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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.17 no.40 São Paulo Sept./Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

Estudo da Identidade Coletiva de uma Comuna Urbana de Porto Alegre

 

Study the Collective Identity of an Urban Commune from Porto Alegre/Brazil

 

Estudio de la Identidad Colectiva de una Comuna Urbana de Porto Alegre

 

Étude de L'identité Collective d'une Commune Urbaine de Porto Alegre

 

 

Nadir Lara Junior

Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Pós-doutor no departamento de Psicologia Clínica (bolsista FAPESP - processo 2016/05322-4) na Universidade de São Paulo - USP. nadirlj@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo estudar o processo de constituição da identidade coletiva de uma comuna urbana de Porto Alegre. A metodologia é composta de um estudo de caso realizado a partir de observação participante, entrevistas semiestruturadas e pesquisa de dados na internet. Esta Comuna se origina em 2008 com a locação de uma casa antiga no Centro Histórico de Porto Alegre. Por uma questão de cuidado ético, chamaremos de Comuna Alfa. Inicialmente uma proposta de compartilhamento coletivo começa a tomar forma e conteúdo para um espaço de resistência. Como resultado será apresentado um gráfico das relações sociais, políticas e econômicas que nos mostram como esta comuna se constituiu identitariamente. Esta discussão permite se considerar que estamos diante de uma forma coletiva encontrada pelas pessoas para viver seus ideais políticos e sociais, atualizados e contingenciados pelo momento histórico em que vivemos.

Palavras-chave: Processo grupal, capitalismo, movimentos sociais, política.


ABSTRACT

The aim is to study the process of constitution of the collective identity of an urbane commune from Porto Alegre. The methodology was composed of observation participant, interview semi structured with the residents of the commune and research of data on the internet. This Commune originates from 2008 with the lease of an ancient house in the Historical Center from Porto Alegre. For an ethical care, we will call it of the Alfa Commune. This proposal of the collective sharing becomes a space of ecological and political resistance. As a result, there will be presented a graphic of the social, political and economic relationship that show us how it constitutes the social identity of the subjects that live in this commune. This discussion permits to consider that we have a collective form found by the people to survive their political and social, ideals and updated and contingent or the historical moment in which we are living.

Keywords: group process, capitalism, social movements, politics.


RESUMEN

Este articulo tiene por objetivo estudiar el proceso de constitución de la identidad colectiva de una comuna urbana de la ciudad de Porto Alegre - Brasil. La metodología es compuesta de un estudio de caso realizado a partir de observación participante, entrevistas semiestructuradas e investigación de dados en la internet. Esta comuna se origina en 2008 con el alquiler de una casa antigua en el Centro Histórico de Porto Alegre. Por una cuestión de cuidado ético, vamos a llamarla de Comuna Alfa. Inicialmente con una propuesta de compartir colectivo esta comuna se torna un espacio de resistencia política y cultural. Como resultado será presentado un gráfico de las relaciones sociales, políticas y económicas que nos muestran como esta comuna se constituyó identitariamente. Esta discusión permite se considerar que tenemos una forma colectiva en que las personas viven sus ideales políticos y sociales, actualizados e contingenciados por el momento histórico en que vivimos.

Palabras clave: proceso grupal; capitalismo; movimientos sociales; política.


RÉSUMÉ

Le présent article a pour but d'étudier le processus de constitution de l'identité collective d'une commune urbaine de Porto Alegre. La méthodologie est composée d'une étude de cas réalisée à partir de l'observation participante, des entretiens semistructurés et de la recherche de données sur Internet. Cette Commune surgit en 2008 avec la location d'une vieille maison dans le Centre Historique à Porto Alegre. Pour une question de soin éthique, nous l'appellerons de Comuna Alfa. Initialement une proposition de partage collectif commence à prendre forme et contenu pour devenir un espace de résistance. En conséquence sera présenté un graphique des relations sociales, politiques et économiques qui nous montrent comment cette commune identitariamente a été constituée. Cette discussion permet de considérer que nous sommes face à une forme collective trouvée par les gens pour vivre leurs idéaux politiques et sociaux, actualisés et sous l'influence de par le moment historique dans lequel nous vivons.

Mots-clés: Processus grupal, capitalisme, mouvements sociaux, politique


 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é estudar o processo de constituição da identidade coletiva da comuna Alfa, localizada no centro da cidade de Porto Alegre/RS. Destacar a questão da identidade coletiva dessa comuna nos possibilita compreender como esses moradores se colocam no cenário político de lutas por democracia, especialmente a partir de 2014 e também em enfrentamentos contra o avanço da privatização dos espaços públicos. Este artigo se trata de um estudo de caso realizado a partir de observação participante, entrevistas semiestruturadas e pesquisa de dados na internet. Para tanto, utilizamos os marcos teórico-metodológicos da psicologia social e da psicanálise para analisar os discursos como esses sujeitos da Comuna Alfa se identificam e quais práticas políticas estruturam seu cotidiano.

Primeiramente relembramos aqui que nenhum nome dessas moradias ou de sujeitos será revelado - todos os nomes serão fictícios, porque em nossas observações de campo e até mesmo por meio das entrevistas realizadas, verificamos que há forte repressão policial ocorrida nos últimos anos em Porto Alegre e sendo assim, nenhum detalhe que possibilite identificação será revelada.

A relação do Estado do Rio Grande do Sul com os movimentos sociais sempre foi de destaque no cenário nacional, lembramos aqui as origens do Movimento Sem Terra (MST) oficializado na Encruzilhada Natalino, Ronda Alta - RS, e podemos afirmar que a característica a se destacar é a forma aguerrida como se colocam politicamente no cenário nacional. Também destacamos o pioneirismo de Porto Alegre em relação ao orçamento participativo, modo avançado e democrático na forma de gerir os recursos públicos (Gohn, 2003).

