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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza Dec. 2013

 

ARTIGOS

 

O Desnaturado hábito contemporâneo: como matar o tempo na arte da vida

 

The un-natured habit: how to kill the time in the art of the contemporary life

 

El desnaturado h ábito contemporáneo: como matar el tiempo en el arte de la vida

 

Le dénaturé habitude contemporain: comme tuer le temps dans la art de la vie

 

 

Luis Artur CostaI; Tania Mara Galli FonsecaII

IPsicólogo. Mestre em Psicologia Social pela UFRGS. Doutor no PPGIE/UFRGS. Docente adjunto do Curso de Psicologia da UFPel. E-mail: larturcosta@gmail.com
IIPsicóloga. Doutora em Educação. Professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Informática na Educativa (UFRGS). E-mail: tfonseca@via-rs.net

 

 


RESUMO

O hábito é o plano de imanência no qual as ações se compõem e as subjetividades se constroem. Eminentemente singular e geral a um só tempo, trata-se de um território privilegiado para a micropolítica do desejo. O presente artigo pretende refletir sobre esse plano e problematizar a questão do habituar-se, do criar hábitos dentro do contexto específico da contemporaneidade, em que o imperativo da mudança constante de identidade e a exigência de polivalência para o trabalhador findam por gerar um novo paradoxo nos processos de subjetivação: o hábito de desabituar-se. Dentro desse contexto, abordamos especificidades da estilística da subjetivação contemporânea sob uma perspectiva estética: a arte de erigir a vida. Isso nos permite uma aproximação com as problemáticas do campo da arte, unindo a assimilação ao capitalismo contemporâneo (sociedade de controle, sociedade do espetáculo, sociedade de consumo etc.) tanto das vanguardas artísticas quanto da contracultura em geral. A docilização da diferença em nossos tempos é uma problemática urgente, pois, diante da captura da transgressão pelo senso comum, muitas são as reações que, na tentativa de resistir aos novos imperativos, acabam por buscar um retorno à lógica conservadora e estável da sociedade disciplinar. Intentamos, com este ensaio, constituir uma possibilidade de fuga à dupla captura entre a obediência e a transgressão docilizada, buscando elementos para a fuga do juízo através da experimentação e transformando o dever em potência.

Palavras-chave: hábito; cotidiano; arte; subjetividade; contemporâneo.


ABSTRACT

Habit is an immanence plan where actions are composed and the subjectivities are built. Singular and general at the same time, it is a privileged territory for the micropolitics of desire. The present article intends to reflect on these aspects and consider the implications of creating habits in the specific context of contemporaneity, in which the demands for constant identity change and for the polyvalence of workers end up creating a new paradox in the processes of subjectification: the habit of getting out of habits. Considering this context, we approach specificities of the stylistic of contemporary subjectification from an aesthetic perspective: the art of constructing life. Such perspective approximates us to the art world problems, considering how the artistic avant-gardes and counterculture in general have been assimilated by contemporary capitalism (society of control, society of the spectacle, consumer society, etc.). The way the difference is disciplined in our times is an urgent issue, because when transgression is captured by common sense many are the reactions that, in trying to resist to the new imperatives, end up returning to the conservative and fixed logic of the disciplinary society. We intend to propose in this essay a possible flight from the double capture between obedience and disciplined transgression, searching elements to escape from judgment trough experimentation and transforming duty in potency.

Keywords: habit; daily; art; subjectivity; contemporary.


RESUMEN

El hábito es el plano de inmanencia donde las acciones se componen y construyen las subjetividades. Al mismo tiempo por completo singular e general, el hábito es un importante territorio para el hacer de la micropolítica del deseo. El artículo que ahora ustedes leen intenta reflejar a este plano de la inmanencia habitual y crear problematizaciones sobre la cuestión del habituarse, la creación de los hábitos. Pensando el habituarse acerca del contexto especifico de la contemporaneidad, donde el imperativo de cambio y la exigencia de que el trabajador sea múltiplo terminan por generar una nueva paradoja en los procesos de subjetivación: el hábito de deshabituarse. Acerca de esto, miramos las especificidades de la estilística de la subjetivación contemporánea desde una perspectiva estética: el arte de erigir la vida. A partir de esto es posible acercarnos de los problemas del campo de las artes en general, juntando en un solo tema la asimilación de las vanguardias artísticas y de la contracultura por el capitalismo contemporáneo (sociedad del control, sociedad del espectáculo, sociedad de consumo, etc.). La docilización (volverse dócil) de la diferencia en nuestra época es un problema urgente, ya que delante de la captura de la trasgresión por el sentido común muchas son las reacciones las cuales al intentar resistir a los nuevos imperativos terminan por volver a la lógica conservadora y estable de la sociedad disciplinar. Buscamos así una línea de huida para la doble captura entre la obediencia y la transgreción dócil, investigando elementos para huir del juicio utilizando la experimentación y volviendo el deber en potencia.

Palabras-clave: habito; cotidiano; arte; subjetividad; contemporáneo.


RÉSUMÉ

Le habitude est un plan de l'immanence où les action sont composée et où sont construit las subjectivités. Éminemment singulier et général dans le même temps, il est un lieu privilégié pour la micropolitique de territoire de désir. Cet article vise à réfléchir sur ce plan et discuter de la question de s'habituer à , créer les habitudes dans le contexte particulier de l'époque contemporaine où l'impératif de changer d'identité et l'exigence de polyvalence pour les travailleurs qu'ils cessent de générer un nouveau paradoxe dans les processus de la subjectivité : l'habitude de perdre l'habitude. Dans ce contexte , nous discutons des détails de la stylistique de la subjectivité contemporaine du point de vue esthétique : l'art de construire la vie . Cela nous permet d'aborder les problèmes du champ de l'art , réunissant assimiler le capitalisme contemporain ( de la société de contrôle , la société du spectacle , la société de consommation , etc.) Deux à l'avant- garde artistique comme la contre culture en général . Le docilization la différence de nos jours est un problème urgent , car avant la prise de la transgression par le sens commun , il ya de nombreuses réactions qui en essayant de résister aux nouveaux impératifs qu'ils cessent de chercher un retour à la logique conservatrice et stable de la société disciplinaire . Nous avons l'intention avec ce test soit un risque de fuite entre la double capture entre obéissance et la transgression douce, à la recherche des éléments de jugement d'évacuation par l'expérimentation et l'évolution du droit à l' alimentation.

