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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.27 São Paulo Aug. 2013

 

As desrazões do esclarecimento

 

Unreasons of the enlightenment

 

Las desraciones del esclarecimiento

 

Les déraisons de la raison

 

 

Robson Feitosa OliveiraI; Maria de Fátima SeverianoII; Jesús Garcia PascualIII

IProfessor, mestre em psicologia social pela Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil, e doutorando em Psicologia Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. olivazanetti@yahoo.com.br
IIGraduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, mestrado em Educação pela Universidade Federal do Ceará, e doutorado em Ciências Sociais Aplicadas à Educação pela Universidade Estadual de Campinas. É professora associada no Departamento de Psicologia e no Programa de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil. fatimaseveriano@gmail.com
IIIGraduado em Graduação em Filosofia. Pedagogia e Psicologia e doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará, CE, Brasil, sendo também docente da mesma instituição. professorpascual@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo busca analisar a contribuição da Dialética do Esclarecimento de Theodor Adorno e Max Horkheimer para a crítica da razão moderna. Empreendemos uma compreensão da crítica estabelecida por esses autores ao Esclarecimento, expondo a crítica ao Esclarecimento em sentido lato, com a pretensão de estabelecer um paralelo entre a Razão moderna Instrumental e a Razão mercantil moderna. O objetivo é o de discernir no Esclarecimento traços que só se desenvolveram e se diferenciaram na modernidade capitalista. Deste modo, realizamos uma análise crítica que parte da hipótese de que o desenvolvimento da razão moderna positiva enquanto epistemologia - tal como é exposta pelos autores supracitados - tem como pano de fundo tácito o desenvolvimento da lógica da mercadoria, a lógica tautológica e autotélica da valorização incessante do dinheiro (Marx). A análise dessa relação visa explicitar elementos acerca da subjetividade contemporânea e das novas formas de dominação implícitas, próprias da Razão mercantil moderna.

Palavras-chave: Esclarecimento, Razão, Mercadoria, Escola de Frankfurt, Subjetividade.


ABSTRACT

This study seeks to analyse the contribution of Theodor Adorno and Max Horkheimer to the critique of modern reason in the Dialectic of Enlightenment. It tries to undertake a critical understanding about the concept of Enlightenment, by exposing his critique in a broad sense. It intents to draw a parallel between the modern Instrumental reason and the modern mercantile reason, i.e., it tries to discern the traces of Enlightenment that only developed and differentiated in the capitalist modernity. Thus it undertakes a critical analysis about the hypothesis that considers the development of positive modern reason as epistemology - such as is exposed by the authors mentioned above - but that has the tacit background: the development of logic of the commodity, the autotelic logic of the incessant valorization of the money (Marx). The analysis aims to clarify this relationship on elements of contemporary subjectivity and new forms of domination implied, Reason's own modern market.

Keywords: Enlightenment, Reason, Commodity, the Frankfurt School, Subjectivity.


RESUMEN

Este estudio busca hacer un análisis de la contribución de la Dialéctica de la Ilustración de Theodor Adorno y Max Horkheimer a la crítica de la razón moderna. Intentaremos una comprensión de la crítica que estos autores establecieron mediante la exposición de la crítica de la Ilustración en el sentido más amplio, esperando establecer un paralelo entre la Razón Instrumental moderna y la Razón mercantil moderna. El intento es discernir en el Esclarecimiento huellas que sólo se desarrollaron y diferenciaron en la modernidad capitalista. Por lo tanto vamos a realizar un análisis crítico sobre el supuesto de que el desarrollo de la razón moderna positivista como epistemología -como es expuesta por los autores mencionados anteriormente- tiene por base el desarrollo de la lógica tácita de la mercancía, la lógica autotélica, tautológica de la valoración incesante del dinero (Marx). El análisis de esta relación busca explicar elementos sobre la subjetividad contemporánea y de nuevas formas de dominación implícitas, inerentes a la Razón mercantil moderna.

Palabras clave: Ilustración, Razón, Mercancía, Escuela de Frankfurt, Subjetividad.


RÉSUMÉ

Cette étude cherche à analyser la contribution de La Dialectique de la Raison de Theodor Adorno et Max Horkheimer pour la critique de raison moderne. On entreprît une interprétation de la critique de la Raison établie par ces auteurs en exposant une critique à la Raison au sens large, pour ensuite essayer d'établir un parallèle entre la Raison moderne Instrumentale et la Raison marchande moderne. Le but est de discerner au coeur de la Raison des traits qui ne se sont épanouis et ne se sont démarqués que dans l'époque moderne, l'époque capitaliste. Ainsi, notre hypothèse critique est que le développement de la raison moderne positive en tant qu'épistémologie - telle qu'elle est exposée par les auteurs cités - s'assied implicitement sur le développement de la raison marchande, une logique tautologique e autotélique de la valorisation incessante de l'argent (Marx). L'analyse de ce rapport vise à dévoiler quelques éléments propre à la subjectivité contemporaine et de nouvelles formes de dominations plus subtiles, propres à la Raison marchande moderne.

Mots clés: Lumières, Raison, Marchandise, École de Frankfort, Subjectivité.


