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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo MayAug. 2018

 

ARTIGOS

 

Pesquisa-intervenção, políticas públicas e movimentos sociais: uma experiência junto à população em situação de rua

 

Intervention research, public policies and social movements: an experience with the homeless population

 

Investigación-intervención, políticas públicas y movimientos sociales: una experiencia junto a personas sin hogar

 

Recherche intervention, politiques publiques et mouvements sociaux: une expérience avec la population sans abri

 

 

Ana Karenina Arraes AmorimI; Maria Teresa NobreII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). akarraes@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). teresa-nobre@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma experiência de pesquisa-intervenção que teve como objetivos conhecer a população adulta em situação de rua; mapear e conhecer o funcionamento das políticas públicas para esta população; identificar as violações de direitos humanos e conhecer o cotidiano destas pessoas. Com base nos marcos teórico-metodológicos da Análise Institucional e da Cartografia, o trabalho de campo considerou diferentes estratégias metodológicas em cenários institucionais e na cidade, que geraram dados sobre as principais dificuldades vividas, itinerários institucionais e estratégias desenvolvidas por estas pessoas em várias políticas públicas, identificando e colocando em análise as linhas duras (instituído) e as linhas flexíveis (instituinte) nas relações com o Estado. A pesquisa-intervenção promoveu visibilidade às principais questões vividas por este segmento vulnerável, bem como fomentou sua organização política e empoderamento, com vistas à garantia de direitos.

Palavras-chaves: população em situação de rua; pesquisa participativa; análise institucional; direitos humanos; políticas públicas.


ABSTRACT

This article presents a research-intervention experience that had as objectives to know the adult population in homeless situation; map and know the operation of public policies for this population; to identify the violations of human rights and to know the daily life of these people. Based on the theoreticalmethodological frameworks, Institutional Analysis and Cartography, the field work considered different methodological strategies in institutional settings and in the city that generated data about the main difficulties, institutional itineraries and strategies developed by these people in the various public policies, identifying and analyzing the hard lines (instituted) and flexible lines (institute) in relations with the State. The intervention research promoted visibility of the main issues faced by this vulnerable segment, as well as fostered its political organization and empowerment with a view to guaranteeing rights.

Keywords: homeless population; Participant research; Institutional analysis; human rights; public policy


RESUMEN

Este artículo presenta una experiéncia de investigaciónintervención que intentó conocer la población adulta en situación de calle; mapear y conocer el funcionamiento de las políticas públicas para esta población; identificar las violaciones de derechos humanos y conocer el cotidiano de estas personas. Con base en los marcos teórico-metodológicos del Análisis Institucional y Cartografía, el trabajo de campo consideró diferentes estrategias metodológicas en escenarios institucionales y en la ciudad que generaron dados sobre las principales dificultades, itinerarios institucionales y estrategias desarrolladas por estas personas en varias políticas públicas, identificando y poniendo en análisis las líneas duras (instituido) y las líneas flexibles (instituyente) en las relaciones con el Estado. La investigaciónintervención promovió visibilidad las principales cuestiones vividas por este segmento vulnerable, así como fomentó su organización política y empoderamiento con miras a garantía de derechos.

Palabras clave: personas sin hogar; Investigación participativa; Análisis institucional; derechos humanos; políticas públicas.


RÉSUMÉ

Cet article présente une expérience de recherche-intervention visant à connaître la population adulte sans abri, à cartographier et à connaître le fonctionnement des politiques publiques en faveur de cette population. Elle vise également à découvrir les violations des droits de l'homme et à connaître la vie quotidienne de ces personnes. Basé sur les cadres théoriques et méthodologiques de l'analyse institutionnelle et de la cartographie, le travail empirique a examiné différentes stratégies méthodologiques dans les contextes institutionnels et dans la ville. Ceux-ci ont généré des données sur les principales difficultés rencontrées, les itinéraires institutionnels et les stratégies développées par ces personnes dans différentes politiques publiques, en identifiant et en analysant les lignes rigides (instituées) et flexibles (institut) dans les relations avec l'État. La recherche-intervention a favorisé la visibilité des principaux problèmes rencontrés par ce segment vulnérable, ainsi que son organisation politique et son autonomisation en vue de garantir des droits.

Mots-clés: sans abri ; recherche participative; analyse institutionnelle; droits de l'homme; politiques publiques.


 

 

Introdução: O Desafio da Pesquisa

A presença de pessoas em situação de rua no Brasil remonta a períodos históricos longínquos, cuja frequência varia em fluxos de expansão e retração relacionados a períodos de maiores ou menores crises econômicas e sociais. Historicamente, o cuidado a estas pessoas esteve a cargo da filantropia e até o final do século XX pode-se constatar apenas algumas raras iniciativas na agenda de governos municipais, voltadas à proteção e inclusão social de pessoas em situação de rua (Brasil, 2008). Vistas como vítimas que demandavam compaixão através de donativos ou ajudas pontuais, por um lado, ou como vagabundas e perigosas por outro, tornaram-se, nestes casos, alvo de discriminação e exclusão, práticas recorrentes que contaram sempre com o uso da violência policial ou civil. O conhecido Massacre da Praça da Sé, em São Paulo, no dia 19 de agosto de 2004, é o evento que dá visibilidade a estas práticas contra pessoas consideradas descartáveis e apenas visibilizadas porque indesejáveis. Nele, sete pessoas morreram. Policiais e seguranças particulares foram denunciados, mas a impunidade prevaleceu (Zanotto, 2015), produzindo como resposta uma resistência ativa e articulada que resultou na criação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que definiu o 19 de agosto como Dia de Luta, cuja pauta central é a cidadania e o combate à impunidade.

Inicia-se, assim, um processo de reivindicação de direitos junto ao Governo Federal que em 2005 passa a ter no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) seu principal interlocutor. Como efeito, o MDS realizou, entre 2007 e 2008, uma pesquisa nacional que abrangeu 71 cidades brasileiras, sendo 23 capitais e 48 outros municípios com mais de 300 mil habitantes. A pesquisa pretendeu traçar o perfil socioeconômico da população em situação de rua, que apontou a existência de aproximadamente 50 mil adultos com mais de 18 anos nas cidades investigadas, sem contabilizar crianças e adolescentes (Brasil, 2015).