A escolha de Porto Alegre não foi aleatória para se realizar pela primeira vez o Fórum Social Mundial em 2001, pois os movimentos antiglobalização inicialmente organizados em Seatle (EUA) em 1999 que depois se espalharam por vários países, viram na capital gaúcha algo especial em relação ao pioneirismo nas gestões públicas e democráticas que se tornaram referência não só para o Brasil, mas para várias cidades do mundo. Os movimentos antiglobalização encontraram em Porto Alegre um espaço estratégico para oposição ao capitalismo globalizado (Bringel e Muñoz, 2010; Laniado e Milani, 2007; Gohn 2003).

Por fim, não poderíamos deixar de destacar a liderança desses movimentos sociais da capital gaúcha que, em junho de 2013, foram protagonistas de uma série de manifestações locais em busca de melhorias especialmente no transporte público, e essas reivindicações se tornaram referência para outras cidades do Brasil.

Ao realizarmos pesquisas em outros Estados e, portanto, ao conhecer o cotidiano dessas organizações coletivas, e começar um convívio com os movimentos sociais urbanos de Porto Alegre, percebemos que eles se organizam de maneira muito peculiar em relação a outros lugares já conhecidos ou estudados. Hoje a trajetória desses grupos que se organizam remonta a história de Porto Alegre, porque movimentos de várias partes do mundo passaram por aqui (especialmente por causa do Fórum Social Mundial). Eles deixaram um pouco de suas experiências e que atualmente brotam nas organizações e ações coletivas dos diversos movimentos sociais que lutam por emancipação nessa cidade.

Ao participar de diversas ações coletivas no centro de Porto Alegre com a participação de coletivos como a ocupação Utopia e Luta; Federação Anarquista Gaúcha; Bloco de Lutas contra o Aumento da Passagem; Grupo de Teatro e Ação Direta Levanta Favela,Comuna Alfa, nos chamou a atenção algumas características que marcam essas organizações: a presença forte e consistente de doutrinas anarquistas no discurso e nas ações coletivas; a crítica bem fundamentada ao modo de como a sociedade capitalista se organiza; a perspectiva ecológica, buscando iniciativas concretas para que a vida na cidade seja sustentável.

Nesse processo de imersão no campo de pesquisa, percebemos a existência de comunas urbanas, como os próprios integrantes se autodenominam, formada por pessoas que, de alguma forma, estão engajadas em lutas populares, de modo geral que giram em torno dos eixos nomeados acima. As comunas podem ser entendidas como um grupo de pessoas de diversas idades que vivem em casarões no centro histórico de Porto Alegre dividem as despesas com água, luz, aluguel e buscam organizar iniciativas comuns que os agreguem em função de uma crítica ao sistema capitalista.

Interessante notar que uma das ações políticas da comuna que será analisada se concretiza em um apoio logístico às organizações populares que buscam se mobilizar politicamente, visto que sua presença geográfica é estratégica no cenário urbano de Porto Alegre. Ao nos aproximar dessa comuna percebemos a importante influência que esta causava nas várias ações coletivas existentes na cidade, tais como o movimento ocupa POA; movimento contra o corte das árvores em frente ao gasômetro; ações e manifestações contra a destruição da natureza; ocupação da câmara de vereadores em julho de 2013; apoio ao Bloco de Lutas contra o Aumento da Passagem que desencadearam as manifestações por todo o Brasil e participação em diversas manifestações pela democracia a partir de 2015.

A Comuna Alfa além desse apoio logístico descrito acima também propõe eventos culturais e políticos em parceria com outros movimentos sociais. Outro fato a se notar é que seus membros, de acordo com suas tradições políticas, estão engajados em lutas específicas, o que viabiliza uma rede de relações com outros grupos organizados como veremos neste artigo.

 

Contextualização da Comuna Alfa

Em 2008, por necessidade de um aluguel mais barato para sediar uma ONG e também para moradia de alguns militantes deste movimento, surge a possibilidade da locação de uma casa antiga no Centro Histórico de Porto Alegre que compõe um conjunto arquitetônico de oito casas antigas geminadas, tombadas pelo patrimônio histórico. Os primeiros militantes se instalaram no que chamaremos aqui de "Casa A" que se torna um espaço de resistência ecológica e política onde a convivência e o compartilhamento são pilares para uma nova proposta de moradia urbana.

[...] Na minha opinião isso aqui é reflexo duma necessidade que transcende os próprios indivíduos que habitam aqui dentro. Na minha opinião isso aqui é produto duma necessidade absolutamente contemporânea, dos dias de hoje, que é a aglutinação urbana. (Naim, entrevista pessoal, 29 de junho, 2015)

Em 2010, como muitas pessoas frequentavam e desejavam morar no local, surge então surge a possibilidade de se alugar uma casa próxima da "Casa A" e a partir daí instaurou-se a "Casa B". Em 2012 alugaram outra casa que estava entre a "Casa A" e a "Casa B" a qual chamaremos aqui de "Casa C". Essa junção de três casas possibilitou a derrubada dos muros dos fundos que dividiam as casas, momento fortemente significativo para a consolidação da comunidade e da convivência entre os moradores:

(...) E dois anos depois quando pintou a oportunidade dessa casa do meio, nós não tivemos nem dúvida na hora, a gente caiu pra dentro, fechou o contrato. Foi quando a gente quebrou os muros, daí criou uma conexão entre as três casas e aí a comunidade que era só Casa A durante dois anos, depois por cima do pátio fazendo a integração CASA A/CASA B sem a casa do meio por mais dois anos. E aí a partir do quarto ano se quebrou todos os muros e passou a ficar uma coisa integrada. (Norberto, entrevista pessoal, 15 de julho, 2014)

As três casas atualmente constituem a Comuna Alfa que, além do companheirismo entre os integrantes, também há a partilha de ideias, filosofias, alegrias, valores, entre outros. Sem os muros, o "quintal" passa a ser um dos principais ambientes da comunidade, pois, possibilita as trocas e a convivência entre os moradores.

