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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.12 no.3-4 Fortaleza Dec. 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Intervenção em uma escola estadual de ensino fundamental: ênfase na saúde mental do professor

 

Intervention in a public elementary school: emphasis on teacher's mental health

 

Intervención en una escuela estatal primária: énfasis en la salud mental del maestro

 

Intervention dans une école de l'état de l'enseignement fondamental: emphase dans la santé mentale de professeur

 

 

Sandra Fogaça Rosa RibeiroI; Carolina Beatriz Savegnago MartinsII; Fernanda Consoni MossiniIII; José Pace JúniorIV; Lucas Caetano Vilela LemosV

IPsicóloga. Especialista em Psicologia (USP). Mestre em Saúde Coletiva (Unesp). Doutora em Educação (Unicamp). Professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados - Faculdade de Ciências Humanas.End.: Rua Eduardo Cerzósimo de Souza, 155 - Parque Alvorada - CEP: 79823 350 Dourados-MS. E-mail: sandrafogaca@ufgd.edu.br
IIPsicóloga. Aprimoranda em Psicologia do Desenvolvimento na área da Saúde pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - HCFMRP-UPS. End.: Av. Dom Antonio, 2100. Bairro Parque Universitário - CEP: 19.806-900 - Assis - SP
IIIPsicóloga. Especializanda em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Instituto Educacional de Assis - SP /IEDA.End.: Av. Dom Antonio, 2100. Bairro: Parque Universitário - CEP: 19.806-900 - Assis - SP
IVPsicólogo. Especializando em Psicodrama pelo Instituto Bauruense de Psicodrama - IBAP. End.: Av. Dom Antonio, 2100. Bairro Parque Universitário - CEP:19.806-900 - Assis - SP
VPsicólogo. End.: Av. Dom Antonio, 2100. Bairro: Parque Universitário - CEP: 19.806-900 - Assis - SP

 

 


RESUMO

Este é um relato de experiência, que teve como objetivo realizar uma intervenção em uma escola estadual de ensino fundamental, com ênfase na saúde mental do professor. O trabalho foi desenvolvido por quatro estagiários do curso de Psicologia da Universidade Estadual Júlio de Mesquita filho, "campus" de Assis, São Paulo, durante um estágio na disciplina "Psicologia e Saúde no Trabalho", com o acompanhamento da supervisão docente. A fundamentação teórica utilizada foi a psicodinâmica do trabalho, com contribuições da psicologia social. O método foi a observação participante, totalizando 32 horas de observação, conforme um roteiro previamente estabelecido para a realização de um diagnóstico organizacional. A intervenção foi pontual, realizada em três encontros para discussão de temas relevantes à realidade dos professores identificados no diagnóstico. Nesses encontros, foram discutidas as relações interpessoais no ambiente de trabalho e a relação entre família e escola. A análise de todo o processo apontou quatro temáticas: organização do trabalho, formação, remuneração e municipalização. Concluiu-se que a organização do trabalho prejudicava a saúde dos professores, acarretando sofrimento psíquico. A avaliação deles sobre o trabalho desenvolvido foi favorável, com solicitação de continuidade do processo, indicando que esse é um espaço promissor para intervenções da psicologia enquanto modalidade de estágio e da própria atuação mais consistente da categoria.

Palavras-chave: Diagnóstico organizacional, Saúde do trabalhador, Educação, Sofrimento psíquico, Trabalho.


ABSTRACT

This is a report of an experience aimed to intervene in a public elementary school, which emphasizes teacher's mental health. The study was conducted by four psychology graduation students of University Julio de Mesquita Filho, "campus" of Assis, São Paulo, during their stage in the discipline Psychology and Health at Work, with the teacher supervision. The base theory used was the psychodynamics of work, with contributions from social psychology. The method was participant observation, totaling 32 hours of observation, according to a previously established routine to perform an organizational diagnosis. The intervention was specific, conducted in three meetings to discuss issues relevant to the reality of teachers identified in the diagnosis. In these meetings the following issues were discussed: workplace interpersonal relationships and the relationship between family and school. : work organization, formation, remuneration and municipalization were identified by an analysis of the whole process. It was concluded that work organization is damaging teachers' health, leading to mental suffering. Evaluations of this kind of intervention by the students were favorable and they request a continuation of the process, indicating that this is a promising area for psychology intervention as a method of students' training and a more consistent proceeding for psychologists

Keywords: Organizational diagnosis, Occupational health, Education, Psychic suffering, Work.