Como resultado da mobilização social que envolveu esta e outras ações do MDS e que teve como principal protagonista lideranças e parceiros do MNPR, o Governo Federal publicou o Decreto-Lei 7.053/09, em 2009, que instituiu a Política Nacional para População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, com definição de princípios, diretrizes e objetivos voltados à garantia de direitos fundamentais para este segmento populacional a serem institucionalizados nos âmbitos estaduais e municipais (Brasil, 2009). Dentre estes, destacam-se: o acesso amplo e simplificado às políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda; o acesso aos benefícios previdenciários, assistenciais e aos programas de transferência de renda; a implementação de centros de referência especializados no âmbito da proteção social especial do sistema único de assistência social; a disponibilização de programas de qualificação profissional; a instituição de um comitê intersetorial de acompanhamento e monitoramento da política nacional para a população em situação de rua.

Na cidade onde desenvolvemos a experiência, foram implantados apenas três serviços públicos de atendimento a pessoas em situação de rua, a partir de 2011: três equipes de Consultório na Rua (ligados à rede de Atenção Básica do Sistema Único de Saúde -SUS), um Albergue Municipal para acolhimento noturno e um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Centro Pop), ambos vinculados à rede socioassistencial do Sistema Único de Assistência Social - SUAS. Entretanto, apesar de serem formados por equipes multiprofissionais como determina a legislação, o que se observa é que o atendimento a este público, com demandas graves e que devem ser atendidas pela articulação intersetorial entre sistemas e serviços de várias áreas, continua insuficiente e pouco resolutivo. Além disso, observamos a existência de muitos preconceitos e estigmatizações em relação às pessoas que são usuárias desses serviços. Podemos tomar como analisador 1 a presença diária e armada da Guarda Municipal na frente dos serviços socioassistenciais a pedido dos profissionais que se sentiam ameaçados pelos usuários, considerados "potencialmente perigosos". Muitos destes reclamam de regras rígidas, suspensões e punições arbitrárias, barreiras de acesso e negligência no atendimento. A situação, porém, não é exceção no nosso estado, sendo frequentes problemas semelhantes em outros estados e municípios brasileiros (Moura Jr., Ximenes & Sarriera, 2013; Swoboda, 2015).

Foi este o quadro com o qual nos deparamos como docentes e pesquisadoras de uma universidade pública, quando passamos a assumir a coordenação de projetos de pesquisa e extensão e a supervisão de estágios curriculares que tinham como campo de atuação o Centro de Referência em Direitos Humanos daquela universidade (CRDH), implantado em 2011, através de convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Tratava-se de um serviço de porta aberta à sociedade, formado por uma equipe multidisciplinar, com psicólogos, assistentes sociais, advogados, professores e professoras dos departamentos de Psicologia, Serviço Social e Educação que ali realizavam trabalhos de pesquisa, ensino e extensão. A equipe técnica atuava atendendo preferencialmente sujeitos coletivos e movimentos sociais, com demandas referentes às principais situações de violação de direitos recebidas por demanda espontânea, pelo Disque 100 (dispositivo de denúncia criado pela Política Nacional de Direitos Humanos) ou em ações itinerantes na cidade e em municípios vizinhos. Entre suas ações estava a de assessorar o núcleo estadual do Movimento da População de Rua (MNPR), nas questões de organização política e de atender pessoas em situação de rua que tinham direitos violados, inclusive pelos próprios serviços de saúde e assistência que compunham a rede especializada no atendimento desta população.

Nesse contexto havia uma encomenda do MNPR para a realização de um censo, que ampliasse a pesquisa realizada pelo MDS, que contabilizou na capital do estado apenas 223 adultos em situação de rua (Brasil, 2008), pois acreditam ser este número muito maior. Além disso, consideravam que outras questões referentes às condições de vida na rua, os itinerários institucionais e o quadro de violação de direitos humanos, não tinham sido investigados nesta pesquisa. Para o MNPR conhecer essa realidade fazia-se necessário para subsidiar a construção de uma política estadual e municipal para a população de rua e para ampliar o debate público sobre seus direitos. Para nós, que entendíamos que nossa função era assessorar e potencializar o movimento social, fomentar o protagonismo e autonomia das pessoas e contribuir com a formação de futuros profissionais para a atuação junto a grupos vulneráveis, estava posto um novo desafio, que encaramos a partir da perspectiva teórico-metodológica da pesquisa-intervenção na sua proposição de "transformar para conhecer" (Costa & Coimbra, 2008).

Analisada a encomenda e as demandas do MNPR, bem como as denúncias cotidianas recebidas pelo CRDH, desde o não atendimento ou mal atendimento em serviços públicos até a violência policial, institucional e interrelacional em suas diversas formas, afirmamos a indissociabilidade entre pesquisa-ensino-extensão, colocando em análise também as nossas próprias demandas como docentes-pesquisadoras: promover a aproximação de estudantes (de psicologia, serviço social, história e direito) dos contextos e histórias de vida dessas pessoas e suas significações a partir da vivência de rua, sensibilizando-os e mobilizando-os para o compromisso social da academia frente à garantia de direitos humanos fundamentais.

A pesquisa teve como objetivos: conhecer a população em situação de rua do ponto de vista psicossocial e os seus itinerários institucionais; mapear e conhecer o funcionamento dos serviços públicos destinados a população adulta em situação de rua; identificar as violações de direitos que essa população sofre e conhecer histórias de vidas e narrativas sobre seu cotidiano. Para tanto, foi preciso desenvolver a disposição de ocupar o lugar de quem está ao lado, acompanhando os atores envolvidos na construção das possibilidades de viver num dado contexto e experimentando com estes as angústias, os impasses, os desafios, as impotências, as potências e os encantamentos. Ou seja, reconhecemos que para conhecer intervindo é preciso ocupar o "lugar do mestiço" (Serres, 1993), o lugar do "entre mundos" na realidade das vidas e instituições envolvidas.

