Services on Demand
article
Indicators
Share
Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza Dec. 2010
RESENHAS
Análise da violencia intrafamiliar no filme feios, sujos e malvados
Autores da resenha
Camila Negreiros ComodoI; Ricardo da Costa PadovaniII; Lúcia Cavalcanti de Albuquerque WilliamsIII
IMestranda em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos. End.: Rua Episcopal, 2474 apto 52 torre I, CEP: 13560049, Centro - São Carlos - São Paulo. E-mail: cami_nc@hotmail.com
IIDoutor em Educação Especial, Professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de São Paulo-Campus Baixada Santista
IIIProfessora Titular do Curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos e coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV)
(Ettore Scola)
Produtora Compagnia Cinematografica Champion, 1976, 115 minutos.
A premiada comédia italiana, Feios, Sujos e Malvados, produzida por Ettore Scola em 1976, discute a problemática da exclusão social e da violência imposta a uma comunidade localizada no subúrbio de Roma. O impacto de tais variáveis é analisado a partir da dinâmica de uma família constituída pelo casal, dez filhos e diversos parentes, todos convivendo no mesmo barraco. A partir do recebimento do seguro devido a um acidente de trabalho pelo patriarca da casa (Giacinto), ocorre uma série de situações, marcadas pelo desrespeito e atos de violência, promovidas pelos próprios membros da família, na tentativa de subtrair a quantia recebida e escondida na casa pelo beneficiado. Deve-se ressaltar que o emprego da violência se apresenta como uma característica comum e aceitável entre os membros da família e da própria comunidade. Sendo assim, a partir de exemplos ilustrativos discutidos ao longo do filme, o presente artigo tem como objetivo analisar exclusivamente o fenômeno da violência contra a mulher, praticada pelo parceiro, de ordem íntima, assim como o impacto dos maus tratos infantis no desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Condições precárias de infraestrutura e moradia, naturalização da violência, cômodos não suficientes ao número de moradores, desemprego, envolvimento expressivo da comunidade em atos considerados ilícitos vêm compor o pano de fundo do desenvolvimento da narrativa. É ilustrativa a cena na qual a comunidade, buscando suprir a ausência de uma instituição voltada para os cuidados de crianças, improvisa uma espécie de cercado onde crianças permanecem durante o período em que seus pais vão trabalhar, sendo os cuidados delegados a um adolescente. Tal cenário deixa evidente a negligência parental, além de denunciar o descaso das autoridades com populações que vivem à margem da sociedade.
A problemática dos maus tratos infantis é amplamente explorada a partir da família de Gacinto. No restrito espaço onde moram, não há separação de cômodos, sendo assim crianças e adolescentes são expostos a situações de risco diversas, dentre as quais pode-se destacar: a negligência (omissão com relação à educação, saúde, alimentação, afeto), abuso físico (agressões físicas), emocional (xingamentos, ameaças e exposição a episódios de agressão do homem à parceira) e sexual (exposição das crianças e adolescentes a relações sexuais de adultos). É importante lembrar, ainda, que morar em cômodos não suficientes ao número de moradores pode se apresentar como um fator de risco adicional, favorecendo a emergência de comportamentos agressivos. (Gallo & Williams, 2005).
Estudiosos apontam que vitimização direta (alvo da agressão) e/ou indireta (exposição à violência conjugal) de crianças e adolescentes podem criar condições favoráveis à transmissão intergeracional da violência (Pears & Capaldi, 2001; Smith e Ireland & Thornberry, 2005). O contexto familiar marcado pelo emprego da violência como forma de enfrentamento de situações problema associado ao emprego corriqueiro de atos ilícitos e violentos na própria comunidade criam condições extremamente favoráveis à modelação de tais comportamentos entre crianças e adolescentes. (Patterson, Reid, & Dishion, 1992).
O impacto da violência no desenvolvimento de crianças e adolescentes vem sendo amplamente discutido pela literatura nacional e estrangeira (Becker-Blease, & Depromce, 2005; Gallo & Williams, 2005; Smith e col., 2005; Maldonado & Williams, 2005). Dentre os possíveis impactos, destacam-se: déficits cognitivos (crenças distorcidas relacionadas ao uso da violência, prejuízos de atenção e memória), emocionais (quadros de ansiedade e depressão), comportamentais (passividade, agressividade) e acadêmicos (fracasso e evasão escolar).
A violência contra a mulher também se apresenta como uma questão presente no filme. Corroborando os achados da literatura (Murphy, Meyer & O'Leary, 1994; Sinclair, 1985; Padovani & Williams, 2009; Williams, Padovani & Brino, 2009), ficam expressivas a desigualdade de poder, o uso da ameaça ou da violência como estratégia de intimidação e controle do comportamento das vítimas, a visão estereotipada dos papéis de gênero e o consumo abusivo de bebidas alcoólicas em diversas cenas do filme. Adicionalmente, pode-se supor as possíveis consequências cognitivas, afetivas e comportamentais relacionadas a tal vivência, como por exemplo, o uso de substâncias psicoativas, quadros de depressão e ansiedade (Sinclair, 1985; Ramos, Carlson & Mcnutt, 2004; Padovani & Williams, 2008).
