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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo MayAug. 2018

 

ARTIGOS

 

Produção, sociabilidade e tecnologia na relação pessoa-alimento

 

Production, sociability and technology in the person-food's relation

 

Producción, sociabilidad y tecnología en la relación persona-alimento

 

Production, sociabilité et technologie dans la relation personne-nourriture

 

 

Maria Rita Macedo CuervoI; Cristiano HamannII; Adolfo PizzinatoIII

INutricionista, Mestre em Saúde Coletiva e Doutora em Psicologia Social. Professora dos cursos de nutrição e gastronomia da PUCRS. ritacuervo@gmail.com
IIPsicólogo. Mestre em Psicologia Social pela PUCRS e doutorando em Psicologia Social e Institucional na UFRGS. cristiano.hamann@gmail.com
IIIProfessor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. adolfopizzinato@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este ensaio objetiva discutir aspectos psicossociais que configuram um campo relacional com os alimentos e os processos associados ao cultivo, produção, comercialização, preparo e consumo alimentar. Comer na sociedade contemporânea é um fazer complexo: a escolha do que consumir está culturalmente orientada por processos políticos/tecnológicos/afetivos que se expressam na sociedade global. Neste contexto, é fundamental ter em conta os atravessamentos do capitalismo contemporâneo e sua parcela nas condições de produção subjetiva que, no campo potencialmente interdisciplinar da alimentação, se mostra para além de uma interpretação da nutrição pela égide do biológico.

Palavras chave: Alimentação; Cultura; Subjetividade; Tecnologia; Comensalidade.


ABSTRACT

This essay aims to discuss psychosocial aspects that shape a relational field with foods and processes associated with cultivation, production, commercialization, preparation and food consumption. Eating in contemporary society is a complex doing: choosing what to consume is culturally oriented by political / technological / affective processes that express themselves in the global society. In this context, it is fundamental to take into account the crossings of contemporary capitalism and its share in the conditions of subjective production that, in the potentially interdisciplinary field of food, shows beyond an interpretation of nutrition by the aegis of the biological.

Keywords: Food; Culture; Subjectivity; Technology, Commensalism.


RESUMEN

Este ensayo objetiva discutir aspectos psicosociales que configuran un campo relacional con los alimentos y los procesos asociados al cultivo, producción, comercialización, preparación y consumo alimentario. Comer en la sociedad contemporánea es un hacer complejo: la elección de lo que consumir está culturalmente orientada por procesos políticos / tecnológicos / afectivos que se expresan en la sociedad global. En este contexto, es fundamental tener en cuenta los efectos del capitalismo contemporáneo y su parcela en las condiciones de producción subjetiva que, en el campo potencialmente interdisciplinario de la alimentación, se muestra más allá de una interpretación de la nutrición por la égida de lo biológico.

Palabras-clave: Alimento; Cultura; Subjetividad; Tecnología, Comensalismo.


RESUMÉ

Cet essai a pour but de discuter des aspects psychosociaux qui façonnent un champ relationnel avec les aliments et les processus associés à la culture, à la production, à la commercialisation, à la préparation et à la consommation d'aliments. Manger dans la société contemporaine est une tâche complexe: choisir ce qu'il faut consommer est culturellement orienté par des processus politiques / technologiques / affectifs qui s'expriment dans la société mondiale. Dans ce contexte, il est fondamental de prendre en compte les croisements du capitalisme contemporain et sa part dans les conditions de la production subjective qui, dans le domaine potentiellement interdisciplinaire de l'alimentation, montre audelà d'une interprétation de la nutrition par l'égide du biologique.

Mots-clés: Alimentation; La culture Subjectivité; Technologie, Commensalisme.


