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Revista Psicologia Política
Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo MayAug. 2018
ARTIGOS
Desafios para a psicologia política brasileira: a inserção em Programas de Pós-Graduação e a delimitação como campo de conhecimento
Challenges for Brazilian political psychology: the insertion in Graduate Programs and the delimitation as a field of knowledge
Desafíos para la psicología política brasileña: la inserción en Programas de Postgrado y la delimitación como campo de conocimiento
Les défis de la psychologie politique brésilienne: l'insertion dans les programmes d'études supérieures et la délimitation en tant que domaine de connaissance
Frederico Alves Costa
Universidade Federal de Alagoas. fredericoalvescosta@gmail.com
RESUMO
O objetivo do artigo é debater a consolidação da psicologia política no Brasil focalizando dois desafios centrais: a) a inserção da psicologia política em Programas de Pós-Graduação brasileiros (PPG); b) a delimitação da psicologia política no país. Abordamos estas questões a partir da observação que apenas um reduzido número de pesquisadores que atuam em PPG em Psicologia Social ou em Psicologia e que investigam temas políticos identificam a psicologia política como área/sub-área de atuação no currículo Lattes. Para a realização do debate recorremos a Mensagens da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP) e aos editoriais publicados em 32 números da Revista Psicologia Política (RPP), veículo de divulgação científica da ABPP. Ademais, concebemos a ciência como uma prática social, afastando-nos de uma compreensão linear da história da ciência, entendendo a construção de um campo científico a partir de disputas discursivas entre posições divergentes sobre sua delimitação.
Palavras-chave: psicologia política no Brasil; Associação Brasileira de Psicologia Política ; Revista Psicologia Política; disputas discursivas; posicionamento político.
ABSTRACT
This article's objective is debating the consolidation of political psychology in Brazil focusing on two main subjects: a) the insertion of political psychology in Brazilian Graduate Programs (BGP); b) the delimitation of political psychology in the country. We will address these subjects from the observation that just a reduced number of researchers who work in BGP in Social Psychology or Psychology and who investigate political themes identify political psychology as an area or sub-area of research field in the curriculum Lattes. In order to accomplish the debate we turned to Messages of Direction of Brazilian Association of Political Psychology (ABPP) and the editorials published in 32 numbers of Political Psychology Journal (RPP), ABPP's vehicle of scientific dissemination. In addition, we conceive science as a social practice, moving away of a linear comprehension of the history of science, seeking to under-stand the construction of a scientific field through discursive disputes between divergent positions about its delimitation.
Key-words: political psychology in Brazil; Brazilian Association of Political Psychology ; Political Psychology Journal ; discursive disputes; political positioning.
RESUMEN
El objetivo del artículo es debatir la consolidación de la psicología política en Brasil enfocando dos cuestiones centrales: a) la inserción de la psicología política en Programas de Postgrado brasileño (PPG); B) la delimitación de la psicología política en el país. Estas cuestiones se abordan a partir de la observación que sólo un reducido número de investigadores que actúan en PPG en Psicología Social o en Psicología y que investigan temas políticos identifican la psicología política como área / sub-área de actuación en el currículo Lattes. Para la realización del debate recurrimos a Mensajes del Directorio de la Asociación Brasileña de Psicología Política (ABPP) y los editoriales publicados en 32 números de la Revista Psicología Política (RPP), vehículo de divulgación científica de la ABPP. Además, concebimos la ciencia como una práctica social, alejándonos de una comprensión lineal de la historia de la ciencia, entendiendo la construcción de un campo científico a partir de disputas discursivas entre posiciones divergentes sobre su delimitación.
Palabras clave: psicología política en Brasil; Asociación Brasileña de Psicología Política ; Revista Psicología Política; disputas discursivas; posicionamiento político.
RÉSUMÉ
L'objectif de cet article est de débattre la consolidation de la psychologie politique au Brésil, en mettant l'accent sur deux défis: a) l'insertion de la psychologie politique dans les programmes brésiliens de troisième cycle; b) la délimitation de la psychologie politique dans le pays. Nous partons du constat que les chercheurs qui travaillent autour de la psychologie sociale ou qui étudient des questions politiques n'identifient pas forcément la psychologie politique comme un domaine / sous-domaine d'action dans le programme d'études ''Lattes''. Pour nourrir ce débat, nous avons analysé les messages du conseil d'administration de l'Association Brésilienne de Psychologie Politique (ABPP) et aux éditoriaux publiés dans 32 numéros de la Revista Psicologia Política (RPP), vecteur de la diffusion scientifique de l'ABPP. En outre, nous concevons la science comme une pratique sociale, oú un champ scientifique se construit à partir des conflits discursifs entre des positions divergentes sur sa délimitation. Cette approche nous éloigne donc d'une compréhension linéaire de l'histoire de la science.
Palavras-chave: psychologie politique au Brésil; Association Brésilienne de Psychologie Politique ; Revista Psicologia Política; conflits discursifs; positionnement politique
Introdução
O objetivo deste texto é problematizar a consolidação da psicologia política no Brasil a partir da discussão sobre sua inserção em Programas de Pós-Graduação (PPG) brasileiros e sobre sua delimitação como um campo de conhecimento.
Esta discussão é resultante de um mapeamento, realizado no final de 2014 e início de 2015, que apontou uma pequena identificação com a psicologia política como área/sub-área de atuação no Currículo Lattes por docentes vinculados a PPG brasileiros em Psicologia Social ou em Psicologia. Mapeamos 194 docentes que debatiam temas políticos, vinculados a 37 PPG, mas apenas 11 deles/as identificavam a psicologia política como área/sub-área de atuação.
É importante considerar que o campo área de atuação do Lattes é um campo preenchido pelo pesquisador, desta maneira, se, por um lado, não constar psicologia política neste campo não significa necessariamente a não inserção do pesquisador na psicologia política; por outro lado, a explicitação da psicologia política é um indicativo claro desta inserção.
Diante desta pequena identificação com a psicologia política, uma primeira questão que emergiu foi a seguinte: a inserção da psicologia política em PPG brasileiros é um desafio para a consolidação da psicologia política no Brasil e, assim, para a produção de conhecimento neste campo de saber?