O desejo de retaliação da vítima, discutido por estudiosos da área (Sinclair,1985; Yourstone, Lindholm & Kristiansson, 2008) pode ser observado no momento em que a parceira do personagem do filme, que se apresenta como um homem violento, tenta matá-lo, colocando veneno em sua comida. Em concordância com a revisão da literatura apresentada no artigo de Yourstone e colaboradores (2008), mulheres agressoras tendem a apresentar uma relação próxima com a vítima, encontram-se em uma situação de desvantagem de poder e força física e apresentam altos níveis de provação, exposição a situações de violência (física e emocional) e raiva. Em resposta à tentativa de homicídio por parte da parceira, o personagem ateia fogo na casa, colocando em risco todos os moradores do lar.
A relação reproduzida no filme vem na direção dos achados da literatura no que se refere ao perfil da vítima e do agressor e em relação às consequências decorrentes da violência para a saúde física e mental dos mesmos. (Sinclair, 1985; Soares, 1999; Cortez, Padovani & Williams, 2005, Padovani & Williams, 2008). Como características do personagem que favorecem o uso da violência, pode-se inferir: a relação desigual de poder entre agressor e vítima, o uso da violência como alternativa para a resolução de conflitos, a vulnerabilidade nas discussões de ordem íntima, a visão estereotipada de gênero e o consumo exagerado de bebidas alcoólicas. (Holtzworth-Munroe & Meehan, 2004; Cortez e col., 2005; Henning. & Holdford, 2006; Padovani & Williams, 2009). Além disso, a ausência de uma punição judicial aos comportamentos direcionados à parceira no decorrer do filme, explica, em parte, a manutenção do comportamento do agressor.
Dado o exposto, fica evidente que as relações exibidas no filme possuem estreita relação com os achados da literatura acerca da violência doméstica, o que torna Feios, Sujos e Malvados um recurso didático para a discussão desse fenômeno. Portanto, pode-se afirmar que passadas três décadas do lançamento do filme, as questões das desigualdades sociais e econômicas marcantes, a vivência de episódios de violência nas diferentes modalidades de relação interpessoal e o desrespeito à condição da criança e adolescente continuam presentes em muitos países na atualidade.
Referências
Becker-Blease, K. A., & Depromce, A.P. (2005). Child victimization, cognitive functioning, and academic performance. In K. A Kendall-Tackett, S. M. Giacomoni, (Ed.), Child victimization: Maltreatmentm bullyng and dating violence, preventivion and intervention (pp.1-13). New Jersey, NJ: Civic Research Institute. [ Links ]
Cortez, M. B., Padovani, R. C., & Williams, L. C. A. (2005). Terapia de grupo cognitivo-comportamental com agressores conjugais. Estudos de Psicologia, 22 (1) 13-21. [ Links ]
Gallo, A. E., & Williams, L. C. A. (2005). Adolescentes em conflito com a lei: Uma revisão dos fatores de risco para a conduta infracional. Psicologia, 7 (1), 81-95. [ Links ]
Henning, K., Jones, A., & Holdford, R. (2005). I didn't do it, but if I did I had a good reason: Minimization, denial, and attributions of blame among male and female domestic violence offenders. Journal of Family Violence, 20 (3), 131-139. [ Links ]
Holtzworth-Munroe A., & Meehan J. C. (2004). Typologies of men who are maritally violent: scientific and clinical implications. Journal Interpersonal Violence, 19, 1369-1389. [ Links ]
Maldonado, D. P. A., & Williams, L. C. A. (2005). Meninos agressivos na escola: Qual a relação com violência doméstica?. Psicologia em Estudo, 10 (3), 353-362. [ Links ]
Murphy, C. M., Meyer, S., & O'Leary, K. D. (1994). Dependency characteristics of partner assaultive men. Journal of Abnormal Psychology, 103, 729-735. [ Links ]
Padovani, R. C., & Williams, L. C. A. (2008). Histórico de violência intrafamiliar em pacientes psiquiátricos. Psicologia Ciência e Profissão, 28, 520-535. [ Links ]
Padovani, R. C., & Williams, L. C. A. (2009). Atendimento psicológico ao homem que agride sua parceira. In R. C.Wielenska (Org.), Sobre comportamento e cognição (Vol. 24, pp.305-313), Santo André, SP: ESETec. [ Links ]
Patterson, G., Reid, J., & Dishion, T. (1992). Antisocial boys. Salem, OR: Castalia. [ Links ]
Pears, K. C., & Capaldi, D. M. (2001) Intergenerational transmission of abuse: A two-generational prospective study of an at-risk sample. Child Abuse & Neglect, 25 (11), 1439-1461. [ Links ]
Ramos, B. M., Carlson, B. E., & Mcnutt, L. A. (2004). Lifetime abuse, mental health and African American woman. Journal of Family Violence, 19 (3), 153-164. [ Links ]
Sinclair, D. (1985). Understanding wife assault. Torronto, Canada: Publications Ontario. [ Links ]
Smith, C. A., Ireland, T. O., & Thornberry, T. P. (2005). Adolescent maltreatment and its impact on young adult antisocial behavior. Child Abuse & Neglect, 29, 1099-1119. [ Links ]
Soares, B. M. (1999). Mulheres Invisíveis: Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. [ Links ]
Williams, L. C. A., Padovani, R. C., & Brino, R.F. (2009). O empoderamento da família para enfrentar a violência doméstica. São Carlos, SP: EdUFScar. [ Links ]
Yourstone, J., Lindholm, T., & Kristiansson, M. (2008). Women who kill: A comparison of the psychosocial background of female and male perpetrators convicted of lethal violence in Sweden between 1995-2001. International Journal of Law and Psychiatry, 31, 374-383. [ Links ]
Recebido em 18 de setembro de 2010
Aceito em 2 de novembro de 2010
Revisado em 27 de novembro de 2010