 

 

Introdução

A alimentação - uma das atividades humanas mais importantes - envolve aspectos psicossociais que são fundamentais na compreensão das dinâmicas das sociedades e das relações entre os indivíduos (Proença, 2010). Nesta faceta do alimentar-se, entende-se que as atitudes e comportamentos relativos à comida se ligam diretamente aos processos de atribuição de sentido de nós mesmos e de nossas identificações enquanto sujeitos (Mintz, 2001). Quando se procura entender o papel desempenhado pelos alimentos na vida das pessoas, percebe-se que eles são não apenas uma fonte de nutrientes em resposta a estímulos fisiológicos, mas sim, expressam uma diversidade de saberes e conhecimentos engendrados socialmente (Contreras; Gracia, 2011).

As práticas alimentares englobam, como indicam Freitas e Pena (2007), ações que condizem com as instituições sociais, as quais, seja por seus paradoxos, contradições e idiossincrasias, inscrevem valores sobre o corpo e a vida. Circunscrita nesses atos de socialização e formas de compartilhamento, a comensalidade usualmente figura na literatura como prática de 'comer junto', entretanto, mesmo a sua manifestação mais solitária, ajuda a compor o quadro de normativas sociais que dão condições de possibilidade para suas diferentes facetas. Estes processos de identificação, diferenciação, atribuição (e liberação) de sentidos que conferimos aos momentos de comensalidade envolvem uma gama de aspectos psicossociais que remontam costumes, povos, nações, grupos étnicos, identificações comunitárias, familiares, uma grande variedade de dimensões subjetivantes.

Freitas (2003) argumenta ser em torno da mesa - e do alimento - expressamos afiliações identitárias e diferenças com relação aos demais. Ao seu redor se compõem práticas, estilos, relações que se estabelecem somente a partir da intermediação entre alimento/comida e os sujeitos que ali estão envolvidos. Para a autora comer junto é "um meio de prazer e de desejo, através dos quais mergulhamos nos recônditos das subjetividades" (Freitas, 2003, p. 56). Este comer é também entendido como processo de reconhecer-se (Lody, 2009) e localizar-se, mostrando determinadas posições na sociedade (De Garine, 1987).

Considerando esses aspectos teóricos, vemos o alimentar-se como uma prática cultural que ultrapassa uma ideia apenas "fisicalista" de manutenção orgânica e, mais do que isso, convida a pensar as interfaces entre os corpos e suas relações com a alimentação; tecida em aspectos morais, políticos, religiosos e ritualísticos (Carneiro, 2009). É importante, entretanto, notar a necessidade de agir em prol de reflexões acerca dos processos alimentares e suas formas de interpretação, de modo que se abram compreensões sobre os fazeres neste âmbito da vida - que muitas vezes é tomado como forma de reiteração de uma lógica fisicalista e 'acultural', tanto no chamado senso comum quanto no saber científico. Esse aspecto é importante, em especial, se considerarmos a atual conjuntura global no que se refere à alimentação, cujas discrepâncias englobam não só o consumo desmedido - para além das necessidades físicas ou desconectado de aspectos nutricionais necessários - e rarefação de sentidos e significados (com o incremento da industrialização alimentar), mas também apontam para a necessidade de reflexão atualizada acerca dos meandros psicossociais, éticos e históricos relacionados com a obtenção/produção, comércio, preparo e consumo (que definimos como PCPC, por suas iniciais).

Os processos de PCPC compõem um campo de análise interdisciplinar e de conceituação teórica que não pode se furtar a integrar em si uma ampla discussão sobre tecnologia, seus impactos no que entendemos como alimento hoje e as possibilidades identificatórias por ela engendrada. Os processos de PCPC, tomados neste campo de discussão, podem colaborar para estabelecer um espaço dialógico de compreensão que não caia exclusivamente em definições econômicas, proto-fisioligistas, moralistas ou ainda esvaziadas daquilo que pode ser entendido como aspectos subjetivos e identitários relacionados à alimentação. Diante do exposto, a proposta do presente ensaio é a de apresentar algumas linhas de discussão sobre facetas psicossociais implicadas nos processos alimentares, tomando dispositivos teóricos da Psicologia, Sociologia e Antropologia - como a noção de perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996) - dando ênfase para aspectos tecnológicos que circunscrevem na atual configuração ocidental dos fazeres no campo alimentar.