Mots-clés: habitude; la routine; l'art; la subjectivité, contemporains.


 

 

Os Hábitos como Operadores de um Tempo

Problematizar o hábito não é apenas perguntar-se sobre o que faz cada homem no seu dia a dia; não se trata de uma investigação individual sobre rituais cotidianos. Desde a microssociologia de Tarde (1893/2007), podemos ver o hábito como uma rede sem costuras, na qual os atores do teatro da vida se constituem com suas relações (Latour, 1999). O hábito é o movimento singular que tece esse tecido sem costuras chamado sociedade e, por isso, torna-se um importante problematizador para pensarmos a micropolítica do desejo (Guattari, 1992). Talvez o hábito se torne uma ferramenta ainda mais potente em uma contemporaneidade marcada por uma crescente individualização, com vidas cada dia mais circunscritas a um circuito privado, e pela fragmentação desse tecido social em uma miríade de pequenas tribos.

Hoje, habitamos o hábito na calma escura dos apartamentos lacrados, na solar monotonia dos condomínios fechados (e seus playgrounds coloridos), no domingo, dormindo, dormente, enquanto na TV uma mentira sabor menta nos atormenta com um ator medíocre. Mediano. Médio. Temos medo e ódio do médio, do hábito. Tédio doméstico. Bem médio. Bem habitual. No hábito, habitamos o lugar-comum, onde todos comungam do ordinário. O hábito é o vasto e vago campo no qual se dá feição à vida, plano das forças a um só tempo geral e singular, "uma singularidade no seu mais alto grau" (Deleuze, 1997, p. 78). É o ponto híbrido em que se faz aquilo que todos fazem, mas de um modo único: "en un sentido, toda entidad invade todo el mundo" (Whitehead, 1956, p. 49), pois o hábito é um ritornelo (Fonseca, Costa & Kirst, 2008), um modo relacional que se esparge pelo campo usualmente denominado como social, contagiando esse mar dodecafônico, com sua variação rítmica singular, afirmando um estilo de vida.

O hábito é, assim, a morada do comum e do exótico, do esperado e do inusitado, da diferença e do comum - plano daquilo que transpassa as singularidades em uma linha de contágio que dá corpo a conceitos como ethos e cultura. É essa "comunidad común de actividad" (Whitehead, 1956, p. 118), essa sociedade, esse plano de criação de encontros criado pelos próprios encontros (a um só tempo, condição e efeito destes), essa imanência em fluxo que é a nossa desnatura da natureza (Costa, Dutra & Fonseca, 2011). O hábito é a usina do contágio cotidiano em um universo tardeano, no qual o universal é composto por singularidades irredutíveis entre si. Toda repetição se baseia no diferir e todo ser é essencialmente a ação de si enquanto age (Tarde, 1893/2007). Um plano de hábitos constitui um "miriateísmo" (Tarde, 1893/2007, p. 78) cotidiano em que cada gesto é o deus de nossas vidas, decidindo-as e construindo-as como um paradoxal demiurgo de si. O hábito é uma sociedade de ações. Do mesmo modo, os seres são definidos em consonância com Tarde e Whitehead: sem pensá-los como substâncias nominalistas ou mesmo monistas, e sim como o tecido sem costuras que constitui o mundo através das relações.

La doctrina orgánica se acerca más a Descartes que a Newton. También se emparenta con Spinoza; mas Spinoza basa su filosofía en la sustancia monista de la cual son modos inferiores las ocasiones actuales. La filosofía del organismo invierte esta postura. (Whitehead, 1956, p. 120)

Em vez de considerar que o uno é a fundação ou o fundamento ontológico do múltiplo, sendo a multiplicidade apenas "afectiones substantivae" (Whitehead, 1956, p. 274), como em Espinosa (1667/1973), Whitehead inverte essa relação: a univocidade é derivativa da diversidade ("a diferença é anterior à igualdade", diz Deleuze em Diferença e Repetição) ou "la actualidad del universo es solamente derivativa de su solidariedad en cada entidad actual" (Whitehead, 1956, p. 274). Ou seja, a univocidade é uma propriedade ontológica constituída nas relações; a imanência é constituída nas/pelas relações imanentes, portanto, não há uma unidade anterior às relações imanentes que sirva de substrato para estas. Assim, univocidade não fala do 1, mas sim do n -1. É no movimento criador do devir que se constitui a unidade unívoca e sua incompletude persistente.

O ser enquanto sujeito é uma associação de hábitos que lhe ultrapassam e os quais ele mesmo ultrapassa. Assim, se são a morada dos gestos já sabidos, das palavras esperadas e scripts do dia a dia, são também o receptáculo das pequenas loucuras, absurdos domésticos, psicopatologias cotidianas, esquisitices privadas, entre muitas outras ações consideradas anômalas. "Os hábitos são uma prática viva, o lugar da criação e da inovação." (Hardt & Negri, 2005, p. 258). O hábito é um conceito ambíguo e com arestas tão pouco aplanadas que, por vezes, chega a formar paradoxos. Antes de ser um objeto de estudo das ciências sociais, o hábito é um operador, um dos primeiros efetuadores da vida em sua irregular criação de regularidades (estética das funções fractais). Poderíamos dizer que o hábito é o conjunto de relações que dá consistência ao plano de imanência, à univocidade do ser na ação. A consistência de tal univocidade, feita dos múltiplos (encontros), é obtida graças às suas tensões relacionais produzidas pelas diferenças (potências). O múltiplo condicionamento do ser em suas diversas preensões é o que dá persistência e inteligibilidade ao mundo no qual vivemos: "Las leyes de la naturaleza son el resultado del ambiente social." (Whitehead, 1956, p. 279). A Natureza é o conjunto de relações de solidariedade entre as ocasiões atuais; o mundo é uma sociedade de sociedades, assim como cada organismo.