De maneira a explorar esta questão, recorremos aos editoriais e às mensagens da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP) presentes nos 32 números da Revista Psicologia Política (RPP) que haviam sido até então publicados1, a qual é uma estratégia desta Associação para divulgação da psicologia política no Brasil. Buscamos observar nestes textos discussões sobre a inserção da psicologia política nos PPG brasileiros.
A partir desta leitura, verificamos que, desde o primeiro número da RPP, publicado em 2001, a inserção nos cursos de graduação e de pós-graduação tem sido compreendida como um desafio para a psicologia política brasileira. Diante disso, outra questão emergiu: que fatores têm contribuído para a manutenção deste desafio neste período temporal? Ao entendermos que o modo de delimitação do campo da psicologia política no Brasil pode ser um destes fatores, recorremos aos editoriais e às mensagens da diretoria da ABPP nos 32 números da RPP, bem como ao escopo editorial desta, buscando compreender como o campo tem sido delimitado nesta revista.
Trataremos neste artigo, portanto, de um aspecto relevante para a consolidação de um campo de conhecimento: a identificação de pesquisadores com o campo. Mais especificamente de pesquisadores vinculados a PPG e que têm investigado temas políticos, isto é, estratégias de reprodução e/ou de enfrentamento a relações de dominação, objetos de estudo importantes para a psicologia política.
Primeiramente, apresentaremos algumas considerações metodológicas. Depois abordaremos, de modo breve, a primeira questão colocada acima e, mais detalhadamente, a segunda questão, localizando ambas como desafios para a psicologia política. Não temos a pretensão de responder estas questões de maneira definitiva, mas de apresentar alguns aspectos que possam contribuir para a consolidação da psicologia política no Brasil. Campo que já se fazia presente no país na primeira metade do século XX (Sass, 2005; Silva, 2012a) e que foi retomado no final dos anos 1980 num contexto de reflexões políticas sobre a construção de uma sociedade menos autoritária e desigual.
Considerações metodológicas
No final de 2014 iniciamos uma pesquisa sobre a produção científica referente ao debate sobre temas políticos, publicada nas últimas décadas por pesquisadores que atuam em PPG brasileiros e que se identificam com o campo da psicologia social e/ou da psicologia política. A primeira fase desta pesquisa caracterizou-se pela construção de um mapeamento destes pesquisadores através da consulta de sítios de PPG em Psicologia Social e de PPG em Psicologia que apresentassem áreas e/ou linhas de pesquisa referentes à psicologia social ou à análise de temas políticos. Os PPG foram encontrados na página da CAPES sobre cursos recomendados e reconhecidos no país.
Inicialmente, mapeamos 441 docentes, vinculados a 39 PPG. Posteriormente, a partir da observação dos Lattes de cada um, verificamos que 234 identificavam a psicologia social no campo Área de Atuação, mas apenas 11 identificavam a psicologia política. Por fim, chegamos ao número de 194 pesquisadores que, além destas identificações, possuíam pelo menos um artigo com termos-chave no título que indicavam a análise de temas politicos2. Os 11 docentes que identificavam psicologia política no segundo recorte mantiveram-se entre estes 194 pesquisadores.
Em relação aos textos da RPP discutidos neste artigo, lemos os editoriais e mensagens da ABPP publicadas entre os números 1 e 32 da revista3. Selecionamos trechos destes textos referentes às duas questões centrais a este artigo. Primeiramente, localizamos a discussão sobre a inserção da psicologia política nos PPG brasileiros. Ao observamos que esta inserção era entendida como um desafio, buscamos localizar trechos sobre a segunda questão: a delimitação do campo da psicologia política no Brasil. Neste segundo momento, recorremos também ao texto do escopo editorial da revista. A partir das seleções de trechos, mas também considerando os textos na sua completude, construímos uma síntese de cada um dos textos focalizando as duas questões centrais.
Para a discussão, abordamos aspectos semelhantes e divergentes referentes a cada uma das duas questões. Além disso, partindo de uma concepção discursiva da realidade (Laclau & Mouffe, 2015), concebemos que não temos acesso direto à realidade. Desta maneira, consideramos os editoriais e as mensagens da ABPP, bem como a discussão que realizamos, como modos de significação sobre o campo da psicologia política no Brasil, e não como parte de uma narrativa linear rumo a um conhecimento verdadeiro e, assim, a uma homogeneidade da psicologia política. Nesta medida, a historia da ciência é entendida como construída por continuidades e descontinuidades nos jogos de poder que lhe são constitutivos (Castro, Portugal, Jacó-Vilela, 2011).
Concebemos que os editoriais da RPP apresentam tanto posicionamentos dos editores da revista a respeito da psicologia política quanto a apresentação dos artigos aceitos para publicação e, portanto, considerados compatíveis com o escopo da RPP. Entre os anos 2001 e 2008, o que corresponde à publicação do número 01 até o número 14, os editores da RPP foram Marco Aurélio Máximo Prado e Salvador Sandoval. A partir de 2008, Alessandro Soares da Silva assumiu a editoria da RPP, realizando este trabalho em conjunto com Celso Zonta até 2011 (número 22 da RPP) e, posteriormente, de maneira individual, até 2016 (número 34 da RPP).
Em relação às mensagens da ABPP, entendemos que nestas a diretoria da Associação apresenta posicionamentos em relação à psicologia política, além de trazer informações sobre atividades ligadas à ABPP e também à psicologia política de maneira geral. Dos 32 números da revista que foram analisados, em 13 não foram publicadas mensagens da ABPP4. A ABPP inicialmente foi presidida por Leoncio Camino (2001-2002), posteriormente, por Salvador Sandoval (2002-2006), por Cornelis Johannes van Stralen (2006-2008), por Marco Aurélio Máximo Prado (2009-2010), e novamente por Salvador Sandoval (2011-2014). Entre 2015 e 2017, a ABPP foi presidida por Fernando Lacerda e no biênio 2017-2018 por Jáder Ferreira Leite.
Encontro-me vinculado à ABPP desde 2005, tanto em termos da participação nos Simpósios organizados pela Associação, quanto em termos institucionais, como membro de diretoria e de equipe editorial da RPP.Esta vinculação localiza-me, portanto, no interior do próprio debate que realizo neste artigo.