O poder da discussão sobre a noção de tecnologia no campo dos processos de PCPC reside justamente em fugir à compreensão reducionista da técnica enquanto apenas um conjunto de objetos, instrumentos, máquinas ou outros artefatos, assim como à redução das tecnologias alimentares à nutrição. Aqui entendemos a discussão tecnológica à esteira do que propunha Foucault (1990), ou seja, como um dispositivo complexo de poder e de saber que integra os instrumentos e os textos, os discursos e os regimes do corpo, as leis e as regras para a maximização da vida, dos prazeres do corpo e regulação pelos enunciados de verdade (Foucault, 1990). Vemos que a precariedade da discussão sobre a produção e os processos alimentares - incipiente dada a emergência da temática - nos instiga a questionar em prol do fortalecimento deste campo de discussão. Deste modo, pensar a alimentação como cindida da própria noção de tecnologia e prática cultural promove que formas de interpretação e significação do alimento?

A seguir, apresentamos alguns elementos que complexificam essa discussão em termos de diferentes relações identificatórias, macro e micro perspectivas e consumo no campo alimentar - com uma leitura sobre os Mbyá-Guaranis na tentativa de ilustrar esse campo relacional. Na sequencia, alguns elementos sobre a noção de "natureza" alimentar humana e os jogos políticos de diferentes movimentos que se valem dessa construção para a justificação de diferentes processos PCPC alimentar (desde os argumentos fisiológicos, etnológicos, sanitaristas e agroecologistas) com diferentes discursos. Finalmente o texto apresenta um questionamento - ainda em aberto - sobre a possibilidade de existência de uma cosmologia alimentar contemporânea e a importância de uma crítica conceitual sobre tecnologia para o amadurecimento e desideologização desse campo - que ora idealiza e ora romantiza a potência da tecnologia na definição do campo alimentar.

 

Identificações, Perspectivismo e Consumo

Estudos da Sociologia têm reiterado que a escolha alimentar se circunscreve em uma série de estratégias para distinção e prestígio social, expressando tanto riqueza/prosperidade, como falta/insatisfação (Zaluar, 1985). Essas atribuições de significado e sentido se manifestam na definição de dietas e na forma de consumo, como já apontaram estudos clássicos de sociólogos como Bourdieu (1986) e Elias (1990). Norbert Elias (1990), especificamente, quando estabelece considerações sobre o que compreende-se como 'civilização', nos ajuda a refletir sobre a atribuição de valores a aspectos da vida cotidiana - destacando a preparação de alimentos, suas interfaces ritualísticas e suas articulações morais. Para este autor a atribuição valorativa do que é civilizado, ou não, fala justamente deste constante e sensível tensionamento entre os modos de vida e da nutrição do corpo, materializada nas práticas cotidianas de alimentação.

Estes questionamentos no campo sociológico se mostram importantes também psiquicamente pois, na medida em que as pessoas podem comer grande parte do que é oferecido na natureza (ao menos dos reinos animal e vegetal), além de produzir e reproduzir dezenas de outras possibilidades mais ou menos híbridas, decidir o que comer pode gerar tanto uma abertura quase infinita de alternativas quanto uma angústia diante da multiplicidade de possibilidades da decisão. Sobre esse desconforto no alimentar-se se debruça o trabalho pioneiro do psicólogo estadunidense Paul Rozin (1976). O autor retoma o dilema do onívoro do campo atropológico-estruturalista e nos põe a pensar com este dilema e uma constelação de outras reflexões. Tratar-se-ia, em última instância, do "quem somos"; retomando a famosa frase de Claude Lévi-Strauss (2006): "a comida precisa ser boa não apenas para se comer, mas também para se pensar".

