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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.4 Fortaleza Dec. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A desautorização do processo perceptivo na negação não psicótica da gravidez

 

Disallowing the perceptive process in the non-psychotic denial of pregnancy

 

El no-autorización del proceso perceptivo en la negación psicótica del embarazo

 

La desautorizacion du processus perceptif dans non psychotiques déni de grossesse

 

 

Thomás Gomes GonçalvesI; Mônica Medeiros Kother MacedoII

IPsicólogo. Psicanalista em formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA). Mestrando em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no grupo de pesquisa Fundamentos e Intervenções em Psicanálise. Av. Venâncio Aires 509/303, Cidade Baixa. CEP 90.040-193 - Porto Alegre - RS. E-mail: gomes.thomas@gmail.com
IIPsicóloga. Psicanalista. Doutora em Psicologia. Professora Adjunta da Graduação e do Programa de Pós-Graduação da FAPSI/ PUCRS. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Fundamentos e Intervenções em Psicanálise FAPSI/PUCRS. Membro Pleno da Sociedad Psicoanalítica del Sur de Buenos Aires. R. Florêncio Ygartua 69/307, Moinhos de Vento. CEP 90.430-010 - Porto Alegre - RS. E-mail: monicakm@pucrs.br

 

 


RESUMO

A literatura científica mundial adota atualmente a denominação de negação não psicótica da gravidez para se referir à situação na qual uma mulher não sabe que está grávida até o momento do parto, ou pelo menos durante boa parte do período gestacional. Pode ser definida, também, como a falta de consciência subjetiva por parte da mulher em relação a estar grávida. Esse fenômeno é explorado neste artigo mediante a abordagem de conflitos e mecanismos psíquicos que sustentam sua dinâmica psíquica. Para tal, discorre-se sobre o mecanismo Verleugnung, a partir de proposições do psicanalista Luis Cláudio Figueiredo, no sentido de traduzi-lo como "desautorização". Entende-se que na situação da negação não psicótica da gravidez, explorada sob o viés da desautorização, se encontram ampliadas as condições de compreensão a respeito do estabelecimento de uma condição psíquica singular a qual resulta na situação em que uma mulher não toma conhecimento de sua condição de estar gerando outro ser. Também são apresentadas contribuições de autores psicanalíticos contemporâneos que fornecem pertinentes ferramentas de compreensão no que diz respeito à situação da negação não psicótica da gravidez. Tal fenômeno, ao desautorizar a percepção e gerar um impedimento de estabelecer conexões psíquicas e atribuir sentido a esta experiência, resulta no predomínio de intensidades traumáticas no psiquismo.

Palavras-chave: Verleugnung, negação não psicótica da gravidez, psicanálise, desautorização, trauma.


ABSTRACT

The scientific literature adopts, currently, the name non-psychotic denial of pregnancy to denominate a situation in which a woman does not know that she is pregnant until labor, or at least, for most of the gestational period. The situation can also be defined as a lack of subjective awareness of the woman concerning her pregnancy. This phenomenon is explored in this article addressing the conflicts and psychic mechanisms which support its psychic dynamic. In order to explore this phenomenon, we discuss the mechanism of Verleugnung from the ideas of the psychoanalyst Luis Cláudio Figueiredo who translates Verleugnung as "disallow". The comprehension of the non-psychotic denial of the pregnancy condition, through the concept of disallow, can broaden our understanding regarding the establishment of this singular psychic condition which results in the situation when a woman is not aware of her own pregnancy. We also present some contributions of contemporary psychoanalytical authors who give us essential tools for understanding the situation of non-psychotic denial of pregnancy. This phenomenon, that disallows perception and generates an obstruction for the establishment of psychological connections which gives meaning to the experience, results in a predominance of traumatic intensities in the psyche.

Keywords: Verleugnung, non-psychotic denial of pregnancy, psychoanalysis, disallow, trauma.


RESUMEN

La literatura científica mundial adopta actualmente la denominación de negación no psicótica del embarazo para referir a la situación en la cual una mujer no sabe que está embarazada hasta el momento del parto, o por lo menos durante buena parte del período gestacional. Puede ser definida también, como la falta de conciencia subjetiva por parte de la mujer en relación a estar embarazada. Ese fenómeno es explorado en este artículo mediante el abordaje de conflictivas y de mecanismos psíquicos que sustentan su dinámica psíquica. Para tal, se discurre sobre el mecanismo Verleugnung, a partir de proposiciones del psicoanalista Luis Cláudio Figueiredo, en el sentido de traducirlo como "desautorización". Se entiende que en la situación de la negación no psicótica del embarazo explorada a partir de la óptica de la desautorización se encuentran ampliadas las condiciones de comprensión al respecto del establecimiento de una condición psíquica singular la cual resulta en la situación en que una mujer no toma conocimiento de su condición de estar generando otro ser. También son abordados aportes de autores psicoanalíticos contemporáneos que proporcionan pertinentes herramientas de comprensión al respecto de la situación de la negación no psicótica del embarazo. Tal fenómeno, al desautorizar la percepción y generar un impedimento de establecer conexiones psíquicas y atribuciones de sentido a esta experiencia, resulta en el predominio de intensidades traumáticas en el psiquismo.

Palabras-clave: Verleugnung, negación no psicótica del embarazo, psicoanálisis, desautorización, trauma.


