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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza Dec. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Superendividamento dos consumidores: uma abordagem a partir da Psicologia Social

 

 

Inês Hennigen

Dra. em Psicologia pela PUCRS. Professora do Programa de Pós-Gradação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. End.: R. Machado de Assis, 855/806, Jardim Botânico, Porto Alegre/RS. CEP: 90620-260. E-mail: ineshennigen@gmail.com

 

 


RESUMO

O superendividamento dos consumidores constitui um fenômeno social tão relevante que muitos países já contam com legislações específicas para seu tratamento. Contudo, esta questão não diz respeito somente ao campo jurídico, visto configurar-se como um grave e crescente problema social que necessita, para sua compreensão e enfrentamento, da articulação de diferentes disciplinas. No presente artigo, discuto, sob a ótica da Psicologia Social, suas condições de produção a fim de iniciar uma abordagem das implicações subjetivas do superendividamento e do papel da mídia e da publicidade no seu engendramento. Para tanto, primeiro discorro sobre a constituição da cultura do consumo e da sociedade do endividamento e aponto o papel da Psicologia, quando a serviço do marketing, no processo de construção do sujeito consumidor. A seguir, contesto a concepção de sujeito que se baseia na noção de essência interior e as perspectivas que entendem o endividamento excessivo a partir de um viés individualizante. Contraponho a essas uma compreensão processual da subjetivação que a considera efeito das configurações sócio-culturais, das práticas discursivas tomadas como regimes de verdade em certo tempo e espaço social. Em função disso, ressalto a importância de se atentar para o papel das narrativas midiáticas na constituição dos modos de subjetivação na sociedade contemporânea. Discutindo o superendividamento, assinalo a urgência de se estudar e problematizar a publicidade do crédito e a incorporação, pelo mercado financeiro, de segmentos sociais potencialmente mais vulneráveis como os idosos/aposentados e a população de baixa renda. Por fim, apresento um projeto-piloto do judiciário gaúcho para o tratamento das situações de superendividamento e retomo as questões que, no meu ponto de vista, precisam ser contempladas pelo campo da Psicologia Social.

Palavras-chave: Superendividamento. Consumo. Mídia. Publicidade. Modos de subjetivação.


ABSTRACT

The overindebtedness of the consumers is such an important social phenomenon that many countries already have specific laws for its treatment. However, this issue concerns not only the legal field since it configure itself as a serious and increasing social problem that requires for its understanding and confrontation the articulation of different disciplines. In this article I discuss, from the perspective of Social Psychology, its conditions of production in order to approach the subjective implications of overindebtedness and the role of media and advertising in its development. At first I discuss the constitution of the consumption culture and indebtedness society and point the role of psychology, when in the service of marketing, in the process of construction of the consumer subject. Then, I contest the conception of subject based on the notion of inner essence and the perspectives that understand the excessive indebtedness from an individual point of view. I oppose to these with a procedural understanding of subjectivation that considers subjetictivacion an effect of socio-cultural configurations, of discursive practices taken as truth in a certain time and social space. Because of this, I emphasize the importance to be aware of the role of media narratives in the constitution of subjectivation in the contemporary society. Arguing the overindebtness, I point out the need to study and question the credit advertising and incorporation, in the financial market, of the potentially more vulnerable social groups such as seniors/pensioners and the low income population. Finally, I present a pilot project of the Rio Grande do Sul judiciary for the treatment of overindebtedness situations and resume the questions that, in my point of view, need to be contemplated by Social Psychology field.

Keywords: Overindebtedness. Consumption. Media. Advertising. Subjectivation ways.


 

 

Introdução

A partir de uma pesquisa em que busquei conhecer os discursos e práticas dos órgãos de defesa do consumidor, parte de um projeto mais amplo que tem como objetivo uma aproximação da Psicologia Social com a temática do consumo, entrei em contato com uma questão que tem começado a mobilizar os operadores do Direito (juizes, defensores públicos, órgãos de defesa do consumidor): o superendividamento dos consumidores brasileiros.

Este fenômeno não diz respeito somente ao campo jurídico, visto configurar-se como um grave e crescente problema social que necessita, para sua compreensão e enfrentamento, da articulação de diversas disciplinas, como o Direito, a Psicologia, o Serviço Social, a Educação e a Economia. Por isso surpreende a escassa - em alguns casos, inexistente - problematização do mesmo pelos diferentes campos de conhecimento no nosso país (o Direito, neste caso, é uma exceção).

Um aspecto que pode estar contribuindo para esta falta de interesse acadêmico pela temática é o fato que, quando o endividamento excessivo figura nos meios de comunicação, ele acaba sendo apresentado como decorrente da "má-gestão" orçamentária e da incapacidade dos consumidores de traçar previsões financeiras corretas ou como uma psicopatologia pessoal (uma compulsão por comprar, uma forma de adicção). Ambas as significações que circulam na mídia (e que ganham visibilidade e credibilidade por seu "amparo" em discursos científicos) são portadoras de um viés individualizante, pois circunscrevem a compreensão do fenômeno às vicissitudes da vida particular de cada um. Logo, que sentido poderia haver em estudar tal fenômeno fora do âmbito da economia doméstica ou da clínica psicológica?

Deste modo, questões fundamentais para sua problematização a partir de uma perspectiva que remeta ao contexto social de sua produção, como a cultura do consumo em nossa sociedade, o incremento da oferta de crédito - e a centralidade do endividamento no atual estágio do sistema capitalista -, o achatamento dos salários e/ou o aumento dos recursos necessários para prover a sobrevivência e fazer frente aos hábitos de consumo, a promoção - por vezes bastante agressiva - do consumo e do crédito na mídia em geral e na publicidade em especial, e a incorporação pelo mercado financeiro de segmentos potencialmente mais vulneráveis como os idosos/aposentados e a população de baixa renda, deixam de ser consideradas.

Diante desta lacuna, busco iniciar no presente artigo uma abordagem do tema sob a ótica da Psicologia Social. Assim, na primeira seção, discuto a constituição da cultura do consumo e da sociedade do endividamento e mostro como a associação entre marketing e Psicologia foi importante no processo de construção do sujeito consumidor. A seguir, contesto a concepção de sujeito-indivíduo racional e possuidor de uma essência interior e as perspectivas que analisam o endividamento/consumo excessivo a partir de uma visão individualizante. Trago, em contraposição, uma compreensão processual da subjetivação, que a considera efeito das configurações sócio-culturais, das práticas discursivas tomadas como regimes de verdade, e ressalto a importância de se atentar para o papel das narrativas midiáticas na constituição dos modos de subjetivação na sociedade contemporânea. Posteriormente, refletindo sobre o superendividamento, assinalo a urgência de se estudar e problematizar a publicidade do crédito e a incorporação, pelo mercado financeiro, de segmentos sociais potencialmente mais vulneráveis como os idosos/aposentados e a população de baixa renda. Na seção final, apresento um projeto-piloto do judiciário gaúcho para o tratamento das situações de superendividamento e retomo as questões que, no meu ponto de vista, precisam ser contempladas pelo campo da Psicologia Social.