 

 

Introdução

No seu célebre texto Resposta à pergunta: "Que é Esclarecimento?", Immanuel Kant expõe o seguinte: "Se for feita então a pergunta: 'vivemos agora em uma época esclarecida [aufgeklärten]'? a resposta será: 'não, vivemos em uma época de esclarecimento[Aufklärung]'" (Kant, 2005:69). À época, havia um grande entusiasmo com o progresso da Razão, caminho para se chegar ao espírito esclarecido, livre. Mas a essa resposta de Kant, que aponta para um devir-Esclarecimento, Adorno opõe - com dois séculos de vantagem - uma objeção crítica, e não pessimista, em seu texto Educação e Emancipação, que encerra o livro homônimo:

Se atualmente ainda podemos afirmar que vivemos uma época de esclarecimento, isto tornou-se muito questionável em face da pressão inimaginável exercida sobre as pessoas, seja simplesmente pela própria organização do mundo, seja num sentido mais amplo, pelo controle planificado até mesmo de toda realidade interior pela indústria cultural. Se não quisermos aplicar o termo "emancipação" num sentido meramente retórico, [...] vazio como o discurso dos compromissos [...] é preciso começar a ver efetivamente as enormes dificuldades que se opõem à emancipação nesta organização do mundo [...]. O motivo é a contradição social; é que a organização social em que vivemos continua sendo heterônoma. (Adorno, 1995a:181)

A preocupação de Adorno é com o fato de não termos alcançado a emancipação prometida pelo Esclarecimento moderno. É a isso que ele se dedica também na Dialética do Esclarecimento com Horkheimer, não para cobrar as promessas que a Razão não teria cumprido, mas para localizar nela a própria causa da barbárie que se materializou no século XX, bem como uma nova forma de heteronomia, levada a cabo pela lógica mercantil.

Pode-se dizer que a modernidade esclarecida olhava com ares de superioridade para aqueles que eram denominados pejorativamente de primitivos, povos incivilizados - que faziam cerimônias mágico-miméticas para aplacar seus medos diante da natureza, numa vida em que predominavam a imediaticidade e a condição natural - ou para aqueles mantidos em menoridade religiosa. Mas poderíamos, a esse ar de superioridade, colocar a seguinte questão: será mais irracional adorar totens, fazer cerimônias em torno de objetos sacralizados sobre os quais se projetam poderes fantásticos, desejar mimetizar-se com a natureza, crer nos poderes do clérigo do que projetar poderes sobrenaturais objetivos e subjetivos em objetos de consumo? Seria a mercadoria o totem moderno? E ainda: viveríamos, enfim, uma época esclarecida?

O que inspira esta reflexão é uma experiência docente de quase uma década em escolas de Fortaleza. Na relação com jovens de 13 a 18 anos, pudemos estar em contato com pensamentos e comportamentos dessas novas gerações que me pareceram, em grande parte, facilmente atraídas pela ideologia capitalista materializada contemporaneamente no desejo exacerbado de gozar dos encantos do mundo mercantil, seja pelo consumo direto de mercadorias e serviços (divertimentos, informática etc.) seja pela forma de relacionar-se com outrem como mercadorias.

Isso nos instiga a discutir sobre aquilo que ficou por refletir no projeto da modernidade, ou seja, a Razão mercantil que, neste trabalho, é encarada como irmã siamesa do projeto libertador da modernidade. Razão mercantil aqui é entendida não somente como uma lógica que produz iniquidades na distribuição da riqueza, mas que produz a própria riqueza submetida primeiramente à máquina de valorização do dinheiro. Para levar a cabo nosso intento, é preciso ter ciência da distinção entre a Razão moderna - o projeto do Esclarecimento como um todo - e a razão enquanto capacidade humana de pensar, refletir e problematizar. Ou seja, partiremos da compreensão de que a Razão moderna oriunda do Esclarecimento moderno não é sinônimo de capacidade de pensamento e reflexão, mas a mais "recente transmutação da ideia de Razão" (Marcuse, 1973:125), a forma histórica que adquiriu essa capacidade de reflexão, pensamento e problematização num determinado momento da história - a modernidade. Para nós, o desdobrar-se da Razão Instrumental Mercantil vem produzindo subjetividades afinadas com os ideais da sociedade de consumo. O que significa dizer que as mercadorias se caracterizam cada vez mais como objetos que pretendem condensar os ideais coletivos dos homens. A este respeito, Marcuse (citado por Merquior, 1969:115) já nos advertira: "as categorias psicológicas, em nosso atual estado de desenvolvimento tecnológico, transformaram-se em categorias políticas". Assim, o Esclarecimento transforma-se, como analisaram Adorno e Horkheimer (1986), em "mistificação das massas".

Em nosso estudo, levamos em conta a concepção de Esclarecimento desenvolvida na Dialética do Esclarecimento, mas problematizamos a relação do desenvolvimento desse Esclarecimento com o da sociedade mercantil. Essa relevante obra de Theodor Adorno e Max Horkheimer marcou época ao introduzir no campo das ciências um novo paradigma epistemológico crítico. Isso se deveu ao fato de essa obra ir de encontro ao que até então era tido, da forma como se desenvolvera no século XVIII, como um legado comum positivo da modernidade: o Esclarecimento. Ao perscrutarem as origens do Esclarecimento, os autores seguem os traços na história muito antes do que viria a se desenhar enquanto Razão moderna. Desta forma, colocam o próprio mito da antiguidade já como Esclarecimento, assim como apontam para a atual reversão do próprio Esclarecimento em mitologia.

Essa crítica foi empreendida em detrimento tanto de liberais quanto de marxistas tradicionais do movimento operário. Tanto apologistas quanto críticos do capitalismo reclamaram o Esclarecimento como ponto de partida, confundindo-o com a própria capacidade de pensar. O próprio marxismo se posicionava como herdeiro do Esclarecimento, como um segundo momento do Esclarecimento, depois da crítica do despotismo absolutista, da religião e da superstição (Kurz, 1997; Jappe, 2006), o que desde já aponta para uma importante distinção entre as concepções de razão marxistas e as frankfurtianas.