 

Entre Vida e Intervenção: Modos de Fazer Pesquisa

Inspirados na Análise Institucional, privilegiamos a "pesquisa em situação", que tem como foco um evento social do qual o investigador participa no momento da sua ocorrência, ou seja, trata-se de uma situação real, vivida no momento presente e propensa a uma análise coletiva do que é evidenciado pelo campo (Lourau, 1993). Esta participação se deu por meio de observação participante, que se caracteriza pelo estabelecimento de relações intensas entre pesquisador e sujeito no campo, durante as quais experiências e atividades são compartilhadas. Através da "observação ao vivo", conversas informais, entrevistas e participação ativa nos acontecimentos do campo, chega-se a adquirir um "conhecimento de membro" do grupo estudado (Lapassade, 2005). Os encontros foram registrados em diários de campo ou memórias de reuniões, com registros fotográficos de eventos e ações que constituíram um banco de dados, desta e de outras pesquisas e projetos. No trabalho de campo da pesquisa-intervenção privilegiamos os seguintes procedimentos metodológicos:

1) Aplicação de questionários sistematizados, que seguiram o modelo da pesquisa nacional sobre população em situação de rua (Brasil, 2008), com acréscimo de algumas questões, de acordo com a realidade local, para construção do perfil psicossocial e histórias de vida. Para tanto, realizamos uma busca ativa e visitas aos pontos de concentração de pessoas em situação de rua. Identificamos uma maior presença dessas pessoas na Zona Leste da cidade, onde escolhemos duas praças para aplicação dos questionários e entrevistas. Em uma delas havia a distribuição semanal de um café da manhã por grupos religiosos. A mesma situação deu-se na Zona Sul, durante a distribuição de outro café da manhã semanal, promovido por uma igreja evangélica. O terceiro ponto foi um canteiro, em frente à rodoviária, na Zona Oeste. A participação dos sujeitos foi voluntária e o acesso a eles obedeceu ao critério de aproximação do campo através da participação ativa dos/as pesquisadores/as em atividades desenvolvidas no local ou de conversas informais iniciais, que favoreceram o vínculo, a confiança e a troca.

2) Acompanhamento das rodas de conversa, oficinas temáticas e de eventos de formação em direitos humanos promovidos pelo CRDH, cujas pautas giravam em torno das experiências de viver nas ruas, relação com os equipamentos das políticas públicas, situações de risco e vulnerabilidade e organização da luta política, na construção de estratégias para o encaminhamento de reivindicações e demandas dirigidas ao Estado. Foi privilegiada a participação nas reuniões semanais do MNPR, com a função de assessorar este movimento social e registrar dados relevantes para as investigações em curso. Criou-se assim, o dispositivo da assembleia geral (Lourau, 1993), não como evento pontual, mas como espaço permanente de transversalização das relações institucionais de poder, dos enunciados, das histórias, dos desejos, que produziam outras possibilidades de entendimentos e sinalizavam, ora conquistas, ora recrudescimentos, num movimento entre instituído-instituinte, nos seus avanços e retrocessos. A intenção era criar um espaço coletivo de discussão sobre os problemas identificados, fomentando o enunciado do "não dito" institucional (Lourau, 2004a) de modo a fazer circular a palavra no espaço público em busca de alternativas coletivas ao que era tematizado.

Assumimos, assim, a não dicotomia entre sujeito e objeto, buscando superar a polaridade entre pesquisadores e participantes, considerando que se tratava de um processo de coautoria na construção do conhecimento, desconstruindo lados opostos entre quem define objetivos e metodologia e quem fornece informações. Esta atitude de pesquisa radicaliza a ideia de interferência na relação sujeito/objeto, desnaturalizando aquilo que está instituído, sobretudo as assimetrias no exercício de poder que o lugar de pesquisador/especialista imprime na relação com o campo, como vemos nos depoimentos abaixo, registrados em diários de campo durante reuniões semanais e seminários do

MNPR:

Quando cheguei à reunião percebi que havia mais estudantes que pessoas do Movimento, pois deles só haviam quatro: I., C., E. e V., que foi, mesmo doente. Houve uma discussão sobre não tirar a autonomia do pessoal da Pop Rua. C. dizia que devemos deixar que eles falem e deixar que eles façam, apoiando-os e auxiliando-os, mas jamais fazendo por eles. O pessoal da pop rua defendeu, ainda, que a fala é uma terapia para a alma; que falar é soltar o grito que está preso por tanta opressão. (Reunião semanal do MNPR. Registro em diário de campo - Bolsista de pesquisa)

Foram realizadas diversas ações capazes de fomentar a autonomia e protagonismo da Pop Rua, construção de vínculos e de cooperatividade do coletivo. Dificuldades se apresentaram diante da experiência nova, individuais e coletivas, pois é uma vivência na qual se compreende fazendo. Durante os processos de decisão, diversas vezes houve conflitos e os mesmos foram solucionados através da mediação dos integrantes dos projetos e de apoiadores do movimento. (Fragmento de Relatório - Bolsista de projeto de extensão)

Esses registros mostram a dimensão institucional como lógicas que definem pautas e orientam práticas: algumas tendem à reprodução do instituído, outras à produção do novo (Lourau, 2004a). Da maneira como nos implicamos com estas forças presentes nas instituições, abrem-se as possibilidades para a mudança (a deflagração de processos instituintes) ou para a conservação (a cristalização do instituído). Estar atentos a esses sinais e vivências no campo foi o desafio da pesquisa. Os registros dos estudantes revelam como, não raro, a nossa posição corria o risco de se sobrepor à posição de saber-fazer das pessoas que estávamos apoiando. Nesse sentido, é interessante perceber como a cada encontro tem lugar a própria voz das pessoas da rua a nos alertar para as reproduções dos instituídos que cotidianamente lhes oprimem. Por isso, nas supervisões, era preciso analisar nossas implicações de modo a impedir esses atravessamentos e as capturas/reproduções dos lugares comuns de opressão e silenciamento, a fim de garantir que as posições de autonomia e protagonismo deles.

Deste modo, reconhecíamos o nosso desejo de contribuir para a construção de novos projetos que fossem potentes no sentido de fomentar o protagonismo das pessoas em situação de rua, em especial das lideranças emergentes do movimento social. Implicação esta que nos colocava frontalmente diante de um projeto de educação em direitos humanos, que incluía a nós, como docentes e pesquisadores, os técnicos da equipe do CRDH, enquanto executores de uma política pública, os discentes sob nossa supervisão e o movimento social - em situação de permanente discussão no espaço público, acerca daquilo que nos movia e afetava e das instituições que nos atravessavam, como mostram os depoimentos abaixo:

Foram [equipe do CRDH] ao Centro Pop e nos convidaram para um evento na praça denominado: "Vivências de rua, população de rua. Somos (in)visíveis pra vocês?" Confesso que naquela manhã, eu ainda não havia ouvido falar do MNPR e nem sabia que a pop rua tinha direitos. Chegando na praça vi que havia várias tendas montadas com diversos serviços presentes e que também havia cerca de 70 pessoas em situação de rua. Começou o evento e quando abriu-se para a pop rua falar, eu pedi para cantar uma paródia. Quando terminei de cantar, pediram para a Pop Rua ali presente escolher um representante para participar de uma formação de lideranças promovida pelo Ministério da Saúde. E assim, logo depois, lá ia eu para Brasília. Foi aí que caiu a ficha, pois eu nunca tinha tido nem uma bicicleta, estava há pouco tempo num papelão e de repente me via dentro de um avião! Então percebi a grande responsabilidade que eu estava assumindo e me senti útil novamente. (Fragmento de história de vida de uma das lideranças do MNPR)