Os editoriais da Revista Psicologia Política e as mensagens da ABPP: o desafio da inserção nos Programas de Pós-Graduação brasileiros
No primeiro número da RPP, no texto de apresentação da Sociedade Brasileira de Psicologia Politica (SBPP), Camino (2001) afirma que, apesar da importância da psicologia política como campo de conhecimento, esta limitava-se a alguns poucos programas de pós-graduação no Brasil.
Diante disso, enfoca-se que o Grupo de Trabalho em Comportamento Político da ANPEPP, em 2000, considerou importante a construção da SBPP, posteriormente, denominada ABPP. Objetivava-se ampliar o espaço de discussão deste campo de conhecimento para além do GT, facilitando o intercambio científico entre pesquisadores brasileiros e internacionais através de encontros científicos e da RPP. Além disso, destaca-se que se pretendia expandir o ensino da Psicologia Política nos cursos de graduação no país (Camino, 2001).
Na Mensagem da ABPP publicada no número 5 da RPP registra-se que como a psicologia política é um campo interdisciplinar, a revista estava a enfrentar dificuldades de inserção na academia brasileira, pois esta caracterizava-se (talvez, ainda se caracterize) pela cristalização "em seus redutos mono-disciplinares" (Sandoval, 2003, p. 07).
Na Mensagem da ABPP publicada no número 19 afirma-se que a visibilidade da psicologia política no Brasil ainda era um desafio, apontando-se para a existência de um grande número de estudantes que tinham interesse por conhecer este campo de conhecimento, mas que este se fazia ausente em seus cursos de graduação (Prado, 2010). Mais recentemente, no editorial do número 31, publicado em 2014, concebe-se que é possível testemunhar um avanço e amadurecimento da psicologia política no Brasil. Por outro lado, contudo, ressalta-se que "Indubitavelmente há muito mais para crescer. Crescer significa ampliar o ensino da Psicologia Política no Brasil tanto na graduação como na Pós-Graduação" (Silva, 2014, p. 446).
Deste modo, é possível observarmos que antes da fundação da ABPP e do primeiro número da RPP até os números publicados em 2014, portanto, por ao menos 15 anos, a inserção da psicologia política nos cursos de pós-graduação, e também de graduação, no Brasil, é considerada um importante desafio para a consolidação da psicologia política brasileira. O que converge com o pequeno número de pesquisadores de PPG mapeados que identificavam a psicologia política como área de atuação. Situação que nos leva a indagar: que fatores têm contribuído para a manutenção deste desafio neste período temporal? Um destes fatores pode ser a delimitação do campo da psicologia política, a qual focalizamos neste artigo.
Delimitação da psicologia política: alternativas e dificuldades de configuração do campo
Ao centrarmos-nos na delimitação da psicologia política para pensar o desafio de sua consolidação no Brasil, faz-se possível questionar:
a) Há no país uma delimitação muito estrita da psicologia política e, assim, uma dificuldade para pesquisadores que atuam no Brasil se identificarem com este campo?
b) Ou, diferentemente, há uma escassa delimitação ou mesmo uma delimitação muito ampla que borraria a distinção, por exemplo, entre a psicologia política e a psicologia social crítica que fundamentou a constituição da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)? Neste sentido, a pequena identificação com a psicologia política estaria relacionada à dificuldade de circunscrevê-la.
Ao recorrermos aos editorias e às mensagens da ABPP publicados nos números da RPP observamos diferenciações na delimitação do campo da psicologia política. Se em alguns números verifica-se uma tentativa de maior circunscrição deste campo, de modo geral, as concepções são amplas, sendo apontado em determinados editoriais, inclusive, o afastamento da busca por uma delimitação.
Esta observação sugere que a pequena identificação com a psicologia política pelos pesquisadores mapeados e a dificuldade de inserção deste campo nos Programas de Pós-Graduação e nos cursos de Graduação não estariam envolvidas com uma delimitação estrita da psicologia política. Estariam mais bem relacionadas à escassez ou amplitude em circunscrevê-la, contribuindo negativamente para a compreensão deste campo de conhecimento pelos pesquisadores. Consideração que poderá ser melhor avaliada a partir de estudos posteriores que adotem como estratégias metodológicas, por exemplo, entrevistas com pesquisadores de cursos de graduação e de pós-graduação brasileiros que investigam fenômenos políticos.
Apresentaremos três possibilidades de definição construídas nos editoriais e mensagens da ABPP publicadas na RPP. Antes, entretanto, apontaremos que a diversidade de definições sobre o que é a psicologia política não se restringe ao Brasil, sendo possível observá-la também a nível internacional através da comparação entre posições de autores que atuam fora do país, constituindo-se em um desafio para o campo.
Apontamentos sobre a delimitação da psicologia politica no exterior: Dorna, Sabucedo e Montero
Recorremos a dois autores e a uma autora que têm contribuído para a visibilidade da psicologia política na Europa e na América Latina: Alexandre Dorna, editor da Revista de Psicologia Política francesa (C@hiers de Psychologie Politique); José Manuel Sabucedo Cameselle, pesquisador atuante no campo da psicologia social e da psicologia política na Espanha; Maritza Montero, primeira pesquisadora mulher e de origem latino-americana a presidir a Sociedade Internacional de Psicologia Política (ISPP) (Sandoval, 2004).
De acordo com Dorna (2007), é importante refletirmos não apenas sobre a própria psicologia política como disciplina, pois seus contornos ainda seriam tênues, mas também sobre os limites e as ligações dela com outros campos das ciências humanas. Ressalta que "a psicologia política não é a aplicação da psicologia social ao domínio da política, nem é tão pouco sua filha rebelde, mas antes uma perspectiva autônoma, aguardando uma renovação epistemológica e social que atravesse o nosso tempo e se inscreva na agenda do futuro" (p. 26).
Segundo Dorna (2007), o ressurgimento da psicologia política desde os anos 1980 nos EUA, na América Latina e na Europa, depois de seu desaparecimento no contexto francês após um início promissor no final do século XIX, deve-se à crise da modernidade nos diferentes domínios do conhecimento. Esta crise caracteriza-se pela demonstração do esgotamento do projeto Iluminista através da descoberta pela razão de cada vez mais zonas de incerteza na compreensão da realidade, visto que a proliferação de microteorias tem produzido um aumento exponencial de informações e faz-se ausente um paradigma unificador. Segundo o autor, quanto mais as microteorias se multiplicam, menos dispomos de uma teoria social explicativa da realidade, sendo produzido um efeito perverso: o conhecimento transforma-se em conhecimento de nada, pontual e rapidamente fora de moda. Nesta inexistência de grandes perspectivas, de acordo com Dorna (2007), justifica-se a aposta epistemológica em disciplinas transversais, sendo esta uma das razões de fundo do retorno da psicologia política.