Não é nosso propósito principal neste estudo mergulhar na história para recompor os traços do Esclarecimento. Isso já foi muito bem levado a cabo pelos dois autores da Escola de Frankfurt. Interessa-nos discernir traços do Esclarecimento que somente emergiram totalmente de seu invólucro na modernidade capitalista. O que significa dizer que a Razão moderna, com sua concepção de sujeito, não fez sua aparição em estado puro, mas sim que ela desdobrou-se com o desenvolvimento da modernidade. Veremos que se o projeto do Esclarecimento produziu um desencantamento do mundo, um reencantamento se estabeleceu via objetos de consumo, com consequências negativas para uma práxis emancipatória. "A impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados." (Adorno & Horkheimer, 1986:4).

Já que a Psicologia Política, seguindo Montero (2009:204), mantém-se numa posição antiideologizadora, uma forma de ação que busca tornar acessível o conhecimento acerca do comportamento coletivo e individual em relação à própria organização social, este trabalho, na medida em que tem por eixo teórico a Escola de Frankfurt, alinha-se nesta perspectiva, considerando que a sua preocupação central é, justamente, a de apontar os desdobramentos da Razão moderna Instrumental enquanto uma razão encurtada e fatídica, cujo culto positivista aos fatos recusa qualquer reflexão crítica, cerceando todo impulso utópico que aponte para outra realidade que não a do inexorável presente. Nesta perspectiva, os frankfurtianos empreenderam uma análise aprofundada dos elementos da racionalidade do mundo moderno para denunciá-los como uma nova forma de dominação, caracterizada pela previsibilidade, uniformização das consciências e por um nível de ideologização e fetichização para além daquele descrito por Marx; em vista da atual instrumentalização do desejo e da cultura com fins mercantis. (Severiano, 2007). Somente cientes das prescrições sociais que organizam a vida e dos mecanismos de poder vigentes (Montero, 2009:204), cremos ser possível pensar em emancipação humana, horizonte da Psicologia Política.

 

Esclarecimento e Dominação da Natureza

A desumanização moderna, a barbárie, para os autores, encontra sua explicação no fato de a Razão formal, instrumental, não poder se opor à dinâmica da violência, da destrutividade e da desumanidade, uma vez que tais elementos, enquanto resultado e sentido, são-lhe indiferentes, posto que a Razão não acolhe, em seu seio, a crítica, a sensibilidade, a diferenciação:

Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo [que segundo os autores está em germe no pensamento esclarecido] ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o caráter destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e por isso também sua relação com a verdade. (Adorno & Horkheimer, 1986:13)

Assim, para levar a cabo seu empreendimento crítico, os autores lançam mão do conceito de dominação da natureza, que, na sociedade, transforma-se em dominação sobre os homens. Ao rebaixar a natureza a uma mera objetividade e o objeto a um mero exemplar de uma espécie (portanto, a uma abstração!), o próprio sujeito torna-se mero possuir, mera identidade abstrata que anda no mundo a fazer cálculos para dominá-lo e submetê-lo (Kurz, 1997).

O "esclarecimento" desvela, assim, a sua face coercitiva, uma vez que o homem, em sua tentativa de domínio absoluto sobre a natureza, finda por desenvolver um domínio totalitário sobre os outros homens e sobre si próprio. Neste sentido, o homem pratica um ato de violência contra si, pois a sua natureza submetida não resulta conciliada ou transcendida, mas sim reprimida; repressão que incide sobre o impulso utópico e o desejo, tornando o homem prisioneiro da realidade imediata. Isto porque a razão, ao pretender conciliar-se com a realidade, à custa da repressão da natureza interna humana, termina por degradar-se a si mesma e transformar-se numa razão encurtada, formalizada e fatídica - uma Razão Instrumental.

Neste sentido, vale ressaltar que as ciências modernas se consolidaram sob este prisma, segundo o qual o procedimento é o que vale, não aquela satisfação "que para os homens se chama 'verdade', mas a operation, o procedimento eficaz" (Adorno & Horkheimer, 1986:20).

Aqui, o método enquanto um meio é alçado ao estatuto de um fim em si mesmo. Como resultado, temos um profundo distanciamento com relação aos problemas centrais da humanidade (ética, justiça, liberdade, felicidade etc.) acerca dos quais a ciência evita se pronunciar:

O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. [...] A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos ou imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital. (Adorno & Horkheimer, 1986:20)

E é assim que na Dialética do Esclarecimento se localizam os mais antigos esboços de vontade de dominação sobre a natureza na pré-história, o pré-animismo já sendo caracterizado pela separação entre sujeito e objeto. No entanto, se o homem pré-histórico ainda buscava assimilações mágicas a objetos naturais - o que é denominado mimese - para aplacar seu medo e impotência diante da natureza, o mito já se apresenta como Esclarecimento, portanto, enquanto objetivação: "O Esclarecimento é a radicalização da angústia mítica" (Adorno & Horkheimer, 1986:29). Essa angústia deve acabar ao objetivar-se a natureza e nada mais ficar desconhecido. Nada mais pode ficar de fora do conhecimento, sendo o "fora", fonte de angústia.

Para Adorno e Horkheimer, da mesma forma que a ciência, "a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto" (Adorno & Horkheimer, 1986:25). Neste sentido, os autores defendem que, ao contrário de Freud - que atribuía à magia a possibilidade de dominar o mundo - somente uma ciência "mais astuciosa do que a magia" (Adorno & Horkheimer, 1986:25) poderia lograr a dominação de fato. Essa ciência que logra a dominação é aquela que, para os autores, tornou o pensamento autônomo em relação aos objetos.