 

Sociedade do consumo e do endividamento

Desde o clássico La Société de consommation, de Jean Baudrillard, publicado originalmente em 1970, que pensadores dos mais variados campos utilizam o conceito sociedade de consumo para refletir sobre as vicissitudes das condições sociais, econômicas, políticas e subjetivas em nossa sociedade.

Importante ressaltar que a argumentação de Baudrillard (1970/2005) no sentido de que os objetos têm um valor de signo, que sua posse confere status, foi seminal para enrobustecer as análises que articulam consumo e posição social dos sujeitos. Isso porque, desde então, cada vez mais as mercadorias passaram a ser concebidas não apenas como objetos que viabilizam a satisfação de necessidades e desejos, mas como "senhas" que possibilitam identidade, pertencimento e reconhecimento social. Em função disso, o consumo começou a ser considerado uma espécie de motor e matriz das relações sociais.

Neste sentido, é interessante trazer uma contribuição de Lyra (2001). Essa autora identificou, na época de seu escrito, o telefone celular como um instrumento de inclusão sócio-simbólica, sendo, por isso, desejado por todas as classes sociais urbanas. Hoje, depois de sua vertiginosa popularização, constata-se que os celulares perderam muito desse caráter. Outras mercadorias assumiram o posto de objetos indicadores de inclusão e distinção social. Isso mostra como é efêmero o "poder (imaginário) de incluir" das mercadorias e quanto os sujeitos, para acompanhar a lógica da sociedade de consumo, são continuamente incitados a fazer novas aquisições para poder se sentir reconhecidos socialmente.

Nas discussões sobre o consumo na sociedade contemporânea, perspectivas muito diferentes, por vezes antagônicas, circulam: algumas, pouco críticas, somente enaltecem o consumo, colocando-o como condição para o desenvolvimento social e melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e das populações; outras, mais críticas - e por vezes quase apocalípticas - chegam a apontar o consumo como o grande mal de nosso tempo.

Lipovetsky (2008) ironiza a idéia de que o consumismo seria o mal supremo de nossa época. Ele afirma não se incomodar ao legitimar a sociedade de consumo, pois acredita que essa mais liberta do que oprime. Sua crítica é no sentido de que a sociedade de consumo não consegue incluir a todos os indivíduos: "o problema é a exclusão, não o consumo" (Lipovetsky, 2008, p.33).

A relação consumo/exclusão também é focalizada nos escritos de Zygmunt Bauman, mas sob uma ótica diversa, bem menos otimista. Para ele, a sociedade de consumo aprofundou as desigualdades sociais, pois todos nós estamos "condenados à vida de opções, mas nem todos temos os meios de ser optantes" (Bauman, 1999, p. 94). Deste modo, a capacidade - ou não - de consumir configura-se como um dos critérios de inclusão/exclusão social. Segundo Bauman (2007), vivemos em uma sociedade de consumidores, aquela que interpela seus membros basicamente como consumidores, que os julga e avalia principalmente por sua capacidade e conduta relativa ao consumo. Assim, para ele, por um lado, temos os consumidores experientes, aqueles que se regozijam com o (cada vez mais rápido) descarte após o desfrute que objetos e pessoas podem proporcionar, e que estão sempre prontos a movimentar a economia. Por outro lado, encontramos os consumidores falhos ou fracassados, aqueles sem condições de lubrificar as rodas da economia de consumo. Para esses sujeitos, diz o autor, a exclusão social acontece de fato.

Essas análises podem ajudar a refletir sobre o superendividamento dos consumidores, mas, para tanto, é fundamental trazer para a discussão certos movimentos que engendraram o que contemporaneamente nomeamos sociedade de consumo. Assim, passo a abordar três aspectos relacionados: a crescente produção de mercadorias industrializadas, a extensão do sistema de crédito - e, conseqüentemente, do endividamento - e a constituição da cultura do consumo.

Ao final do século XIX, a sociedade capitalista industrial iniciou novo patamar de desenvolvimento, resultado da chamada segunda revolução industrial, marcando os primórdios da sociedade de consumo. Na Europa e nos Estados Unidos verificou-se um grande crescimento técnico-científico, industrial e mercantil. Novas tecnologias e matérias-primas (como o motor a combustão, a energia elétrica, o aço e o alumínio) abriram espaço para a produção de bens duráveis, o que contribuiu para o aumento da oferta e do consumo.

Porém a Depressão de 1929 trouxe desemprego, quebra do sistema bancário e uma crise sem precedentes para a economia americana, com repercussões em todo o mundo. Os esforços para recuperá-la incluíram programas de obras públicas para combater o desemprego e promover a retomada do consumo. O horizonte era o retorno da atividade fabril e agrícola, a conseqüente contratação de trabalhadores e sua reinserção no mercado de consumo. Contudo, segundo Guttmann e Plihon (2008, p. 575), foram as reformas monetárias que possibilitaram uma moeda elástica e um sistema bancário seguro, que se tornaria um pilar do expressivo crescimento do pós-guerra, pois "ao permitir a criação de moeda através da extensão do crédito, o sistema bancário ficou em posição de financiar o rápido crescimento econômico". Esses autores caracterizam como "economia do endividamento" o financiamento contínuo do gasto excedente a partir da emissão de dívida pelo sistema bancário. "Em tal ambiente favorável, não demorou muito para que a 'economia do endividamento' se estendesse ao consumo das famílias, o maior componente de gasto da economia que absorve, tipicamente, dois terços da demanda agregada nas nações industrializadas" (Guttmann e Plihon, 2008, p. 577). Assim, a prosperidade dos anos 50/60 implicou taxas crescentes de endividamento das empresas e das famílias.

A década de 70 conheceu nova crise econômica, marcada pela pressão inflacionária e baixo crescimento. Novamente o enfrentamento aconteceu a partir de mudanças no sistema monetário e bancário (que levou, posteriormente, à desregulação do sistema bancário nos EUA e na EU), combinado com reestruturação industrial (gestão financeira, controle de custos de mão-de-obra) e com políticas trabalhistas mais conservadoras (o que reduziu o ritmo dos aumentos salariais). Como a inflação diminuiu, foi possível a queda da taxa de juros a partir de 1990, patamares baixos sendo mantidos por 15 anos.