O dia do seminário finalmente chegou! Chegando ao local, achei bonita a maneira como havia aquela mistura de gente e como não importava cor nem condição econômica; estávamos todos lá em prol de um mesmo objetivo. O que notei, contudo, e é claro, é que os profissionais convidados e os próprios estudantes olhavam mais para o lado burocrático da coisa, o que é também importante, enquanto a pop rua falava de sua experiência, de forma simples. Vi como o pessoal que já está familiarizado com as reuniões possuem conhecimento das leis, de seus direitos e do que falta para que eles sejam alcançados. Um dos participantes, de outro estado, demonstrou grande conhecimento de seus direitos, ao conversar com algumas pessoas, e seu discurso ao mesmo tempo, que era revoltado, era cheio de esperteza e de malícia, no sentido bom da palavra. Enfim... havia empoderamento flutuando no ar! (Diário de campo - Bolsista de pesquisa)

As experiências das lideranças revelam como o processo foi se fortalecendo no sentido da transformação das vidas a medida em que a organização política também ia se fazendo com o apoio do CRDH e da nossa equipe. No entanto, as diferentes posições sempre se colocavam em suas diferenças, a partir de nossa maior aproximação com certos instituídos que operam, por exemplo, nas burocracias e políticas instituídas com as quais vamos nos familiarizando de modo a produzir o apoio e o necessário tensionamento do Estado. Assim, desde esses lugares, percebemos como em cada ação há um fazer político ao longo de todo o processo de pesquisa.

Assumíamos, assim, a pesquisa-intervenção como dispositivo que afirma o ato político da pesquisa e coloca em questão as relações de poder, saber e afeto neste campo (Rocha & Aguiar, 2007). Nessa perspectiva a produção de conhecimento se dá a partir das percepções, sensações e afetos vividos no encontro do pesquisador com seu campo. Nele, diversas forças estão presentes e colocam-se em movimento, imprimindo-se novos percursos, desvios e possibilidades, fazendo com que pesquisador e campo não sejam mais os mesmos. À semelhança do que se propõe na cartografia, na experiência de pesquisa "desencadeia-se um processo de desterritorialização no campo da ciência, para inaugurar uma nova forma de produzir o conhecimento, um modo que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador, cartógrafo" (Mairesse, 2003, p. 259). Esses processos são sempre coletivos, conectando-se ao que está aquém e além do sujeito e construindo novos territórios existenciais, a partir de uma postura ético-estético-política de acolher a vida em seus movimentos de expansão/invenção e de captura que atravessaram os encontros no campo de pesquisa (Amorim & Dimenstein, 2009).

Rocha e Aguiar (2003) situam essa perspectiva na genealogia foucaultiana, onde a pesquisa-intervenção crítica e amplia a base teórica da pesquisa ação e da pesquisa participante. Trata-se, como as demais, de uma pesquisa participativa, que busca a construção coletiva do conhecimento, radicalizando a crítica às noções de neutralidade do pesquisador em relação ao seu objeto e ao campo da pesquisa. Busca, também, produzir a ruptura de outras dicotomias, tais como: pesquisa-política e teoria-prática, estabelecendo permanentemente o vínculo entre a gênese teórica e a gênese social dos conceitos. Privilegia-se, porém, a dimensão micropolítica da experiência social, numa abordagem do particular e do local na sua relação com determinantes, fatos ou acontecimentos sociais, culturais, políticos e econômicos mais amplos.

A análise dos dados feitas durante as orientações dos projetos de pesquisa e extensão e as supervisões de estágio foram sempre coletivas, com avaliação sistemática das práticas, acompanhadas por estudos teóricos de modo a fomentar a relação entre teoria-prática e a análise dos dados a partir dessas reflexões. Através delas ficaram explícitas as implicações dos atores envolvidos ao longo do processo, tanto do ponto de vista da análise coletiva de compromissos e afetações, quanto das instituições que nos atravessavam, tais como: compromissos com a universidade, com a execução de uma política nacional de direitos humanos e com o movimento social. Questões como a relação entre universidade pública e Estado, sua função e autonomia frente às relações cada vez mais imbrincadas no atendimento das encomendas de um governo que, à época, comprometia-se com a bandeira da cidadania e da conquista de direitos, mas que também recrudescia a via da judicialização como dispositivo para essas conquistas, foram constantemente pautadas. Isso porque, através do CRDH ocupávamos um lugar estratégico na política nacional de direitos humanos, o que indubitavelmente representava um avanço da democracia, mas que também produzia o risco da captura, no sentido pensado por Deleuze (1996): agora, não mais apenas docentes, profissionais ou lideranças de movimento sociais, militantes de direitos humanos, mas atores que ocupam cargos de gestão ou de execução das políticas públicas, e que assim, fazem a máquina do estado funcionar. Nesta relação corre-se o risco de operar por sinonímia, identificando estatal e o público, camuflando as contradições entre ambos, base sobre a qual se produz o mito do Estado Democrático de Direito (Monteiro, Coimbra & Mendonça Filho, 2006), situação que exigia de nós uma autocrítica permanente, como evidenciamos nos depoimentos e diários acima comentados.

 

Entre o viver e o resistir: o que podemos pensar com a experiência

A pesquisa foi realizada entre os anos 2013 e 2016, com desdobramentos que deram origem a novos projetos que se encontram em andamento. Os resultados desta primeira investigação dividiram-se em dados quantitativos e qualitativos, tomados como complementares. No âmbito dos questionários e entrevistas os temas investigados versaram sobre: dados sociodemográficos, trajetória na rua, vínculos familiares, trabalho e renda, saúde, cidadania e participação social, preconceito e violência. Foram aplicados 159 questionários, sendo os dados tabulados no IBM Pacote de Software de Análise Estatística, Versão 20, arquivo SPSS, cujos resultados mais relevantes serão brevemente comentados aqui, pois de modo geral, aproximam-se muito dos achados da pesquisa realizada pelo MDS (Brasil, 2008).

Os dados obtidos através deste mapeamento revelaram que dentre as razões atribuídas para estar na rua há uma grande multiplicidade de motivos, na maioria das vezes combinados entre si, tais como: violência doméstica (11,9%), ruptura familiar (56,6%), desemprego (39,6%), uso de álcool e drogas (52,8%), doenças (HIV, transtornos mentais, etc.) (5,7%). Essa conjugação dificulta sobremaneira a saída das ruas.