A conclusão a que chegam é a de que no percurso rumo à ciência moderna, "os homens renunciaram ao sentido" (Adorno & Horkheimer, 1986:21). Embora a filosofia desde Bacon tivesse sempre buscado uma "definição moderna de substância e qualidade, de ação, de paixão, do ser e da existência" (Adorno & Horkheimer, 1986:21), esses conceitos já tinham ficado para a pré-história.

Aqui nos aproximamos da segunda parte de nosso estudo, visto começarmos a localizar características que somente se tornariam universais na modernidade produtora de mercadorias, quando o valor de uso, portanto, o aspecto concreto e sensível dos objetos, transforma-se majoritariamente em pura forma desprovida de conteúdo, uma forma que faz abstração de aspectos concretos da mercadoria: o valor mercantil (Marx, 1985). "O pensamento, no sentido do esclarecimento, é a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, não importa se estes são interpretados como axiomas arbitrariamente escolhidos, ideias inatas ou abstrações supremas (!)." (Adorno & Horkheimer, 1986:81).

 

O Esclarecimento Moderno

A ciência moderna se desenvolveu a partir de um domínio objetivo da natureza levado a um nível que a história humana ainda não conhecia. Nesse processo - um verdadeiro "programa de desencantamento do mundo" (Adorno & Horkheimer, 1986:19) - as qualidades da existência são destruídas, juntamente com os deuses, pois o pensamento ordenador decompõe tudo o que é próprio e o que nos homens e nas coisas não se resolve na investida objetivante. Consequentemente, "o que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o Esclarecimento" (Adorno & Horkheimer, 1986:21) que, por princípio, é totalitário, na medida em que despe a sociedade de qualidades sensíveis para poder submetê-la ao mero cálculo. Logo, a lógica formal passa a ser identificada como "a grande escola de uniformização", uma vez que faz abstração dos conteúdos sensíveis e torna o número o "cânon do Esclarecimento" (Adorno & Horkheimer, 1986:22).

Na lógica formal, o pensamento é indiferente a seus objetos, quer eles sejam mentais ou físicos, quer "pertençam à sociedade ou à natureza, tornam-se sujeitos às mesmas leis gerais da organização, cálculo e conclusão - mas o fazem [...] em abstração de sua 'substância' particular." (Marcuse, 1973:136).

A especificidade histórica da modernidade capitalista parece encontrar comprovação no fato de que, como expõe Anselm Jappe em As aventuras da mercadoria (2006), vários acontecimentos decisivos para o advento da modernidade capitalista já tinham acontecido em outras épocas, como a invenção de máquinas capazes de aumentar a produtividade. Entretanto, essas invenções não tiveram muitas consequências porque ocorreram num contexto em que ainda não reinava plenamente a Razão Instrumental-mercantil, ou seja, não havia um quadro geral de pensamento científico da sociedade que fundamentasse a racionalidade abstrata e tecnológica. Ora:

A lógica formal é, assim, o primeiro passo na longa viagem para o pensamento científico - apenas o primeiro passo, porque ainda é necessário um grau muito mais elevado de abstração e matematização para ajustar o modo de pensar à racionalidade tecnológica. [...] Muito antes de o homem tecnológico e a natureza tecnológica terem surgido como objetos de controle e cálculo racionais, a mente foi tornada susceptível de generalização abstrata. (Marcuse, 1973:137).

Por exemplo, a abstração fundamental que é a produção infinita de riqueza não existia na Antiguidade, em que economizar tempo - algo fundamental para a modernidade - por meio de técnicas, parecia constituir um alivio inútil do cansaço dos escravos e, na Idade Média, uma ameaça à coesão social. "Faltava em geral toda e qualquer ideia de progresso ou de uma acumulação linear." (Jappe, 2006:181).

Por outro lado:

A gênese da ciência moderna e da concepção quantitativa da natureza no século XVII esteve estreitamente ligada ao irromper do valor abstrato nas trocas materiais e do tempo abstrato na vida social [...] A mesma quantidade sem qualidade que se impunha no dinheiro informava também a concepção galiléica da natureza: tal como a lógica do valor reduz tudo e qualquer objeto a uma quantidade de valor, também a partir de Galileu todos os corpos se encontram reduzidos a sua mera extensão no espaço. Com a física de Newton, passa a acreditar-se que uma única força, a gravitação, rege todo o universo, tal como nessa mesma época o mundo começava a unificar-se sob a governação de uma única força, o dinheiro. (Jappe, 2006:191).

Diante disso, caberia a seguinte objeção: será que esse extremo domínio da natureza encarada como mero objeto manipulável pelo sujeito do conhecimento "teria apenas o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores"? (Adorno & Horkheimer, 1986:19). Ou haveria algo como uma lógica tácita interna ao próprio desenvolvimento da sociedade, uma "célula germinal" (Marx, 1985) específica da modernidade, que permaneceria por refletir no âmbito das próprias ciências?

Sérgio Paulo Rouanet é bastante claro ao apresentar na obra Mal-estar na modernidade, em capítulo homônimo, os três pilares do projeto iluminista: racionalismo, individualismo e universalismo. Nessa apresentação, podemos perceber as características do formalismo da Razão. Acerca do racionalismo, Rouanet refere-se a ele como: "o desencantamento, a crítica da religião [...] a fé na razão e na ciência como instância habilitada a sacudir o jugo do obscurantismo e a transformar a natureza para satisfazer às necessidades materiais dos homens [...] enquanto produtor e consumidor de cultura, agente econômico e cidadão." (Rouanet, 1993:97).