RÉSUMÉ

La littérature scientifique mondiale adopte actuellement la dénomination de déni non psychotique de grossesse pour se rapporter à la situation où une femme ne sait pas qu'elle est enceinte jusqu'au moment de l'accouchement, ou au moins pendant une grande partie de la gestation. On peut la définir également en tant que manque de conscience subjective de la femme au fait d'être enceinte. Ce phénomène sera développé dans le présent article par le biais de conflits et de mécanismes psychiques que soutiennent la dynamique psychique. Pour autant, nous aborderons le mécanisme de la Verleugnung, à partir des propositions du psychanalyste Luis Cláudio Figeuiredo, dans le sens d'en traduire comme «des-autorisation». On comprend qu'en abordant la situation du déni non psychotique de grossesse par la des-autorisation on amplifie les conditions de compréhension de l'établissement d'une condition psychique singulière, dans laquelle se trouve une femme qui ne prend pas conscience de sa grossesse. On présente également ici les contributions des auteurs psychanalytiques contemporains qui nous offrent des outils importants à la compréhension du déni non psychotique de grossesse. Tel phénomène, en des-autorisant la perception et en établissant un empêchement de liaisons psychiques à l'attribution de sens à cette expérience, aboutit à une prédominance des intensités traumatiques dans le psychisme.

Mots-clés: Verleugnung, déni non psychotique de grossesse, psychanalyse, des-autorisation, trauma.


 

 

Introdução

A complexa situação de não reconhecimento da própria gravidez por parte de mulheres sem o diagnóstico de psicose tem sua compreensão pouco explorada em artigos científicos. Entende-se que abordar essa situação a partir da ótica da psicanálise permite problematizá-la no que diz respeito à intricada rede de condições psíquicas que levam ao não reconhecimento de uma experiência relativa às percepções do si mesmo. Toma-se o conceito de si mesmo conforme desenvolvido por Moraes e Macedo (2011), no sentido de uma imagem de si construída a partir de movimentos identificatórios. Nessa construção tem papel fundamental a internalização dos enunciados parentais. Logo, o si mesmo é produto do processo identificatório.

Pretende-se, neste trabalho, explorar tal situação clínica do ponto de vista conceitual, a fim de promover uma discussão sobre conflitivas e mecanismos psíquicos presentes em sua ocorrência. Para tal, discorre-se sobre o mecanismo da Verleugnung e abordam-se contribuições de autores psicanalíticos contemporâneos com aportes teóricos que permitem problematizar a dinâmica psíquica do fenômeno, bem como são referidas contribuições de autores que se dedicam a estudar a ocorrência da negação não psicótica da gravidez. Este artigo tem, portanto, como objetivo principal, propor uma leitura do fenômeno a partir de aportes psicanalíticos tais como os conceitos de clivagem e desautorização. São esses elementos que permitem construir considerações sobre a complexa dinâmica psíquica presente no fenômeno da negação não psicótica da gravidez.

 

Contextualizando a Negação Não Psicótica da Gravidez

A situação na qual uma mulher não detecta a própria gravidez tem sua denominação em inglês como non-psychotic denial of pregnancy. Essa experiência pode ser definida como a falta de consciência subjetiva por parte da mulher em relação a estar grávida (Chaulet, 2011; Ferragu, 2002; Wessel, Endrikat & Buscher, 2002). Esse fenômeno pode ocorrer de duas diferentes modalidades, isto é, a negação da gravidez em forma parcial ou total.

Para que seja considerada uma negação não psicótica da gravidez de forma parcial, considera-se que uma mulher não saiba que está grávida do quinto mês de gestação em diante. Já sua forma mais extrema, a forma total, diz respeito a uma mulher descobrir que está grávida somente no momento do parto (Chaulet, 2011; Gonçalves & Macedo, 2012; Guernalec-Levy, 2007, Wessel et al, 2002).

A situação na qual uma mulher descobre que está gerando outro ser somente a partir do quinto mês de gestação, denominada de negação em forma parcial, contempla certas possibilidades à mulher tais como escolher omitir para as pessoas de seu convívio que está grávida até o final da gestação, ou assumir sua condição, passando a lidar com esta situação. Neste leque de alternativas incluí-se a possibilidade da mulher preparar-se para ser mãe e iniciar um processo de envolvimento com o bebê que está gerando e que, até então, permanece ignorado. Por outro lado, a forma total, também referida como uma condição de negação massiva (Guernalec-Levy, 2007), e que caracteriza a forma extrema da negação não psicótica da gravidez, relaciona-se a situações nas quais as mulheres ficam sabendo que estão grávidas somente no momento do parto (Gonçalves & Macedo, 2012). Nessas situações, o biológico se impõe, rompendo aquilo que estava sendo mantido fora da consciência; o parto deflagra, a ferro e fogo, a verdade em relação àquilo que a mulher tentou, a um alto custo, inconscientemente, desconhecer.

A literatura a respeito do tema enfatiza a condição de que, nestas situações denominadas de negação não psicótica da gravidez, a relação com a realidade está preservada, ou seja, as observações clínicas permitem afirmar que estas grávidas não estão vivenciando um episódio psicótico (Spielvogel & Hohener, 1995). Esse fenômeno, então, não é uma dissimulação da gravidez e tampouco é resultante de uma condição psíquica de ruptura com a realidade. Não se trata, portanto, de uma situação na qual a mulher sabe que está grávida, porém não revela esse fato aos demais, por medo do que a revelação da gravidez possa causar em seu entorno.