O hábito é um modo de relação. Criar hábito, fazer rotina, tornar corriqueiro: o hábito, em seus movimentos contagiantes de diferença e repetição, afirma um ritmo, um estilo, e tal estilo se mantém pela operação do hábito. Desse modo, obtemos uma diversidade estilístico-estratégica de modos de ser em sociedade que sustenta a perpetuação desta na criação de ritmos dos hábitos: distintos modos de hábitos para diferentes estilos de relação social. Em cada zona espaço-temporal da humanidade, temos a construção de distintas estilísticas habituais e de distintos sentidos para o hábito em si. Em um passado nada longínquo, o hábito era considerado a usina dos fortes de caráter, pois, através dele, forjava-se a personalidade de um homem e a técnica de um artista - a repetição exaustiva leva ao domínio e à perfeição na execução do planejado. No entanto, hoje, tal ritmo habitual da repetição exaustiva de um exercício é mais conhecido como a morada do tédio e o covil dos covardes. A busca do domínio pela repetição adquiriu ares de medo da inovação, especialmente na arte, desde que as vanguardas abandonaram o vanguardismo e foram, pouco a pouco, diluindo-se nas veias capilares da sociedade, a ponto de não mais se diferenciarem do que antes se chamava mainstream. Algo se infiltrou sub-repticiamente para baixo dos lençóis do nosso tempo e a espada do juízo passou a pender sobre cada mínimo gesto, sob o risco de o artista cair no pecado do hábito - não de um hábito qualquer, mas do hábito disciplinar (Foucault, 1987).

A arte de vanguarda, em sua busca por constante ultrapassagem de si, foi incorporada no dia a dia da arte da vida contemporânea. A contracultura de Thoreau, dos beatniks, dos hippies, do Maio de 1968, entre outras, foi incorporada pela sociedade e seu senso comum como uma doutrina da instabilidade, da crise como modus operandi, docilizada no conceito de inovação. A verticalidade da tradição se inverteu e mais vale o novo sempre. A diferença, antes enclausurada pela homogeneidade, agora se torna diferencial e é buscada como novas homogeneidades fragmentárias. Hoje, todos somos ou queremos ser artistas de nossas vidas e transformá-las em um espetáculo aos olhos do mundo. Dois modos de operação do hábito e duas construções de estilísticas societárias: a estética cotidiana da disciplina (Foucault, 1987) e do controle (Deleuze, 1992).

 

O Hábito e seus Sentidos

O hábito é a liturgia do dia a dia, as normas que dão forma ao ritual diário, tornando-o não apenas possível, mas também previsível. No entanto, ele não pode ser reduzido à mera previsibilidade; o hábito constitui tons regulares, dá corpo perene aos estilos de vida, diferenciando-os uns dos outros - o hábito campônio, o hábito aristocrata etc. A haute culture, por exemplo, com seus chás intermináveis, compostos por gestos ritualísticos formando uma delicada sequência lógica que se repete pontualmente, com uma exatidão própria aos anseios da belle époque e sua afetação sofisticada. Tal código civilizado não serve apenas para arrefecer os afetos e docilizar as maneiras, impedindo a eclosão das grosseiras espontaneidades; o código civilizado da etiqueta serve também para diferenciar: admirar uma fala elegante cevada em muita riqueza e tradição é compartilhar socialmente a estética de uma subjetividade. Assim, na rigorosa construção desse hábito, forja-se a subjetividade grave, que admira as simetrias neoclássicas das rotinas litúrgicas e seu pender entre o ascetismo e o hedonismo: o bem beber, o bem comer e o bem viver do bon vivant esteta, mas religiosamente comedido.

A arte de viver nos faz artistas da própria vida, concebida como obra de arte. Pelo hábito, somos sujeito e objeto de nós mesmos: superjecto (Whitehead, 1956, p. 209). Assim, o hábito concebido como usina de regularidade no caos da vida (hábito disciplinar) risca traçados duros que afirmam modos homogêneos. Por isso, em uma época que diz amar a diferença, o novo e o inesperado, a prática do habituar-se se tornou tão pecaminosa aos olhos contemporâneos. Se os costumes são cunhados no cotidiano pelo hábito, que resta a este em um cotidiano no qual o costume é desacostumar e o hábito é desabituar-se?

Mesmo o simples gesto doméstico de pacientemente enrolar pares de meias caiu sob suspeição. A cada meia delicadamente dobrada sobre seu par, vê-se o tempo que se contrai, denso, em um nó. São quantas de tempo, pílulas intensivas de duração dobradas sobre si, dormitando em degradé, na calma obscuridade fóssil de uma gaveta. Tempo investido nas profundezas dos túneis escavados por uma toupeira (Deleuze, 1992), uma poupança afetiva dedicada centavo a centavo (gesto a gesto) às relações estáveis. Para que despender o próprio tempo em um gesto tão banal, que aprisiona em cada meia enrolada a possibilidade de algo intempestivo que jamais aconteceu? Por que abortar tantos rasgos rebeldes possíveis em um ato dócil, imobilizado no tecido esquecido no escuro do armário? Por que insistir em monótonas ladainhas monofônicas, mantras domésticos do dia a dia que, com sua repetição, permitem-nos ultrapassar a vertiginosa corrida dos segundos, apagando a diferença das horas e dos dias? Vivemos em tempos de gavetas abertas, em um colorido espetáculo de meias desenroladas umas sobre as outras. As meias soltas, e às vezes ao avesso, formam uma trama que dá origem a novos encontros inusitados, aos quais denominamos criativos ou inventivos, por brincarem com as regras de combinação instituídas pelo hábito de vestir-se, pelo costume compartilhado. Vivemos tempos de despareamentos despojados, combinações descombinando. Mãos que enrolam as meias e juntam os pares, um a um, fazem-se desnecessárias.