Essas mudanças pós-crise estabeleceram condições que, posteriormente, permitiriam o renascimento (e eventual extensão) da economia do endividamento nos EUA, em um ritmo ainda mais agressivo. Livres das pesadas restrições reguladoras, os bancos americanos ganharam a capacidade de definir condições de empréstimo mais favoráveis, acelerar a inovação financeira e ampliar dramaticamente o âmbito de provedores de fundos (Guttmann e Plihon, 2008, p. 579).

Desde a década de 1970, verifica-se a estagnação dos salários nas nações industrializadas. Por outro lado, para o crescimento e estabilidade econômica, o aumento na capacidade produtiva tem que ser acompanhado por aumento de demanda, sob risco de serem necessários ajustes recessivos. A absorção dos produtos por parte dos consumidores pode ocorrer com a redução da poupança e/ou com o aumento da jornada pessoal de trabalho, mas essas vias são limitadas. O que tem acontecido, para Guttmann e Plihon (2008, p. 586), é que, mesmo com a renda estagnada, a viabilização dos gastos das famílias "é assegurada de modo mais efetivo pelo acesso ao endividamento do consumidor, de forma que o gasto das famílias possa ser descasado dos limites da renda". Para os autores, o novo regime capitalista é baseado em três forças inter-relacionadas: "a dependência aumentada do endividamento em todos os ramos de atividades econômicas, a facilitação de tal financiamento via endividamento pela inovação financeira, e a globalização financeira como a força mais transcendental na internacionalização do capital" (Guttmann e Pliron, 2008, p. 581).

Deve-se ressaltar que a constituição da sociedade de consumo não é efeito somente dos movimentos da produção industrial e do sistema financeiro. Esses se enlaçam com o desenvolvimento da cultura do consumo e com a indissociável produção do sujeito consumidor.

Fontenelle (2008), com base em estudos sociológicos e históricos sobre o consumo, aponta a importância do marketing - e sua parceria com a Psicologia - na formatação, no início do século XX nos EUA, de uma sociedade e de uma mentalidade de consumo. A autora indica que tal empreendimento deve ser compreendido a luz de um projeto político mais amplo que buscou transformar todos os âmbitos socioculturais, de tal sorte que a ideologia produtivista desse lugar à ótica do consumidor, pois o país estava diante do desafio de encontrar saídas para o escoamento da produção industrial. Para tanto, foi necessário a convergência de fatores políticos, sociais e culturais a fim de engendrar um "espírito de época" que legitimasse uma nova forma de vida pautada pela lógica do consumo.

Neste processo de transformação (de uma sociedade regida pela lógica da parcimônia e da poupança para outra voltada para a gratificação imediata fornecida pelos produtos), a invenção do crédito ao consumidor contribuiu enormemente, sendo "determinante para minar as resistências ideológicas de uma cultura assentada na ética do trabalho e do viver a partir dos seus próprios meios" (Fontenelle, 2008, p.149). Contudo, sem uma mudança de mentalidade, o crédito sozinho não levaria a população a abandonar o consumo de produtos fabricados em casa e comprar produtos industriais.

Aqui entra o papel e a importância da associação marketing/Psicologia. Grandes corporações investiram em pesquisas que visavam conhecer o comportamento que levava ao ato da compra e passaram a empregar diversas estratégias de publicidade e propaganda. Assim, anúncios comerciais passaram a denegrir os produtos caseiros e enaltecer os industrializados. Concepções psicanalíticas, como a teoria da insatisfação, da falta permanente, foram utilizadas neste campo, onde se buscava dar forma aos desejos humanos mediante sua associação a objetos de consumo.

Neste sentido, o marketing foi moldando a experiência dos sujeitos para que os objetos de consumo passassem a ser suas referências de vida. Um exemplo disso foi a produção do desejo feminino de fumar - algo tido como inimaginável. A estratégia empregada foi trabalhar com a conotação fálica atribuída ao cigarro, apostando que as mulheres passariam a fumar se vissem o cigarro como um meio de se emanciparem simbolicamente da dominação masculina. Assim, em um grande desfile da festa nacional em New York, com divulgação prévia pela imprensa de que um acontecimento de vulto ali iria se produzir, vinte moças elegantes tiraram cigarros e isqueiros das bolsas e os acenderam: eis o cigarro como representante da emancipação feminina.

Portanto, foram vários eventos que, em seu conjunto, formaram a sociedade de consumo e "produziram o consumidor": enquanto o macromarketing atuava em questões de âmbito público que pudessem fornecer a infra-estrutura para que essa sociedade efetivamente existisse - como com o crédito ao consumidor -, o micromarketing atuava no nível da psicologia do consumo, por meio de anúncios que enfocavam um estilo de vida urbano, moderno, que demandava a comodidade que os produtos industriais poderiam fornecer (Fontenelle, 2008, p.149).

 

Crédito/consumo, mídia e modos de subjetivação

A democratização do crédito, de acordo com Frade e Magalhães (2006) teve sua origem nos EUA, onde primeiro deixou de ser sinônimo de pobreza ou prodigalidade. O crédito, primeiro lá e depois na Europa, passou a ser somente um meio para se adquirir bens. Segundo as autoras, o uso desse expediente para realizar compras resultou da expansão e densificação das necessidades e práticas de consumo. "O crédito está hoje fortemente associado a esses novos padrões de consumo, acompanhando de perto as suas tendência e oscilações" (Frade e Magalhães, 2006, p. 24).

Como mostrei na seção anterior, o marketing, principalmente através de estratégias de publicidade e propaganda, teve um papel impar no engendramento da cultura do consumo e na constituição do sujeito consumidor. Em função disso, é oportuno abordar com mais detalhe o processo de subjetivação e refletir acerca dos efeitos dos produtos midiáticos nos modos de ser contemporâneos, lembrando que os meios de comunicação constituem veículos por onde circula cotidianamente toda ordem de anúncios publicitários, sendo esses que, de forma majoritária, financiam sua existência.

Fundamental começar referindo que no âmbito da Psicologia Social contemporânea construiu-se uma nova compreensão acerca da subjetividade, o que possibilitou trabalhar com a idéia de constituição do sujeito (no caso, do sujeito consumidor). O emprego da expressão subjetivação, que remete a um processo, já sinaliza um distanciamento em relação ao modo tradicional de conceber a subjetividade, a saber: algo da ordem de uma experiência interior, própria ao sujeito, sua essência psicológica. Compatível com o projeto da Modernidade (e mesmo necessária para sua consecução), a noção de subjetividade referida à figura do indivíduo - autônomo, racional, livre e estável - foi hegemônica no campo da Psicologia durante muito tempo. Ressalte-se que indivíduo e social eram tomados como pares opostos. Não se descartava a idéia de que o social poderia influenciar o indivíduo, "desviá-lo" daquilo que ele era "verdadeiramente", pois essa não era incompatível com a cisão indivíduo/social que vigorava nesta compreensão. Os discursos e práticas psicológicas que se alicerçavam em tal lógica (e que seguem existindo, como mostro a seguir) traziam a marca da naturalização e individualização dos fenômenos. "O olhar da psicologia estaria voltado para os processos de adaptação do indivíduo a este campo social dado como natural e a 'inadequação'... recairia sobre o próprio indivíduo" (Hüning e Guareschi, 2005, p. 108).