[...]eu costumo dizer que é um espaço no qual a gente compartilha as três casas com uma outra forma de relacionar como família mesmo, com estrutura familiar, alimentação, saúde, com o corpo e aí as pessoas... (Kátia, entrevista pessoal, 25 de junho, 2014)

O eixo da alimentação é uma forte característica do grupo: são consumidos praticamente produtos orgânicos e embora nem todos os participantes sejam vegetarianos, não há consumo de carne dentro da comuna. As compras são coletivas (o dinheiro para as compras vem da contribuição de todos os integrantes) e ocorrem em feiras, mediante organização interna do coletivo.

Há também os espaços coletivos abertos à comunidade em geral nas três casas que constituem a comuna. Vale destacar que essas atividades mudam constantemente. Essa descrição a seguir é um recorte do momento em que a pesquisa foi realizada. A "Casa A", além de sediar a ONG tem um coletivo de BioConstrução (com projetos em comunidades da cidade), há também um consultório, um curso de Astrologia para o Autoconhecimento (que são de responsabilidade de um dos moradores da comuna) e um salão onde ocorrem oficinas de artes, teatro, música e palestras ministradas pelos moradores ou apoiadores.

A "Casa B" abre um espaço para sarau, sessões de cine-debate, reuniões e exposições culturais. A comuna também sedia sessões de massoterapia, para a comunidade em geral, realizada por um de seus moradores e, desde 2010, um grupo de capoeira compartilha suas aprendizagens com a comunidade. A "Casa C" abriga um tipo de comércio que propicia a alguns moradores uma geração de renda, suas instalações também servem de hospedagem para viajantes e /ou amigos dos integrantes da comuna.

Os moradores das três casas também participam individualmente de diversos segmentos sociais: luta antimanicomial, da cultura e arte na rua, do software livre, da reciclagem, da permacultura, parto humanizado, grupo de teatro, participação nos movimentos sociais da cidade, entre outros.

Em paralelo a esse processo da Comuna Alfa, outras moradias coletivas e urbanas em Porto Alegre e região formam parceiras, como veremos a seguir no gráfico de relações sociais, produzindo complexas redes de produção e troca de produtos, constituindo um novo espaço político de resistência. Destacamos ainda que esta pesquisa faz um recorte histórico entre os anos de 2013 a 2015. Agora em 2017, possivelmente, encontraremos outras formas organizativas dessa comuna.

 

Fundamentação teórica

Diante do exposto acima, seguimos um referencial que para investigação que se encontra na interface entre a Psicologia Social e a Psicanálise. Inicialmente tratamos a comuna como um processo grupal que constitui sua identidade coletiva, e que possibilita que os sujeitos moradores se coloquem no cenário político de lutas e disputas; em seguida, faremos uma discussão de como o processo identificatório posto nessa comuna sustenta uma tensão entre a alienação ao discurso de um suposto líder ou a coesão necessária para se estabelecer uma luta política.

Vale destacar aqui que Freud (1993) nos chama atenção sobre o fato de que no processo identificatório o objeto é posto no lugar do eu e do ideal de eu. Quando isso se totaliza para o sujeito e ele se vê na figura do líder, a consequência possível seria a submissão irrestrita, obediência dedicada e a falta de crítica em relação ao objeto como uma forma de satisfação dos instintos. Por isso, os sujeitos identificados com esse tipo de relação podem se alienar em um laço social que reproduz uma relação entre dominador e dominado, daí vemos a crítica de Freud e a reiteração da mesma por Lacan no Seminário XVII ao se referir ao discurso do mestre e do universitário.

Nesse sentido, Guimarães e Celes (2007) retomam a obra de Freud para discutir como o conceito de identificação vai se estruturando no pensamento freudiano. Se por um lado temos essa identificação capaz de produzir certa alienação em relação à figura de um líder que encarna seus desejos e pulsões, por outro lado podemos pensar que a identificação nos abre a possibilidade de se pensar como o sujeito e o coletivo se complementam e se constituem, mantendo assim certo tensionamento alienação e socialização.

Nesse sentido, pode-se dizer que a identificação é um processo indispensável para a constituição do humano, ou seja, é por intermédio da identificação que a relação com o outro se efetiva em busca de individuação e de socialização. Entrelaçado a esse conceito, cabe ressaltar também a importância do objeto da pulsão e da satisfa ção pulsional na constituição da subjetividade (Guimarães e Celes, 2007, p. 343)

Nesse sentido a contribuição Freudiana para esse entendimento passa por uma não separação entre sujeito e laço social, pois o processo de identificação significa identificar-se com um objeto a tal ponto a devorá-lo; por para dentro de si; é fazer o objeto externo tonar-se parte do sujeito. Repetimos que isso para Freud se por um lado a identificação possibilita que o sujeito construa sua cultura, por outro ela também pode tomar esse mesmo sujeito em identificações totalizantes em que ele passa a odiar e excluir qualquer pessoa que seja diferente dele e de seu grupo (narcisismo das pequenas diferenças), no caso da sociedade contemporânea as minorias sociais, podem facilmente ser alvo do ódio e do desprezo de certos grupos que se sentem identificados com o mesmo objeto parcial.