Outra razão, segundo Dorna (2007), é a atualização por diferentes autores (Foucault, Habermas, Touraine) da problematica da questão do sujeito e da subjetividade, ressaltando-se a importância do afeto na compreensão do sujeito e a centralidade do debate sobre antigas noções como democracia, república, cidadania, estado-nação.
De acordo com Dorna (2007), a psicologia política apresenta heterogeneidade teórica e temática, o que dificulta a construção de uma definição. Existe, entretanto, segundo o autor, uma coerência no interior desta heterogeneidade: a elaboração de uma abordagem transversal que leva em conta o processo histórico e cultural. Aspecto, entretanto, como abordaremos abaixo, que não a distinguiria explicitamente da psicologia social crítica brasileira.
Sabucedo, em uma entrevista realizada em 2014, compreende que a psicologia política nasceu não tanto por parte dos psicólogos, mas por parte dos politólogos que sentiram a necessidade de recorrer a teorias psicológicas para explicarem o comportamento do sujeito na vida política. Entretanto, diferente de Dorna (2007), que busca distinguir claramente psicologia política e psicologia social, Sabucedo, ao ser perguntado se a psicologia política seria uma linha de especialização da psicologia social, afirma ser a psicociência cognitiva fundamental à psicologia política e que hoje "os conceitos da psicologia cognitiva básica filtrados pela psicologia social são os que estão sendo utilizados para explicar o comportamento político" (Arias, 2014, p. 177). Desta maneira, podemos entender que a psicologia política teria como base a psicologia e a psicologia social, não sendo ressaltado nesta entrevista uma delimitação explícita entre psicologia política e psicologia social.
Em artigo publicado em 2000, Sabucedo e Rodriguez afirmam que a psicologia social foi uma "disciplina que contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento da psicologia politica" (Sabucedo & Rodriguez, 2000, p. 05, tradução nossa), bem como que a psicologia política é uma disciplina consolidada e reconhecida, sendo a existência de manuais, associações científicas, congressos provas desta consolidação. Neste caso, podemos notar mais claramente a compreensão da psicologia política como uma disciplina autônoma que tem a psicologia social como uma de suas bases. Cabe-nos também ressaltar a justificativa da autonomia a partir de elementos referentes à constituição de uma comunidade científica.
Para os autores, o objeto da psicologia política é "a análise das relações entre processos psicológicos e políticos" (Sabucedo e Rodriguez, 2000, p. 02, tradução nossa), sendo uma disciplina que apresenta uma clara vocação interdisciplinar, pois busca integrar conhecimentos da psicologia e da ciência política a fim de alcançar uma melhor compreensão dos processos e fenômenos políticos. A diversidade temática e a interdisciplinaridade, segundo os autores, proporciona uma heterogeneidade teórica e metodológica no interior da psicologia política, a qual é entendida não como um problema, e sim como um característica estimuladora para a produção de debates e críticas.
Sabucedo e Rodriguez (2000) defendem que, como em qualquer outra área científica, as diferentes perspectivas buscam alcançar hegemonia no interior da disciplina. Neste terreno de disputas, criticam a perspectiva dominante de psicologia política, construída nos EUA, ao conceberem que se trata mais de uma 'psicologia da política' do que de uma "autêntica Psicologia Política" (Sabucedo & Rodriguez, 2000, p. 12, tradução nossa). Isto é, esta perspectiva busca explicar os comportamentos políticos a partir de processos psicológicos concebidos como universais, negligenciando, assim, as condições históricas e socioculturais nas quais os fenômenos políticos emergem.
Montero (2009) afirma que muito da psicologia política existente trata-se de "uma psicologia social orientada para o conhecimento dos fenômenos políticos" (p. 202, tradução nossa). Outra tendência é derivada da psicologia clínica, que busca estudar o caráter mais ou menos patológico de grandes figuras políticas.
Apesar de variações relativas à definição da psicologia politica, segundo Montero (2009), este campo é concebido, a partir da perspectiva tradicional de psicologia política, como uma "psicologia da política", sendo sua função "aplicar a psicologia à compreensão da política" (p. 202, tradução nossa). Tratar-se-ia, portanto, de entender a psicologia política a partir da interação entre dois campos distintos - psicologia e política.
Mais recentemente, segundo Montero (2009), ocorreram questionamentos a esta definição tradicional em razão dela acarretar a compreensão da psicologia política como um ramo da ciencia política ou, até mesmo, na negação da psicologia política, devido alguns autores considerarem que o que há é uma psicologia social da política. Deste modo, segundo a autora, há posições que defendem a necessidade de se desenvolver uma psicologia política propriamente dita (PPPD), como um campo autônomo, que desenvolveria teorias que pudessem ser aplicadas na psicologia e não o contrário.
As teorias desta PPPD deveriam ser feitas em função de aspectos substantivos, conceituais e metodológicos, levando em conta o contexto político, que é o ambito natural da conduta social humana, para gerar princípios psicológicos de caráter geral pancontextuais, que pudessem enriquecer todo o âmbito da psicologia; incluindo nele o político, pois também é objeto da conduta humana (Montero, 2009, p. 203, tradução nossa).
Uma terceira via de compreensao da psicologia política, segundo Montero (2009) pode ser construída a partir da distinção entre espaço público e espaço privado, dos comportamentos dos seres humanos nestes espaços e das consequencias destes comportamentos para a coletividade. A autora ressalta que essa distinção assinala o que se denomina o âmbito do político: "Espaço e tempo que ocorre no espaço público, mas que tem consequencias que podem modificar a esfera privada" (p. 204, tradução nossa). A permeabilidade entre os espaços público e privado, segundo a autora, demonstra o caráter poroso e mutante entre eles, de modo que se a vida pública é a vida política, fenômenos como o poder, a ideologia e a alienação podem se manifestar em ambos os espaços.