O que vem à tona nesse excerto são os ideais de progresso e de liberdade - de um jugo pessoal, ou institucional - para daí eclodir o indivíduo - em verdade a máscara de caráter (Marx 1985) do sujeito moderno - homem que vale por si mesmo (Rouanet, 1993:97), agente econômico e cidadão. O que aqui fica fora de problematização é o fato de a transformação da natureza com o objetivo de satisfazer as necessidades ter ficado agrilhoada à formamercadoria.

A modernidade, sob o pretexto de fazer tábua rasa da irracionalidade transcendental da pré-modernidade, viu se instalar uma irracionalidade não menos transcendental e muito mais destrutiva por conter em si uma dinâmica que tende à desmedida (Marx, 1985) e que, embora transcendental, comanda os desígnios da terra: a irracionalidade mercantil. "A dominação sobrevive como fim em si mesmo, sob a forma do poder econômico" (Adorno & Horkheimer, 1986:100). "Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie." (Adorno & Horkheimer, 1986:43).

Esse trecho, não desprovido de poesia, joga uma luz sobre a especificidade moderna. Embora, como defendem os autores, a escolha entre submeter-se à natureza ou submetê-la tenha acompanhado a humanidade, é patente a ruptura que foi nesse aspecto a modernidade, onde o sol da razão calculadora encontra céu aberto para iluminar a vida na terra.

Essa dominação não concreta reveste-se de tanta liberdade que podemos até duvidar se não saímos mesmo da menoridade. Vejamos o que Kant nos diz na Resposta à pergunta: Que é "Esclarecimento?":

Esclarecimento ['Aufklärung'] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. (Kant, 2005:63)

De fato, se bem observarmos, o sujeito kantiano que ousa saber se desenvolveu e o sujeito moderno, bem ou mal, saiu da menoridade relativamente a uma sujeição pessoal e em relação ao obscurantismo religioso. Mesmo que se possa objetar a existência de um enfraquecimento do sujeito kantiano (Dufour, 2005) na contemporaneidade, a reflexão proposta por Kant contribuiu para possibilitar a emancipação iluminista das amarras pessoal e religiosa. Entretanto, a modernidade não desconfiava de que a substância da própria Razão, a partir da qual ela nascera, era também composta de uma outra racionalidade, que ficaria por refletir, pois se instalaria como um verdadeiro axioma tácito: a razão mercantil. A liberdade ou o entendimento ao qual nos conclama a modernidade não reflete negativamente sobre a lógica de valorização do dinheiro que não é de modo algum neutra. Antes de qualquer coisa, essa lógica é entendida como apriorística (Kurz, 2008), tanto que as revoluções do século XX mantiveram essa mesma lógica mudando apenas a forma de administrá-la.

Assim, a modernidade esclarecida, segundo Adorno e Horkheimer, pode ser caracterizada por uma contradição insanável. Se de um lado prometeu a liberdade por meio da desmitologização, pretendendo superar a própria dominação - que em verdade foi substituída pela razão do mercado (Kurz, 1997) - por outro, manteve a dominação objetivante da natureza como nunca se vira. Além disso, o grande fervor devotado às mercadorias na contemporaneidade - às mercadorias-pessoas ou às pessoas-mercadorias - findou por apontar para uma nova mitologização.

Na modernidade produtora de mercadorias, a natureza é objeto, assim como os seres humanos também o são. O movimento dinâmico de valorização do dinheiro encara tudo quanto existe exatamente como o Esclarecimento: um objeto quantificável que deve se adaptar à calculabilidade. E essa objetificação dos próprios sujeitos deve ser compreendida para além da diferenciação de classe, o que significa dizer, em nosso entendimento, ir além de uma crítica reduzida que pretende identificar uma classe privilegiada como a classe que domina conscientemente a sociedade. Não é uma classe que objetifica a outra, mas o processo tautológico do capital que faz abstração dos próprios sujeitos, os quais passam a portar o que Marx (1985:80) denominou de máscaras de caráter (Charaktermasken). Isto implica em uma adesão a uma forma-sujeito (Kurz, 2010b) que exige uma subjetividade em consonância com as prescrições da vida mercantil, quer seja no trabalho ou no consumo desenfreado, inclusive de subjetividades. São prioritariamente caracteres como frieza, calculabilidade, racionalidade e objetivação da natureza - caracteres consonantes a uma racionalidade mercantil - que formam o sujeito, independentemente da classe social.

A visão baseada na luta de classes, pode-se dizer, fundamentou a práxis social até aqui existente no capitalismo, e obras como o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels são muito exemplares na fundamentação de que a história é uma "história da luta de classes", sem diferenciar historicamente as formas sociais que foram bastante diferentes da forma social moderna (Kurz, 2010a) - como se a dominação moderna fosse tão pessoal como era a relação entre servo e senhor feudal. O operário, segundo Kurz (2010a), não conseguiu ser o coveiro do capitalismo, conforme a metáfora de Marx, mas uma força, sem ter disso consciência, dentro do invólucro das próprias categorias capitalistas, uma força que fez mais avançar a lógica capitalista - onde ela ainda nem mesmo existia - do que a ela se opor. Apesar da ambiguidade, que fundamentou a luta de classes, Marx deve hoje ser encarado como crítico das categorias de base do capitalismo - principalmente em O Capital (1985) e nos Grundrisse (2011) -, o que nos leva a compreender um outro nível de práxis hoje não mais necessariamente baseado na dominação de classe, mas em um tipo de dominação que apesar de objetiva, vale-se da subjetividade de todos os viventes da sociedade moderna.