A maioria das pessoas pesquisadas é formada por homens (61%), seguida pelas mulheres (11,9%) e outros gêneros ou transgêneros (4,4%). São naturais do estado 66,7%, sendo que 41,5% nasceram na capital. Declararam cor parda ou negra (43,4%). São majoritariamente adultos jovens e adultos entre 26 e 45 anos (57,9%), observando-se também uma parcela de idosos de 3,8%. Declararam-se cristãos de várias denominações 59,7% e sem religião 13,8% dos entrevistados. A maioria é alfabetizada (79,2%) e vive de trabalhos informais (76,1%) e/ou mendicância (46,5%), sendo que 39,6% afirmou nunca ter trabalhado com carteira assinada.

Um aspecto que chama a atenção e que escapou à pesquisa do MDS diz respeito aos preconceitos e violências: declararam-se vítimas de discriminação e violência (39%) sofridas em locais públicos (shoppings centers, lojas, bancos, transportes públicos ou serviços públicos) e 61% afirmaram ter sido vítimas de violência policial (Guarda Municipal ou Polícia Militar).

No âmbito das políticas públicas, a maioria declarou utilizar o albergue municipal (70,4%), mas muitos referiram mal funcionamento dos serviços da rede socioassistencial, tais como: barreiras de acesso, suspensões, desligamentos arbitrários e preconceitos. Não utilizam qualquer serviço público para sua higiene pessoal e alimentação 36,5%. Alimentam-se duas vezes ao dia (23,3%) e três ou mais vezes (59,7%), mas 15,7% não conseguem se alimentar ou se alimentam apenas uma vez por dia. Quanto ao acesso a benefícios governamentais: 61%, não tem Bolsa Família, aposentadoria, outro benefício assistencial ou direito previdenciário, embora 79,2% sejam usuários do SUAS ou já tiveram acesso a serviços como CRAS, CREAS ou Albergue Municipal.

Os hospitais gerais e urgências são os serviços mais acessados (15,7%) em casos de adoecimento, o que indica o pouco acesso à rede de atenção primária dos SUS, de base territorial (76,7% afirmam não acessar os postos de saúde). Não faz uso de qualquer serviço público de saúde 25,8% e 54,1% não tem acesso a medicamentos. Os problemas de saúde mental, descritos como "doença mental/psiquiátrica" ou "psicológica/depressão/dos nervos/da cabeça" (34,5%) e problemas associados ao uso de drogas (41%), recebem pouca atenção. Nesses casos os encaminhamentos são feitos majoritariamente para hospitais psiquiátricos muitas vezes sem passagem pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou por outros equipamentos da rede de saúde mental, e nos casos de drogadição, para Comunidades Terapêuticas, encaminhados por grupos religiosos em ações caritativas.

Quanto aos relatos e narrativas sobre a relação com os serviços públicos, a vida cotidiana nas ruas e as histórias de vida, os dados foram obtidos em entrevistas ou através da observação participante em reuniões e eventos, e aparecem como sinônimo de descaso e falta de acesso aos bens e direitos fundamentais:

O evento começou com M. lendo um poema sobre como é ser mulher na rua. Falava, portanto, do medo das mulheres de serem estupradas, de engravidar - pois é difícil ser gestante na rua, assim como é difícil ser mãe, ainda mais se for mãe como resultado de um estupro. L. ressaltou como as mulheres estão preferindo parir nas ruas do que ir para um hospital, uma vez que nos hospitais elas se tornam "mãe orfãs", ou seja, têm seus filhos tirados delas. Alguém chegou a dizer que isso ocorre quando é sabido que a mãe usa drogas. (IV Seminário Potiguar da População de Rua. Registro em diário de campo - Bolsista de pesquisa)

A primeira mesa foi constituída pela pop rua. Algumas falas eram sobre a necessidade de união da pop rua, outras eram mensagens de empoderamento, outras falavam um pouco da história do interlocutor. Uma delas, contudo, achei interessante em especial: F. falou do "estereótipo" de vagabundo que dão à pop rua; ele reclamou, contudo, que sem uma casa não há como arrumar um emprego, uma vez que é solicitada, na entrevista, um comprovante de residência. É preciso de casa para trabalhar de carteira assinada, para ser atendido pelo SUS... A moradia é o primeiro elemento para que portas se abram em outras instâncias. F. disse ainda: "mesmo sem casa eu me considero cidadão" (IV Seminário Potiguar da População de Rua. Registro em diário de campo - Bolsista de pesquisa)

Além das reuniões coletivas de orientação de pesquisa e supervisão de estágio, a discussão desses resultados foi feita também em rodas de conversa e oficinas com a participação dos pesquisadores e discentes, profissionais do CRDH e militantes locais do MNPR, mantendo-se assim, o aspecto imprescindível de restituição dos achados da pesquisa-intervenção aos participantes, própria da Análise Institucional (Lourau, 1993).

Dessas discussões ao longo do processo pudemos destacar alguns analisadores e cartografar algumas linhas que apresentamos a seguir: as linhas duras dos instituídos presentes nos processos institucionais e algumas linhas flexíveis que apontam para movimentos instituintes, de insurgências no campo pesquisado. Utilizamos aqui os conceitos de linhas duras, flexíveis e de fuga a partir das contribuições de Deleuze relativas ao pensamento rizomático (Deleuze & Parnet, 1998). As linhas duras seriam aquelas que detêm a divisão binária de setor, profissão, classe social, entre outros segmentos constitutivos da subjetividade individual e social, e delimitam a atuação de cada política setorial, de cada profissional em sua formação. As linhas duras atuam por classificação e sobre codificação

L. trouxe para a roda um ocorrido da semana passada: uma usuária do Centro Pop havia agredido uma funcionária, que em seguida havia se demitido. L. deixou claro que o Movimento não apoia nenhum tipo de violência, mas ressaltou, assim como outros presentes, que a agressão pode ter sido ocasionada pela forma como muitos funcionários tratam os usuários, ou seja, com desrespeito e má vontade. Por outro lado, ainda, disse que a usuária irá responder pelos seus atos, de qualquer maneira, pois ela, inevitavelmente, errou ao ter atacado a funcionária pública. Nesse momento, um participante, aparentemente novo no Movimento, de fala lenta, disse que o Movimento não poderia pagar pelo erro de uma pessoa, concordando com L. Ele acrescentou, contudo, "ainda mais sermos prejudicados por uma mulher, sendo que a maioria de nós somos homens". O fato de ele ter dado ênfase ao "mulher" me incomodou bastante, assim como deve ter incomodado muitas outras pessoas ali. (Reunião semanal do MNPR. Registro em diário de campo - Bolsista de pesquisa)