Segundo Montero (2009), a partir desta terceira compreensão, a psicologia política é definida da seguinte maneira:"um espaço multidisciplinar que se ocupa de descrever, analisar e explicar os fenomenos relativos à vida pública em função das prescrições sociais geradas para organizar essa vida e dos mecanismos de poder que operam nela, explicitando os recursos comunicativos, persuasivos e de força empregados neste espaço" (p. 204, tradução nossa).
A ocupação consciente do espaço público é entendida por Montero (2009) como uma tarefa politizadora das ações dos indivíduos, de maneira que a relegação da cidadania ao espaço privado significa um modo de ideologização que visa impedir manifestações transformadoras. Deste modo, a atuação anti-ideologizadora é uma forma de ação da psicologia política nesta terceira compreensão, segundo a autora, sendo a psicologia social da libertação, construída na América Latina, uma perspectiva de psicologia política.
Montero (2009) enfatiza a produção latino-americana ao entendê-la como uma alternativa à perspectiva tradicional da psicologia política em razão do que propõe como objetivos para este campo de conhecimento e da reinterpretação de conceitos clássicos. Esta é feita sob uma concepção que considera problemas específicos de realidades específicas, que assume uma posição transformadora e que compreende a política como não reduzida a associações partidárias, ainda que não as descarte.
Trata-se, segundo Montero (2009), de uma psicologia política que tem como base a psicologia social, "mas sua direção, conteúdo e definição são políticas no sentido de capacitar, fortalecer e facilitar a ação transformadora da sociedade em função da igualdade e da justiça social, dar voz aos silenciados e incorporar o saber popular" (p. 206-207, tradução nossa). O que nos chama atenção para uma aproximação desta definição com a ideia de "politização da psicologia", que apontaremos abaixo.
O mapeamento de definições sobre a psicologia política produzido por Montero (2009) indica-nos a presença de uma diversidade de delimitações do campo. Nesta diversidade, a autora posiciona-se nos termos da terceira compreensão proposta. Este posicionamento coaduna-se com a sua concepção de que "Para julgar a pertinência, utilidade e alcance da psicologia política é conveniente em primeiro lugar dizer o que se entende por ela" (Montero, 2009, p. 202, tradução nossa).
Convergindo-nos com esta concepção de Montero (2009), retornamos para a compreensão dos editorias da RPP e das mensagens da ABPP a fim de apresentar os caminhos a partir dos quais a psicologia política é entendida neles.
Caminhos de delimitação da psicologia política brasileira
Podemos encontrar nas Mensagens da ABPP, nos editoriais publicados nos 32 números da RPP e no escopo editorial da revista ao menos três caminhos de delimitação da psicologia política. Inclusive, algumas vezes, apresentam-se cruzados em um mesmo texto. Estes caminhos são os seguintes:
a) Compreensão da Psicologia Política como uma relação entre "Psicologia" e "Política" e, portanto, como uma relação entre dois campos que se articulam e que podem, assim, produzir tanto uma psicologia da política (aplicação de conceitos psicológicos à compreensão da política) como uma polítização da psicologia (psicologia engajada politicamente). No primeiro caso, podemos lembrar a crítica de Sabucedo e Rodriguez (2000) e de Montero (2009) à definição tradicional de psicologia política. Coerente com esta crítica, na RPP observa-se o questionamento à transposição descontextualizada de conceitos psicológicos para a explicação de fenomenos políticos. O segundo caso aproxima-se da psicologia social da libertação, a qual Montero (2009) enfatiza ao apontar para uma psicologia politica latinoamericana.
b) Delimitação da psicologia política a partir da psicologia social. Caminho que se afasta da proposta de Dorna (2007) e se aproxima da concepção de Montero (2009) referente à consideração da psicologia social da libertação como psicologia política.
c) Afirmação da Psicologia Política como um modo de compreensão autônomo dos fenômenos políticos. Caminho que converge com a proposta de Dorna (2007) e de Sabucedo e Rodriguez (2000), bem como com a segunda perspectiva apresentada por Montero (2009).
Quanto ao primeiro caminho, o da relação entre "psicologia" e "política", podemos notá-lo explicitamente no texto de apresentação da Sociedade Brasileira de Psicologia Política, publicado no número 1 da RPP. Neste texo, Camino (2001) concebe a SBPP como "uma nova interlocutora no campo da Psicologia no Brasil" (s/p) e a psicologia política "como uma área da Psicologia que estuda o comportamento político" (s/p).
Entretanto, o autor, ao reconhecer que esta definição é muita ampla, propõe distinguir "psicologia política" e "psicologia da política" a fim de melhor delimitar a primeira.
Na primeira expressão [psicologia política] indica-se que a psicologia não se em contra à margem da política; afirma-se que a própria Psicologia contém implícita ou explicitamente pressupostos ideológicos. Pelo contrário, na expressão Psicologia da Política, considera-se ambos termos como independentes e/ou diferentes; significa uma disciplina que consiste na aplicação do conhecimento psicológico ao estudo dos fenômenos políticos. (Camino, 2001, s/p).
Apesar de Camino (2001) considerar útil esta distinção para situar diferentes abordagens teóricas presentes no campo da psicologia política, defende que, se radicalizada, ela pode levarnos a extremos. "No primeiro caso, corre-se o risco de "politizar a psicologia", 'ou seja, de transformá-la em puro instrumento da luta política" (Camino, 2001, s/p). Neste sentido, enfatiza-se as opções políticas dos psicólogos "em detrimento do desenvolvimento teórico e analítico do conhecimento científico" (s/p).
"No segundo caso, 'psicologiza-se' a política, ao substituir-se dimensões políticas por conceitos e variáveis psicológicas consideradas como universais e totalmente descontexualizadas das circunstâncias históricas e políticas" (Camino, 2001, s/p).
Ainda que realize esta diferenciação, de acordo com Camino (2001), naquele momento de construção da SBPP não era útil afirmar uma definição a priori do que se entendia por Psicologia Política. Ao invés disso, considera que se deveria "construir um campo democrático e competente de debates que [permitisse] estabelecer um processo fecundo de debate dos significados possíveis da Psicologia Política.". (s/p)
Contudo, Camino (2001) salienta que isso não significava a SBPP se apresentar como neutra, pois os pesquisadores do GT da ANPEPP que a fundaram, ainda que não apresentassem um referencial teórico comum, concebiam "a Psicologia Política como o estudo dos aspectos subjetivos dos fenômenos políticos, postura que tem em conta que os conceitos utilizados fazem parte, de alguma maneira da arena política"(s/p). Camino (2001) critica o reducionismo e o individualismo implícito em análises que partiam de conceitos psicológicos para investigar o comportamento político dos indivíduos.