Nessa perspectiva, o campo de emergência do sujeito está no registro do outro, da cultura, condição que faz Freud não ver oposição entre psicologia individual e psicologia social. É interessante destacar que o conceito de identificação simultânea mente se apreende como sustentação dos mecanismos de inserção do sujeito no grupo - na cultura - e como o fator fundamental para a superação do conflito edipiano e, até mesmo, da constituição do eu. Tanto a identificação como o superego, processo e instância que dificilmente são concebidos isoladamente, constituem construções metapsicológicas que buscam dar conta da relação entre sujeito e sociedade, que, no limite, é o que funda o humano. O psíquico e o social aparecem como instâncias constitutivas do sujeito que não são pensadas isoladamente (Guimarães e Celes, 20017, p.345)

Portanto, a identificação para a psicanálise é algo que constitui os laços sociais alienantes e totalizantes no qual o sujeito se coloca em posição de gozo na subserviência e na reprodução de uma dialética de senhor e escravo; líder e liderado; patrão e empregado etc., todavia a psicanálise defende inda que a própria identificação possibilita considerar a política como uma forma coletiva de constituição do laço social e uma maneira de se viver em sociedade sem, necessariamente, estabelecer processos identificatórios que decorram na afirmação de massas ou hordas.

Por isso entendemos que essa perspectiva psicanalítica pode ser utilizada para um diálogo com a tradição da psicologia social crítica latino-americana em que a reunião de pessoas para lutar politicamente sustenta um tensionamento no qual pode ocorrer um processo identificatório alienante (Freud, 1993; 1927/2001) e um processo grupal de luta por direitos.

Martin-Baró (1998) destaca que é por meio dos processos grupais que o povo latino-americano vem resistindo durante séculos às mais cruéis formas de opressão (extermínio dos povos indígenas, exploração das riquezas, escravidão, exploração do trabalhador). Os elementos culturais tais como, rezar, cantar e festejar servem como elementos que podem ajudar a constituir uma identidade capaz de sobreviver à opressão e ainda fazer resistência cultural e política.

É nessa direção que Lane (2001, 2006, 2007) ao se referir ao processo grupal irá tratá-lo como "processo" e não como uma mera dinâmica de grupo, pois entende que na ideia de processo está inclusa a dimensão histórica e política que auxilia o sujeito a constituir uma identidade coletiva que irá permitir-lhe resolver suas demandas pessoais coletivas.

Woodward (2000) aponta que há também quem tenta compreender e justificar a identidade apenas por meio de discursos biológicos, nos quais se fazem presentes também as questões étnicas e de parentesco, reforçando assim a proposta de uma identificação com aquele que possibilita a manutenção de um gozo espúrio. Por isso, o conceito de identidade tem sido questionado por estudiosos dessa temática, pois muitas vezes, esse conceito é utilizado para ressaltar apenas características essencialistas que deslocam fatos históricos para um passado imaginado de gozo pleno, o qual é concebido como um referente identificatório imutável e inquestionável, como Freud nos aponta na Psicologia das massas e análise do eu e Lacan detalha no Seminário XVII.

Woodward (2000) e Hall (2000) se baseiam em Freud e Lacan ao defender que na lógica identitária não há somente um essencialismo, mas sim uma possibilidade de identidade ad infinitum. Nessa lógica, a identidade se torna um processo grupal em que as identificações poderão ocorrer se houver uma produção coletiva sempre inacabada, renegociada, cambiante de um discurso sobre o eu, nós e eles. Nessa concepção Hall (2000, p. 111) aponta:

Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas as que tentam nos 'interpelar', nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode 'falar'.

Nessa mesma lógica, Laclau e Mouffe (2004) baseados em Jacques Lacan defendem que a identidade seria como pontos de sutura, ou pontos de capton que se estabelecem no discurso e que possibilitam ao sujeito se identificar de maneira provisória com determinados discursos, deslocando para a dimensão simbólica o processo identificatório. Isso se torna possível porque o sujeito concebido por eles é o sujeito do inconsciente, portanto marcado estruturalmente pela falta concebida como a marca estrutural de incompletude, inaugurada no complexo de Édipo em que a criança rompe sua relação alienante e totalizante com a mãe.

Diante disso, Freud (2001; 1997) descreve que o sujeito neurótico que rompe com essa relação alienante e totalizante com a mãe se inaugura para a linguagem, para o laço social, para a cultura e, portanto, para os processos grupais de sociabilidade. No entanto, essa marca estrutural (falta) fica como uma marca em seu processo de subjetivação. Essa marca (falta) faz esse mesmo sujeito neurótico sentir-se desamparado da presença da mãe e da proteção imaginária do pai, e tenta aplacar esse desamparo por meio de identificações que "tamponem" de certa maneira essa incompletude.

Por isso, Freud (1993) nos dirá que a relação nos grupos sempre coloca em questão uma demanda de amor que se torna a demanda incansável e insaciável dos membros de uma massa e os líderes se oferecem como esse uno que ama e permite que os participantes de seu grupo se amem também. Nesse sentido, Freud usa a igreja como exemplo em que Cristo ama a todos e pede que cada um se ame como ele os amou.

Nesse sentido, Lara Junior e Ribeiro (2009) destacam que o conceito de identidade coletiva não deve servir unicamente a esses propósitos de demanda incessante de amor, pois ela não pode ser entendida como algo que fixa uma única maneira do sujeito se constituir e constituir o seu laço social, uma essência auto-afirmada pela exclusão das diferenças. Pelo contrário, a identidade deve ser encarada como pontos de apego temporário às posições-de-sujeito em que as práticas discursivas constroem para os membros de um grupo.

Dessa forma, a identidade deve ser entendida como algo que deve ser buscado e renegociado a cada vez - não podendo ser pensada como uma solução universal e atemporal. A noção de coletividade e os processos identificatórios dela constituintes se tornam, nesse sentido, imprescindíveis à própria noção de política, visando garantir legitimidade aos grupos políticos e suas novas formas de se organizar na sociedade contemporânea (Mouffe, 1999).