RESUMEN

Este es un relato de un estudio experimental que tuvo como objetivo realizar una intervención en una escuela estatal primaria enfatizando la salud mental del maestro. El trabajo fue desarrollado por cuatro practicantes del curso de Psicología de la Universidad Estatal Julio de Mezquita Filho, "cede" Assis, durante una rotación en la disciplina de Psicología y Salud en el Trabajo; bajo la supervisión de un docente. El fundamento teórico utilizado fue la Psicodinámica del trabajo, con contribuciones de la Psicología Social. El método fue la observación participante, totalizando 32 horas de observación, conforme un proyecto previamente establecido para la realización de un diagnóstico organizacional. La intervención fue puntual, realizada en 3 reuniones para la discusión de temas relevantes para la realidad de los maestros identificados en el diagnóstico. En estas reuniones fueron discutidas las relaciones interpersonales en el ambiente de trabajo y la relación entre familia y escuela. El análisis de todo el proceso arrojó cuatro temas: organización del trabajo, formación, remuneración y municipalización. Se llegó a la conclusión de que la organización del trabajo trae perjuicios a la salud de los maestros, acarreando un sufrimiento psíquico. La evaluación de los maestros sobre el trabajo desarrollado fue favorable, con solicitación de continuidad del proceso, indicando que este es un espacio promisorio para intervenciones psicológicas en lo que se refiere a modalidades de pasantías y de la propia actuación más consistente de la categoría.

Palabras-clave: Diagnóstico organizacional, Salud ocupacional, Educación, Sufrimiento mental, Trabajo.


RÉSUMÉ

Ceci est un rapport d'une experiénce, qui a eu comme objectif la réalisation d'une intervention dans une collège public avec accent dans la santé mentale de l' enseignant. Le travail il a été développé pour quatre stagiaires du cours de Psychologie de L' Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho, "site" de Assis, lors un stage du cours de Psychologie et Santé au Travail, avec le suivi et supervision du professeur. La fundamentation théorique utilisée a été la Psycodynamique du Travail, avec la contribuition de la Psycologie Social. Le méthode a été l´observation participé totalisant 32 heures d'observation, selon un plan établie d´avance pour la réalisation d'un diagnostic organisationnel. L'intervention a été ponctuel et a été faite dans trois points réunions pour la discussion des thèmes pertinent à la réalité des enseignants qui ont été identifiés lors le diagnostic. Dans ces réunions ont été discutées les thématiques: les relations interpersonnelles au milieu de travail et la relation entre la famille et le collège. L'analyse du processus identifié quatre thèmes: l'organisation du travail, la formation, de rémunération et de municipalisation. Il a été conclu que l'organisation du travail porterait atteinte à la santé des enseignants provoquant des souffrances mentales. L'évaluation des enseignants sur le travail développé a été favorable à la demande la poursuite du processus, indiquant qu'il s'agit d'un domaine prometteur pour l'intervention de la psychologie, lors une modalité de stage et aussi la perfomance plus cohérent de la catégorie.

Mots-clés: Diagnostique oraganisational, Santé du salarié, Eduacation, Soufrance mental, Travail.


 

 

Introdução

Este texto é um relato de experiência sobre um diagnóstico organizacional em uma escola de ensino fundamental, com ênfase na saúde mental do professor. As ações foram desenvolvidas por estagiários do curso de Psicologia, durante a disciplina "Psicologia e Saúde no Trabalho", com supervisão docente. A aproximação com o tema foi devido à sua relevância na área, pois a saúde mental do professor tem sofrido desgaste, segundo levantamentos e estudos no campo da saúde do trabalhador (Brasil, 2001), uma área da saúde pública que estuda as relações entre trabalho e saúde, a fim de prevenir doenças relacionadas ao trabalho, além de buscar a promoção e a recuperação da saúde dos trabalhadores, prejudicada por inúmeros fatores, como organizacionais, sociais, econômicos e políticos. Para Mendes e Dias (1991, p. 347), "a saúde do trabalhador pode ser definida como o processo de saúde e doença dos grupos humanos em sua relação com o trabalho". Nesse sentido, o trabalho apresenta uma categoria central no processo constitutivo do ser humano (Codo; Sampaio; Hitomi, 1993). Nessa perspectiva, este estudo abordará um tema atravessado pela constituição do professor como ser humano, no âmbito da subjetividade.