Nesse aspecto, é importante ressaltar o caminho distinto percorrido por Adorno e Horkheimer, bem como por Marcuse, daquele de Marx. Os frankfurtianos ao elaborarem uma Crítica da Cultura (Kulturkritik), apontam para novas formas de dominação, distintas daquelas restritas à esfera do trabalho. Para tal, fez-se necessária uma reformulação da noção marxista ortodoxa de cultura como uma mera superestrutura a reboque da infraestrutura econômica, para concebê-la como uma esfera que possui um papel chave na vida privada e pública dos homens. Sob este prisma, o conceito de dominação passa a expressar um duplo movimento: primeiramente um deslocamento da esfera restrita ao trabalho para o amplo campo da cultura e da vida cotidiana e, em segundo lugar, uma metamorfose das formas explícitas para as formas predominantemente implícitas e impessoais de dominação. Isto quer dizer que, para além da opressão e exploração visíveis das classes operárias da época do capitalismo industrial, o conceito passou a abranger formas sutis de manipulação do pensamento e do desejo, capazes de produzir outro estilo de viver e perceber o mundo. Isso ocorreria por meio de uma hegemonia ideológica que se utiliza da própria subjetividade humana e da gratificação dos desejos - através de instituições culturais tais como os meios de comunicação de massa, a indústria cultural e o lazer - para produzir identidades homogeneizadas, acríticas e em conformidade com a lógica capitalista.

Assim, a superação da dominação pessoal que se operou na modernidade não significou a superação da objetivação da natureza externa e interna dos sujeitos. Antes, a sociedade moderna viu surgir um poder muito maior do que qualquer absolutismo: o poder objetivo das coisas (Marcuse, 1978:34-35), que Marx já havia chamado de "Fetichismo da mercadoria", ou seja, uma dominação em que "os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana [...]" (Marx, 1985:71).

O que Marx expõe em seu conceito de Fetiche da mercadoria vai muito mais além de uma ilusão, de uma mistificação, de um feitiço criado após a produção, que impediria àquele que compra a mercadoria ver que há escondido ali relações de produção, força de trabalho explorada que se expressa numa mais-valia não paga. Marx, em realidade, expõe criticamente

o fato de que o objeto-mercadoria em si é problemático por conter uma substância, uma essência, se preferirmos, que sempre tende à desmedida, uma essência que submete a vida social concreta. Essa essência é, para dizê-lo sem rodeios, a dinâmica de valorização do dinheiro. Ou seja, como critica Marx, se antes da modernidade a troca de mercadorias era um fenômeno de nicho, que acabava na circulação pelo processo Mercadoria - Dinheiro - Mercadoria (MDM) - mantendo, assim, relação com a concretude do uso - a descoberta moderna foi exatamente colocar o dinheiro no início e no fim de um processo que se pretende justificado por si mesmo, um processo cujo objetivo não é mais do que fazer com que o dinheiro se multiplique, estando o resultado e o sentido como secundários, senão como consequência óbvia:

Não se exagera muito se se afirmar que a conversão da fórmula M-D-M na fórmula D-MD' encerra em si toda a essência do capitalismo. A transformação de trabalho abstrato em dinheiro é o único objetivo da sociedade mercantil; a produção de valores de uso, toda ela, mais não é do que um meio, um "mal necessário", em vista de uma única finalidade: no termo da operação, dispor de uma soma de dinheiro maior do que aquela de que se dispunha no início. A satisfação das necessidades deixou de ser o objetivo da produção, tendo passado a ser um aspecto secundário. (Jappe, 2006:61)

Dito de outro modo: não podemos encarar o fetichismo da mercadoria, o fetichismo moderno, como uma continuação de uma série de outros fetiches com os quais já conviveu a humanidade. Este fetichismo moderno tem um aspecto especial que o diferencia dos demais: sua dinâmica. E essa dinâmica foi apreendida por Adorno (2007:122): "[...] a constituição específica da sociedade em que vivemos [...] é governada por um princípio dinâmico. Ou seja, simplesmente que, vista nos termos de um protótipo, a sociedade capitalista [...] só se conserva na medida em que se expande".

Poderíamos dizer que o progresso de que se reveste a Razão Instrumental está atrelado a essa dinâmica. O caso concreto do "progresso" que está se dando no Brasil nesses últimos anos é exemplar: justificam-se todos os empreendimentos imobiliários ou de agronegócio com o mesmo raciocínio, ou seja, são índices de progresso, considerados imprescindíveis ao desenvolvimento da economia, que se confunde, de forma naturalizada, com o desenvolvimento em termos humanos. Entretanto, esse "progresso técnico", como já nos advertira Marcuse (1980:45-46), não implica em "progresso humanitário", dado que o modo como o aparato produtivo é orientado escraviza cada vez mais o homem a um tipo de produtividade social, alienada, cujo fim não é a emancipação, mas uma compulsiva produtividade e consumo que encerram um fim em si mesmo. Tal fenômeno se revela "através da contradição geral entre as enormes riquezas da sociedade, as quais poderiam efetivamente permitir uma vida sem pobreza e sem trabalho despersonalizante, e a maneira repressiva e destruidora como se utiliza e distribui a riqueza." (Marcuse, 1974:17).