Nesse sentido, é importante ressaltar a diferença entre a dissimulação da gravidez, negação psicótica da gravidez e uma negação não psicótica da gravidez. Miller (2003) diferencia esses três fenômenos nas seguintes nomenclaturas: negação afetiva (affective denial), negação psicótica (psychotic denial) e negação intrusiva (pervasive denial) ou, como é geralmente chamada, a negação não psicótica da gravidez. Segundo Miller (2003), na negação afetiva, a mulher desinveste e não se mostra interessada pela gestação; elas não pensam, não sentem e tampouco se comportam como se estivessem grávidas, passando então a dissimular seu estado gravídico para o seu entorno. Na negação psicótica, a autora afirma que há uma ruptura com a realidade e a mulher vivencia a gravidez de forma delirante. Em ambos os casos de negação, o ventre se dilata e a gestação é perceptível para os outros. Em relação à última denominação, a mulher não sabe que está grávida e, quando sinais característicos da gestação se apresentam, ela relaciona com alguma outra causa, por exemplo, o aumento de peso estar relacionado com estresse ou a interrupção da menstruação, por ter se mudado de lugar, de trabalho, por um luto ou outro motivo (Miller, 2003). Nesses casos, segundo Navarro (2009), o ventre não se dilata e o bebê se desenvolve ao longo da coluna vertebral. O autor denomina esta situação em que o bebê se encontra de "bebê clandestino". Guernalec-Levy (2007) considera que na negação não psicótica da gravidez existe uma situação denominada de "bebê discreto", a qual diz respeito à falta de concordância entre os movimentos fetais e a interpretação que a mãe lhes atribui. Os movimentos do bebê podem ser identificados como gases intestinais.

À primeira vista, o fenômeno da negação da gravidez pode parecer raro e exótico, contudo, em países como França, Áustria, Alemanha e Estados Unidos, onde existem pesquisas mais avançadas neste campo do conhecimento, fica evidente, por meio de resultados dos estudos realizados, que esta situação é frequente. É ponto de concordância entre autores estudiosos do tema que, para melhor compreensão do fenômeno da negação não psicótica da gravidez, é necessário situá-la como não rara e tampouco exótica, contrariando, assim, o senso comum (Bonnet, 1993; Brezinka, Huter, Biebl & Kinzl, 1994; Chaulet, 2011, Marinopoulos & Nisand, 2011; Spinelli, 2010; Wessel et al, 2002). Além disso, a situação da ocorrência da negação não psicótica da gravidez é mais frequente do que a eritroblastose fetal1 e a ruptura uterina2 ; sendo, ainda, três vezes mais comum do que o nascimento de trigêmeos (Wessel et al., 2002).

O fenômeno da negação não psicótica da gravidez tampouco pode ser considerado recente, sendo que as primeiras observações e descrições sobre essa situação datam do século XVII, realizadas, sobretudo, pelo ginecologista François Moriceau, que descreveu em seus estudos o que denominava como méconnaissance de la grossesse (ignorância da gravidez). Essa situação se referia às observações que realizava no sentido da continuidade de sangramento durante a gestação, impedindo com que certas mulheres pudessem perceber que estavam grávidas. No entanto, François Moriceau acabou por não explorar profundamente seus estudos e observações em relação a este fenômeno (Marinopoulos & Nisand, 2011).

Em 1858, o psiquiatra Louis-Victor Marcé, aluno do psiquiatra francês Jean Esquirol, expôs casos de sua prática médica nos quais pacientes diziam que não sabiam que estavam grávidas. Esse psiquiatra apresentou o caso de Rosalie Prunot, que foi julgada por ter cometido infanticídio e no qual esta declarava que havia matado seu filho logo após o nascimento por não saber que estava gestando um outro ser (Guernalec-Levy, 2007; Marinopoulos & Nisand, 2011).

Em 1898, George Gould (médico) tentou agrupar casos em que mulheres não sabiam que estavam grávidas sob a denominação de gravidez inconsciente. Sua pesquisa se restringiu a nove casos encontrados na literatura, porém, ele apenas descreve os casos e não propõe nenhuma hipótese de trabalho. Depois do trabalho desenvolvido por Gould, o tema foi deixado de lado e não se manteve como foco de estudo (Guernalec-Levy, 2007; Marinopoulos & Nisand, 2011).

Somente por volta da década de 1980 são retomadas as pesquisas sobre o fenômeno da negação não psicótica da gravidez. Os primeiros estudos da década de 1980 estavam mais relacionados à área de obstetrícia como, por exemplo, o estudo de Milstein & Milstein (1983). Já, em décadas posteriores, o cenário na pesquisa sobre esse fenômeno ganhou destaque e contornos mais aprofundados, resultando em importantes contribuições sobre essa situação (Bonnet,1993; Chaulet, 2011; Ferragu, 2002; Spinelli, 2010; Wessel et al., 2002).

Dentre essas pesquisas, destaca-se a realizada na Alemanha por Wessel et al. (2002), no período compreendido entre 1º de julho de 1995 e 30 de junho de 1996. Nesse estudo objetivou-se saber quantas mulheres tinham apresentado o fenômeno da negação não psicótica da gravidez. Os pesquisadores constataram que 65 mulheres passaram por essa situação, sendo que 90% tinham idades entre 19 e 41 anos, com idade média de 27 anos, tendo 15 anos a mulher mais jovem e 44 anos a mais velha. Os pesquisadores constataram que a grande maioria era alemã, sendo apenas quatro estrangeiras, bem como o fato de que 54 mulheres tinham um parceiro fixo. Dessas mulheres, 42 viviam com seus companheiros e três, menores de idade, viviam com seus pais; 36 mulheres tinham tido pelo menos uma gestação anterior, oito delas já haviam interrompido a gravidez ou sofrido um aborto, e o restante do grupo não tinha engravidado anteriormente. Sobre o diagnóstico de negação não psicótica da gravidez, o estudo apontou que 24 mulheres descobriram que estavam grávidas durante o trabalho de parto; três delas estavam em casa e, repentinamente, tiveram um filho, sem nenhuma ajuda médica. Já as outras 41 mulheres tiveram o diagnóstico de gravidez realizado ainda durante a gestação: até a vigésima quarta semana em 14 mulheres; entre a vigésima quinta e vigésima oitava em nove mulheres; entre a vigésima nona e a trigésima segunda em oito; entre a trigésima terceira e trigésima sétima em oito; e no começo da trigésima oitava semana em duas mulheres. Esta variação referente ao momento do diagnóstico de gravidez no cenário de negação não psicótica da gravidez, permite constatar o quanto o fenômeno não se restringe apenas ao período inicial da gravidez, podendo, efetivamente, ocorrer em um período avançado da gestação.