Estudos relatam que os professores estão afetados pelo sofrimento no trabalho, por precárias condições de trabalho, ritmo acelerado, falta de valorização, dificuldades nas relações com as famílias dos alunos, falta de diálogo com a administração etc. (Codo, 1999; Carneiro, 2001, Oliveira et al., 2012; Oliveira, 2006). Timm, Mosquera e Stobäus (2010) apontam que tais vicissitudes se apresentam com tanta frequência que correm o risco de se banalizarem, perdendo-se a real importância no contexto educacional. Os autores refletem a necessidade de os professores desenvolverem um cuidado de si frente à tarefa desgastante que assumem em relação aos outros.

Retomando a articulação inicial entre trabalho, saúde e doença, Schmidt (2010, p. 17) afirma que a saúde está afetada pelas mudanças ocorridas no mundo do trabalho, principalmente por causa das seguintes situações: reestruturação produtiva, adoção de novos métodos gerenciais, implementação de novas tecnologias, terceirização, automação e precarização das relações de trabalho, entre outras, geradoras de prejuízos à saúde do trabalhador.

Desse modo, o mundo do trabalho acarreta repercussões na vida das pessoas, que são obrigadas a conviverem com lógicas de mercado instáveis, criando-se um clima de ameaça, um mal inevitável dos tempos modernos. O trabalho está longe de ser um espaço neutro, para o bem ou para o mal. Ele é gerador de sofrimento ou prazer, desgaste ou crescimento, dependendo das relações entre o trabalhador e os desafios externos do meio social (Heloani, 2003).

Corroborando com essa concepção, Seligmann-Silva (2003) destaca o fato de, até o momento, não ter-se criado um consenso sobre a conexão entre trabalho e psiquismo, posicionando-se contra concepções individualizantes sobre o adoecimento. Para esclarecer o quanto o sofrimento psíquico no trabalho está relacionado ao contexto laboral, é pertinente entender que o desgaste mental se relaciona ao modo como a interação do trabalhador com a situação de trabalho repercute na subjetividade, suscitando vivência de sofrimento psíquico (Seligmann-Silva, 2011).

Pelo exposto, subjetividade e sofrimento psíquico se constituem em dois conceitos fundamentais neste relato, pois permeiam o processo de trabalho na atualidade. A subjetividade não pode se constituir como uma "caixa preta" indecifrável e inacessível. Para sua explicitação, é necessário olhar para as atitudes e maneiras de ser das pessoas, considerando as suas peculiaridades e diversidades, construídas segundo suas histórias de vida em determinado contexto social, econômico e cultural (Seligmann-Silva, 2003). Recorrendo a Foucault (1996), a subjetividade é a produção de si como condição ontológica (de realidade), é uma operação do sujeito sobre si e sobre o campo de ações e possibilidades do outro.

No que se refere ao conceito de sofrimento psíquico, Foucault (1974) aponta criticamente o quanto a abordagem clínica/nosológica continua, até os dias de hoje, a classificar e reclassificar as desordens psíquicas, procurando estabelecer os limiares entre doença e saúde mental. Para além dessa dicotomia, a psicanálise compreende a saúde e a doença psíquica como algo que se constitui do mesmo material, mas varia em grau de complexidade maior ou menor, configurando transtornos ou não. Freud (1929/1974) coloca que, na busca de felicidade, o homem utiliza técnicas diversas para evitar o sofrimento. Dentre elas, está a sublimação dos instintos pelo redirecionamento da libido para o trabalho, garantindo-lhe inserção segura na comunidade humana. Freud (1974) também aponta que, para a minimização do sofrimento, o homem recorre de maneira diversa, com maior ou menor intensidade, tanto ao mundo externo, tentando alterá-lo frente às suas necessidades, quanto ao mundo interno.