Como todas as produções culturais, a própria concepção da relação alimentar é mutante, contextualizada sócio-historicamente e inscrita em determinadas perspectivas, de acordo com o regime de verdade sob o qual se alicerça. Por mais que o discurso positivista exerça forte influência na concepção alimentar do ramo nutricional detecnificação biologicista-fisiologista, os regimes de verdade sobre as relações alimentares não são unificados nas culturas. Nesse sentido, conforme Sahlins (1997, p. 41) as pessoas, as relações e os objetos que povoam as existências humanas manifestam-se circunscritas por valores e significados negociados. Se cultura é a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos (Sahlins, 1997), os significados que compõem e são atualizados na e pela alimentação podem ser entendidos como forma de expressar diferentes aspectos culturais - algo que não possui um valor per se, essencial.

Essa noção de produção cultural como algo marcadamente relacional e mutante se opõe às perspectivas positivistas de cultura cuja compreensão é essencialista. No campo alimentar, em específico, existem trabalhos que utilizam a noção de cultura para entender as práticas alimentares sob uma noção perspectivista. É o que faz Eduardo Viveiros de Castro (1996), que define o perspectivismo como uma forma de viver comum à muitas pessoas do continente americano e pela qual o mundo seria habitado por diferentes objetos e seres, humanos e não humanos, que apreendem a realidade desde diferentes pontos de vista. Essa visão, não dicotômico-cartesiana, não concebe a cisão humano/não humano, corpo/alma na definição das existências, o que invalida o tradicional discurso ocidental "natureza" contra "cultura". Tal lógica convive em nosso contexto com outras perspectivas que, contrariamente ao plano colonial-positivista, não puderam eliminar o perspectivismo alimentar nas cosmologias ameríndias, a despeito dos esforços em colocarmos quem rompe com o projeto Moderno como alguém fora do "nosso tempo", ou seja um "tradicional", "racializado", "atrasado" (Pelúcio, 2012).

Ainda que o foco aqui não seja uma análise das práticas alimentares per se e, muito menos, de toda a cosmovisão ameríndia sobre esses processos, trazemos como um breve exemplo alegórico, como uma proposta para diálogo. A importância de entendermos os processos alimentares em perspectiva, galgando um espaço para além da evidente naturalização de alguns aspectos como a comensalidade automatizada, encontra na aproximação às cosmologias alimentares ameríndias um exemplo local e atual, com influência na constituição cultural contemporânea das Américas. As práticas alimentares têm uma importância fundamental nas cosmologias ameríndias, seja pela significação de comunicação com o cosmos, com o mundo sobrenatural e pelos cuidados que o preparo da comida exige para proteção dos riscos que representam. O ato da alimentação, para muitos grupos indígenas, é carregado de uma metafísica própria, com uma densidade cosmológica intensa.

Apesar de não pretender nenhuma generalização (nem análise pormenorizada), atentamos para o caso específico de uma das etnias indígenas presentes em nosso território, os Mbyá-Guarani, com o objetivo de explicitar e fomentar uma reflexão etnológica sobre os processos de prática alimentar de diferentes coletivos humanos. O exercício de estranhamento da cosmologia do grupo Mbyá-Guarani serve também para questionarmos a nossa valoração e significação de alguns processos da cosmologia alimentar majoritária na cultura ocidental Moderna. Os Mbyá-Guaranis são um grupo que ainda se localiza entre o Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. No Brasil, especificamente, nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. No período pré-colonial viviam no máximo cinco anos no mesmo local, mudavam constantemente de terra e precisam da mata para sobreviver (Tempass, 2010). Sua cosmologia organiza toda a vida social dos grupos, e um dos fatores mais importantes é a procura do que concebem como a Terra sem Mal.