H. fala do trabalho escravo da população de rua, que é quando uma pessoa quer pagar menos que o normal por um serviço e que o pop rua pensa: "eu tenho pouco, então aceito qualquer coisa", até porque muitas vezes a mão de obra dessa pessoa é de excelente qualidade e merece, portanto, ser valorizada. Falou que é preciso ter testemunha pra denunciar, porque a polícia não acredita na pop rua. (Reunião semanal do MNPR. Registro em diário de campo - Bolsista de pesquisa)

Nesses relatos, percebemos as linhas duras em operação nas relações entre as pessoas da rua e o Estado e dentro do próprio movimento, quando as questões de gênero em seus binarismos e as hierarquizações produzidas pelo lugar de liderança operam de modo mais forte.

Por outro lado, as linhas flexíveis são responsáveis pelos afetamentos que ocorrem nas relações, criando condições para zonas de indeterminação que diluem os estratos, constituindo-se em uma conjugação de fluxos diversos e heterogêneos que se encontravam homogeneizados nos segmentos, nos setores que integram as políticas públicas. Ao realizarem fissuras nesses segmentos, as linhas flexíveis concorrem para a formação de linhas de fuga. Estas, por sua vez, criam zonas de indeterminação entre os setores e as subjetividades, compõem processos de subjetivação que produzem agenciamentos permitindo aflorar o coletivo, conjugam movimentos de desestratificação e afirmam a diferença sustentando processos inventivos (Romagnoli, Arraes Amorim, Severo & Nobre, 2017). As diferenças de posição e os agenciamentos e deslocamentos subjetivos que vão se operando coletivamente ao longo do processo indicam a configuração dessas linhas que permitiram a emergência de novos lugares e conquistas para o movimento:

Por mais que eu imaginasse a diferença entre o pessoal que está na militância e o pessoal que vai às atividades só pela comida, ali senti realmente as diferenças: quem havia se ocupado com a organização do Seminário eram os mais atentos ao que acontecia e a como acontecia; militantes de outros estados, por mais que es tivessem interessados no debate, acabavam deixando transparecer mais sua indignação e desprezo às autoridades presentes. Estes, diferentemente dos que haviam organizado o Seminário, sentavam-se ou no meio ou na parte de trás da sala; e, por fim, aqueles que estavam lá apenas pela comida, sentavam-se lá atrás, perto da por ta, e conversavam, soltavam comentários inadequados, brincavam. A diferença, contudo, não consiste na mera descrição desses comportamentos; consiste no que esses comportamentos podem indicar, sendo apenas indícios de algo mais profundo. Prestando atenção, portanto, em militantes assíduos e em não-militantes, posso dizer que os não-militantes parecem conformar-se com o caritatismo, parecem não ter noção alguma de seus direitos e, por essas razões, ora ficam timidamente às sombras, ora são esquivos e bravios. (IV Seminário Potiguar da População de Rua. Registro em diário de campo - Bolsista de pesquisa)

Assim, percebemos também que há uma situação mais ampla, das linhas mais endurecidas no plano macropolítico. São os aspectos mais "duros" da vida na rua que, em última análise, dizem respeito à negação dessas vidas. Como nos falou uma dessas pessoas: "Quem moléstia quer saber de quem mora na rua?!" Nessa indagação revela-se a indiferença sofrida traduzida em três negações: invisibilidade, inaudibilidade, inacessibilidade aos espaços e pessoas na vida da cidade. Inúmeras são as barreiras de acesso aos diferentes espaços, sobretudo nos serviços públicos de saúde, educação, cultura, entre outros. Aqui vemos também a contradição no interior do próprio sentido da política pública quando se confunde com a política estatal (Monteiro e cols., 2006), privilegiando interesses político-partidários (políticas de governo) em detrimento da universalização desses interesses (políticas de Estado). Assim, aquilo que deveria ser feito para todos, é feito para alguns, exigindo a cada dia a criação de novas políticas, cada vez mais especializadas e fragmentadas que incessantemente tentam tamponar as negligências produzidas no interior do Estado. (Monteiro e cols., 2006)

É possível afirmar que o cenário traçado com base nos depoimentos, narrativas, entrevistas e discussões reflete as falências das políticas públicas, nas quais observamos a burocratização das ações, tutela dos usuários, funcionamento institucional disciplinar e indiferença às pessoas e suas condições de vida. Por exemplo, há a percepção dos entrevistados de que estão consumindo cada dia mais drogas e dentre as explicações está o fato de que elas são necessárias para poder passar a noite na rua, para manter-se acordado e em segurança, por falta de vagas no serviço de acolhimento noturno. Há também a percepção da falência das políticas públicas de saúde e de saúde mental em particular, cujas ofertas de cuidado em relação ao consumo abusivo e danoso de drogas é precária em sua capacidade de promover continuidade de cuidados, construção de vínculos e efetiva redução de danos, em recusa as formas disciplinares e proibicionistas de se tratar historicamente o problema das drogas. O consumo de drogas não é natural, assim como as diferentes formas de adoecimento psíquico. No entanto, o modo como esses problemas são encarados na política pública tendem à naturalização, às relações tutelares e assistencialistas, além da evidente descontinuidade das ações e vínculos estabelecidos com essas pessoas. O que aparece como mais problemático é o fato de que não há uma análise mais aprofundada da atenção ofertada e dos problemas existentes nessa relação com os usuários nas redes de saúde e assistência, o que termina por culpabilizá-los pela pouca efetividade das ações sob o argumento de que os mesmos "não querem (ou aceitam)" o tratamento ofertado.

No mesmo sentido chama a atenção as linhas duras dos itinerários institucionais traduzida no relato de uma pessoa entrevistada ao relatar uma situação em que vivia uma urgência de saúde: "Fui andando até o hospital e de lá me mandaram para outro. Mas ninguém me perguntou se eu tinha dinheiro para chegar lá..."