Além disso, o progresso da Razão moderna esclarecida desenvolveu contemporaneamente um segundo nível de fetichismo para além daquele descrito por Marx. Esse outro nível, desenvolvido por Severiano (2007) a partir da crítica da cultura frankfurtiana, põe a mercadoria não apenas no centro da vida social, mas no coração da subjetividade humana. Trata-se do que a autora denomina de duplo fetichismo, ou seja, hoje a mercadoria não apenas aliena as relações sociais de produção, mas também:

Incorpora e aliena aspectos subjetivos referentes à felicidade, liberdade, personalidade e realização humana. O que à época de Marx tinha uma aparência de coisa - a mercadoria - desmaterializa-se e passa a ter e passa a ter uma aparência de signos, absolutamente intercambiáveis em suas significações [...] A mercadoria/objeto torna-se um mero significante, cujo significado é conferido pelos signos multiplicados do consumo. (Severiano, 2007:54)

Se à época de Marx as coisas já eram cheias de sutilezas metafísicas, de manhas teológicas e de fantasmagorias, hoje, as sutilezas são ainda mais notáveis, pois apela para o desejo, ou mais precisamente para um pretenso desejo que precisa imperiosamente se realizar. Quanto mais desamparado se encontrar o sujeito - desamparo decorrente do enfraquecimento dos laços sociais e das desilusões em relação às utopias e aos ideais políticos coletivos - mais facilmente ele será seduzido pelos apelos de gozo via consumo. Em outras palavras, a fragilização dos laços sociais - de amizade, de vizinhança, de amor, de família, de respeito mútuo - potencializa um investimento centrado unicamente no próprio eu, ou em preocupações muito particularistas, em detrimento do reconhecimento da alteridade e dos ideais coletivos. Dá-se, assim, uma tendência à imediatez social que advém de uma pretensa liberalização do desejo, jamais saciado, mas constantemente instigado pelos múltiplos objetos e serviços de consumo ofertados pela publicidade. Isto porque a ideologia da sociedade mercantil produz uma indiferenciação entre desejos e objetos de consumo, fazendo das mercadorias um objeto pretencioso, capaz de prover salvação psíquica e social.

Desta forma, tanto no fetichismo criticado por Marx quanto naquele refletido por Severiano, o objeto-mercadoria, tido por manipulável pelo sujeito do conhecimento, neutro e determinável como qualquer outro, coloca-se no nível de uma auto-determinação assustadora. É como se esses objetos "se pusessem a dançar" (Marx, 1985:70). Eles já não mais importam apenas em função do uso, mas importam prioritariamente enquanto objetos que têm incorporados em si um valor - o tempo de trabalho abstrato -, acrescido de atributos subjetivos - poder, reconhecimento social, felicidade, dentre outros. Daí a denominação de que vivemos atualmente sob a égide de um "duplo fetichismo". (Severiano, 2007).

Sob essa lógica, Adorno e Horkheimer falam de um "princípio da equivalência" entre valores de troca incorporados aos bens da cultura, o qual postula que "tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo." (Adorno e Horkheimer, 1986:148). Para a Razão formal e para o trabalho abstrato pouco importa se são fabricadas bombas ou remédios, muito menos se os atributos psicossociais atrelados arbitrariamente às mercadorias são uma fraude. As mercadorias são apenas geleias de trabalho humano indiferenciado (Marx) para poderem ser trocadas, assim como cada vez mais se produzem geleias de subjetividade humana indiferenciada.

Adorno, em suas preleções de Sociologia, explicita isso:

Nessa troca conforme o tempo de trabalho, necessariamente se abstrai a configuração específica dos objetos a serem trocados entre si que, em vez disso, são reduzidos a uma unidade geral. Aqui, portanto, a abstração não repousa no pensamento do sociólogo, que abstrai; mas na própria sociedade encontra-se tal abstração. [...] Não me entendam mal, ao pensar falsamente que esse processo de abstração se daria no interior de cada um dos sujeitos individuais da troca. Justamente uma forma como a forma do dinheiro, aceita na consciência ingênua como a forma equivalente natural e, portanto, como meio de troca natural, dispensa os homens da reflexão a respeito. (Adorno, 2007:107-108)

A ideia exposta aqui por Adorno pode ser considerada um resumo do conceito de abstração real, formulado por um amigo que lhe era caro, Alfred Sohn-Rethel (2010). Refletir sobre essa abstração é, para Adorno, da maior relevância, visto que não se trata apenas de algo que permanece no pensamento como uma especulação, mas é algo que escapa tanto ao homem individual quanto ao corpo social. Isto porque esse processo de equivalência na troca, que possibilita a ideia da multiplicação do dinheiro, é de antemão tido por evidente.

Assim, o totalitarismo localizado primeiramente nas ditaduras fascistas e stalinistas, parece ter mergulhado na raiz da democracia liberal do ocidente, mostrando-se agora como totalitarismo de mercado, global e onipresente, que desenvolve subjetividades unidimensionais (Marcuse, 1973), isto é, subjetividades em que a tensão entre realidade e ideologia é desfeita, restando apenas um presente eterno desprovido de futuro, em que a utopia parece já ter sido realizada nas inúmeras benesses do consumo.

Neste sentido, observamos em nossa experiência de docente, anteriormente referida, que, a cada geração, os jovens parecem aderir ainda mais mimeticamente à realidade mercantil que pretende condensar em si todas as possibilidades. "Não apenas são as qualidades dissolvidas no pensamento, mas os homens são forçados à real conformidade" (Adorno & Horkheimer, 1986:27) . A dimensão do possível, restringe-se, assim, a uma única dimensão do real que concentra em si a priori a lógica da mercadoria.

Assim, os sonhos parecem e aparecem já sonhados em cada publicidade - verdadeiro reino encantado da mercadoria - que oferece a liberdade, a felicidade, a força, o aconchego. Marcuse chamara a atenção para o fato de que "as criaturas se reconhecem nas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel" (1973:29). E quando esse nível de dominação ocorre, a possibilidade de emancipação - alvo maior das reflexões frankfurtianas e também da Psicologia Política - encontra-se seriamente comprometida. A este respeito, Marcuse (1973:32) já nos advertira: "Nas condições de um padrão de vida crescente, o não conformismo com o próprio sistema parece socialmente inútil [...] principalmente quando acarreta desvantagens econômicas e políticas tangíveis e ameaça o funcionamento suave do todo".