Partindo dos constructos da psicanálise, Dejours (1992) se dedica ao estudo do sofrimento psíquico no âmbito do trabalho, caracterizando-o como uma zona cinzenta que fica entre a saúde e a doença, fugindo da polarização clínica. É uma luta constante contra as agressões dos ambientes de trabalho, o que requer negociações e um ajuste constante entre desejos e possibilidades. Entretanto, quando o espaço de negociação fica bloqueado, o sofrimento psíquico se acentua. As estratégias defensivas desempenham um importante papel nessas negociações. As constantes lutas deixam marcas no indivíduo, o qual vai se transformando, deixando de ser o que era antes de ter assumido determinado trabalho.

Essas negociações são baseadas na singularidade de cada um, na estrutura mental que se tem, na subjetividade do trabalhador, impossibilitando mudanças no ambiente externo. Nessa perspectiva psicodinâmica, Dejours, Dessors e Desriaux (1993) compreendem a saúde mental no trabalho como algo dinâmico, que oscila entre o equilíbrio e o desequilíbrio e provém de um livre funcionamento em relação ao conteúdo da tarefa no trabalho. Em suas palavras, "se o trabalho favorecer esse livre funcionamento, ele será fator de equilíbrio, se ele se opõe, será fator de sofrimento e de doença" (ibidem, p. 103). Como já explicitado, o mundo do trabalho é regido por lógicas conflitantes e mutantes. Para sobreviver a essa situação, os autores ponderam sobre a importância da expressão do desejo:

a saúde mental não é, seguramente a ausência de angústia, nem o conforto constante e uniforme. A saúde é a existência da esperança, das metas, dos objetivos que podem ser elaborados. É quando há o desejo. O que faz as pessoas viverem é o desejo e não só as satisfações. O verdadeiro perigo é quando o desejo não é mais possível. (ibidem, p.101)

No caso desse relato, o professor vivencia essas lutas constantes na busca do equilíbrio psíquico, ou da saúde mental, no sentido explicitado por Dejours (1992). A escola, enquanto organização do trabalho, é uma instituição fundamental para desencadear os processos evolutivos das pessoas, atuando como propulsora ou inibidora do crescimento psíquico, físico, intelectual e social de alunos e professores, numa troca constante de saberes (Dessen; Polonia, 2005). Para que esses processos evolutivos aconteçam de forma satisfatória "é fundamental que a escola promova uma reflexão contínua sobre essa relação e busque um diálogo permanente" (Branco, 2009, p. 20). Nesse sentido, o professor assume um importante papel educativo e social. No entanto, apesar dessa importância, há uma contradição caracterizada pelo cenário atual da educação, com péssimas condições de trabalho (Neves; Silva, 2006).

É nessa organização do trabalho singularmente constituída - a escola - que o diagnóstico organizacional se processou, desencadeando uma intervenção que procurou tratar de algumas questões voltadas para a saúde mental do professor.

 

Objetivo

Realizar intervenção com ênfase na saúde mental do professor, a partir de um diagnóstico organizacional, numa escola estadual de ensino fundamental.

 

Métodos

Os sujeitos deste estudo foram os trabalhadores da escola: agente de organização escolar, secretárias, auxiliar de serviços gerais, merendeiras, faxineiras, diretora, vice-diretora e professores. Dos 22 professores em atividade, 13 eram efetivos e 9 eram temporários.

O diagnóstico organizacional foi realizado por meio da observação participante - parte essencial para a compreensão da realidade do cotidiano de trabalho (Minayo, 2004). O cotidiano dos professores foi observado pelos estagiários nos meses de maio e junho de 2011, em visitas que totalizaram 32 horas de observação, divididas entre duas duplas de estagiários. Cada dupla realizava 4 horas de observação semanal nos períodos da manhã e da tarde. Nessas visitas, os estagiários presenciaram os intervalos na sala dos professores, algumas aulas, a reunião de HTPC (Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo), entre outros momentos. Os eixos de observação participantes foram vínculos empregatícios, relações interpessoais na organização do trabalho, rotina de trabalho, funções pedagógicas e de apoio (secretaria, cozinha, biblioteca, zeladoria, inspeção do pátio), e formação permanente dos professores.

Durante as observações dos participantes, foi possível aprofundar alguns pontos sobre o tema, por meio de momentos específicos de questionamento com duas professoras voluntariamente disponíveis: uma representava o 1º e o 2º ano e a outra representava o 3º, 4º e 5º ano. Esses momentos ocorreram durante a participação dos estagiários na reunião semanal do HTPC.