Sobre a condição dos nascimentos, Wessel et al. (2002) apuraram que foram 69 nascimentos, sendo quatro pares de gêmeos, 12 partos pré-termo e o restante nasceu no tempo normal de gestação. Eram 37 bebês do sexo masculino e 32 do sexo feminino, e o peso variou entre 995 gramas e 4.920 gramas. Das crianças, 51 permaneceram com seus pais, 13 foram colocadas para serem adotadas e uma foi efetivamente adotada. A proporção total encontrada com esse estudo foi de uma gestação na qual se identificou a negação não psicótica da gravidez, para 475 nascimentos em geral. Os pesquisadores ressaltam que a negação não psicótica da gravidez não deve ser encarada apenas no seu nível mais extremo, ou seja, quando as mulheres entrarem em trabalho de parto repentinamente, mas, também, deve incluir aquelas que não sabiam que estavam grávidas da vigésima semana de gestação em diante. Para obter uma melhor compreensão do fenômeno da negação não psicótica da gravidez, os pesquisadores fizeram uma projeção de quantas gravidezes com negação não psicótica ocorreriam em toda a Alemanha, tendo como base o estudo que fizeram nos hospitais de Berlim. Constataram, então, que 300 situações de gravidez aconteceriam por ano sem que a mulher tivesse a mínima noção de estar grávida.

Dessa forma, cabe um questionamento a respeito de possibilidade de compreensão da intrincada dinâmica que parece estar subjacente a um fenômeno descrito como não alusivo a uma condição psíquica de psicose. Considerando tratar-se de um fenômeno não raro e com importantes efeitos intrapsíquicos no campo intersubjetivo, entende-se ser pertinente a busca nos aportes psicanalíticos de ferramentas que permitam explorar a complexidade de tal situação.

No que diz respeito aos importantes efeitos intrapsíquicos e no campo intersujetivo, cabe ressaltar o fenômeno do neonaticídio. Resnick (1969) cunhou essa denominação para designar a morte de um infante em suas primeiras vinte e quatro horas de vida por parte de um ou de ambos os genitores. O neonaticídio pode ocorrer nas situações da negação não psicótica da gravidez em sua forma total, quando a mulher, tomada pela surpresa e pânico de ter parido um ser que até então desconhecia, acaba por matar o infante como forma de não entrar em contato com aquilo que se apresenta de maneira avassaladora. Os artifícios utilizados para matar o recém-nascido como, por exemplo, o sufocamento e o afogamento, indicam a tentativa da mulher em calar o choro do recém-nascido. Sabe-se que uma forma frequente na ocorrência de neonaticídio é o afogamento do bebê em vasos sanitários, por este local ser comumente o lugar onde acaba por acontecer o parto (Resnick,1970; Bonnet,1993; Beyer, Mack & Shelton, 2008).

É importante diferenciar a morte de um infante nas primeiras vinte e quatro horas de vida daquelas ocorridas durante o primeiro ano de vida, como é o caso do infanticídio. Em sua grande maioria, em casos de neonaticídio, os genitores não apresentam nenhum quadro psicopatológico, já, em casos de nas mortes de infantes ao longo do primeiro ano de vida, que é o caso do infanticídio, isto já se mostra diferente, pois, comumente, os genitores que cometem infanticídio apresentam distúrbios psíquicos significativos (Beyer et al., 2008).

Bonnet (1993) apresenta duas distintas modalidades de neonaticídio, a passiva e a ativa. Na sua forma passiva, a mãe negligencia o filho após o seu nascimento, podendo não lhe dar os cuidados necessários perante as necessidades vitais do recém-nascido, ou assim como abandoná-lo em algum local. O neonaticídio ativo ocorre quando de fato um dos genitores, em geral a mãe, mata seu filho. A morte do infante em caso de neonaticídio ocorre na maioria das vezes por parte da mãe, assim o neonaticídio paterno é considerado raro (Bonnet, 1993; Renisck, 1970).

Cabe ainda ressaltar que todos os processos comumente vividos pela mulher durante a gestação vão preparando-a para receber um novo ser na sua vida. Processos estes essenciais na adaptação da mãe às necessidades do filho recém-nascido e fundamentais na relação que vai se estabelecer entre ela e o bebê. Ao se apresentarem os primeiros sintomas da gravidez, certas mulheres logo fazem associações entre eles e uma possível gestação, outras, ao contrário, se veem impossibilitadas de relacionar sintomas que são comumente típicos de uma gravidez (Szejer & Stewart, 2000). Os autores afirmam que a grande maioria das mulheres cogita a possibilidade de estar gestando outro ser a partir do momento em que para de menstruar. Do momento em que começa a cogitar sobre a possível gestação, até o momento em que confirma isso, a mulher experimenta algumas incertezas.