Neste sentido, é pertinente afirmar que os discursos que explicam o endividamento excessivo apontando como sua causa a incapacidade do sujeito de gerir seu orçamento e traçar previsões financeiras corretas ou uma psicopatologia pessoal (a oniomania, a adicção) sustentam-se na noção de sujeito-indivíduo. A racionalidade é tomada como uma característica inerente, natural do sujeito, sendo o endividamento decorrente do fato dela ter sido deixada de lado ou falhado. No primeiro caso, se o sujeito tivesse realmente "pensado e avaliado bem", não teria realizado compras que acarretariam dívidas maiores que sua renda. No outro, a impulsividade do sujeito ou sua condição de dependência (espécie de toxicomania) o leva a comprar impulsiva ou compulsivamente. Em ambos, a compreensão do endividamento excessivo ocorre por uma ótica individualizante.

As discussões sobre o endividamento/consumo excessivo, quando realizadas a partir do marco teórico da psicanálise, chegam a fazer referência à cultura do narcisismo e do consumo para compreender tal fenômeno, caracterizado como próprio da psicopatologia da sociedade contemporânea. Como diz Rassial (2005, p. 271), "o endividamento excessivo pode ser uma das formas, sem dúvida privilegiada hoje em dia, que o polimorfismo sintomático da histeria masculina pode assumir". Contudo, apesar dessa consideração, o retorno às vivências particulares do sujeito não deixa de ser feito. Refletindo sobre a relação entre consumo excessivo e adicção, Stacechen e Bento (2008, p. 430) apresentam uma possível explicação para o funcionamento adictivo: "no desenvolvimento psíquico do adicto faltou a representação de um objeto interno 'suficientemente bom' (a mãe e, posteriormente, o pai), tendo ele assim que buscar um objeto externo" para se tranqüilizar quando diante de ocasiões de tensão interna ou externa. A psiquiatria clássica é bem direta quando se trata de naturalizar:

o elemento particular (na oniomania) é a impulsividade: eles não podem evitá-la, o que algumas vezes se expressa inclusive no fato de que, a despeito de ter uma boa formação acadêmica, os pacientes são absolutamente incapazes de pensar diferentemente e de conceberem as conseqüências sem sentido de seu ato e as possibilidades de não realizá-lo. Não chegam nem a sentir o impulso, mas agem de acordo com sua natureza, como a lagarta que devora a folha (Bleuler apud Tavares, Lobo, Fuentes e Black, 2008, p. 517).

Não objetivo, ao questionar estas posições, afirmar que as experiências infantis devem ser desconsideradas quando se busca compreender a constituição subjetiva ou que os sujeitos não possam sofrer de compulsões. Quero marcar sim que tais discursos, ao remeter ao sujeito-indivíduo a "responsabilidade" sobre o endividamento excessivo, acabam deixando de lado e relegando à invisibilidade as múltiplas condições sociais, econômicas, políticas e culturais que se articulam na produção de tal fenômeno, verificado em países desenvolvidos. Como psicanálise e psiquiatria constituem importantes campos de saber/poder em nossa sociedade, não surpreende que suas posições tenham credibilidade e acabem prevalentes, contribuindo para orientar estudos, práticas e políticas e também para formar o senso comum.

Problematizar a oposição indivíduo/social tem sido justamente a tônica da Psicologia social contemporânea. Revisões epistemológicas no campo "permitiram uma concepção de subjetividade mais articulada com os processos sociais" (Leite e Dimenstein, 2002, p.10). Assim, passou-se a compreender os modos de subjetivação como efeito das configurações sócio-culturais, das práticas discursivas tomadas como regimes de verdade em certo tempo e espaço social.

A subjetividade se produz na relação das forças que atravessam o sujeito, no movimento, no ponto de encontro das práticas de objetivação pelo saber/poder com os modos se subjetivação: formas de reconhecimento de si mesmo como sujeito da norma, de um preceito, de uma estética de si (Prado Filho e Martins, 2007, p.17).

Nessa perspectiva, o sujeito, à medida que se constitui, também constrói o mundo social. Quebra-se assim a idéia de um sujeito prévio, apreensível em sua essência, existente independente dos discursos que circulam socialmente. Por isso que se fala em posições de sujeito ou modos de subjetivação, concebidos como plurais e dinâmicos.

Neste sentido, é fundamental atentar para os efeitos das narrativas midiáticas em geral, e especificamente as publicitárias, no processo de subjetivação. Os discursos acerca dos modos como se deve ser e proceder, do que fazer com o nosso corpo e com nossa alma são produzidos e reproduzidos, segundo Fischer (2000, p. 111), nos mais "diferentes campos de saber e práticas sociais, mas passam a existir 'realmente' desde o momento em que acontecem no espaço dos meios de comunicação".

Muitas vezes a mídia - e especialmente a publicidade - é acusada de usar artifícios para manipular consumidores. Em sintonia com outros estudiosos, penso que o "poder" da mídia no engendramento de modos de ser não precisa ser procurado em "subterrâneos". Senão vejamos: aprendemos, por exemplo, rotinas de cuidados pessoais em revistas, jornais, programas de variedades/informativos e novelas. Em todos esses produtos midiáticos enuncia-se, assimilando o discurso da medicina, que é preciso ter atenção com nosso corpo e saúde. Em comerciais publicitários, ficamos sabendo que a escovação de dentes não basta, somente com um enxaguante bucal estaremos livres das cáries, ou somos informados de que é preciso doses diárias de yogurte para ter um funcionamento intestinal saudável. Um exemplo simples de como somos incitados a ser sujeitos vigilantes de nossa saúde e convidados a consumir certos produtos para assegurá-la. Essa busca pela saúde pode ser relacionada ao consumo de produtos naturais e/ou ecologicamente produzidos e, com isso, diversifica-se o rol de traços identitários à disposição para serem tomados pelos sujeitos.