A arte da vida cunhada no hábito disciplinar, ou seja, a arte plácida de retratar a simetria para esculpir um espírito harmônico se vê tomada pela falta de elegância novidadeira das vanguardas e sua fome de mudança. Vemos, então, a atmosfera da arte de viver contemporânea: contracultura, desinstituir, embaralhar, transversalizar, decodificar, esquecer. Esquecimento em um olvidar ativo, que impele à mudança ao inventar outro modo que não aquele lembrado. Outrar ao hábito: desabituar. Buscar o novo, o diferente, a criação de outros códigos e maneiras distintas das cultivadas pelo costume do hábito. O artista, desse modo, é o inventor que tem como métier inventar a vida. Livramo-nos, então, com isso, da maldição do dia a dia em sua repetição enfadonha de rotinas asseguradas pelas promessas que os homens fazem a si e aos outros: prometem regularidade previsível na própria alma e nos próprios atos. O homem do hábito é o animal que promete (Nietzsche, 1887/1998) e faz do presente e do futuro um mero passado: arte representacional da vida reproduzida. Sem tais promessas, esquecendo o prometido, o presente, o futuro e o passado se fazem intempestivos e a arte vira vida ela mesma: não mais representação habitual da vida, mas criação de novos hábitos intempestivos ainda não domesticados. O homem livre de suas promessas se torna um animal indócil, do qual nunca se sabe o que esperar, posto que está solto dos compromissos de ser sempre o mesmo: anomalia da inconstância selvagem (Castro, 2006). Sem os pregos das promessas a lhe pregarem na cruz do tempo homogêneo, esse homem se torna errante, no mundo e em si, vagando sem portos, por entre enseadas e estreitos, a explorar novas possibilidades do viver.

Mas, e se, em vez de servir para desvencilhar-se das promessas, a reinvenção de si passasse a ser o mais pesado dos imperativos em nossa vida? Se, em vez de operar esquecimento e leveza, a mudança se tornasse uma nova promessa, tão sacra e pesada quanto suas predecessoras? Afinal, assegurar a existência de reviravoltas e surpresas em uma vida é ainda uma promessa, tão dura quanto a promessa de permanência e perseveração. "Prometo-os ser sempre diferente dos demais e de mim mesmo, garantindo inovar e surpreender a todo o momento e em qualquer âmbito da minha vida", disse um artista qualquer da vida contemporânea. Tal solene juramento teria seu correspondente imagético nos pares já cuidadosamente (pré-)despareados nas gôndolas das lojas descoladas da tradição do trajar-se e também nos cabelos metodicamente desaprumados, a custo de muita simetria e laquê: ambos duros e docilizados (pré-fabricados a partir de um modelo), ainda que considerados inovadores. Talvez, então, o pecado da arte da vida não repousasse mais na doméstica contração do tempo em hábitos, mas na descontração forçada (forçada não enquanto fingida, mas sim como obrigatória, compulsória) dos departamentos criativos das agências de publicidade.

Não se trata, no entanto, de louvar um espontaneísmo ingênuo ou assumir um maniqueísmo anticapitalista. O problema da promessa da mudança não se refere a um excesso de pensar, planejar e fingir (não sendo o esquecimento um ato espontâneo, imediato); tampouco se refere à geração de lucro e dividendos com as criações em questão (é possível vender sem docilidades). O ponto nevrálgico do problema é outro: quando a mudança adquire o caráter de dever e passa a ser critério de julgamento da obra (e da vida) e do artista, vemos uma deturpação, pois a arte geradora de leveza esquecida passa a ser a entediante lembrança da grave necessidade de inovação e criatividade (em uma concepção publicitária: provocar surpresa, capturar a atenção de modo fugaz). O mundo do trabalho contemporâneo, por exemplo, apresenta-nos a necessidade de mudança como um imperativo de adaptação aos novos tempos, não apenas à demanda flutuante e variável de um mundo conectado, gerido just-in-time, mas também aos novos modos de criação: a busca de novas tendências, o intento de capturar as linhas de fuga no instante mesmo do seu nascimento e servir-se de sua força contagiante. A flexibilidade impingida e o dever da novidade são as máximas de uma nova moral do trabalhador intermitente e polivalente (Costa, Barbieri, Maraschin & Tittoni, 2008).

Então, repetir e insistir no hábito pode, paradoxalmente, adquirir o sabor refrescante antes ofertado pela mudança: criar e resistir. Nesse sentido, vemos uma diversidade de iniciativas que visam à manutenção de hábitos e culturas tradicionais buscando a garantia de sua continuidade em um mundo em movimento. Essas políticas da criogenia findam por impingir uma estabilidade forçada (compulsória), isolando e seccionando uma localidade ou cultura do mundo para garantir a perpetuação de um modo relacional específico. Afirmando fortemente esses modos como identidades fechadas em si, tais políticas da criogenia transformam culturas em substâncias duras: o araweté, o pataxó, o quilombola, o pomerano, o afrodescendente, o teutodescendente etc. São medidas de conservação multiculturalista que compartilham do intuito de resgate de valores com outra prática política bastante distinta: a onda neoconservadora (podemos chamá-la, genericamente, de neocons), que ganha cada vez mais força na América do Norte (com cristãos fundamentalistas e ultradireitistas do Tea Party) e toma conta da Europa (com ascensão dos partidos de direita em muitos países importantes da União Europeia e manifestações de xenofobia por parte dos Estados e cidadãos europeus). O avanço da ultradireita no mundo europeu toma ares preocupantes ao ressoar nos lares acometidos por medidas de austeridade do Estado reformulado. A xenofobia já é explicitada por partidos na França, Espanha e Itália, sem vergonha do próprio racismo. Diante da incerteza dos valores e da economia, muitos buscam refúgio, na tentativa de retroceder a uma situação idílica e falsa de uma Europa pura, não globalizada. A expulsão dos ciganos da França, o fechamento das fronteiras na Alemanha e na Itália, a recorrente proibição da entrada de estrangeiros nas alfândegas espanholas, o assassino norueguês e seu discurso fundamentalista cristão, entre outros, são claros exemplos dessa vontade de repetição e homogeneidade para vencer um imperativo de mudança e crise, cada dia mais doloroso para a população em geral.