A ambivalência é um fator que pode estar presente nos momentos em que ainda não há a confirmação da gravidez, podendo, então, a mulher desejar estar grávida e, ao mesmo tempo, não desejar que isso seja verdade. Tal condição resulta de o desejar e o não desejar serem simultâneos. A forma como cada mulher escuta seu próprio corpo é singular. Algumas dizem estarem convictas sobre a possibilidade de uma gestação e sabem quando conceberam seu bebê, assim como algumas prontamente interpretam os primeiros sinais, como náuseas, aumento dos seios, sensação de desconforto, como sinais de uma possível gestação (Szejer & Stewart, 2000). Em contrapartida, os autores afirmam que algumas mulheres procuram várias explicações sobre os sinais característicos de uma gestação, como, por exemplo, associar a súbita vontade de dormir com algum outro fator externo. Apesar disso, por mais que se trate de uma convicção, é necessário que adentre nesse cenário um terceiro, isto é, o teste de gravidez, o médico, o laboratório, para que assim ocorra uma certeza e se confirme que a mulher esteja grávida. Todos os sinais anteriores à confirmação da gestação, segundo Szejer e Stewart (2000), apontavam para a mulher que ela estava grávida, sendo inquestionável que há uma mudança importante quando se passa do enunciado "talvez eu esteja grávida" para "eu estou grávida".

Na negação não psicótica da gravidez, toda a preparação e o processo da mulher de se descobrir grávida e ir experienciando cada etapa da gestação está ausente de maneira parcial ou total. Assim, reafirma-se o grave prejuízo no que diz respeito à relação mãe-bebê, pois, segundo Stainton (1985), essa relação já começa na vida intrauterina, uma vez que a maternidade também já inicia na gestação. O autor ressalta que seria errôneo pensar que os atributos inerentes à condição de ser mãe só começariam após o nascimento. Nesse sentido, se a relação mãe-bebê e as condições para a maternidade já se instauram durante o estado gravídico, e se solidificam após o nascimento, são importantes os efeitos no campo intersubjetivo quando, desde o início do processo gestacional, ocorre o não reconhecimento do que está ocorrendo.

Outro aspecto que fica abruptamente impedido de acontecer em casos de negação não psicótica da gravidez é o fato da mãe, ao longo da gestação, criar um bebê imaginado. Segundo Ferrari, Piccinini e Lopes (2007), a construção de um bebê imaginado envolve aspectos que vão personificando o bebê - nome, compra de roupas, mudanças na casa para a chegada do futuro bebê - , para que no momento do nascimento a mãe não se sinta perante um estranho. Outra vez, fica evidente o risco, na negação não psicótica da gravidez, para que possam ocorrer casos de neonaticídio frente ao impacto causado na mulher pelo nascimento de seu bebê (Gonçalves & Macedo, 2011).

A gravidez é um processo que exige diversas mudanças nas mais variadas áreas da vida da mulher, bem como produz efeitos na vida das pessoas de seu entorno (Piccinini, Gomes, Nardi, Lopes, 2008). Pode-se considerar, portanto, que, no caso da negação não psicótica da gravidez, uma série de condições prévias tornou as possibilidades de preparação e de metabolização impedidas. Não se trata apenas de considerar os meses necessários para que um embrião se transforme em um bebê, mas, também, para que uma mulher possa constituir-se para o exercício da função psíquica fundamental que virá a desempenhar junto a seu filho. Inegavelmente, o fenômeno da negação não psicótica da gravidez, via impossibilidades que passam a cercear o exercício da feminilidade e o reconhecimento da gestação de um filho, convoca a uma reflexão sobre a modalidade de padecimento que ela denuncia.

 

A Desautorização: Um Aporte Teórico para a Compreensão da Negação Não Psicótica da Gravidez

No intuito de problematizar o fenômeno da negação não psicótica da gravidez com base em aportes da psicanálise, toma-se como ponto de partida o mecanismo da Verleugnung. O termo Verleugnung foi originalmente foi descrito por Freud (1927/1974b) como um mecanismo característico do fetichismo e da psicose. A partir dos aportes freudianos, Laplanche e Pontalis (1982) descrevem a Verleugnung como sendo um modo de defesa que consiste em uma recusa por parte do sujeito em reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, essencialmente a da ausência de pênis na mulher. Os autores propõem a tradução de Verleugnung para o português como recusa da realidade. Entende-se tal proposição terminológica na medida em que esse mecanismo é evocado por Freud (1927/1974b), em particular, para explicar mecanismos próprios do fetichismo e das psicoses.

A riqueza desse conceito permite, na perversão, contemplar o recurso de alteração da realidade naquilo que ela confronta o sujeito com o registro da castração. Já a clivagem, considerando-se a psicose, conta de uma radical ruptura no investimento do sujeito em relação à realidade externa e cujas produções psíquicas deturpadoras da realidade dão testemunho. Neste artigo propõe-se compreender a dinâmica psíquica do fenômeno da negação não psicótica da gravidez tomando como eixo os conceitos de clivagem e de desautorização.

Freud (1938/1974c), no texto A Divisão do Ego no Processo de Defesa, aborda o impacto que a recusa tem e sobre sua participação em uma clivagem do ego, tanto no fetichismo quanto na psicose. Nesse texto, Freud afirma que uma criança na situação na qual tem uma exigência pulsional que comumente satisfaz, ao se deparar com uma experiência que lhe impede esta satisfação, poderá tomar dois rumos. Um deles é renunciar à satisfação pulsional, outro é rejeitar a realidade e conservar a satisfação. Porém, em algumas situações, a criança toma ambos os rumos e, "com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro no mesmo alento, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico" (Freud, 1938/1974c, p.293). As partes em disputa alcançam o que almejam, porém a um alto custo ao sujeito, pois abre-se uma fenda no ego. Esta descrição freudiana caracteriza a situação descrita como clivagem do ego.

Segundo Safatle (2010), geralmente o termo Verleugnung é traduzido em português por desmentido, devido principalmente à sua proximidade com as palavras alemãs luge (mentira) e ableugnen (desautorizar). Neste trabalho, daremos ênfase à proposta do psicanalista Luís Cláudio Figueiredo de tradução do termo Verleugnung como desautorização.