Os itinerários institucionais percorridos pelos participantes são muito semelhantes e revelam aquilo que Venturini (2009) chama de um "círculo perverso de exclusão", no qual a desigualdade social e o desemprego conduzem as pessoas a situação de rua e, nesta condição, ficam marcadas como marginais e "potenciais criminosos "e, por isso, sem acesso a novas e mais dignas condições de vida, perpetuando esta condição de exclusão. A existência desses círculos perversos de exclusão aponta para a contradição das barreiras de acessos às políticas públicas a que essas pessoas têm por direito constituído, além da própria fragilidade e desarticulação das mesmas na atenção integral a essa população.

No que se refere à rede de saúde, também se encontram importantes barreiras de acesso que se justificam pela lógica territorializada da atenção (que não faz sentido para pessoas "sem território" de moradia fixa) ou pela perda de documentos que colocam as pessoas em situação de rua na condição de indigentes e, como tais, sem o "cartão SUS" que é condição para atenção nos diferentes serviços de saúde. Outra barreira importante diz respeito aos preconceitos por parte dos profissionais da atenção que não revelam disponibilidade para lidar com pessoas em condições precárias de higiene pessoal. Na contramão dessa essa lógica perversa, encontramos algumas práticas que sinalizam a presença das linhas flexíveis: profissionais dos Consultórios na Rua e alguns gestores e trabalhadores da rede de saúde mental mostraram-se mais disponíveis ao cuidado e menos preconceituosos com esse público. Também nos deparamos como alguns projetos no campo da educação e alguns gestores e profissionais de instituições de ensino com quem fizemos parcerias, que contrariando as normas instituídas ou as linhas duras da organização educacional, abriram suas portas para a execução de reuniões semanais do MNPR, seminários e outros eventos, o acesso aos banheiros, à biblioteca e uso de computadores das suas instalações.

No que se refere à política de segurança pública, evidenciou-se que as constantes denúncias de violência não são notificadas pelo fato de que as pessoas em situação de rua aprenderam a não ver a força policial como protetiva, mas apenas como repressora e punitiva, dadas as frequentes e brutais agressões a que são submetidas cotidianamente, sobretudo pela Guarda Municipal. Contrariando sua função pública de proteger àqueles que, por sua condição de vulnerabilidade social deveriam ter assegurado esse direito, veem as pessoas em situação de rua como ameaça e perigo à ordem pública, não como cidadãs.

Outro ponto importante, refere-se à desarticulação das políticas entre si, promovendo o agenciamento da exclusão, uma vez que os serviços de diferentes setores se comunicam apenas para "encaminhar o usuário" ou "transferir" a responsabilidade, promovendo constantemente desassistência pela precária ou inexistente corresponsabilização entre os diferentes setores pelos muitos usuários em situação de rua que chegam aos serviços.

Frente a este quadro de importante fragilidade e insuficiência das políticas públicas, as intervenções nas oficinas e rodas de conversa junto aos participantes foi voltada para o gradual fortalecimento e a visibilidade política das problemáticas relativas a esta população, no contexto de investigação. Esta ação, tanto para os próprios sujeitos nessa condição, como para gestores, profissionais do campo e a sociedade civil em geral, revelou-se uma potente estratégia na busca de novas condições de vida e responsabilização pelo Estado na garantia de direitos dessas pessoas. Como resultados desse fortalecimento, podemos a realização de audiências públicas e eventos públicos voltados para o debate dos direitos desta população, marcos históricos na proposição de uma política municipal para a população de rua. Aqui revela-se a tensão entre o instituído e o instituinte, na produção de possibilidades de mudança, revelando como as linhas duras e flexíveis se imbricam, permitindo a composição de novos cenários e práticas.

Outra linha dura identificada e que é a mais rígida, porque macroestrutural, é pobreza e a exclusão social em múltiplas formas. A relação entre a crise mundial no campo dos direitos humanos, o aumento da desigualdade na distribuição das riquezas, os sistemas políticos antidemocráticos, associados às questões de gênero, etnia e saúde mental, são condições que refletem o estado atual do capitalismo, no qual as dimensões econômicas, sociais e culturais dos direitos humanos são negligenciadas, particularmente no que diz respeito ao direito à saúde, moradia e alimentação. Neste cenário é preciso levar em conta que as diferentes dimensões dos direitos humanos (individuais, políticos, culturais, econômico e sociais) estabelecem causalidades entre si (Lúcio, Marques, Almeida & Carvalho, 2009) e produzem, entre outros fenômenos contemporâneos, o crescimento de pessoas sem abrigo, (sans-abri), sem lar (homeless), sem-teto (sinhogar) ou em situação de rua (denominação adotada no Brasil), que é anterior aos problemas da relocalização dos refugiados e dos processos migratórios, em todo o mundo e por eles agravados.

Os níveis de pobreza e desigualdade, na nossa realidade, vão desde o desemprego e a negação a direitos fundamentais à saúde, à moradia, à educação, dentre outros, até os processos rotineiros de estigmatização das pessoas em situação de rua (Moura Jr., Ximenes & Sarriera, 2013), configurando um processo grave de exclusão social, não raramente executados por organizações públicas e governamentais. Tem-se, assim, o que pode ser chamado de "inclusão perversa" (Sawaia, 2001) já que por meio da criação de serviços públicos de atendimento, essas pessoas tornam-se objeto de ações governamentais, que a elas destinam recursos orçamentários e humanos e sobre as quais se produzem saberes e discursos (Rui, Martinez & Feltran, 2016), sem que sejam efetivamente abertas possibilidades de superação da condição de viver nas e das ruas. Essa linha tênue entre exclusão-inclusão perversa pode também ser associada à análise de Castell (1998), que salienta o processo dinâmico que faz com que os excluídos transitem da integração social à vulnerabilidade e desta para a "inexistência social" ou "desfiliação" como desfecho deste processo.

Também para Escorel (1999), os processos de exclusão envolvem, como constatamos, trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou precariedade das condições de vida, além de rupturas de vínculos socio familiares, do trabalho, das representações culturais, da cidadania e da vida humana. Essa vulnerabilidade é acentuada na população em situação de rua em função do grau de susceptibilidade que as pessoas têm de exposição a riscos (Ayres, 2009), bem como a ausência extrema de recursos materiais e simbólicos para satisfazer suas necessidades básicas e a falta de acesso a oportunidades sociais, econômicas e culturais, conferidas pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade. Essa ausência se traduz em debilidades graves ou desvantagens estruturais para a mobilidade social dessas pessoas (Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima & Martinelli, 2002).