No Brasil, também uma série de iniciativas individuais (como a coluna contra minorias, ciclistas, entre outros, do repórter David Coimbra, na página 2 do jornal Zero Hora do dia 03/06/2011, e a entrevista do deputado Jair Bolsonaro ao programa televisivo CQC) e coletivas (como as diversas manifestações pelos valores da família, promovidas por religiosos e representantes da direita conservadora na política brasileira, além das novas medidas da política do "choque de ordem" na cidade do Rio de Janeiro e a política da "tolerância zero" no Rio Grande do Sul) afirmam a vontade de resistir contra a vertigem do devir contemporâneo e suas constantes mudanças na direção de uma alta dispersão de diferenças em permanente diferir. Para tanto, passam a regular de modo mais fino os comportamentos cotidianos urbanos, buscando mais uma vez o ideal da "cidade perfeitamente governada" (Foucault, 1987, p. 164), determinando um novo esquadrinhamento do espaço e dos hábitos, de modo a regulá-los de modo mais intenso e abrangente - tanto no "choque de ordem" quanto na "tolerância zero", vê-se a ideia de que somente com uma estrita regulamentação urbana se pode chegar à administração das cidades. Para tanto, por exemplo, retira-se o coco do quiosque de Copacabana (o qual fica com água de coco apenas engarrafada) e as mesas da Praça São Salvador, em Laranjeiras (dando cabo de um tradicional ponto da boemia carioca), pois a estética da multidão, com suas cores e formas variadas, vai contra a estética da ordem e sua precisão monocromática. Do mesmo modo, vemos outras iniciativas neocons, como as proposições da direita cristã no Congresso e no Senado em prol de uma retomada dos valores da família, tentando instituir, por exemplo, um "dia do orgulho heterossexual" no município de São Paulo. Aparentemente, tal discurso encontra ressonâncias na população, temerosa com as rápidas transformações do nosso tempo.

Essas ações estratégicas costumam se apresentar como a resistência contra a degradação societária. Tanto as políticas da criogenia quanto os neocons estão presentes em nosso país e ambas as perspectivas são vistas, muitas vezes, como uma saída possível ao imperativo do desabituar-se contemporâneo e sua vontade de variação, resistindo através de uma retomada do hábito concebido como repetição pura e usina do caráter. O conservadorismo e a retomada dos seus valores se apresentam, então, como uma vanguarda contemporânea contra a inovação degradante dos nossos tempos.

 

Hábito e Contemporaneidade: Matar o Tempo

Mas, antes de conclusões apressadas, voltemos ao habituar-se e investiguemos mais uma vez seu tom de obituário para a alma do artista julgado sob o jargão da inovação. O hábito, como já vimos, é a contração do tempo; trata-se de um ponto denso em que o tempo se dobra sobre si para além de sua tripartição usual (presente, passado, futuro). Nesse movimento de dobrar-se, o tempo forma uma pequena armadilha, um torvelinho que, ao modo dos redemoinhos, buracos negros e tufões, captura as partículas nômades vagantes, inserindo-as em seu movimento, na sua órbita, fazendo do errante um hábito: repetição por contágio (Tarde, 1893/2007).

É por ser considerado uma clausura eterna, quase inexpugnável, que o habituar-se passou a ser visto como degradante à arte da vida. Acostumar-se, acomodar-se, parar, tudo isso é visto como morte em um mundo no qual movimento é sinônimo de vida. No amor, no sexo, no trabalho e no lazer, a palavra de ordem é inovar, sair da rotina, surpreender, evitar o hábito: pedras rolantes não formam musgo. Vemos o surgimento de uma elite nômade que vence as distâncias com facilidade, vivendo cotidianamente em pontes aéreas e vivenciando constantemente culturas estranhas (Bauman, 2001). Termos como gypset (união de gypsy, que se refere aos ciganos, e jetset, que remete aos ricos e famosos de uma sociedade) e cool hunter (caçadores de tendências ainda nascentes, adivinhos do estilo que será a próxima novidade) são hoje cunhados por essa perspectiva amante (ou escrava?) da mudança.

Já no que tange à arte em si (em especial, as artes plásticas), vencer o pecado do hábito é tarefa para operações como a de retirar da representação sua obviedade verossimilhante e reinventar os mais banais objetos. Assim, através desse ímpeto de ultrapassar o habitual, a arte (e a vida) se encontra e se diverte com o absurdo, com aquilo que não se enquadra nos padrões estabelecidos, ou seja, foge às simetrias do esquadro societário. O humor, a farsa, o nonsense, o absurdo e o paradoxo permitem, pela arte, liberar os simulacros do grave jugo da representação, permitindo sentidos para além da designação do referente: "A obra de arte abandona o domínio da representação para tornar-se 'experiência', empirismo transcendental ou ciência do sensível" (Deleuze, 1988, p. 107).

Nem sempre foi fácil entregar-se a tal tarefa e, por vezes, certos estratagemas foram necessários para permitir o flerte com o absurdo (em muito mais amedrontador que a morte) sem castigos e penas. Quando Deleuze (2003) nos fala de El Greco e do barroco, por exemplo, ele nos diz que esse pintor usou suas tintas para dar forma a Deus e outras cenas divinas guiado não tanto pela fé, mas pela busca de maior liberdade de criação, para ultrapassar a exigência de verossimilhança e alargar os horizontes possíveis da pintura. Para ir além do hábito e suas duras normas, haveria maneira melhor do que se referir a entidades tão pouco afeitas a referências cotidianas, como Deus e outras divindades? Foi pintando o divino (o extraordinário) que El Greco pôde ultrapassar o habitual na pintura, ousar em cores e formas sem sentido para a representação do dia a dia humano, com uma expressividade bizarra e perturbadora ao homem comum de então. Foi o flerte com Deus que lhe abriu as portas do absurdo, pois Deus é absurdo para nosso mundo, e por isso não cabe no hábito e nas leis humanas. Como disse Tertuliano, "creio porque é absurdo": Deus está para além da razão e das humanas simetrias, podendo até mesmo ordenar que Abraão assassinasse o filho, desígnio terrível que esse pai cumprirá, pois, tal como disse Kierkegaard (1843/1979), o cavaleiro da fé vive o absurdo da dimensão infinita e singular da fé, e já não exige as limitações arrazoadas do bom senso.