Para se pensar em uma identidade coletiva, torna-se, portanto, ultrapassada e ineficaz a noção de que existem vínculos estáveis e permanentemente definidos, mas sim deve-se levar em conta as transformações e a pluralidade de relações e de sentidos que perpassam as experiências dos sujeitos e grupos. Ou seja, para se compreender o que está em jogo nestas ações na contemporaneidade, temos que ter claro de qual sujeito estamos nos referindo. Nessa direção Touraine (2006, p.119) ao propor sua noção de sujeito, explica que temos agora uma imagem em que este não se concebe mais em grupos supostamente estáveis, "e que por isso ele não encontra mais a garantia de sua identidade em si mesmo, pois já não é mais um princípio de unidade e é obscuramente dirigido por aquilo que escapa à sua consciência".

Essa perspectiva de Touraine (2006) reafirma uma concepção essencialista de identidade como uma unidade indivisível capaz de aplacar qualquer conflito, propondo assim que esta se coloque em constante transformação e negociação, o que permite se conceber um sujeito descentrado e que precisa ser considerado nas análises sociais, pois esse constitui a sociedade e seu próprio grupo.

 

A identidade política

Nesta perspectiva não essencialista a noção de identidade é constantemente colocada em questão, reafirmada e reatualizada, levando-se em conta a história e as diferenças entre os sujeitos participantes de um determinado grupo. Nesse sentido, a identidade somente poderá emergir em relação a uma diferença. Estando sempre em movimento, demarca limites e posições entre o "eu" e o "outro". Ao nos referirmos ao âmbito individual, entre o NÓS e o ELES quando concebemos a dimensão coletiva da construção da identidade. "A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades" (Woodward, 2000, p. 14).

Woodward (2000) afirma que a marcação simbólica se refere à linguagem e a uma determinação de lugares ou posições. E, além disso, se constitui em uma tentativa de dar formas ao real, de significá-lo. O social, na medida em que estabelece diferenciações entre sujeitos e estas diferenças são vividas nas relações sociais, abre um espaço para a construção e a manutenção das identidades, que vai acontecendo à medida em que se reconhece o "adversário" (o outro legitimamente reconhecido como diferente), instaurando-se a nítida divisão entre um NÓS e um ELES. Esse tipo de relação acontece no campo do político, pois os conflitos ideológicos se constituem nesse espaço.

A vida política nunca poderá prescindir do antagonismo, pois afeta a ação pública e a formação de identidades coletivas. Tende a construir um NÓS diferente de um ELES. Por isso a questão decisiva de uma política democrática não reside em chegar a um consenso sem exclusão - o que nos devolveria a criação de um NÓS que não tivesse um ELES como correlato - senão em chegar a estabelecer a discrimina ção NÓS x ELES de tal modo que resulte compatível com o pluralismo (Mouffe, 1999, p. 16).

No conjunto de forças mobilizatórias seja dos sentimentos de pertença, ou pelo estabelecimento de um conflito NÓS x ELES é que os discursos disponíveis (políticos, sociais, religiosos, econômicos) no cotidiano desse grupo social vão possibilitando ao sujeito elaborar sua identidade de pertença a um grupo. No processo de estabelecimento de um NÓS, as relações antagônicas se estabelecem nesse campo político e para que o NÓS possa se constituir é preciso visualizar um ELES que é diferente. É a partir dessa relação diferencial entre um NÓS e ELES que se estabelece um processo de constituição da identidade coletiva. Nessa perspectiva, Mouffe (1999, p.16) diz que:

No interior do NÓS que se constitui a comunidade política, não se verá no oponen te um inimigo a abater, mas um adversário de legítima existência e o qual se deve tolerar. Eles irão combater com vigor suas ideias, no entanto a categoria de 'inimigo' não desaparece, porque segue sendo pertinente em relação a quem, ao questionar as mesmas bases da ordem democrática, não pode entrar no circulo dos iguais.

Para garantir certa legitimidade na ação política de se fortalecer as características de um NÓS é que a oposição a um ELES não pode ser posta como uma relação de inimigos a serem "abatidos", mas buscar uma relação de adversários que encontram no espaço político um lugar para manifestar suas ideologias e proposições em relação à busca por direitos.

Para Mouffe (1999) as relações que se dão no campo do político devem estar apoiadas em valores ético-políticos que possam vir a legitimar o espaço do conflito com o "diferente", que não deve ser "eliminado", isso favorece a autoafirmação de uma identidade coletiva - NÓS. Se estiver assegurado esse espaço para a manifestação e estabelecimento do antagonismo, se implantará um processo de democracia que se articula e se funda a partir das minorias que, muitas vezes, são tidas como "diferentes".

Para continuarmos a pensar sobre a dimensão política das identidades, Hall (2000, p. 111) nos afirma que essas são constituídas por pontos de sutura ou de apego que possibilitam ao sujeito se identificar como tal e o convocam para que assuma determinadas "posições-de-sujeito". É, portanto, em uma articulação intrincada entre o psíquico e o social que se dará a formação de uma identidade.

Os pontos de sutura a partir de contornos específicos entrarão em relação com aquilo que deixam de fora (ELE), assim constituem unidades, e mesmo que sejam temporárias serão importantes para estabelecer as fronteiras entre NÓS e ELES. Nestes pontos "o compartilhamento de valores e crenças definem uma cultura política do próprio grupo, colaborando na configuração e mediação da relação entre diferentes grupos" (Lara Junior e Prado, 2003, p. 4). Isso é fundamental para que se possa dar maior significado ao sentimento de pertença e assim que ele seja capaz de resistir às forças que intentam destituí-lo.