As linhas duras no que diz respeito a certas naturalizações relativas a esta população, notadamente ao estigma da pobreza (em sentido econômico) impedem de se ver e escutar a riqueza (em sentido subjetivo) que encontramos na realidade das pessoas em situação de rua. Riqueza e diversidade de recursos pessoais, materiais e afetivos que são desenvolvidos para viver na rua, desde improvisação de espaços para estar/habitar na cidade até uso de recursos pessoais na lida com os outros: táticas para viver na rua, que envolvem o nomadismo como proteção e busca de novos recursos na cidade em diferentes espaços; astúcias para lidar com as diferentes formas de violência, para conseguir comida, para fazer higiene pessoal, para suportar os estados de abstinência a álcool e drogas, fome, dor, angústias, além dos usos dos lugares subvertendo suas funções oficiais (a marquise de lojas, as escadarias de igrejas, o banco do posto de saúde como lugares de descanso, por exemplo). Há também a riqueza de talentos e saberes, pois encontramos nas ruas pintores, oradores, artesãos, cantores, dançarinos, líderes, entre outros. Aqui vemos a composição de linhas de fuga que subvertem o que está prescrito e proscrito, produzindo a possibilidade de outros modos de existência que estando à margem das instituições ou em oposição a elas, são inventivos, criativos e insurgentes e escapam ao controle das normas, dos padrões e do ordenamento jurídico.

No encontro com pessoas em situação de rua, salta aos olhos a violência explícita do Estado e também sua omissão, que em ambas as formas expressam a violação de direitos humanos: relatos de violência policial e violência institucional nos diferentes serviços públicos, além das omissões e barreiras de acesso traduzidas em expressões que os participantes reproduziam como sendo as vozes da maioria das pessoas que os atendiam em diferentes serviços públicos, tais como: "não tem documento, não posso lhe atender"; "não tem endereço, não é desse território", "está drogado, não entra, não faz oficina", "está alcoolizado, não dorme aqui hoje". Entretanto, ao lado deste quadro é frequente encontrarmos a indignação e o inconformismo daqueles que, em situação de rua, reconhecem que todos temos direito a uma vida digna. Alguns desses sentimentos transformam-se em agressão, revolta e anomia social; outros, porém, em busca de alternativas, sonhos e projetos de vida. Linhas duras, flexíveis e, mais timidamente, de fuga, que compõem mosaicos, desenhos que fazem a vida cotidiana das pessoas e transformam as cidades onde nomadizam.

 

Considerações finais

Fazendo um resgate histórico e tensionando as questões do tempo presente, passada quase uma década da criação do Decreto Lei 7.053/09, podemos dizer que houve avanços do ponto de vista institucional quanto à implantação desta política pública no que se refere à legislação e a criação de alguns serviços. Efetivamente criaram-se equipamentos e dispositivos públicos vinculados às redes de saúde e assistência social. Entretanto, muitos outros aspectos referentes à garantia de direitos desta população ficaram à margem desse processo, sobretudo a segurança pública, a justiça, a geração de emprego e renda, o direito à moradia e à cidade, com raras exceções de experiências exitosas localizadas em algumas cidades do País. Além, disso, mesmo nos equipamentos criados e em pleno funcionamento, as dificuldades na implementação de ações específicas na "ponta" dos serviços que atendem diretamente a esta população são incontáveis e graves e pouco se avançou no tocante à reversão do assistencialismo - que caracteriza a vitimização - e dos preconceitos e exclusão - que caracterizam a estigmatização e a criminalização da pobreza (Coimbra, 2006).

Além disso, no contexto atual, esses avanços tem quase um sentido histórico, uma vez que nos encontramos num enorme retrocesso vinculado ao desmonte das conquistas sociais que se seguiram ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2016, que teve como impacto direto a desarticulação e extinção de ministérios e secretarias que atuavam diretamente com grupos vulneráveis, além da crescente criminalização dos movimentos sociais (Gentili, 2016).

É possível concluir que são muitas as fragilidades e insuficiências das políticas públicas, muitas e diversas são as necessidades dessa população e incontáveis são as violações de direitos das pessoas em situação de rua no Brasil. Trata-se de uma pesquisa-intervenção que teve efeitos diretos sobre um movimento social, tais como: o surgimento e consolidação de lideranças e de participação social, em vários níveis, de pessoas em situação de rua; ocupação de instâncias de controle social por lideranças do movimento (Conselhos Estaduais e Municipais de várias políticas públicas); produção de espaços públicos como audiências públicas, seminários e ações que deram visibilidade a este segmento social, frente à sociedade e ao Estado; aproximação deste movimento social de espaços acadêmicos e políticos tematizando a necessidade de formação de novos profissionais para o trabalho com grupos vulneráveis. Este cenário exigiu a construção contínua da análise de implicação pelos participantes da experiência, tendo em vista o impacto dos dados gerados que foram objeto da reflexão coletiva e fortaleceram a construção de espaços coletivos de mobilização e organização política.

Do ponto de vista acadêmico, a análise das implicações colocou em xeque a relação da universidade com o Estado, na sua função singular, no caso deste trabalho, de ocupar o lugar de executora de uma política pública de direitos humanos. As reflexões produzidas pela tensão entre autonomia e captura, como assinalado acima, destacaram-se nesse processo e exigiram de nós uma vigilância constante, diante do risco sempre iminente da sobreimplicação (Lourau, 1993; Lourau, 2004b).

Por outro lado, o processo de restituições e avaliações coletivas da pesquisa junto aos atores que dela participaram permitiu o desenvolvimento de intervenções empírica, ética e teoricamente orientadas. Assim, entende-se que a presente pesquisa contribuiu promovendo visibilidade às principais questões/problemas vivenciados pelas pessoas em situação de rua no contexto investigado, bem como o fomento à organização política e empoderamento deste segmento vulnerável da sociedade com vistas à garantia de direitos fundamentais, além de oportunizar a aproximação de pesquisadores desta realidade social, fomentando o desenvolvimento de um campo de pesquisas rico em possibilidades e desafios investigativos e contribuindo para a formação de futuros profissionais para o trabalho com grupos vulneráveis, preenchendo assim uma lacuna que muitas vezes observa-se nas grades curriculares dos cursos de graduação.

 

Referencias

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Submetido em: 10/06/2017
Aprovado em: 18/11/2018

 

 

1 Um analisador é um elemento que surge como resultante das forças contraditórias que se articulam num dado campo de intervenção (Baremblitt, 2002). Podendo ser natural, enquanto elemento constitutivo do campo (uma situação espontânea, por exemplo) ou construído pelo analista institucional (a exibição de um filme, uma roda de conversa, etc.), a função do analisador é provocar a elucidação do "não dito institucional", deixando vir à tona as tensões e os conflitos presentes no campo.

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