Ainda em relação a este primeiro caminho de delimitação da psicologia política, podemos localizar o texto da linha editorial da RPP, presente em diferentes números da revista. Neste texto afirma-se que a RPP é
Um periódico de estudos das problemáticas no campo da Psicologia Política que tem como epicentro a reflexão sobre o comportamento político nas sociedades com temporâneas. O ponto de intersecção entre estas duas áreas científicas - Psicologia e Política - tem sido a preocupação com a construção de um universo de debate no qual nem as condições objetivas nem as subjetivas estejam ausentes. (RPP, 2001, p. 06).
Esta concepção pautada na relação entre "psicologia" e "política" também pode ser observada em editoriais da RPP. Por exemplo,os artigos publicados no número 3 da RPP são apresentados no editorial "como resultados de pesquisa na interface de estudos sobre fenômenos políticos e a psicologia" (Prado & Sandoval, 2002, p. 11). O campo da psicologia política é entendido como "uma inquestionável contribuição à psicologia como ciência e como prática interventiva na esfera das relações de poder e dos conflitos sociais" (p. 13).
O segundo caminho de compreensão da psicologia política implica considerar a polêmica sobre a relação entre a psicologia política e a psicologia social crítica brasileiras. Este caminho se cruza, em alguns textos, com a concepção de politização da psicologia. Um editorial interessante de ser apontado é o publicado no número 2 da RPP. Neste editorial afirma-se que uma polêmica presente naquele momento residia "no debate entre a Psicologia Social Crítica e a Psicologia Política." (Prado & Sandoval, 2001, p. 10). Remetendo-se a um artigo produzido por Maria de Fátima Quintal de Freitas, os editores da RPP a época afirmam que a posição da autora parecia ser que "a Psicologia Social Crítica, especialmente aquela que passou a ser denominada de Comunitária, pelas suas praticas em comunidades e com grupos alijados das trocas sociais dominantes, é uma forma de Psicologia Política." (2001, p. 10).
Para os editores, "Esta é uma posição que corrobora, em parte, a posição de alguns pensadores e pesquisadores latino-americanos; posição que dá ênfase na 'politização do fazer psicológico' mas não necessariamente na apreensão do comportamento político como objeto de interpelação" (Prado & Sandoval, 2001, p. 10).
Nesta compreensão se se aponta para posições distintas no campo no que tange à relação entre a psicologia política e a psicologia social, no editorial do número 3 da RPP observa-se um posicionamento dos editores que denota a psicologia social como a lente a partir da qual se constitui a psicologia política. Afirma-se que a RPP "preocupa-se em trazer ao debate experiências bem sucedidas do processo de formação de pesquisadores interessados no campo de reflexão sobre os fenômenos políticos à luz da psicologia social" (Prado & Sandoval, 2002, p. 11).
No número 5, na Mensagem da ABPP, ressalta-se a relação entre a ABRAPSO e a ABPP, afirmando-se que estas associações científicas "iniciaram no Brasil a virada do foco da psicologia tradicional, marcadamente conservador e alienado da realidade nacional, ao enfoque que privilegia a aplicação de nossos conhecimentos em psicologia social e política para procurar soluções aos grandes problemas nacionais" (Sandoval, 2003, p. 07).
O editorial do número 6 da RPP reforça a vinculação entre psicologia social e psicologia política ao afirmar que "Esforços coletivos (...) foram mobilizados para que a RPP surgisse como expressão de um acúmulo de conhecimentos produzidos no interior da psicologia social, na sua expressão mais centradamente política" (Prado & Sandoval, 2003, p. 195). Neste número foi publicado um artigo de Maritza Montero, autora caracterizada no editorial como uma pesquisadora que "tem trabalhado com brasileiros e latino-americanos na consolidação de um campo político da Psicologia Social desde meados de 1970" (p. 196).
Na Mensagem da ABPP publicada em 2010, no número 19 da RPP, retoma-se a polêmica relativa à relação entre psicologia política e psicologia social, bem como ao debate entre "psicologia" e "política":
O nascimento da ABPP não se deu sem polêmicas, já que é bastante complexa a tarefa de delimitar o que seria então a Psicologia Política no campo de produção da Psicologia Social no Brasil. Muitas questões emergem deste debate que merecem nossa atenção: seria uma psicologia engajada politicamente, seria uma inserção da psicologia nos estudos da política ou seu inverso? (Prado, 2010, p. 08).
No terceiro caminho de delimitação da psicologia política, referente à concepção desta como uma ciência autônoma, somos colocados diante da tentativa de afastamento dos dois caminhos anteriores.
No editorial do número 32 da RPP, o editor, ao apontar que se trata de "um número marcado pelo debate em torno a temas que estão relacionados ao político e a política" (Silva, 2015, p. 11), destaca que "esses temas não necessariamente são próprios da psicologia política, mas mais bem de uma psicologia da política ou mesmo de uma política da psicologia" (p. 11). Contudo, considera que são temas relevantes para a construção de um campo psicopolítico.
Segundo Silva (2015), temas relativos à luta por direitos e à "construção do humano" têm "sido a tônica de uma grande parte do que tem sido publicado na Revista Psicologia Política" (p. 11), apontando para uma tendência no campo que apresenta como ponto comum "uma visão de ciência cônscia de seu papel social e político para a transformação da realidade social" (p. 12). Em torno desta concepção de ciência, Silva (2015) aproxima a psicologia política da psicologia social e da psicologia social comunitária, considerando a atuação de Martin-Baró contra a ditadura salvadorenha um marco na psicologia política latino-americana comprometida com a luta pela democracia e por justiça social.
Apesar desta aproximação, observa-se também neste editorial uma construção discursiva da psicologia política como um campo autônomo que teria como fontes originárias a psicologia social e as ciências políticas, posição semelhante ao observado em Sabucedo e Rodriguez (2000). Neste sentido, Silva (2015) justifica a publicação na RPP de dois artigos dedicados à análise da psicologia social da seguinte maneira: "A Psicologia Social foi, junto com as ciências políticas, uma das fontes que deu origem à Psicologia Política. Portanto entender os espaços de ação e de desenvolvimento da Psicologia Social é relevante para nossa compreensão de um determinado modo de ser da Psicologia Política." (p. 12).