Toda uma rede de modos de ser, sentir, pensar, relacionar-se, habitar e cuidar (ou não) do mundo nos é cotidianamente oferecida - sempre implicando o consumo de certas mercadorias e serviços. Contudo, devem-se considerar duas questões básicas: por um lado, na mídia circulam diferentes valores, idéias e estilos que, em um constante embate de forças, buscam interpelar os sujeitos; por outro lado, poderes e saberes suscitam resistências. Conclui-se então que não há imposição de um modo de ser, que o sujeito não é um mero joguete nas mãos dos meios de comunicação, que existem brechas para a produção de modos de existência singulares. Como apontam Prado Filho e Martins (2007, p.17), "a resistência aos modos de objetivação e de subjetivação acaba desempenhando importante papel nestes jogos de identificação e reconhecimento de si". Entretanto isso não pode ser maximizado a ponto de reinstalar a crença em uma autonomia total do sujeito. É preciso sim, analisando nossa configuração social, buscar compreender os efeitos - por vezes preocupantes - da mídia sobre o processo de subjetivação. Por isso, acompanho Morin (2008, p.18), quando ele diz que "mais do que a manipulação, precisamos estudar e compreender a relação da mídia com nossos imaginários".

Isso porque, contemporaneamente, precisamos de narrativas compartilháveis, pois muito da tradição (família, religião, nação, etc.) que era comum a todos nós foi contestada. "As aspirações que compartilhamos (e que compõem nossa cultura) não constituem um código nem valem um livro de normas. Elas vivem e se transmitem pelas histórias das quais gostamos, e especialmente por aquelas que são contadas para e por todos" (Calligaris, 2001).

Neste sentido, é pertinente afirmar que o cinema, a televisão, a literatura e, sim, a publicidade constituem o grande repertório das identidades possíveis; mais do que quaisquer outros dispositivos, a mídia conta histórias por e para todos. O consumo dessas histórias e imagens aparece então como aquilo que também viabiliza a nossa condição de sociedade, o laço social.

A publicidade tornou-se assim um importante instrumento na constituição da subjetividade contemporânea, pois, ao consumir os produtos-imagens, produzimos nossas identidades. Deriva-se daí que, para além do comércio de mercadorias, o que se processa é o comércio de modos de vida. Como muito bem coloca Kehl (2004, p. 61), "mesmo quem não consome nenhum dos objetos alardeados pela publicidade como se fosse a chave da felicidade, consome a imagem deles. Consome o desejo de possuí-los. Consome a identificação com o 'bem', como o ideal de vida que eles supostamente representam".

Em sintonia com essa perspectiva, Frade e Magalhães (2006) acreditam que os padrões de consumo decorrem da interação indivíduo/social: a adoção de certas práticas de consumo está relacionada ao que as pessoas percebem como tendo valor para os grupos sociais nos quais acreditam, ou desejam, estar inseridas. Portanto, o que se afigura como prioritário e supérfluo em termos de consumo deriva da vivência social de cada um. Neste sentido, quando alguém acredita que determinado bem propiciará o reconhecimento social que almeja, mas não possui recursos suficientes para sua aquisição, encontra no crédito um modo de comprá-lo.

Por isso, se já é importante conhecer os efeitos da mídia e da publicidade nos modos de subjetivação em nossa sociedade, penso que é urgente começar a estudar e problematizar a publicidade do crédito. Se a primeira "vende" mercadorias/modos de vida, a segunda, de certo modo, duplica esse efeito oferecendo formas de adquirir os bens que (imaginariamente) possibilitariam existir daquela forma.

O crédito - seja na forma de oferta de dinheiro ou de financiamento de produtos e serviços - é mercadoria altamente disponível e de fácil acesso atualmente, anunciada e agressivamente promovida na televisão, rádio e jornal, alardeada em anúncios publicitários de toda a ordem, oferecida através de telemarketing, envio pelo correio de propostas de cartão de crédito e também por meio de abordagem direta nas ruas. Nos dias de hoje, praticamente tudo que se consome pode ser financiado de uma forma ou outra; crescem as instituições que operam com crédito; mais produtos e serviços são financiados e variadas são as modalidades a disposição de todos os segmentos sociais. O crédito claramente deixou de ser um recurso excepcional; trata-se agora de uma forma de gestão corrente do orçamento pessoal e familiar.

Como pontuam Bertoncello e Lima (2007), a expansão do crédito ao consumidor e sua vulgarização ocorreu no Brasil após 1994, na esteira do Plano Real, sendo que, nos últimos cinco anos, este quadro se acentuou devido à estabilidade econômica e à inclusão no sistema formal de crédito das classes mais desfavorecidas.

No governo Lula, as políticas de estímulo ao crédito popular alavancaram ainda mais o consumo das populações de baixa renda, que absorveram a oferta de 17 bilhões pelo mercado, com uma parcela dessas migrando da classe de consumo D/E para a classe C. Maior crédito, maior consumo, maior endividamento. Dados do Banco Central do Brasil indicam que o endividamento dos brasileiros cresceu quase 50% em 26 meses. Clientes de bancos que devem mais de cinco mil reais somam 15 milhões, já aqueles que têm alguma dívida, mesmo pequena, chegam a 80 milhões. A maioria das pessoas que devem altas quantias além de financiam casa e carro também recorre a empréstimo pessoal, cheque especial ou ao sistema rotativo do cartão de crédito (Santos, 2008).

Neste contexto, não é surpreendente o crescimento do setor bancário, que tem sido decorrente, em parte, de estratégias comerciais como a abertura de pontos de serviço em agências de correio, supermercados e lojas lotéricas e linhas de crédito dirigidas a categorias específicas e às populações de baixa renda. Dentre as novas formas de crédito, o crédito consignado desponta como um produto bancário de muito sucesso. Disponível a partir de maio de 2004 e dirigido a aposentados e servidores públicos, esta tecnologia de crédito consegue transformar salários e pensões em objetos penhoráveis. Assim, os aposentados, novo filão dos empréstimos bancários, vêm sendo seduzidos pela publicidade veiculada na mídia e assediados pelos bancos, pois esses não correm riscos em tal operação, que já atraiu cinco milhões de pensionistas (Bertoncello e Lima, 2007; Santos, 2008).

Chama a atenção que, embora o consumo e o crédito direcionado às chamadas camadas populares movimente cifras cada vez maiores, essa temática seja tão pouco estudada no Brasil. Rocha e Silva (2008), revisando estudos sobre o comportamento de consumo dos pobres, concluem que pouco se sabe sobre o "marketing na base da pirâmide". Ressalta-se que uma das principais constatações das pesquisas a que os autores tiveram acesso é o caráter essencial do crédito na vida destes sujeitos, haja vista ser a forma como eles têm acesso a bens de consumo. Interessante mencionar que a estratégia de alguns bancos de contar com correspondentes bancários (estabelecimentos como lotéricas e supermercados usados para facilitar o acesso aos serviços financeiros) é apontada como exemplo bem-sucedido em termos de marketing. Necessário pontuar que os autores nada dizem acerca do papel da mídia e da publicidade para a produção do consumidor de baixa renda.