A partir das considerações de Figueiredo (2008) no sentido de traduzir Verleugnung como desautorização, entende-se que esse mecanismo tem ampliada sua aplicação, mostrando-se uma pertinente ferramenta de leitura que diz respeito à situação da negação não psicótica da gravidez. Passa-se, portanto, a apresentar algumas considerações teóricas a respeito do estabelecimento de uma condição psíquica singular, a qual resulta no fato de uma mulher não tomar conhecimento de sua condição de estar gerando outro ser.

Figueiredo (2008) ressalta que, a partir da experiência clínica com pacientes que possuem uma fina capacidade de observação e que revelam algumas características bastante peculiares em seu funcionamento mental, pôde perceber que esses pacientes possuem uma capacidade de

registrar e armazenar aspectos importantes da realidade externa e interna em que evoluem; da mesma forma, conseguem comunicar com clareza o que puderam captar nos outros e em si mesmos ao longo das diversas situações da vida em que se viram envolvidos, em especial nas situações mais complexas, difíceis e dolorosas. (p.57)

Apesar dessa condição, paradoxalmente, segundo o autor, esses pacientes "tendem a não tirar consequências desses elementos e a não ser capazes de ligá-los uns aos outros para a formação de uma visão mais ou menos integrada e conclusiva da realidade própria e alheia" (Figueiredo, 2008, p.57). Tal situação faz com que esses pacientes não consigam, a partir dessas cenas isoladas, montar relatos consistentes, capazes de dar um certo sentido à vida e aos seus padecimentos.

Nessa direção, entende-se ser possível apresentar um raciocínio que contemple a dinâmica presente no mecanismo de desautorização e os aspectos observados no fenômeno da negação não psicótica da gravidez. Bonnet (1993) traz importantes contribuições sobre os mecanismos psíquicos que englobam esse fenômeno. A autora pesquisou 28 mulheres que colocaram seus filhos para adoção, sendo que, na história de algumas dessas mulheres, identificou-se a ocorrência do fenômeno da negação da gravidez. Ressalta que, por mais que os sintomas de gravidez se apresentassem a essas mulheres, elas não conseguiam fazer uma conexão sobre essas mudanças em seus corpos e uma vida sexual fecunda, isto é, nunca acharam que uma relação sexual poderia resultar em gravidez. As participantes da pesquisa costumavam usar a racionalização para explicar a presença de sintomas característicos de gravidez, como, por exemplo, atribuir a ausência de menstruação a viagens frequentes realizadas. Nessa linha de raciocínio, Bonnet (1993) propõe o termo gravidez impensável a fim de explicar o que ocorre nessa situação, uma vez que essas mulheres nunca pensaram que pudessem ser mães e não reconheceram os indicativos frente à própria gravidez. Em seu trabalho clínico, a autora identificou que, para essas pacientes, palavras como grávida e gravidez eram expressões proibidas em suas famílias de origem, levando a uma negação do potencial de procriar, desde uma tenra idade.

Outro aspecto pesquisado por Bonnet (1993) se refere a uma falta de diferenciação em relação às diferenças presentes entre uma geração e outra. Nesse sentido, Sternbach (2009) argumenta sobre uma flexibilidade na trama familiar, mediante a qual se evidencia a importância da condição de ter a abertura de um "fazer lugar", para que uma criança possa ingressar e ocupar um espaço diferente dos demais membros da família. Para que isso ocorra, segundo a autora, é necessário um consentimento que parte das capacidades familiares de processamento psíquico. Existem situações de indiscriminação geracional nas quais lugares e funções se confundem, assim como pais que funcionam na maioria das vezes como filhos, delegando a função parental aos avós ou aos filhos, os quais acabam assumindo funções de apoio e proteção em relação aos progenitores. Dessa forma, a diferença entre gerações está enfraquecida ou até, em alguns casos, apagada. Ainda, segundo a autora, quando um novo membro surge no meio familiar, o nascimento desta criança requer um movimento permutativo em relação à cadeia genealógica, isto é, se desocupa um lugar para se ocupar outro, e, do mesmo modo, o lugar desocupado passa a ser preenchido por outra pessoa. Assim, quando os filhos se convertem em pais e em seguida em avos, se exige uma discriminação entre uma determinada função e o ocupante transitório da mesma. Porém, quando se presentificam adversidades na tramitação, e isto se mostra evidente em famílias nas quais o tempo está parado e o lugar dos membros da família está intransponível, não há espaço para essa função entrar em movimento e ser transmitida. Atenta-se para situações em que o lugar de mãe se encontra encarnado de modo vitalício e intemporal por uma avó ou bisavó, ou seja, isso remete a um princípio que não abre possibilidades de uma substituição geracional e para uma plasticidade substitutiva. Nesses casos, fica impossibilita a condição de alojamento do filho como alguém inédito, singular e insubstituível. Não se viabiliza um lugar para o novo, um futuro eu, justamente porque o lugar que deveria ocupar está marcado pela dificuldade de elaboração do luto em relação aos ancestrais (Sternbach, 2009).

Pode-se considerar, portanto, que, em casos nos quais as mulheres não reconhecem sua própria gravidez, parece configurar-se a falta de recursos psíquicos que conduziriam ao reconhecimento da diferenciação entre gerações no âmbito familiar. Essa questão pode ser entendida como aportando temáticas de ordem transgeracional ao fenômeno, mediante as quais o trâmite para deixar e ocupar outras funções dentro do meio familiar, assim como para permitir que um novo membro familiar que nasce ocupe um lugar de ineditismo, se encontra cristalizado através das gerações. Logo, o que se pode constatar em famílias de mulheres que negaram sua gravidez é a perpetuação da impossibilidade de deslocamento e desocupação de lugar. Ao desautorizar sua própria gravidez, é como se a mulher denunciasse a passividade frente a essa norma transgeracional. Não se está afirmando que, nesses tipos de arranjos familiares, o que acontece seja sempre uma desautorização da gravidez, no entanto, essa hipótese pode ser considerada como mais um fator a ser explorado diante da complexidade desta condição de uma mulher não reconhecer a própria gravidez. Nesse sentido, se faz necessário seguir as considerações a respeito do mecanismo de desautorização conforme proposto por Figueiredo (2008).