Na outra parte, laica, mas não menos absurda, Duchamp redime a arte do pecado do hábito com seus ready-made. Ele arrancou alguns dos membros mais caros do hábito banal, nossos objetos cotidianos, e, ao modo do poeta Manoel da Barros, desinventou seus usos, a ponto de torná-los outras coisas, completamente distintas do que antes eram: "Aqui o organismo do poeta faz adoecer à Natureza (...) Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas primaveras... Isso é fazer natureza. Transfazer." (Barros, 2010, p. 197). Duchamp os transforma em arte insuflando absurdo nessas antes plácidas ontologias repousadas sobre os hábitos cotidianos, tão plácidas que até invisíveis ao olhar eram, como o surdo som da geladeira em uma cozinha e a música das esferas de Aristóteles. Pois um mictório em um banheiro é o mesmo que uma meia dobrada na gaveta, ou seja, um código simples e direto que nos captura e leva de imediato ao gesto esperado: urinar ou vestir, respectivamente. Duchamp adentra o código e o vitupera com o claro ardil de virá-lo do avesso para livrar-nos do pecado do hábito.

Aliás, virar do avesso o código é propriamente o objeto do artista comumente denominado "de vanguarda". Seu objeto não é exatamente o tema com o qual lida, mas a lei, os códigos instituídos e sua transgressão. Duchamp não falava de fontes, rodas de bicicleta ou mictórios; tampouco Warhol falava sobre produto de massa nem Picasso falava de mulheres - todos faziam uma só operação: questionavam e subvertiam os códigos estéticos da arte. Assim, o que move a arte dita de vanguarda é uma fascinação pela lei, pelo código instituído. Uma fascinação brincalhona, como a das crianças que desmontam e reinventam os objetos, desmembram-nos e os colocam em novos contextos, inventam novos usos, exploram suas possibilidades expressivas:

"No começo era o verbo. / Só depois é que veio o delírio do verbo. / O delírio do verbo estava lá no começo, lá onde a / criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. / A criança não sabe que o verbo escutar não funciona /para cor, mas para som. / Então se a criança muda a função de um verbo, /ele delira." (Barros, 2010, p. 301)

Tais atitudes infantis de experimentação são geralmente vistas pelo senso comum como pequenas crueldades, arteirices matreiras ou até mesmo como impúberes perversões. Fazemos isso de forma leiga, por vislumbrarmos, incrédulos, o gozo dos infantes com o sofrimento impingido a coisas animadas e inanimadas. Mas, ao aproximar a arte de vanguarda do devir criança, torna-se possível positivar a pecha popular de "perversão" - a perversão se torna a revolução permanente. A perversão possui uma lógica subversiva: trata-se de um modo de ser que opera no mundo através da corrupção dos códigos e transgressão da lei, virando do avesso o instituído. Desse modo, ao romper com o senso comum e o bom senso, a perversão não busca um novo território, que se constituiria a partir do conteúdo do ato transgressor, e sim afirmar a transgressão pura e direta (por exemplo, violar a propriedade privada não com fins de socializá-la comunalmente, mas apenas infringir a lei que define a posse particular e negá-la). É pensar somente no transgredir em si, e não em um objetivo a ser alcançado através da transgressão da lei. Não importa a velha lei ou uma nova lei para o seu lugar. Seu objeto (objetivo) não é, por exemplo, a justiça social ou uma nova concepção de belo; importa apenas a constante corrupção do código instituído. Desse modo, à criança, ao vanguardista e ao Marquês de Sade interessa apenas fazer devir, pois no devir estaria a "revolução". Para o Marquês, por exemplo, a perversão de uma bela, jovem e pudica órfã não se dá para a construção de uma hábil cortesã (ou aguerrida libertina) graduada em todas as artes do prazer, e sim para romper com o bom senso e a moral ilibada, através de sua nada ortodoxa educação sentimental: "Seguramente não pouparei nada para pervertê-la e pôr de pernas para o ar todos os falsos princípios morais com que já nos atordoaram." (Sade, 1795/2000, p. 20). A revolução republicana do Marquês se dá pelo afã de afirmar a liberdade, vencendo constantemente os limites a ela estabelecidos, transgredindo a moral estabelecida para ousar novos mundos possíveis: "Não é mais aos pés de um ser imaginário ou de um vil impostor que um republicano deve se curvar; seus únicos deuses devem ser doravante a coragem e a liberdade" (Sade, 1795/2000, p. 127)1. A liberdade é aqui concebida como o dever de ultrapassar os limites instituídos e perverter a moral dos ídolos: "E como os homens gozareis de todos os prazeres que a natureza tornou para vós um dever" (Sade, 1795/2000, p. 153). A perversão não é vista como a vontade do mal encarnada, maldade que tem por princípio o prejuízo ao outro. A crueldade que finda, por vezes, nesse "fazer o mal" é, antes de tudo, a dureza afiada do imperativo de transgredir a lei, posto que esta interditaria a possibilidade do gozo absoluto e da felicidade concebida como coisa (uma totalidade tangível e estável, passível de ser tocada, seja pelas mãos ou pelo entendimento, sendo, na maioria das vezes, um objeto ou uma experiência com a qual nos relacionamos pelo consumo). Nessa concepção de perversão, é a necessidade de ultrapassar os limites instituídos que leva à crueldade, e não o inverso. A crueldade nada mais é do que a aguda necessidade de transgredir, indiferente aos seus efeitos para além do próprio ato de perverter a lei, subvertê-la para o outro lado, reverter a qualquer custo o estabelecido, com a afirmação de sua negação, na busca de que o segredo da felicidade esteja na mudança perpétua, na relação com um novo estímulo (novidade e inovação) - trata-se do imperativo das vanguardas artísticas e da contracultura dos anos 1950 e 1960, transformado na dócil última novidade a ser consumida (Hardt & Negri, 2004). Imperativo inconsequente de mudança, de transgressão da lei em nome do gozo (ou da felicidade como coisa).