 

Superendividamento, inclusão/exclusão social e vulnerabilidade

Crédito e (sociedade de) consumo engendraram-se mutuamente. Mesmo sem possuir recursos próprios, os sujeitos podem recorrer ao crédito para ter acesso a bens e serviços. O endividamento conseqüente vai sendo administrado. Ou não. Quando as dívidas ultrapassam as possibilidades do orçamento dos consumidores, ocorre o que se passou a nomear superendividamento.

Segundo Marques e Cavallazzi (2006, p. 18), este é "um fenômeno social e jurídico importante que pode ou não ser conseqüência de 'políticas públicas' e da 'mudança dos mercados financeiros', que levam à chamada 'democratização' do crédito e à consolidação de uma 'sociedade do endividamento' também no Brasil". De incidência mundial, primeiro foi detectado nos EUA, depois na Europa, tendo chegado já há algum tempo aos países emergentes como o nosso. Diferente do endividamento, que se refere à totalidade de compromissos de crédito assumidos pelos indivíduos ou pelas famílias, o superendividamento (ou sobreendividamento, expressão usada em Portugal), advém quando é impossível para o consumidor ou sua família realizar o pagamento de suas dívidas (Santos, 2008).

O superendividamento pode ser definido como impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com Fisco, oriunda de delitos e de alimentos) (Marques, 2006, p. 256).

A doutrina européia traça algumas distinções acerca desta condição, que pode ocorrer a qualquer um, independente do nível de rendimentos. O superendividamento é concebido como passivo quando o consumidor não colabora ativamente para o quadro de insolvência ou de ausência de liquidez, esse acontecendo em função de algum "acidente de vida", como o desemprego, redução de renda, doenças ou de oscilações das moedas, altas das taxas de juros, entre outros. Já no superendividamento ativo, o consumidor abusa do crédito e consome acima das possibilidades do seu orçamento de forma que, mesmo em condições normais, ele não poderia saldar as dívidas que contraiu. Dentre esses, há os inconscientes, aqueles que agem impulsivamente e/ou não conseguem calcular corretamente o impacto das dívidas sobre seu orçamento, e os conscientes, consumidores de má-fé que tem a intenção deliberada de não pagar (Bertoncello e Lima, 2007; Marques, 2006; Santos, 2008).

Santos (2008) traz a contribuição da economista portuguesa Maria Manuel Leitão Marques que acredita que expansão do crédito e superendividamento são duas faces da mesma moeda. Já Marques e Cavallazzi (2006, p. 21) referem-se ao superendividamento como uma espécie de "nocivo 'efeito colateral' novo da sociedade de consumo".

Independente de ser tomado como inerente ao sistema capitalista atual, uma decorrência adversa ou uma anomalia a ser enfrentada e sanada, o fato é que este fenômeno incita discussões acerca dos efeitos sociais da crescente expansão do crédito.

No plano macroeconômico, o crédito ocupa um lugar fundamental na dinamização e crescimento da economia contemporânea: financia-se desde a produção até o consumo; governos, instituições e pessoas físicas recorrem ao crédito para fazer frente as suas necessidades e seus projetos; praticamente inexiste segmento social que não usufrua de alguma modalidade de crédito.

No âmbito pessoal, o crédito pode se configurar como um mecanismo de inclusão, mas também de exclusão social1. Sua democratização, sem dúvida, permitiu a muitos sujeitos e famílias a aquisição de bens e a contratação de serviços que possibilitam uma melhor qualidade de vida, realizações pessoais e familiares e participação social em função de novas identidades culturais. Neste sentido, as organizações de defesa dos consumidores, de acordo com Bertoncello e Lima (2007), costumavam conceber o crédito como exercício de liberdade e autonomia do lar, defendendo a inclusão das famílias mais pobres no mercado financeiro. Contudo, o crédito pode gerar dificuldades financeiras de vulto, chegando até a exclusão social, quando adquirido de forma excessiva e irrefletida, se suceder algum "acidente de vida" ao endividado, dentre outros fatores.

Se o endividamento ocorrer em um contexto de crescimento econômico, de estabilidade do emprego e, sobretudo, se não atingir as camadas sociais com rendimentos próximos do limiar de pobreza, é apenas um processo de antecipação de rendimentos, contribuindo para o aumento do bem-estar das famílias (Santos, 2008, p. 3).

De acordo com Santos (2008), no Brasil há duas categorias de consumidores de crédito. Os privilegiados, das chamadas classe média e alta, que não deixam de sofre da vulnerabilidade dos consumidores em geral. Porém essa é mais presente e ampla na vida dos consumidores desfavorecidos (os hipervulneráveis ou hipossuficientes), aqueles cujos rendimentos estão próximos do limiar de pobreza, e que têm a vida marcada pela precariedade cultural, pouco discernimento, e, eventualmente, pela exclusão social.

Podia-se até pensar que estes consumidores hipervulneráveis não teriam acesso ao crédito, mas sabe-se que isso não é verdade. Primeiro, porque o procuram (desejo normal das demais pessoas da sociedade de consumo), depois porque a concorrência entre as instituições de crédito as leva a aceitar clientes de maior risco (Santos, 2008, p. 7).

A resposta positiva dos sujeitos e das famílias frente à expansão da oferta de crédito pode ser compreendida a partir de variados fatores, como as alterações de padrões culturais, as taxas de juros favoráveis e os prazos convidativos, e a (relativa) estabilidade do rendimento e do desemprego. Entretanto, segundo Santos (2008), uma outra hipótese, que não é tão bem vista pela doutrina jurídica, diz respeito à publicidade. Essa é intensa, sistemática e, muitas vezes, atua de forma agressiva, empregando estratégias específicas de captação de consumidores de segmentos hipervulneráveis da população, a saber, os idosos e as pessoas de baixa renda, que acabam ficando suscetíveis ao endividamento excessivo e irrefletido.

A partir da análise de 100 casos de superendividamento no Rio Grande do Sul, a professora Cláudia Lima Marques (2006) identificou o perfil dos consumidores que se defrontaram com tal condição: em geral, são chefes de família, com vários dependentes desprovidos de renda fixa; a maioria mulheres (55%), idade entre 30 e 60 anos (66%) e idosos, acima de 60 anos (11%); trabalhadores autônomos ou liberais (47%), aposentados (11%) e desempregados (10%); há casos de superendividamento ativo (21,7%), mas prepondera o passivo, sendo decorrente de desemprego (36,2%), doença e acidentes (19,5%), divórcio (7,9%), morte (5,1%) e outros, como nascimentos de filhos (9,4%).