A tradução proposta por Figueiredo (2008) como desautorização não se vincula a um diagnóstico de psicose ou de perversão, mas, ao contrário, prioriza a condição psíquica envolvida no não estabelecimento de elos transitivos gerados por uma percepção. Põe-se, assim, em evidência uma dinâmica psíquica que, ao não autorizar a percepção, impede que dela decorram os elos associativos que levariam ao reconhecimento dos efeitos de tal constatação.

Quando o autor afirma que sua forma de pensar o mecanismo de desautorização amplia o alcance da Verleugnung, acredita-se que sua proposta acrescente elementos essenciais à discussão sobre a negação não psicótica da gravidez. Supõe-se que importantes fatores psíquicos estejam envolvidos no ato de "não considerar" algo que se passa no próprio corpo. As condições do fenômeno da negação não psicótica da gravidez suscitam reflexões a respeito de quadros da psicopatologia que não se estruturam no campo das neuroses.

Torna-se necessário, então, buscar subsídios que vitalizem a escuta e a compreensão de um fenômeno que parece convidar o analista a também desconhecer aspectos implicados na exclusão de um saber sobre si. Os fenômenos transferenciais e contratransferências se veem sob o impacto de uma ruptura na produção de saber sobre o sujeito. O impacto do não reconhecimento dessa condição de gravidez até o momento do parto, ou pelo menos durante um período expressivo da gestação por parte de uma mulher, denuncia a força de um processo que parece buscar a qualquer custo a eliminação daquilo que sua constatação provocaria. Tal força disruptiva invadirá o cenário da escuta. Inevitável estabelecer uma associação com a intensidade das forças disruptivas, próprias da pulsão de morte, referidas por Freud (1920/1974a) exatamente para descrever uma situação de "ataque" ao organismo, mediante o qual as barreiras de proteção sofrem um processo de efração. No encontro com a singularidade dessas demandas e a capacidade de escuta do analista, fomenta-se o campo das hipóteses a respeito deste padecimento. A problemática que ele encerra pode conduzir à proposição de enlace com questões melancólicas? O termo impensável, referido por Bonnet (1993), faz alusão à impossibilidade de investir o próprio desejo? O que se torna impossível de ser pensado, ou seja, representado em seu sentido?

Destaca-se a afirmativa de Figueiredo a respeito do fato de que, sob desautorização, fica retido um potencial traumático da percepção. Sabe-se que assumir o impacto de uma percepção implica acolher novas percepções e associações que ela poderá gerar. Assim, nessa condição, afirma Figueiredo (2008): "se esse potencial disseminativo não puder ser minimamente metabolizado, se as transições forem por algum motivo obstruídas, dá-se uma experiência de digestão difícil e traumática" (p.64). Para o autor, a própria razão de ser da desautorização é um movimento de esquiva a uma percepção, a uma lembrança ou a uma conclusão traumática. Aquilo que fica à margem de um processo de tramitação psíquica e que poderia levar o sujeito a novas constatações cobra um alto preço psíquico. O custo de tal dinâmica se faz presente na impossibilidade do Eu de assenhorear-se de seus recursos de ligação. A condição traumática reside, portanto, neste efeito da captura da experiência ou da percepção que rompe a continuidade de um trânsito de investimentos no aparelho psíquico. O não ligado remete à precariedade dos investimentos da pulsão de morte e a intensidade do mortífero passa a assombrar os rumos do Eu.

O conceito de pulsão de morte é tomado neste artigo no sentido de quantidades psíquicas que invadem o aparelho psíquico e que, frente à impossibilidade de metabolização dessas intensidades, constituem uma situação de predomínio do excesso. Ao falharem os recursos de tramitação psíquica, essas intensidades buscam formas de descarga mais precárias tais como o ato ou os padecimentos do corpo. O que fica comprometido nesta situação de predomínio dos investimentos mortíferos é a condição de coesão psíquica do sujeito. A clivagem e a desautorização surgem como recursos possíveis para uma forma de ser e estar no mundo. Nesse cenário, instaura-se a impossibilidade de levar adiante investimentos da ordem de Eros, ou seja, frente à impossibilidade de metabolização de intensidades psíquicas e da circulação de investimentos que levam à complexização do psiquismo, tendem a se presentificar modalidades mais precárias na condição de ser. A fratura na capacidade de investir em si e no outro passa a predominar como modalidade de investimentos psíquicos. Nesta condição de ruptura na tramitação psíquica implicada na desautorização, e aqui proposta como presente na situação da negação não psicótica da gravidez, as exigências emocionais decorrentes da gestação de um filho e de investimentos no devir denunciam as fratura no eu. Nesse sentido, parece mais pertinente a expressão "desautorização" do que negação.

Trata-se de um campo de expressão da psicopatologia que poderia ser definido como próprio de patologias do narcisismo, na medida em que contempla importantes faturas no si mesmo e resulta em prejuízos no campo da alteridade. Não se trata das conflitivas próprias da ação do recalcamento, e tampouco sua dinâmica é abarcada na descrição do recurso à negação. Qual comprometimento do eu é denunciado na impossibilidade de perceber o outro em si?