E é exatamente por isso que temos um paradoxal problema ao instituirmos o antigo pecado perverso (transgressão) como o redentor do novo pecado do hábito (respeitar a tradição), tornando a operação perversa à nova lei do processo criativo das artes (e das artes da vida). É dever do artista da vida explorar, experimentar e subverter os códigos estabelecidos. Sentimo-nos, então, presos em um jogo de dupla captura: se transgredirmos a lei, nós a obedecemos; se obedecermos à nova lei, nós a transgredimos. Se buscarmos transgredir os códigos instituídos e surpreender o mundo com uma vida/obra de estética intempestiva, nada mais fazemos do que seguir docilmente o imperativo que clama pelo dever de inovar; se, por outro lado, buscarmos placidamente seguir as diretrizes que comandam a estética contemporânea, buscaremos transgredir para obedecê-las, surpreender o mundo com uma estética intempestiva etc. Nosso sistema estético modulador dos modos de ser voltou sua feroz fome de novidade sobre si mesmo e, ao deglutir-se, parece ter acabado com o apetite feroz que o movia. Diante da transgressão tornada norma, resta apenas uma arte histriônica, que encena a própria corrupção sem jamais conseguir corromper-se, pois a corrupção se tornou impossível, findou docilizada como lei. Findar com o hábito torna-se, então, habitual, e nada é mais corriqueiro do que quebrar a rotina em nossos dias. Transformamos o rebelde em noviço: nada mais codificado do que o dever de decodificar. Assim, a perversão da perversão, devido à incorporação das vanguardas aos cânones e da contracultura à cultura, leva a uma solução que tampona a possibilidade de transgredir: a perversão torna-se histeria. Desse modo, a arte passa a ser gerida, preponderantemente, pelo marketing, na busca de intensificar sua dispersão de efeitos no tecido social e adquirir valor de mercado.

Como no mercado de ações e da música pop, nada é mais importante e rentável do que revelar ao mundo não apenas um novo talento como também um novo estilo, um código que embaralhe o padrão codificado. Bem verdade que, na maioria das vezes, o que se vê é o velho pecado do hábito: artistas que copiam e reproduzem gestos ousados, usinados em outros corpos, encenando com um novo código padrão a decodificação de um antigo (já há muito caducado). Assim, performances tresloucadas (tão óbvias e cansativas), intervenções doidivanas (ingenuamente púberes), abstracionismos líricos caóticos (de grande beleza decorativa), repetições maneiristas em audiovisuais conceituais (áridos e convencionais na sua falta de convenção), pouco importa o quê, no mundo contemporâneo, no final, tudo vira tendência, vira grife, vira estratégia de marketing, vira identidade visual, vira estilo tomado de empréstimo por covardes e medíocres, enfim, tudo vira clichê. Até mesmo o uso subversivo do clichê vira clichê. Aqui está o círculo mais profundo do inferno do pecado do hábito: o clichê em sua dureza de linhas simétricas e sem complexidade, muito próprias daquilo que é estandardizado (simplificar para reproduzir e vender).

Mas atentemos para a dupla captura ocorrida quando a transgressão da lei se torna lei e vislumbremos mais de perto essa problemática paradoxal. Quando ocorre o endurecimento desse nó que captura a arte de viver? Creio que poderíamos pensar (subvertendo alguns conceitos da Psicanálise) em pelo menos duas linhas que enrijecem as desconstruções contemporâneas: a perversão da perversão e a neurotização da perversão. Na primeira, encontramos o momento em que a transgressão assume a dureza de lei para consigo: a lei como transgressão e a transgressão como lei. Nessa operação, o transgredir se endurece na jaula do dever: de exploração das possibilidades outras, passa a ser outra possibilidade do dever, a qual apenas se sobrepõe substitutivamente aos deveres anteriores. É a lei contra a lei, que é tão legal quanto sua opositora, tão dura em seus processos e procedimentos quanto qualquer lei, pois, assim como todo dever, faz uma promessa no homem, assegurando a previsibilidade e segurança dos atos e pensamentos humanos, já que obrigatoriamente será um cumpridor do dever (sob o risco da culposa mordida do remorso modorrento). E assim, com tal promessa do dever, podemos todos novamente julgar e avaliar consensualmente os modos de viver e as obras de arte, decidindo, então, se o rei leva vestes ou está mesmo nu, pois nos são dados, de forma geral, clara e reducionista, os critérios que definirão a boa e a má obra de arte em qualquer situação.

Já a segunda linha dura, a neurotização da perversão, não fala da transgressão tornada dever, mas da diferença tornada padrão. No momento em que a transgressão passa de ação desmedida para medida das ações, parâmetro estabelecido do fazer, vemos sua diferença capturada pelas linhas simétricas do bom senso. A diferença passa a ser um modelo padrão, no qual o padrão é o diferente. Temos, assim, a docilização das forças da diferença, seu amainamento, homogeneização, apaziguamento, resfriamento, pacificação etc. Tal operação planifica a diferença em diferente padrão, passível de ser produzido em massa para toda a população. Trata-se da estratégia de microssegmentação para a gestão da diferença (Hardt & Negri, 2004). Trata-se de segmentações moleculares duras, muitas vezes mais fascistas e perigosas do que as molares (Deleuze & Guattari, 1996), as quais formam tribos identitárias que, ao serem bem definidas, podem se tornar peças no complexo tabuleiro (micro)estriado do capitalismo contemporâneo. Em vez de impedir a diferença (tarefa impossível à qual a lógica disciplinar se dedicou), promove-se a inclusão desta em identidades menores, mas igualmente duras e isoladas. Pois, uma vez segmentadas, torna-se possível planejar sua gestão, tal qual um neurótico que busca encerrar o devir do tempo em uma série de pequenos rituais e categorizações cotidianas, escavando uma série de túneis labirínticos que impedem a ação, como nos diriam Nietzsche (1887/1998) e Dostoiévski (1864/2000), através da imagem do homem do ressentimento e do homem da consciência hipertrofiada respectivamente.

 

Fazendo Girar ao Paradoxo: Fuga, Experimentação e Criação

Vimos duas vias (perversão da perversão e neurotização da perversão) pelas quais a luta contra o pecado de tornar-se hábito acaba por servir de força motriz à criação de novos hábitos habituais. Todo novo habituário surge do obituário do hábito, da tentativa de negá-lo por considerá-lo pecaminoso, da oposição a ele com um novo modo que acaba por decair no dever e no padrão: hábito. Mas qual seria o ponto de fuga dessa nova captura? Cremos que a palavra mágica é muito simples: juízo. Quando julgamos a vida, a arte e seus processos, impingimos o dever como balizador das distinções: é ou não é novo, inovador, transgressor etc. Se trocarmos o juízo pela experimentação, trocaremos também o dever pela possibilidade. Assim, não se trataria de um "dever inovar", mas de um explorar as possibilidades expressivas de algo, experimentando os diferentes modos, inclusive os já sabidos, sem ser escandido pelo juízo do in ou out nessa aventura descodificante. Para não findar com os paroxismos, cunhamos mais essa máxima: devemos nos livrar do dever e pensar no possível. A pergunta que guia a criação artística é "o que pode?" enquanto potência de relações, poder de ação sobre ação, enquanto possível, e não "o que pode?" enquanto dever e juízo. Concluímos, assim, que antes do pecado do hábito, importa-nos o hábito do pecado, hábito de emitir juízos e erigir deveres - pecado da arte é arte ter pecado.