 

Consideraçãos Finais

Certamente que não estamos aqui a defender que a capacidade de pensar, que a razão enquanto faculdade humana deve ser destruída. Nossa crítica se dirige a um tipo de razão que se recusa a refletir sobre seus próprios fins, distanciando-se do mundo da vida do homem e tornando-se ela própria irracional para os processos de emancipação e autonomia humanas. Isto implica entender que o conhecimento, bem como suas bases fundantes, é social e também histórico, e que toda naturalização é passível de ideologizações.

Nesse sentido, questionar a Razão não significa irracionalismo, desapego à reflexão e ao pensamento. Antes o contrário, trata-se de apelar exatamente à reflexão para que ela se oponha à Razão totalitária que não permite que a crítica, a reflexão ou critérios de distinção durmam perto de si. Trata-se, assim, de colocar em questão uma determinada forma histórica de conceber e interpretar o mundo, as relações sociais e a própria subjetividade, não como reflexo imediato desse social, mas na relação mediatizada com este; o que significa considerar os elementos históricos, sociais, psicossociais e políticos implicados nessa relação.

A crítica à Razão estabelecida por Adorno e Horkheimer não se dirige, em absoluto, à faculdade de pensar, - razão - mas a uma razão que pretende se impor como positividade plenamente desenvolvida, na qual o pensamento só consegue compreender o mundo como um sistema fixo de coisas isoladas e oposições insolúveis, indiferente aos desejos e necessidades humanas. Também para Marcuse (1968) a razão representa a mais alta potencialidade humana e é somente através do exercício do "pensamento negativo" - aquele cujo impulso dialético nega continuamente o dado e o existente para que, num ato de destruição criadora e recusa do imediato, emerjam todas as potencialidades - que o homem é capaz de emancipar-se.

E ainda é necessário que a Razão vigente seja alvo crítico da razão humana enquanto faculdade de reflexão: "O absurdo desta situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional". (Adorno & Horkheimer, 1986:49). Ou seja, precisamos submeter esse Esclarecimento - cujo totalitarismo reside no fato de que para ele o "processo já está decidido de antemão" (Adorno & Horkheimer, 1986:37) - a uma crítica de seus próprios conteúdos.

No prefácio à Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer apresentam uma aporia: "A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a PSICOLOGIA POLÍTICA. VOL. 13. Nº 27. PP. 215-230. MAIO - AGO. 2013

investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida nenhuma - e nisso reside nossa petitio principii - de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor." (Adorno & Horkheimer, 1986:13).

A razão enquanto instrumental para a conservação humana também é necessária, todavia, não podemos concebê-la como a única forma de racionalidade, tornando-a unidimensional. Isto porque uma Razão que não admite outras razões, quais sejam, uma razão sensível e crítico-reflexiva, e que não leva em conta a parcela de irracionalidade que constitui o ser social, corre o risco de deixar-se dominar pelo totalitarismo do abstrato e pelos novos totens modernos - a mercadoria. A razão enquanto instrumental deve ser submetida a uma crítica permanente sobre seus meios e fins.

Também a crítica à subjetividade moderna - e "pós-moderna", que é a subjetividade moderna levada ao paroxismo - deve ser continuamente exercitada, buscando uma possível resolução da aporia, apresentada pelos frankfurtianos, através do uso da razão (histórica, crítica, sensível e reflexiva) e não da Razão instrumental.

Deste modo, não pretendemos encarar o Iluminismo como "apesar de todos os desvios, a melhor perspectiva de organizar realista e racionalmente as relações entre os homens" (Rouanet, 1993:100). Nossa crítica ao Iluminismo refere-se ao fato de ele não ter se mostrado capaz de apreender as forças abstratas autônomas e heterônomas em relação ao ser humano que fizeram morada na sociedade e na subjetividade; a exemplo da barbárie organizada sob a forma de perseguição aos imigrantes nos países "ricos", perseguição a migrantes de região distinta - como já acontece no Sul do Brasil em relação ao Nordeste; perseguição aos pedintes e aos moradores de rua que enfeiam o ambiente; dentre outros fenômenos, em meio a uma cultura dos desejos imperiosos que precisam realizar-se imediatamente - nas mercadorias.

É importante ressaltar que a crítica e a sensibilidade são um ponto de partida fundamental, principalmente em momentos nebulosos, momentos em que o aviltamento dos corações parece materializar a ruína universal, como afirmou Baudelaire nas Fusées (1920). O Concerto para o fim dos tempos de Olivier Messiaen nos aponta exatamente nessa direção (Soares & Ewald, 2010:175). Esse concerto foi por ele composto dentro de um campo de concentração, em 1941, quando ele só tinha quatro instrumentos bem danificados. "Para evitar dúvidas, é disso que falamos quando nos referimos a extrair as melhores possibilidades 'nas condições que o mundo da vida se apresentar a nós'." (Soares & Ewald, 2010:175).

No contexto contemporâneo, a crítica precisa ser como esse concerto e extrair essas possibilidades, pois uma crítica radical do Esclarecimento moderno precisaria - para que possamos, enfim, responder que vivemos em uma época esclarecida - alcançar tanto a objetividade quanto a subjetividade para a qual os absurdos já são tolerados, para a qual qualquer oposição à cama de Procrusto da vida mercantil - abstrata e ao mesmo tempo concreta - aparece como desnecessária e inútil.

 

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Recebido em 11/12/2012
Revisado em 11/04/2012
Aceito em 19/05/2013