Por isso, destacamos que dimensões da vida psíquica ganham seus contornos em processos de constituição da identidade coletiva por meio da historicidade e a contingência. Sobre a historicidade pode-se entendê-la quando refletimos sobre como, através do tempo, a identidade se tornou o que é hoje. Não se trata de reviver o passado como uma fantasia de algo cristalizado e já acabado, mas sim como algo que fortalece o sentido atual da identidade, auxiliando em sua sustentação que será sempre provisória e cambiante. A contingência remete a um estado temporário que oportuniza a aparição da identidade e "precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas" (Hall, 2000, p. 109), mas sempre com possibilidade de se transformar ou de desaparecer.

Nesse sentido, Melucci (1996, p.69) quando se refere aos processos de formação de uma identidade coletiva explica que é importante que se compreenda o que faz com que "os atores sociais se unam para formar uma coletividade e se reconheçam através do tempo como sendo parte dela". Também estão presentes em sua teorização sobre a identidade coletiva elementos referentes à historicidade da ação coletiva, a produção de sentido de um agir coletivo, assim como as condições estruturais e motivações individuais para sua emergência. Aspectos racionais e irracionais (inconscientes) estariam atuando sempre neste processo. Também salienta esse autor que, neste sentido, a identidade coletiva seria uma ferramenta analítica para que se possa investigar as ações coletivas e os movimentos sociais contemporâneos sob estas perspectivas.

Nesta senda, as identidades coletivas permitem que os grupos possam ser reconhecidos e que possam reconhecer suas diferenças. Conforme salienta Melucci (1996), este processo nunca ocorre sem conflitos, pois sempre existirá uma tensão entre o que os integrantes da identidade coletiva propõem como sua definição e o modo como os demais da sociedade os consideram. Na verdade, segundo esta perspectiva, os atores sociais entram em conflito para afirmar uma identidade que foi negada pelo outro. É nesta demarcação de territórios que instaura a dimensão política das identidades.

 

Percurso metodológico

A observação participante (Jorgensen, 1990) aconteceu por meio das conversas interativas em que participamos, como em ações coletivas, em eventos organizados por essa comuna e no convívio nas atividades cotidianas desde 2012.

Pesquisamos também blogs e redes sociais que essa comuna possui e suas relações estabelecidas nas páginas da internet. No blog da comuna pudemos encontrar informações produzidas pelos participantes. Nesse recurso virtual fizemos um primeiro levantamento dos projetos que estão sendo desenvolvidos pela comuna e pela rede a que estão interligados. No blog há espaço para interatividade e aí também encontramos diversas opiniões e discussões que nos ajudaram a analisar os discursos produzidos (Flick, 2009).

No diário de campo pudemos anotar todas as nossas impressões e informações levantadas nas visitas, que nos auxiliou a entender como no cotidiano os sujeitos vão construindo suas relações sociais e suas redes de articulação política (Lakatos e Marconi, 2011)

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 6 moradores da Comuna Alfa, permitindo aprofundar assuntos e temáticas relativas à nossa investigação. Estas estratégias nos forneceram elementos para serem investigados, ampliando a qualidade dos dados levantados para a nossa análise (Flick, 2009; Parker, 2005).

 

Análises dos dados

Representação dos processos grupais

O gráfico 1 abaixo se refere à rede de relações sociais da Comuna Alfa com outras moradias coletivas localizadas em Porto Alegre e região. Este gráfico é apresentado como um dos resultados da análise dos dados coletados por meio de observação participante e entrevistas realizadas com os moradores desta comuna.

 


Gráfico 1 - Clique para ampliar

 

Inicialmente, por meio das entrevistas, pudemos perceber que há interações de alguns moradores da comuna Alfa com alguns moradores das outras moradias coletivas, estabelecendo assim uma rede de relações sociais. A comuna Alfa está inserida em uma rede que chamamos de Moradias coletivas - Rurais/Urbanas, a qual, também fazem parte a Moradia Urbana 1, a Moradia Urbana 2, Moradia Rural/Urbana 3 e a Moradia Urbana 4.

Na legenda no canto inferior esquerdo do gráfico nos referimos em sublinhado a todas as relações entre os sujeitos que tratam da organização política; em itálico retratamos as relações que envolvem o que chamamos de cultura; as relações que envolvem geração de renda foram colocadas simbolicamente um asterisco e por fim em negrito o que se refere aos cursos ofertados pelos locais. Essas categorias foram criadas para diferenciarmos os acontecimentos que ocorrem nesses diversos espaços, o que permite um estudo mais específico de cada prática realizada.

Por Moradias coletivas - Rurais/Urbanas entende-se como sendo um agrupamento de pessoas que vivem coletivamente compartilhando de valores e ideais e esses, neste caso, não se relacionam diretamente com nenhum tipo de religião. Cabe ressaltar que a Comuna Alfa se relaciona por meio de alguns de seus moradores com outras moradias através do estabelecimento de redes de relações sociais.

Para propósito de análise, partiremos da comuna Alfa e utilizaremos o sentido anti-horário do círculo formado. Sendo assim, temos como ponto de partida a Moradia Urbana 1, que se denomina como um espaço libertário localizado em uma região de resistência histórica quilombola. Esta moradia trás consigo uma série de ações com a comuna Alfa, um deles é o "bloco de lutas pelo transporte público". Outra ligação importante feita com esta moradia são alguns eventos culturais que realizam, como por exemplo matinês com apresentação de bandas, atrações circenses, exibição de filmes, debates, entre outros.