Apesar de ser uma conclusão que soa ética, falando de pecados, do bom, do mal e dos sentidos para a arte e para o homem, trata-se de uma máxima ontológica que nos fala do que constitui o ser e sobre as possibilidades de nossas relações, ou seja, versa sobre a estética dos modos, no caso, dos modos de fazer arte e ser artista na vida. Uma ética que nada mais é do que uma ontologia que, por sua vez, fala sempre de uma estética (pois modos são estilos ônticos): explorar, em um mundo formado como arranjo de relações que constituem modos de ser, as possibilidades da vida para além do esquadro dos juízos forjados na dureza do dever. A arte, então, é um fazer ontológico, cria vida e se pauta pela estética das composições e relações, nessa árdua e ardente atividade: não importam o bem e o mal predefinidos, mas o que cai bem ou não a cada encontro. Por isso, teme-se mais o hábito do pecado do que o pecado do hábito, pois é o primeiro que forma juízes emissores de sentenças do segundo.

Para afastar-se do púlpito de onde despacham esses juízes do bom senso, a prática do psicólogo pode avizinhar-se do labor do artista e do crítico de arte: pensar e criar os estilos e seus modos. Essa prática se pautaria por uma metodologia da experimentação brincalhona, produzindo jogos improváveis que criam novidades intempestivas de modo despretensioso, sem imperativos novidadeiros pré-definidos ou medidas da diferença medida - sem juízo, enfim. O psicólogo pensaria os fluxos com os quais se relaciona a partir de suas potências de composição, a partir dos estilos de ser produzidos nessas relações. Um pensamento estético é uma forma de afastar-se do juízo sem abandonar o mundo: pensar o que vai ou não bem, de modo difuso e fraco (em comparação à certeza geral e dura do certo e errado), mas sem abster-se de agir. Com essa perspectiva, podemos buscar fugas para a dupla captura dos hábitos contemporâneos na regra desregrada. Com a problematização estética, podemos nos utilizar do raciocínio abdutivo2 e da transdução3, modos de pensar que não nos remetem para a construção de binarismos dependentes do terceiro excluído (sim ou não), os quais nos levam inevitavelmente ao juízo (certo ou errado, in ou out). Podemos, então, utilizar o rigor da estética ao pensar as composições e decomposições dos estilos para estrategicamente nos guiarmos na construção de nossas vidas como obras de arte.

Pensar que as condições que as relações constituem e constituem as relações (preensões) são por completo indeterminadas é um erro tão grande quanto tomá-las como substâncias ou essências necessárias. No primeiro caso, temos um espontaneísmo ingênuo, no qual tudo é possível e se ignora a força da construção dos modos ou a tomada da mudança como imperativo independente das relações que a constituem (aqui denominada perversão da perversão). No segundo caso, temos a tentativa de cessar o devir e a fragmentação do plano de composição das subjetividades contemporâneas, através do recrudescimento das estilísticas em identidades fechadas (aqui denominada "neurotização da perversão"). Em vez disso, deveríamos propor uma operação que problematizasse o paradoxo de uma ontologia modal. Os estilos não são gratuitos e arbitrários, são densas construções que possuem o peso e a força dos séculos que aí estão a construí-los até hoje, no entanto, assim como o metal forjado a fogo, ainda que sejam duros em sua estilística, sempre são passíveis de transformações. Não quaisquer transformações, mas aquelas possíveis em sua rede de relações, sociedade de preensões (Whitehead, 1956), o que nos coloca diante da necessidade da cuidadosa problematização do contemporâneo para pensar as estratégias de intervenção sobre este. A experimentação não é um mero ato tresloucado em busca de uma novidade; trata-se de um árduo e laborioso exercício de reinvenção dos modos dados: brincar a sério, tomar o devir criança (Deleuze, 1997) e desinventar um pente até ele ser uma gravanha (Barros, 2010) ou outra coisa ainda não existente, mas fazer isso sem a preocupação com mudança ou inovação, sem considerá-las um dever ou um imperativo do juízo, mas uma possibilidade de abertura entre muitas outras.

 

Referências

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Recebido em 04 de maio de 2012
Aceito em 20 de setembro de 2013
Revisado em 02 de novembro de 2013

 

 

1 Bem verdade que, no caso do nobre Marquês de Sade, a sua revolução, ainda que tomasse a transgressão como um dever, um fim em si mesmo, concebia uma interessante metodologia: o humor. "Não derrubeis seus ídolos com cólera: pulverizai-os brincando, e a opinião cairá sobre si mesma" (Sade, 1795/2000, p.139). Com isso, poder-se-ia fazer o feitiço cair sobre o feiticeiro, tornar o próprio dever da liberdade também risível e, brincando, torná-lo algo menos imperativo. Vemos, assim, uma linha de fuga na própria constituição da transgressão como imperativo moral.
2 Abdução seria, segundo Peirce (1914/1975), outro modo de raciocínio, para além do indutivo-dedutivo. Ele consistiria na livre produção de hipóteses possíveis a partir dos acontecimentos. Desse modo, manteria suspenso o juízo, já que sempre lida com o campo dos possíveis ("pode ser", e não "é ou não é"). Essa seria a lógica própria das descobertas científicas, da experimentação.
3 Transdução é um conceito elaborado por Simondon (2003) que se diferencia da indução e da dedução, por não partir ou buscar semelhanças (simetrias) na realidade, mas pensar a partir da comunicação das diferenças, da produção de tensão criadora. Desse modo, em vez de se vasculharmos o mundo juntando os similares ou buscando classificar similitudes, vamos provocar estranhas núpcias entre elementos diferentes: pensar o que diferencia, e não o que assemelha, e provocar paradoxos pela união do distinto.

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