A autonomia da psicologia política na RPP articula-se, principalmente, com a noção da interdisciplinaridade como constitutiva deste campo, característica também presente nas compreensões de psicologia política propostas por Dorna (2007), por Sabucedo e Rodriguez (2000) e por Montero (2009).
Na mensagem da ABPP publicada no número 5 da RPP, ainda que se considera que "a história da pesquisa em Psicologia Política no Brasil, desde seu início, esteve imbrincada com a trajetória da ABRAPSO" (Sandoval, 2003, p. 06), afirma-se que a RPP "tem se mostrado um importante veículo para a implantação no país de uma nova área nas ciências humanas" (p. 07), a psicologia política. Compreende-se que a psicologia política caracteriza-se por ser eminentemente interdisciplinar, de modo que a RPP conta "com a colaboração de pesquisadores vindos das diversas disciplinas tradicionais tais como a psicologia social, a sociologia, a ciencia política, a antropologia social, a filosofia e a psicologia." (p. 07).
Na Mensagem da ABPP publicada no número 9 da RPP reafirma-se a relação entre a ABPP e a ABRAPSO, entretanto, ressalta-se que a psicologia política não se situa "no interior da Psicologia Social, mas na encruzilhada das Ciências Humanas" (Sandoval, 2005, p. 10).
A interdisciplinaridade continua a ser o elemento que indica a autonomia da psicologia política em outros números da RPP. No editorial publicado no número 19, Silva e Zonta (2010) ressaltam que a interdisciplinaridade fez-se presente na emergência da psicologia política no início do século XX, recordando os 100 anos da publicação do livro Psicologia Política e Defesa Social, publicado por Le Bon. E no número 21, concebem que a psicologia política latino-americana é um campo que "se constitui interdisciplinarmente, e no qual o encontro de saberes disciplinares possibilita a produção de novos olhares, de novas formas compreensivas dos fenômenos coletivos" (Silva & Zonta, 2011, s/p).
Cabe-nos chamar atenção também para o editorial do número 24 da RPP, na medida em que além de se ressaltar a interdisciplinaridade na delimitação da psicologia política como um campo autônomo, afirma-se uma distinção com a psicologia social:
Nossa revista não quer ser apenas um espaço de produção de texto que são política e socialmente comprometidos. Não se trata aqui de publicarmos artigos de uma psicologia comprometida politicamente, pois isso não faz do manuscrito um manuscrito de Psicologia Política.
Ainda que estes textos possam ser muito bons, ter discussões demasiado interessantes, eles não deveriam encontrar abrigo neste periódico, pois, do contrário, nosso veículo de informação científica se tornaria um periódico genérico ou quem sabe de Psicologia Social. (Silva, 2012b, p. 189-190).
Outro editorial a ser salientado é o publicado no número 28 da RPP, em conjunto com a Associação Ibero-Latino-Americana de Psicologia Política (AILPP). Neste editorial, diante do apontamento de que autores de diferentes disciplinas publicaram na revista em 2013, afirma-se: "Indubitavelmente a Psicologia Política passou o limite compreensivo que a associava a uma subdisciplina dentro da Psicologia Social e passou a ser percebida como um interstício disciplinar" (Silva & Pezzia, 2013, p. 417-418).
Ressaltando-se este caráter interdisciplinar, no editorial publicado no número 31 concebe-se que com a psicologia política
nasce um campo de saber que pode convergir diferentes modos de observar e lidar com as complexas questões com que a sociedade hodierna se defronta. Seu caráter interdisciplinar aproxima perspectivas de estudar e de entender o mundo que em uma perspectiva disciplinar encontram-se divididos, fracionados e fazem com que o mundo seja visto com um olhar distorcido. (Silva, 2014, p. 445).
Um problema da delimitação da autonomia da psicologia política pela interdisciplinaridade é que, como se observa no editorial publicado no número 7 da RPP, "A psicologia política, assim como a psicologia social e outras disciplinas, deve ser entendida como uma área de fronteiras. Ou seja, ela é produzida não a partir de um campo específico, mas toma como base, temáticas e campos interdisciplinares, híbridos e heterogêneos." (Prado & Sandoval, 2004, p. 11). Assim, nesta compreensão, o caráter interdisciplinar não seria um atributo que distinguiria a psicologia política da psicologia social, retornando ao questionamento relativo à distinção entre estes campos de conhecimento.
Considerações finais: lacunas para a delimitação ou a não necessidade de uma delimitação?
Coadunamos com a posição presente na Mensagem da ABPP publicada no primeiro número da RPP, também observada em outros números, que a revista seja um espaço de diálogo e de explicitação de polêmicas internas. Bem como compartilhamos da compreensão presente no editorial do número 2 da RPP, "que um campo científico se constitui a partir de seu fazer e dos seus discursos construídos cientificamente" (Prado & Sandoval, 2001, p. 10), devendo a RPP constituir-se num espaço de debate.
Neste sentido, também nos colocamos junto à Sabucedo e Rodriguez (2000) no que tange à concepção da ciência como uma construção social e, portanto, que qualquer campo cientifico, não sendo a psicologia política uma exceção, encontra-se marcado por disputas hegemônicas referentes a sua delimitação. O que nos leva a atentar para as continuidades e descontinuidades na produção de um campo de conhecimento.
Por outro lado, ressaltando a colocação no número 1 da RPP que a ABPP não se situava neutra nas polêmicas suscitadas no campo (Camino, 2001) e a consideração de Montero (2009) da importância de se definir o que se entende como psicologia política para se refletir sobre sua pertinência, utilidade e alcance parece-nos importante que a ABPP posicione-se em relação ao caminho no qual se localiza nas contingências históricas do presente.
No momento de fundação da Associação podia não ser útil afirmar uma delimitação da psicologia política, entretanto, após 18 anos de existência da ABPP, consideramos que o posicionamento em torno de um caminho pode ser uma forma de contribuir para a consolidação da psicologia política no país.