A partir dos dados obtidos no diagnóstico organizacional, os estagiários realizaram três encontros: o primeiro, na forma de devolutiva, no mês de agosto; os seguintes, sobre desdobramentos da devolutiva, nos meses de setembro e outubro, com a presença de todos os professores da escola, além da diretora, vice-diretora e coordenadora. Foram discutidas as relações interpessoais no ambiente de trabalho e a relação entre família e escola.

Os dados foram analisados a partir dos relatos da observação participante, registrados em diário de campo, elucidados pelo referencial teórico apresentado na introdução deste trabalho. A partir de uma leitura preliminar, o conteúdo foi analisado na sua totalidade e posteriormente dividido em quatro temáticas: organização do trabalho, formação, remuneração e municipalização.

 

Discussão

O contexto para o diagnóstico organizacional, bem como da intervenção junto aos professores, foi a organização do trabalho, compreendido por Dejours, Dessors e Desriaux (1993, p. 104) como:

a divisão de tarefas, que conduz alguns indivíduos a definir por outros, o trabalho a ser executado, o modo operatório e os ritmos a seguir (...) é a divisão dos homens, isto é, o dispositivo de hierarquia, de supervisão, de comando, que define e codifica todas as relações de trabalho.

Na perspectiva dessa definição, a organização do trabalho na escola seguia um ritmo aumentado, extrapolando os limites pedagógicos e esbarrando nas questões sociais e familiares dos alunos. A divisão de tarefas era prejudicada por falta de profissionais inspetores - "havia apenas um, porém o número seria de três" (Diário de Campo). Essa deficiência ocasionava desvio de função, sobrecarregando alguns trabalhadores que acumulavam funções e recebiam apenas o valor de sua função de registro formal na carteira de trabalho.

Alguns professores relataram realizar extensas jornadas de trabalho; outros possuíam um trabalho por fora, não relacionado à educação, ou faziam dupla ou tripla jornada em diferentes escolas. Esse era o caso de uma professora que, para manter sua vida financeira equilibrada, "trabalhava em outra escola todos os dias no período da manhã e também no período da noite, sendo assim, três vezes na semana, trabalhava durante os três períodos" (Diário de Campo). Os professores também realizavam trabalhos para a escola em seus horários livres, como preparo de aulas e correção de provas. A lógica capitalista se impunha, caracterizando a correria e a cobrança desenfreada por produção (Marx, 2004).

Corroborando com essa análise, um estudo realizado com professores de nove escolas da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, com o intuito de levantamento das condições de trabalho e do perfil sociodemográfico deles, expôs a questão da sobrecarga de trabalho, já que "mais da metade dos professores (53,9%) trabalhavam simultaneamente em outra escola [...] Além disso, 15,9% desenvolviam outras atividades remuneradas, além da docência". Nesse mesmo estudo, observou-se que o aumento da jornada de trabalho "pode ser um indicativo de uma necessidade de complementação de renda familiar, através de outros trabalhos, inclusive fora da área de ensino" (Vedovato; Monteiro, 2008, p. 294).

Ainda sobre a organização do trabalho, a instabilidade dos professores com contrato temporário dificultava a rotina. Eles relatavam "o quanto era difícil estar apenas substituindo outros colegas" (Diário de Campo). Essa situação retratava as dificuldades vivenciadas pelo trabalhador frente às mudanças no mundo do trabalho, inerentes à reestruturação produtiva, principalmente no que se refere à precarização do trabalho, resultado de processos de terceirização, com contratos de trabalho temporários (Heloani, 2003; Schimidt, 2010).

Outra questão identificada sobre a organização do trabalho foi a da autonomia. Os professores relataram "possuir autonomia parcial em seu trabalho, com liberdade para atuarem em sala de aula conforme suas convicções pedagógicas, mas tinham que seguir um determinado material fornecido pelo governo estadual" (Diário de Campo). Essa autonomia limitada era um fator de desequilíbrio, comprometendo uma das dimensões básicas da constituição do ser humano, a liberdade, impossibilitando a execução do trabalho como um processo contínuo de transformações, com intenções e desejos (Dejours, 1992).

