado do real, em criar uma relação uniforme e isonômica entre a linguagem (os nomes) e a realidade (as coisas). Essa concepção foi aqui criticada no sentido de pensar a realidade não igual ao percebido no imediato da consciência. O encontro psicanalítico com uma criança não parte, a princípio, de um esforço para diagnosticar. Digamos que os pais da criança, desesperados à procura de um diagnóstico, se interessam pelo psicanalista como possível salvador. Nesta relação clínica intrincada instalam-se instâncias interpretativas que não estão presentes no imediato. As operações de referência ao real concreto imediato são insuficientes para abordar o encontro clínico que envolve a relação transferencial.

Apontamos o paradigma trazido por Melanie Klein (1930) sobre a eficácia do método psicanalítico com crianças ensimesmadas que não simbolizam a realidade. Para Klein, as interpretações de gestos poucos representativos permitem à criança elaborar as angústias que inibem as funções do ego. Além disso, a psicanalista também trouxe uma reflexão importante para o sistema classificatório das doenças mentais. Ao discutir o quadro clínico do Pequeno Dick, ela sugeriu que fosse alargada a descrição das esquizofrenias, no sentido de incluir nesse quadro os casos de crianças que se encontram impossibilitadas de simbolizar a realidade. Para ela, não se poderia pensar em autismo em função da ausência de pensamentos fantasiosos. Segundo Klein, a ausência de pensamentos fantasiosos refere-se a uma inibição do ego em uma fase muito precoce do desenvolvimento, ou seja, trata-se de uma inibição que impossibilita a entrada da criança no simbólico.

Em contrapartida, Kanner (1943) trouxe um paradoxo no campo da psiquiatria infantil. Ele empregou o termo autismo para as crianças isoladas que não fantasiam a realidade. Assim como Dick, as crianças descritas por Kanner eram extremamente isoladas, não brincavam de forma simbólica e tinham transtorno da linguagem entre outros sintomas. E o mais enigmático, o autismo deixou de ser visto como sintoma e passou a ser descrito como um déficit do sistema nervoso central. O autismo deixou de ser compreendido como um sintoma das esquizofrenias e passou a ser uma síndrome biologicamente determinada. Em suma, crianças que não têm pensamentos autísticos são chamadas de autistas e são consideradas deficientes crônicas pelo sistema classificatório das doenças mentais.

Para finalizar, retornando ao pensamento crítico de Martins (2005), acreditamos que só quando a semiologia clínica envolver psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, antropólogos, sociólogos é que estaremos realmente respeitando e cuidando do paciente em sua totalidade e não realizando uma clínica fundada em absolutismos, na qual o paciente tem um papel totalmente passivo frente ao saber médico ou psicológico.

 

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Recebido em 16 de setembro de 2008
Aceito em 20 de março de 2009
Revisado em 03 de abril de 2009

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