Afirmarmos esta compreensão ao julgar falsa a dicotomia entre uma diversidade de delimitações possíveis e a afirmação em torno de uma perspectiva de psicologia política. É falsa por ao menos duas razões: A) se a ciência é entendida como construção social, o posicionamento em torno de uma delimitação não significa a única concepção possível de psicologia política. Trata-se de reconhecer que a disputa hegemônica entre as diferentes posições é essencial para a consolidação do campo em termos da produção de identificações entre pesquisadores. B) a delimitação de uma concepção pela ABPP, diferente de significar a impossibilidade da presença de outras posições na associação e na RPP, pode ser construída como potencializadora de debates entre estas posições. A ausência de uma delimitação clara, ao contrário, pode fazer com que as diversas posições sejam entendidas apenas como diferenças, dificultando o debate sobre os pressupostos antagônicos que as fundamentam e, assim, sobre as suas implicações para a compreensão dos fenômenos políticos.
Assim, afirmamo-nos favoráveis a um posicionamento da ABPP, no sentido em que poderia contribuir para a consolidação do campo da psicologia política no Brasil e, ao mesmo tempo, ressaltamos a importância da heterogeneidade, mas entendida não como dispersão de possibilidades, e sim como produzida num terreno científico de disputas discursivas.
Não tivemos neste artigo a pretensão de definir o caminho a ser seguido pela psicologia política brasileira, pois entendemos que este deve ser fruto de articulações entre aquelas e aqueles que atualmente constroem a ABPP e se identificam com a psicologia política no país. Para finalizar, gostaríamos, entretanto, de ressaltar dois apontamentos.
Primeiro apontamento: o primeiro caminho abordado nos textos da RPP, caracterizado pela compreensão da psicologia política como uma relação entre "psicologia" e "política", pode nos levar a circunscrever a psicologia política à psicologia.
Este risco de redução da psicologia política à psicologia é observado em duas Mensagens da ABPP, publicadas nos números 12 e 14 da RPP. No número 12 aponta-se para a ausência de pesquisadores de outros campos de saber na maioria das mesas redondas do IV Simpósio da ABPP (Stralen, 2006). No número 14 afirma-se que se vivia um "relativo isolamento da psicologia política brasileira no campo da psicologia" (Stralen, 2007, p. 250). Após mais de dez anos da publicação destas Mensagens a pergunta sobre o risco de redução da psicologia política à psicologia ainda é possível se fazer presente.
Também remetendo-se a este risco, cabe-nos ressaltar, inclusive, que foi em torno da compreensão da psicologia política a partir da psicologia social e da psicologia que os procedimentos metodológicos que orientaram o mapeamento de pesquisadores que deu origem a indagação inicial deste texto foram construídos, uma vez que selecionamos pesquisadores vinculados a PPG em Psicologia Social ou em Psicologia. Escolha convergente: a) com a consideração que a ABPP fundou-se a partir de um grupo de pesquisadores que se reuniam em torno de um GT de uma associação de pós-graduação em psicologia (a ANPEPP); b) com essas considerações presentes em Mensagens da RPP sobre o isolamento da psicologia política brasileira na psicologia. Mapeamentos de pesquisadores vinculados a Programas de Pós-Graduação de outras áreas - como sociologia e ciência política - é uma tarefa interessante de ser realizada.
Segundo apontamento: se a interdisciplinaridade converge com o segundo e o terceiro caminhos abordados, estes caminhos, da maneira que aparecem nos documentos analisados, repõem a questão sobre a diferença entre a psicologia política brasileira e a psicologia social crítica que fundamentou a ABRAPSO. A não clareza desta distinção pode ser um dos elementos que contribuem para que pesquisadoras que analisam fenômenos políticos apenas identifiquem a psicologia social como área de atuação, na medida em que a psicologia política brasileira confundiria-se com a psicologia social crítica e esta última e a ABRAPSO apresentam maior visibilidade que a psicologia política e que a ABPP.
Ressaltamos que não necessariamente se trata de contrapor psicologia social crítica e psicologia política, mas de apresentar deslocamentos entre estes campos, de modo a se considerar a razão de existência da psicologia política no país.
Estes dois apontamentos, por um lado, encaminha-nos para a compreensão da importância de uma delimitação clara da psicologia política brasileira a partir da apresentação de possibilidades das quais a ABPP deveria se distanciar. Por outro lado, deixam em aberto o que significa ser a Psicologia Política um campo autônomo de produção de conhecimento no Brasil.
Reafirmamos que a afirmação de uma delimitação pode contribuir para que mais e mais pesquisadores e estudantes se identifiquem com a psicologia política e se integrem a este campo não apenas no momento dos simpósios da ABPP e através da submissão de artigos na RPP, mas também de maneira a construí-lo cotidianamente nas graduações e pós-graduações brasileiras.
Nos últimos anos se podemos dizer que houve um fortalecimento dos vínculos da psicologia política brasileira com grupos de pesquisa de outros países latino-americanos - o que pode ser exemplificado pela fundação da Associação Ibero-Latinoamericana de Psicologia Política (AILPP), em 2011 -, permanecemos com o desafio de fortalecimento deste campo de conhecimento no Brasil. O que não significa, necessariamente, uma condição produtora de desencantamento, pois também pode ser lida, e este é o objetivo deste artigo, como um mote para aqueles que reconhecem a psicologia política como um campo de conhecimento busquem ampliar identificações em torno dele e disputar os modos de significá-lo.
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Submetido em: 15/06/2017
Aceito em: 02/09/2018
1 Este artigo refere-se à discussão realizada no IX Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, em outubro de 2016, na cidade de Natal/RN. Devido a atraso na publicação da RPP, até aquele momento a última públicação havia sido a de número 32, referente ao ano 2015.
2 Os termos-chave utilizados na pesquisa foram decorrentes de uma pesquisa anterior (Costa, 2014), na qual foi construído, a partir de um levantamento dos títulos e/ou palavras-chave dos artigos presentes em todos os números publicados entre 1986 e 2011 da revista Psicologia & Sociedade, uma lista de termos que se remetiam diretamente à dinâmica política.
3 Não tivemos acesso em papel ou online ao número 1 do volume 1 da RPP. Devido a isso, não lemos o editorial deste número e acessamos a Mensagem da ABPP através do site da ABPP (https://psicologiapolitica.org.br/sobre-a-abpp/).
4 Os 13 números nos quais não se observou publicação de mensagens da ABPP foram: 11, 13, 17, 18, 20. 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 32.