Uma última questão, indiretamente relacionada à organização do trabalho, foi sobre a relação com as famílias. Foram relatadas dificuldades no relacionamento entre escola e pais e desinteresse quanto aos assuntos pertinentes aos seus filhos.

Sobre a formação, os professores queixaram-se de que os cursos oferecidos pelo Estado eram poucos e insuficientes. Assim, buscavam individualmente a melhoria, pois o horário em comum para estudo, o HTPC, nem sempre cumpria essa proposta. Eles afirmaram que precisavam de estudo, mas o Estado não oferecia a gama de assuntos de que precisavam, portanto, "a busca por outros materiais era por conta própria" (Diário de Campo).

Nas conversas e discussões entre os professores a respeito de suas remunerações, todos reclamaram sobre o valor que recebiam, observando-se insatisfação salarial. Alguns se sentiam desvalorizados e se comparavam com outros profissionais. "Concluíram que um soldador ganhava mais que um professor" (Diário de Campo). Para obter um aumento, precisavam realizar a Prova do Mérito - aqueles que atingiam a pontuação necessária recebiam um acréscimo de 25% no valor do salário. Os trabalhadores relataram que "a remuneração nunca foi o que se quis, ninguém está feliz, espera-se mais, achavam que mereciam mais" (Diário de Campo). A questão é abordada na literatura:

baixos salários obrigam professores e professoras a ampliar sua jornada de trabalho ao máximo para adquirir complementação da renda. As condições de trabalho são novamente configuradas como péssimas: faltam recursos e ferramentas de trabalho. (Leite; Souza, 2007, p. 52)

Essa premiação por mérito é um reflexo da lógica de mercado capitalista e, mais recentemente, da reestruturação produtiva. Ela apresenta uma suposta valorização do trabalho, mas incentiva uma busca desenfreada pela excelência, baseada em premiações e outros mecanismos semelhantes, altamente competitivos (Heloani, 2003). Embora a qualidade do trabalho do professor seja desejável, questiona-se a forma pela qual ela é obtida.

Na ótica de Foucault (1996), o poder exercido sobre o professor por meio de provas de mérito se configura como dispositivo de controle, caracterizando relações de poder e de dominação, impedindo o exercício da liberdade. O poder imposto nessas relações de premiação controla a produtividade do professor e, consequentemente, limita a expressão de seus desejos, intenções e objetivos no processe de ensino e aprendizagem. Segundo Dejours (1992), essas situações podem ser identificadas como fatores de desequilíbrio que, na zona cinzenta entre saúde e sofrimento psíquico, pendem para o desequilíbrio.

Outra categoria foi o processo de municipalização que a escola vivenciava tardiamente em relação a outras escolas do estado de São Paulo. O tema começou a ser discutido na educação com o enfraquecimento e a queda do governo militar. De acordo com Martins (2003), essa descentralização ocorreu baseada na redistribuição das receitar, além de visar novos arranjos político-institucionais. Azanha (1991, p. 61) relata:

a municipalização tinha um propósito claro: a melhoria do ensino primário. Desde então, até nossos os dias, essa clareza foi sendo perdida e nem sempre é fácil saber o que se pretende quando se fala de municipalização do ensino.

Essa indefinição sobre a municipalização foi visível no discurso dos trabalhadores que, sem a compreenderem, temiam a insegurança acarretada pelo processo. Eles diziam que a dificuldade era "não saber se no próximo dia haveria um trabalho na escola, na cidade onde moravam, obrigando-os a mudar-se com toda sua família, ou virar moeda de troca nas mãos dos interesses particulares de um grupo, aí reside o medo, a ansiedade, a insegurança" (Diário de Campo).

Havia aqueles a favor da descentralização, mas se calavam, pois eram minoria. Havia também professores que, mesmo tendo uma condição privilegiada por serem efetivos, preocupavam-se com possíveis remanejamentos. Tal situação ficou evidente quando relataram que os "professores efetivos não podiam ser mandados embora, porém se tornariam marionetes nas mãos da Secretária de Educação, podendo ser remanejados para outras escolas" (Diário de campo). Os demais professores diziam que, por não serem efetivos, "corriam o risco de só conseguirem aulas em cidades maiores e distantes, pois seriam cidades onde teriam vagas em escolas de ensino infantil, ainda sob o controle do Estado" (Diário de Campo). Diante desse relato, reflete-se com Azanha (1991, p. 62) o temor dos trabalhadores dessa escola diante do processo de municipalização:

a simples administração do local de ensino não representa por si só nenhuma garantia de sua efetiva democratização e pode até mesmo ser oportunidade de exercício de formas mais duras de coerção sobre o processo educativo e sobre o magistério.