Ainda, seguindo em sentido anti-horário, temos a Moradia Urbana 2 localizada atualmente em uma cidade da serra gaúcha, que realiza cursos na área da permacultura, referindo-se a um sistema de design criado para construir vidas e sociedades sustentáveis, dentre essas iniciativas destacamos bio-construção. Ainda, essa moradia promove curso de Pedagogia Waldorf que trata de educação humanizada tendo como base na antroposofia e por fim, ligando-se à comuna Alfa, realizam cursos de doulagem e parto natural.

O Conselho de Assentamentos Sustentáveis das Américas (Casa Sul), surge nesse contexto como uma forte organização política, formando uma conexão entre comunidades, agroecologistas, questionadores e revolucionários Brasil, na América Latina e em outros países através da rede global de Ecovilas. Os encontros ajudam a fortalecer esses locais como movimentos, permitindo compartilhar, trocar e articular ideias e estratégias políticas de enfrentamento dos modos de produção capitalista.

A Moradia Rural/Urbana 3, que se integra com a Comuna Alfa por meio de eventos culturais tal como a chamada Deriva e ainda pela produção e venda de cerveja e cachaça artesanais, serve de fonte de geração de renda como vimos no gráfico.

Por fim, temos a Moradia Urbana 4 que se auto define como um movimento empenhado historicamente para a defesa dos direitos inalienáveis da sociedade oprimida. Esse coletivo, por sua vez, interliga-se com a Comuna Alfa por meio de organizações políticas por meio de ações como a serigrafia, rede de assentamentos urbanos e também pelo bloco de lutas. Ainda faz uma conexão com a comuna por meio da padaria e a horta hidropônica que, juntamente com a serigrafia compõem o grupo de geração de renda deste local.

A partir da interligação de parte dos moradores dessas moradias coletivas, incluindo a comuna estudada, é que se estabelece a rede de relações sociais da mesma. Assim, mapeamos essa rede de relações marcando a participação parcial, dos moradores das diferentes moradias acima descritas, em acontecimentos distribuídos nos diversos locais.

Processos grupais e as Ações da Comuna Alfa

O gráfico 2 demonstra os tipos de ações individuais e coletivas as quais os moradores da Comuna Alfa estão empenhados. Para melhor compreendermos essas ações criamos 4 categorias a saber: ações individuais, ações políticas individuais ações políticas coletivas ações comunitárias.

Para melhor visualização e entendimento dessas práticas partiremos do ponto central, onde está destacada a Comuna Alfa, e seguiremos em sentido horário dando maior ênfase para cada tipo de ação. Queremos ressaltar que não se tratam de ações praticadas por todos os moradores, mas por parte deles.

Seguindo a partir da Comua Alfa temos o primeiro grupo de ações que denominamos "ações comunitárias", são práticas organizadas e realizadas internamente pelos moradores da comuna, mas que eventualmente podem ser realizadas para além-muros dessa moradia, temos como exemplo disso a feira ecológica, o sarau e a festa da biodiversidade que tem essa abertura para a comunidade em geral. Podemos destacar outras ações de realização mais interna como: potencial criativo interno, as reuniões, os feitios caseiros, autogestão do pátio e das casas, preparação da comida, os cursos/oficinas realizados no local e a música.

Temos a segunda categoria chamada de "ações políticas coletivas" que são ações realizadas pelo grupo, por exemplo, o sarau e a festa da biodiversidade que são ações organizadas internamente por diversos coletivos e que posteriormente são feitas na e para a comunidade em geral em espaço público. Também dentro dessas ações políticas coletivas destaca-se o apoio logístico, que é uma espécie de suporte para as manifestações políticas que acontecem no centro de Porto Alegre.

Na terceira categoria temos "ações políticas individuais", essas são caracterizadas pela participação de um grupo bem menor de moradores da Comuna Alfa, cerca de um, dois ou mais moradores por ação. Destacamos a Casa Sul, os coletivos de agroecologia, o movimento Defesa Pública da Alegria, o bloco de lutas e as ONG's (responsáveis por uma rádio comunitária, pelo comitê popular da copa, participação em conselhos e órgão deliberativos, realizam cursos e oficinas, manejo de estruturas das escolas, entre outras coisas).

Para finalizar, seguimos com as "ações de cunho individual", que se trata de ações voltadas para a geração de renda individual de alguns dos moradores da comuna que utilizam esse espaço para a fabricação de produtos ou para atendimento à comunidade local. São elas: aulas de música, aulas de teatro, realização de massagem, astrologia, ateliê de demolição, caverna sagrada e árvore da vida.

Todas essas ações tem um objetivo político de estabelecer uma diferenciação política NÓS (comuna) em relação a ELES (estado capitalista e modos de vida não sustentáveis). Isso põe em jogo uma relação antagônica como nos diz Mouffe (1999), pois com essas iniciativas a comuna vai se definindo (NÓS) na oposição a ELES.

Processos de identificação

A temática do gráfico 3 vai ao encontro do que chamaremos de Processos de Identificação, que por sua vez, são observados através dos principais conteúdos discursivos que circulam com maior intensidade na Comuna Alfa. Por meio de análise dos dados até aqui adquiridos, organizamos este gráfico descritivo. Essa descrição foi feita da seguinte maneira: como ponto de partida há a Comuna Alfa e posteriormente os principais conteúdos discursivos que estão representados por círculos. A leitura de cada conteúdo discursivo será realizada no sentido anti-horário a fim de obter uma melhor organização e entendimento do gráfico.

Iniciamos a exposição pelo discurso do respeito ao movimento ecologista que está muito presente na fala dos moradores e, como exemplo trazemos, um trecho da entrevista de um dos moradores: "eu acho que a gente bebe dessa fonte meio misturada assim, comunidade alternativa, movimento ecológico de Porto Alegre..." (Nilton). Através desse relato, podemos perceber que há uma identificação com esse discurso e que vai constituindo a identidade coletiva desse grupo. Ainda nesse item, há outros elementos discursivos citados por eles e que possuem relação com essa dimensão ecológica, tais como: movimento anticapitalista, movimento ambientalista, movimento ecológico e permacultura, formando assim um mosaico identificatório, como pontos de sutura discursiva.