Esses dados e a informação adicional de que, para os desempregados, a situação agrava-se em função da consulta que os empregadores fazem aos órgãos que registram devedores (SPC, SERASA), possibilitam conjecturar que muitos superendividados encontram-se em uma condição que pode ser caracterizada como de vulnerabilidade social. À impossibilidade de fazer frente às suas dívidas soma-se uma circunstância de vida que fragiliza ainda mais os envolvidos.

O conceito de vulnerabilidade social, que tem uma de suas origens nos estudos sobre áreas de risco de desastres ambientais, está em processo de construção e busca superar o caráter individualizante e probabilístico da noção de risco, pois considera aspectos coletivos e contextuais das suscetibilidades aos agravos em geral. Referindo os estudos de Abramovay e colegas, Hillesheim e Cruz (2008, p. 196) dizem que

a vulnerabilidade social é definida como situação em que os recursos e habilidades de um dado grupo social são tidos como insuficientes e inadequados para lidar com as oportunidades oferecidas pela sociedade. Estas oportunidades constituem uma forma de ascender a maiores níveis de bem-estar ou diminuir probabilidades de deterioração de vida de determinados atores sociais.

Para além das pertinentes discussões que problematizam a lógica probabilística e o mecanismo de poder (sob a forma de controle do futuro) que o conceito de vulnerabilidade acaba implicando, acredito na importância de introduzir e trabalhar a partir deste conceito. Isto porque julgo que o mesmo abre possibilidades para se refletir e buscar intervenções que visam diminuir os fatores associados à condição vulnerável dos que se deparam com o superendividamento. Conhecer o contexto de sua produção e as implicações sociais/subjetivas do mesmo é fundamental para a implementação de ações e políticas públicas que façam frente a este fenômeno que pode conduzir à descidadanização (Kowarick, 2003).

 

Estudos sobre superendividamento, seu tratamento no Brasil e novos desafios

Diante de um cenário de crescente superendividamento da população brasileira e tendo em vista não só o aumento significativo de processos judiciais que buscam revisão contratual2, mas também as conseqüências sociais do fenômeno, algumas vozes, principalmente no campo da defesa dos consumidores e do Direito têm se manifestado no sentido de considerar o código de defesa do consumidor (CDC) tímido para fazer frente ao superendividamento e insistem na necessidade de criação de uma tutela legal legítima, a exemplo do que acontece em diversos países, como França, Áustria, Dinamarca, Portugal, Finlândia, EUA, Alemanha, Suécia, Suíça, Bélgica, Japão, Coréia, África do Sul, Canadá, entre outros (Marques e Cavallazi, 2006).

O legislador retomará o papel dirigente do Estado, intervindo nas relações entre fornecedor de crédito e superendividado, buscando o restabelecimento do equilíbrio contratual e a reestruturação da vida financeira dos indivíduos e de sua família. Esta norma será de ordem pública e de interesse social. Uma lei desejável e inovadora no direito brasileiro que visará à tutela e ao tratamento das situações do fenômeno do superendividamento, de modo a preservar ao consumidor e a sua família a dignidade da pessoa humana. Faz-se necessária para compensar a falta de igualdade entre os contratantes (Santos, 2008, p.12).

Este dispositivo legal torna-se necessário para que seja possível estabelecer um acordo que permita ao devedor sair da situação de superendividado, de excluído social, e possa voltar ao mercado de consumo de maneira mais equilibrada e consciente haja vista o caráter pedagógico que os proponentes atribuem ao processo de tratamento do superendividamento (Bertoncello e Lima, 2007).

A doutrina jurídica européia, favorável à idéia de deveres de cooperação e de renegociação entre os contratantes, insiste na necessidade de que as situações de superendividamento sejam tratada mais como um problema social do que como um problema judicial. Bem diferente do que no Brasil, onde essa questão, do ponto de vista do Direito, é tratada majoritariamente como "um problema pessoal cuja solução passa apenas pela execução pura e simples do devedor" (Santos, 2008, p. 13).

O projeto-piloto "Tratamento das situações de superendividamento do consumidor" foi apresentado pelas juizas Karen Rick Danilevicz Bertoncello e Clarissa Costa de Lima à Corregedoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, para a realização, a partir de 2006, de audiências com a totalidade dos credores declarados pelo consumidor superendividado nas Comarcas de Charqueadas e de Sapucaia do Sul.

Essa iniciativa3, respaldada pelo "Movimento pela Conciliação" do Conselho Nacional de Justiça, busca, baseada na voluntariedade das partes, mediar a renegociação de dívidas de forma amigável, de acordo com o orçamento familiar do superendividado (de modo a garantir a subsistência básica de sua família, o chamado mínimo vital) e tem inspiração no modelo europeu da reeducação que visa à responsabilização dos deveres pelos compromissos assumidos.

É importante mencionar que foi projetada sua extensão às universidades (o que já está acontecendo) a fim de desenvolver junto aos futuros bacharéis em Direito uma cultura de pacificação dos conflitos e trabalhar em conjunto com outros campos disciplinares, como Psicologia, Serviço Social, Educação e Economia, uma vez que o superendividamento, por ser fonte de exclusão social, violência doméstica, desagregação familiar e acréscimo nas demandas judiciais, necessita ser enfrentado de forma interdisciplinar (Bertoncello e Lima, 2007).

Atualmente, o projeto vem sendo desenvolvido também em Porto Alegre, Canoas e Sapiranga. Na sua segunda fase, para aprofundar ainda mais o caráter educativo, está planejada a criação de oficinas de educação para o crédito. Nessas, dois aspectos principais devem ser abordados: educação em matéria de contratos de crédito e endividamento (o que inclui a discussão acerca de direitos, deveres e regras do sistema financeiro e a capacitação para comparar preços, resistir aos apelos publicitários, elaborar orçamento familiar, etc.) e estratégias de enfrentamento dos momentos de crise (que, além de ensinar a construir e buscar alternativas viáveis e juridicamente corretas, também focará a administração de sentimentos que eclodem nessas situações).

Os primeiros resultados analisados revelam a adequação do modelo escolhido com a ênfase na reeducação, especialmente pelo contato direto entre o consumidor e seus credores na busca de solução conjunta. Esta postura proativa pode configurar o início de uma alteração do paradigma de que o consumidor é o único responsável pelo seu endividamento excessivo (Bertoncello e Lima, 2007, p. 32).

O projeto original prevê uma entrevista de acompanhamento social três meses após os acordos exitosos, mas não há dados sobre as mesmas4. Na avaliação inicial que as juizas responsáveis pelas audiências fazem, elas referem as dificuldades ligadas ao estigma sofrido pelo consumidor superendividado, seu constrangimento em assumir as dificuldades financeiras e até mesmo declarar a totalidade de suas dívidas. Tais posições subjetivas, permeadas pela culpa e vergonha, segundo Bertoncello e Lima (2007), estão presentes nos relatos de Direito Comparado.