Diante dessa análise, a partir do diagnóstico organizacional, compreendeu-se a existência de uma clara relação entre os problemas relacionados à organização do trabalho e os prejuízos na saúde mental do professor. Essa compreensão orientou a intervenção relatada logo a seguir.

 

Intervenção

O primeiro encontro foi a devolutiva, realizada no mês de agosto, quando foi apresentada, sucintamente a análise exposta anteriormente. A partir daí, surgiram desdobramentos e questões que geraram mais interesse por parte dos professores. Diante disso, propôs-se a realização de mais dois encontros para discussão. Os três encontros foram realizados durante a HTPC.

O encontro que ocorreu em setembro contou com a presença de 16 professores, mais a diretora e a coordenadora. O material utilizado foi o texto "Escutatória"1, de Rubem Alves (1999). A dinâmica de reflexão sobre o texto foi cuidadosamente elaborada nas supervisões, desde o planejamento da atividade até a vivência da proposta entre os estagiários, a fim de se obter uma apropriação da técnica, do conteúdo do texto e as relações deste com as questões do grupo de professores. Sucintamente, a técnica consistiu em apresentar o texto e as questões direcionadas nominalmente para os professores.

Esse material foi colocado em envelopes personalizados, procurando-se incentivar as contribuições de todos e valorizar as espontâneas. Depois que o grupo esgotava uma questão, outra se encaminhava. As questões eram a respeito das relações interpessoais na organização do trabalho, escuta mútua, valorização da opinião e autonomia de todos na construção de projetos pedagógicos coletivos. Elas eram fundamentadas no texto e na forma como a atividade estava sendo conduzida, organizada de forma que todos se ouvissem mutuamente, pois essa era uma das dificuldades enfrentadas pelos professores nas reuniões, tumultuadas e atravessadas por falas sobrepostas, sempre em meio à correria e pressa para resolver muitos assuntos, sem tempo para refletirem calmamente sobre seu trabalho de educadores.

Os professores afirmaram terem aproveitado a atividade como uma experiência passível de ser reproduzida em outras situações, inclusive em sala de aula, por meio de outros textos, compatíveis com a faixa etária de seus alunos. Consideraram que a atividade proporcionou grande benefício na troca de ideias sobre as relações interpessoais na organização do trabalho pedagógico. Puderam desenvolver um conhecimento mútuo sobre as práticas de cada um, com trocas de sugestões referentes à atuação, nem sempre possíveis devido à rotina de trabalho sobrecarregada.

Durante as discussões, observou-se que os professores estabeleciam uma relação entre o conteúdo do texto sobre uma escuta qualificada e o ambiente de trabalho. Relataram que "muitas vezes já possuem idéias pré-estabelecidas sobre diversos assuntos, com dificuldade para ouvir os colegas" (Diário de Campo). Além disso, havia dificuldade de escuta no HTPC: "este melhorou, mas ainda é muito "bate e responde" (Diário de Campo). A avaliação do encontro foi positiva, pois disseram "que hoje aprenderam a escutar de forma ordenada" (Diário de Campo).

No mês de outubro, foi realizado mais um encontro, o qual contou com a presença de 13 professores e da diretora. Primeiramente, foi esclarecido que seria o último, pelo término do ano letivo. A proposta do encontro foi realizar uma reflexão a respeito da relação família e escola. Os textos2 utilizados foram: "Participação dos pais no cotidiano escolar" (Sunaga, 2009) e "Desafios na relação família e escola" (Branco, 2009). A coordenação da atividade pelos estagiários proporcionou que todos participassem. Na discussão, ressaltou-se a importância de cada lado fazer e conhecer a sua parte. "A escola deve promover ações para que os pais saibam qual é a parte deles e ensinar às famílias o que elas têm que fazer" (Diário de Campo).