Outros conteúdos discursivos de extrema importância que circulam nesse meio são, por exemplo, o anarquismo, bem ilustrado por um relato interessante a respeito de algumas temáticas que serviram e servem de base para que a Comuna possa se organizar:

"... e, também uma coisa recente que a gente não pode negar é a influência do movimento anarquista em Porto Alegre aqui dentro da nossa comunidade, e vários membros do nosso grupo aqui acabaram bebendo disso aí e estão trazendo aqui pra dentro um pouco desse ideal" (Nilton, entrevista pessoal, 22 de setembro, 2014).

Além do anarquismo também podemos citar falas a respeito do feminismo, socialismo, medicina oriental e astrologia, que de diversas formas contornam e integram a base desta Comuna. Ainda, identificamos um discurso sobre religiosidade que se faz muito presente através de eixos como o xamanismo, as religiões de matrizes afro e o budismo.

 

Considerações Finais

Ao analisar esse processo de formação grupal, podemos verificar a constituição de uma identidade coletiva deste grupo, no entanto não se trata de uma identidade fixa, pois está continuamente em movimento, não se apresentando como uma identidade essencializada como já foi posto acima.

É nesse sentido que observamos a mobilidade da identidade desta comuna, se tratando aqui de um processo que além de englobar uma dimensão política também possui uma dimensão histórica e subjetiva (Lane, 2001).

Nos gráficos observamos os processos grupais da Comuna, tanto através da circulação dos diversos discursos em que está inserido, quanto pelas práticas que organizam a sua rotina. Isso indica como esse grupo vem se estruturando e compondo através desse processo o cenário social e político atual. Nas práticas individuais e coletivas encontramos um processo cultural que indica uma marcação da identidade coletiva implicada com o político.

Partindo desse pressuposto, podemos nos arriscar a dizer que a comuna existe primeiramente com um objetivo comum, a necessidade e/ou o desejo de uma moradia coletiva de baixo custo, assim como podemos constatar através da fala de V: "e aqui existe isso, esse fator também é considerado, morar mais barato..." Nesse sentido, se torna um princípio de identificação a um ideal que unifica identidades, tal como Freud (1993) nos diz, mas ao mesmo tempo a identificação possibilita a construção de uma coletividade.

Portanto, vemos que o ponto de sutura inicial é a moradia, onde se encontram diversas pessoas, com discursos (ideais, valores, crenças...) diferentes que se articulam entre si, e onde nesse processo de viver coletivamente, supostamente, encontram um equilíbrio e/ou uma identificação entre eles A troca de conhecimento, visto que a maioria dos seus integrantes tem acesso à educação superior ou uma educação esclarecida, constrói um ambiente rico e fortalecido de compartilhamento de ideias fundamentadas.

Podemos também apontar que a partir dessa necessidade/desejo cria-se uma moradia comunitária que também impulsiona esse viver em comunidade. Constroem-se estratégias e "regras" que se articulam entre si para que haja a possibilidade de viver em comunidade. Podemos citar aqui como exemplo, a vontade de uma alimentação saudável, "eu entendo que, que é o lugar em que a gente pode estar construindo e pensando outras formas de viver e de se relacionar. A alimentação, acho que é uma questão muito forte" (L). A refeição é também uma ação coletiva dessa comuna que serve para que eles se identifiquem enquanto um coletivo.

Além dos diversos discursos citados no gráfico 3, nos chama a atenção a forma como se dá esse viver em comunidade através das ações praticadas pelos moradores. São artifícios criados para uma boa convivência entre eles e assim constituem um processo único que nem eles mesmos, por vezes, se dão conta, assim como a articulação da rede de relações formada pelos moradores. Mellucci (1996, p. 32) vai dizer que, "identidade coletiva é o processo de construção de um sistema de ação", portanto tudo é único e mutável na Comuna Alfa e isso é o que edifica um modo próprio de identidade coletiva que se instaura através do fazer em comunidade.

Esta forma coletiva encontrada por esse grupo de pessoas para viver seus ideais políticos e sociais, atualizados e contingenciados pelo momento histórico em que estamos vivendo, produzem uma identidade coletiva que sustenta um tensionamento identitário, pois como vimos nas reflexões de Freud onde há pessoas reunidas em coletivo sempre pode haver a alienação a um determinado discurso ou líder. Nesse sentido, verificamos por meio dos gráficos que há uma diversidade de pessoas e práticas sociais e políticas que constituem a comuna e que, portanto, pode haver a possibilidade de um discurso ou pessoa tentar se impor para dominar. Esse tensionamento também sustenta a constituição de uma identidade política capaz de estabelecer as fronteiras entre o NÓS (comuna) em relação a ELES (estado capitalista e modos de vida não sustentáveis).

Portanto, em nossa compreensão, a identidade coletiva deve guardar certo conflito entre discursos e pessoas que se oferecem como "líderes" (Freud, 1993) na formação de uma ilusão comunitária (Freud, 2001) e ao mesmo tempo a luta por uma coletividade capaz de questionar e produzir uma política capaz de produzir relações antagônicas com o sistema capitalista que se oferece a todo instante como hegemônico (Laclau e Mouffe, 2004). Entendemos que a Comuna Alfa não se auto define como um grupo de arautos da verdade ou de grandes revoluções anticapitalistas, não obstante nos mostram uma forma de vida, tensionada entre alienação e socialização, capaz de ser vivida em nossa sociedade contemporânea.

 

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Submetido em: 30/07/2017
Aceito em: 30/10/2017

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