Não existem estudos brasileiros publicados acerca das implicações subjetivas do superendividamento. Por isso, uma referência importante é a pesquisa realizada pelo Observatório do Endividamento dos Consumidores de Portugal, que buscou compreender a dimensão psicossocial do sobreendividamento a partir de entrevistas presenciais. Frade e Magalhães (2006) relatam uma enorme confusão e falta de clareza discursiva sobre a situação e seus desencadeadores por parte dos consumidores sobreendividados, somada a apatia e ao choro freqüente. Um dado relevante é a culpa e a vergonha que sentem em relação aos filhos, o que faz com que tentem ao máximo evitar revelar sua situação financeira para eles, eventualmente à custa de maior endividamento para manter as aparências. Essa mesma dificuldade de assumir o sobreendividamento acontece em relação aos amigos e parentes, o que não raro leva ao afastamento do convívio social. As autoras referem também um discurso depreciativo quanto às capacidades de relacionamento interpessoal e de perspectiva profissional (que se torna mais acentuado em sujeitos mais velhos). As estratégias de enfrentamento adotadas podem ser de auto-mobilização (busca de recursos para aumentar rendimentos e/ou reconfiguração do padrão de despesas), mobilização solidária (ativação de redes familiares e afetivas, que demanda admitir perante terceiros sua situação) e mobilização institucional (recurso às políticas de apoio social).

Os estudos internacionais possibilitam alguma compreensão sobre posições subjetivas daqueles que estão superendividados. Contudo, nossa realidade parece ser bastante diferente da européia. No estudo acima apresentado, as autoras referem que alguns entrevistados relataram tentar manter as aparências conservando hábitos como jantares com amigos e viagens. Já Bertoncello e Lima (2008) apontam que, dentre os 158 consumidores que procuram o projeto-piloto até novembro de 2007, 45% tinha renda mensal familiar entre 2 e 3 salários mínimos e 23% até 2 salários mínimos. Por esses dados, são sujeitos de camadas populares que têm procurado o projeto (consumidores superendividados "privilegiados" recorrem diretamente ao judiciário?).

Assim, da mesma forma que em relação a quaisquer outras condições, é necessário conhecer as particularidades que cada contexto engendra. Este é um desafio que o superendividamento dos consumidores traz para a Psicologia Social. E não só para essa disciplina. A importância da articulação de diferentes áreas de conhecimento para seu enfrentamento foi referida em diferentes momentos neste artigo. Só que ainda estamos aprendendo a trabalhar interdisciplinarmente. Para projetar e implementar estudos e ações interdisciplinares é necessário romper com a lógica fechada dos saberes específicos e conceber nossos objetos de estudo como imanentemente transversais. No caso da temática em foco, penso ser fundamental incluir uma área que, apesar de permear as discussões que já vêm sendo feitas, não figura como disciplina a ser mobilizada: a Comunicação Social.

Conhecer as implicações subjetivas do superendividamento e o papel da mídia e da publicidade - em especial a do crédito - no seu engendramento é tarefa complexa e delicada. Em várias passagens, fiz referência à condição de superendividado e também levantei a possibilidade de uma vulnerabilidade associada à mesma. Desafiador é trabalhar com estas questões sem essencializá-las. Como foi visto, existe na doutrina jurídica européia uma caracterização do superendividamento passivo e ativo, consciente e inconsciente. Cabe, a luz dos conhecimentos acerca do processo de subjetivação, problematizar tais categorizações, não no sentido de "desresponsabilizar" os sujeitos, mas de realçar as condições de produção do consumidor superendividado, buscando, como pontuam Bertoncello e Lima (2007), fraturar o paradigma que coloca o consumidor como único responsável pelo endividamento excessivo. Neste sentido, a mobilização das ciências da comunicação pode ser mais um diferencial.

Igualmente fundamental é se debruçar sobre o sofrimento psíquico dos sujeitos que se deparam com o superendividamento. Acredito que ele é diverso, mas não menos importante, para sujeitos de diferentes camadas e posições sociais. É pertinente supor que, para muitos, a situação de vulnerabilidade esteja mais presente - e demande mais a mobilização de redes de apoio social.

Por fim, questionar a naturalização do endividamento em nossa sociedade é uma empreitada de vulto, mas indispensável. Considerar o crédito como "antecipação de rendimentos" envolve bem mais do que um aspecto do orçamentário doméstico. Diz respeito à cultura e às posições sociais, à dinâmica da economia e da política. Se tal discussão não é feita, corre-se o risco de trabalhar somente para "reinserir" os sujeitos na dança do crédito/consumo/(super)endividamento, não se obtendo avanços em termos de empoderamento dos cidadãos.

 

Notas

1. O conceito exclusão social é bastante polêmico no campo da Psicologia Social. Alguns o rejeitaram, pois acreditam que, mesmo quando é trabalhado a partir da relação inclusão/exclusão, remete à um estado e não a um processo; outros o descartaram em função da sua relação com o discurso da luta de classes que dominou a reflexão sociológica por muito tempo; e há ainda os que o abandonaram em decorrência de entenderem que o mesmo está saturado de sentido, de "non-sens"e de contra-senso. O conceito é utilizado em referência a inúmeros processos e categorias, sempre relativos a manifestações que aparecem como fraturas e rupturas do vínculo social, como a questão racial e étnica, o desemprego crônico, a velhice, loucura, deficiência, entre outras (Wanderley, 2006). Apesar de todas as críticas que vem recebendo, penso que a tensão exclusão/inclusão não deixou de ser potente para nosso campo, principalmente quando problematiza as relações de poder que atravessam o tecido social.

2. Como no Brasil não há regime legal para tratamento do superendividamento, os consumidores recorrem ao Poder Judiciário ajuizando ações de revisão contratual, que totalizaram 9955 em 2004, sendo que 33% dessas foram iniciadas no RS (Bertoncello e Lima, 2007).

3. Que foi possível a partir da conjugação de esforços de estudiosos, juízes, grupos acadêmicos de pesquisa e órgãos de defesa dos direitos do consumidor, cujos trabalhos e resultados podem ser conhecidos em Marques e Cavallazzi (2006). O projeto encontra-se em Bertoncello e Lima (2007).

4. O acompanhamento não está sendo realizado, a não ser em uma comarca, em função da inexistência de profissionais que possam assumir esta prática.

 

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Recebido em 23 de agosto de 2010
Aceito em 14 de setembro de 2010
Revisado em 07 de outubro de 2010

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