Observou-se, durante a discussão, o reconhecimento de alguns professores de que a forma como as reuniões com os pais ocorriam acabava resultando em um processo de "falar mal do aluno" (Diário de Campo). Essa reflexão foi reiterada por Branco (2009), para quem o fato de a escola comunicar aos pais apenas os problemas de seus filhos não contribui na formação do vínculo participativo da família. Da mesma maneira que no encontro anterior, muitas indagações emergiram, demonstrando interesse dos professores em potencializar a aproximação da escola com a família.

 

Considerações Finais

Com a realização deste estudo, foi possível observar problemas na organização do trabalho, desde falta de funcionários em determinados cargos, sobrecarregando outros, até a falta de autonomia para exercício da profissão. Embora exista o oferecimento de cursos, estes também não supriam todas as necessidades. Percebeu-se, então, a preocupação de muitos professores e funcionários da escola com a municipalização, todos com muitas dúvidas e temores sobre a questão.

Conclui-se que, a partir do diagnóstico organizacional, algumas queixas foram identificadas, como a insatisfação salarial, as jornadas duplas e até triplas de trabalho, e a correria, ocasionando dificuldades na interação com o aluno e entre os professores, caracterizando uma desvalorização do trabalho docente. Tais questões refletiam na saúde mental do professor, suscitando a vivência de sofrimento psíquico.

Como se depreendeu de Foucault (1996), a subjetividade é a produção de si, uma operação do sujeito sobre si e sobre o campo de ações e possibilidades do outro. Nesse sentido, a atividade promovida sobre a escuta qualificada (Alves, 1991) proporcionou aos professores uma abertura preliminar para o exercício da subjetividade como um processo de mão dupla - de si mesmo para o mundo e do mundo para si mesmo -, ao vivenciarem um momento de respeito e escuta mútua, reconhecendo-se valorizados.

Este trabalho não foi exaustivo em relação ao tema, devido aos limites de uma situação de estágio curricular, no qual as atividades de preparação e discussão do diagnóstico organizacional e das intervenções ocorriam nas supervisões semanais, requerendo, muitas vezes, mais de uma semana de preparo das atividades, visto que demandavam o desenvolvimento de temas delicados e até dolorosos na vida dos professores.

Tomou-se o cuidado de não suscitar questões que não pudessem ser totalmente atendidas, pois havia duas formandas no grupo que não participariam do grupo no ano seguinte, bem como a supervisora do estágio, contratada em regime temporário. Além disso, os encontros de intervenção foram poucos, pois ocorreram do meio para o fim do ano letivo e a escola só podia oferecer um encontro por mês, no horário do HTPC, pois havia outras atividades agendadas que deveriam ser cumpridas.

Apesar dessas limitações, foi possível identificar a demanda para outras iniciativas de estágio e pesquisa nessa área. A avaliação positiva dos professores se expressou por verbalizações quanto à importância do trabalho realizado e à necessidade de terem um espaço de troca, além do pedido para que o trabalho tivesse continuidade no ano seguinte, o que ocorreu, apesar das dificuldades mencionadas. Isso enfatiza a valorização do trabalho desempenhado e legitima esse espaço como campo propício para o trabalho da psicologia na instituição escolar, com ênfase na saúde mental do professor.

As propostas foram sempre na direção de proporcionar a melhora no ambiente de trabalho, não com soluções únicas e individualizantes, mas a partir do coletivo de professores. Enfatizou-se a importância da escuta, do respeito e da construção coletiva de melhores relações com os alunos e pais.

 

Referências

Alves, R. (1991). Escutatória. In R. Alves, O amor que acende a lua (pp. 65-71). Campinas, SP: Papirus.         [ Links ]

Azanha, J. M. P. (1991). Uma ideia sobre a municipalização do ensino. Estudos Avançados, 12(5)), 61-62.         [ Links ]

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Recebido em 25 de junho de 2012
Aceito em 23 de outubro de 2012
Revisado em 02 de novembro 2012

 

 

1 O texto refere-se à dificuldade das pessoas escutarem-se mutuamente, apontando situações cotidianas em que isso acontece, bem como caminhos para desenvolver uma escuta qualificada.
2 Os textos se referem a relação entre pais e alunos, dentro de uma perspectiva de participação colegiada entre pais e professores, tratando de diversas questões cotidianas da escola.

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