Seria o fenômeno da negação não psicótica da gravidez a forma mais radical de desautorizar a experiência de confrontar-se com o processo de separação entre o eu e o não eu? O que precisa ser tão drasticamente desautorizado na experiência de gerar outro ser? O que se repete nesta não autorização de perceber os movimentos e efeitos no próprio eu mediante a condição de gravidez? Acreditamos ser fundamental afirmar a relevância de que seja na escuta à singularidade da história de cada mulher que essas perguntas possam ser respondidas. Porém, frente ao objetivo de traçar algumas considerações teóricas sobre a negação não psicótica da gravidez, parece evidente que toda condição de gestação impõe demandas de intenso trabalho psíquico, porém nesta situação constata-se algo que está "além" do enfrentamento com questões próprias do tornar-se mãe. Assim, pode-se pensar que nestas condições a maternidade aluda a uma experiência traumática, no sentido de mobilizar intensidades cuja marca de excesso atualiza a fragilidade de recursos do eu para manter a coesão psíquica. Pode-se considerar que, ao gerar outro ser, a mulher se veja confrontada com suas experiências no campo da sexualidade e da alteridade. Na proposta de, então, denominar este fenômeno como uma "desautorização da gravidez", fica a mulher impedida de deixar tramitar em seu psiquismo elos associativos decorrentes do reconhecimento de sua condição de maternidade.

Algumas hipóteses podem, portanto, ser propostas no cenário da construção do si mesmo. Se, nesta dinâmica de desautorização, ocorre uma tentativa de defesa via impedimento da tramitação psíquica de percepções, cabe questionar do que o eu se defende. Associando-se o termo proposto por Bonnet (2003) de gravidez impensável e o termo desautorização de Figueiredo (2008), se percebe a imposição de "negativas". Trata-se da necessidade da condição de não pensar e de não perceber. Tomando-se a definição freudiana da neurose como negativo da perversão, no sentido de que na perversão está no ato o que é da ordem do recalcado na neurose, pode-se pensar que no movimento de negativar (desfazer) dois recursos (o pensar e o perceber) se esconde a única condição psíquica de enfrentamento com a dor. Se o negativo da neurose está atuado na perversão, o que aconteceria se as percepções da gravidez fossem acolhidas pelo eu? Quais seriam as consequências psíquicas da existência de elementos transitivos? Como se vê, é um fenômeno humano que impõe uma reflexão e, como Freud nos ensinou, será na escuta que poderemos encontrar mais subsídios para adentrar este interrogante.

 

Considerações Finais

A complexidade do fenômeno da negação não psicótica da gravidez obriga uma reflexão a respeito dos fatores nele implicados. Trata-se de reconhecer que, mesmo sendo denominado como um modelo de negação fora do contexto da psicose, não se pode desconsiderar a fragilidade psíquica que tal desautorização põe em evidência. Considerando-se que esta situação pode trazer sérios comprometimentos psíquicos para a vida desta mulher frente à impossibilidade de metabolização e elaboração das conflitivas presentes nesta condição, mas desautorizadas, explorar os fatores que impedem tal tramitação e instauram uma condição de excesso na economia psíquica apresentam-se como importantes desafios à escuta psicanalítica.

Como se pode notar pelo estudo realizado, a ocorrência do fenômeno da negação não psicótica da gravidez caracteriza uma situação que pode ser considerada como frequente, ou seja, não rara. Dessa forma, é pertinente a tentativa de lançar um olhar mais atento, tanto no esforço de implementação de medidas preventivas quanto à sua ocorrência, quanto à promoção de discussões acerca dos fatores implicados nesse fenômeno. A Psicanálise se mostra como uma ferramenta que tem muito a contribuir para a compreensão desse fenômeno, uma vez que, por meio de seus aportes, vislumbra-se um entendimento que não se encaminha para um pensamento causal e linear. Dessa forma, ao considerar a complexidade de fatores envolvidos na desautorização por parte de uma mulher da própria gravidez, os aportes psicanalíticos põem em evidência a singularidade e a necessidade de escuta de uma situação capaz de gerar padecimento psíquico e importante prejuízo nos investimentos do devir.

Entende-se que o fenômeno da negação não psicótica da gravidez pode ser pensado como um enigma que se impõe em tempos nos quais a tendência a desconsiderar a força do psíquico na produção de patologias é cada vez mais evidente. Neste fenômeno, estamos diante de uma situação na qual as condições psíquicas (ou a precariedade delas) não deixam dúvidas sobre o efeito que têm sobre o biológico. Ao calar a percepção e as manifestações de uma gestação, a negação não psicótica da gravidez desafia aqueles que ficam tentados a buscar na causalidade linear e explicativa a compreensão dos padecimentos humanos. Parece-nos que a Psicanálise, por sua história e solidez de suas ferramentas, não pode se furtar a enfrentar este desafio.

 

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Recebido em 08 de junho de 2011
Aceito em 17 de agosto de 2011
Revisado em 21 de outubro de 2011

 

 

1 A eritroblastose fetal é caracterizada por ser uma "aglutinação progressiva e subsequente hemólise dos eritrócitos fetais. Na maioria dos casos a causa origina-se pela mãe ser Rh negativa e o pai Rh positivo onde a criança herda o caráter do pai Rh positivo, ocasionando a incompatibilidade entre o sangue da mãe e do filho o que leva a destruição de hemácias fetais e quando sem tratamento os fetos mais severamente afetados podem morrer intra útero. No recém-nascido a doença pode resultar em icterícia, anemia, hepato e esplenomegalia, dano cerebral, falência cardíaca e morte" (Inácio & Gatti, 2008, p.1).
2 A ruptura uterina diz respeito ao rompimento do útero, ou seja, a parede miometral é rompida parcial ou totalmente na hora do parto ou no final da gestação. Como causa principal está a realização de um parto normal após cesarianas em partos anteriores. A ruptura uterina é considerada como uma das complicações mais sérias da gravidez e do parto (Anaya & Infante, 2010).

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