Segundo essa perspectiva houve uma primeira terra perfeita, aonde existia um estado de paz entre seus habitantes. Entretanto, com o incesto entre dois de seus moradores, Karaí Jeupié e sua tia, a terra foi destruída por um dilúvio (iporum) e a maioria dos seres ascenderam ao paraíso virando figuras divinas. Entre as vítimas desse dilúvio havia, entretanto, os que não levaram uma vida virtuosa. Para estes, o destino foi uma segunda terra, um local para que tivessem uma nova chance de tornarem-se deuses. Essa forma de evolução espiritual, chamada aguyje, poderia, entretanto, ser alcançada antes da morte - o que envolveria uma série de prerrogativas cotidianas. O aguyje (estado de totalidade, maturidade, perfeição), seria uma forma de chegar à desejada terra perfeita, a "Terra Sem Mal", e envolvia uma complexa dimensão alimentar (Tempass, 2010).

Estas prerrogativas alimentares se delineavam dentro dos produtos cultivados por essa sociedade e envolviam uma série de saberes cosmológicos. O milho, por exemplo, é uma das mais cultivadas1 e tem um significado particular. Sendo um alimento especialmente relacionado ao espiritual, tudo que está associado ao milho diz respeito ao mundo sobrenatural e esse produto figura como importante na identidade étnica para os Mbyá-Guarani (Tempass, 2010). Para o cultivo desta e de outras plantas não se utiliza irrigação ou fertilizantes. A forma de proteção da plantação é organizada por via de rezas, numa ritualística que se inicia com as sementes na opy (casa de rezas). Qualquer investimento de origem branca, como adubos ou agrotóxicos são considerados como impuros, de modo que impedem a evolução pela via do aguyje. Para além das plantas, na criação de animais, não se utiliza rações ou vacinas, porque também tornam a carne impura (Tempass, 2010).

Neste contexto, ainda que a carne seja consumida, os alimentos considerados mais adequados para atingir o aguyje são os de origem vegetal. Os de origem animal são classificados dentro de uma perspectiva de perigo, visto que aproximam o corpo de certa animalidade e, portanto, afastam do divino. Neste espectro alimentar cabe atentar, entretanto, que os peixes não são considerados carne, o que nos faz reconhecer a deficiência do próprio termo "carne" como princípio analítico. A despeito dessa dificuldade analítica vemos que os Mbyá-Guarani consomem vegetais (e, portanto, peixes) e "carnes" diariamente.

No consumo cotidiano de carnes feito por muitos(as) desse povo, alguns cuidados se interpõe ao aguyje. É possível diminuir os danos através de regras como: nunca comer carne crua, não comer ou cozinhar carne na mata e comer ou cozinhar sozinho na mata (Tempass, 2010; Rosado, Fagundes, 2013). Estas pequenas diretrizes servem para evitar a transmutação em animal, além de indicar o perigo de ferir o princípio da reciprocidade, em comer conjuntamente. Os alimentos que obedecem a norma do aguyje (vegetais/peixes) nutrem mais a porção divina e menos a telúrica. Para este povo, alimentar o corpo também significa alimentar uma dimensão espiritual da existência.

A despeito da aproximação mítica com a perspectiva judaico-cristã, majoritária no Ocidente, (em figuras, por exemplo, de terra perfeita e destruições em formato de dilúvio), a noção de sujeito tem diferenças bastante evidentes. Historicamente, na cultura eurocentrada, tentativas de estabelecer concepções dicotômicas através do que se convencionou alma (ou mente) e corpo estiveram presentes. Uma das atualizações desta dinâmica é, por exemplo, a tentativa de organizar os processos psicossociais humanos sob a égide do bio. Evidente que, se no ocidente eurocentrado o bio promove e se nutre da expansão da 'racionalidade' europeia, no caso dos Mbyá-Guarani as conjunturas concretas de possibilidade de vida e manutenção de seu regime de verdade não são as mesmas.

A alteração no espaço territorial e consequente mudança nos hábitos alimentares e de convivência têm trazido riscos à cosmologia do povo, levando ao perigo do que dentro desta cosmologia se compreende como do campo da "animalidade", da desorganização social e da desestabilização de uma perspectiva espiritual que não se dá dissociada das possibilidades do corpo. Estas esferas de alteração - resultado da dominação colonizatória europeia sobre os povos indígenas - faz atentar para o desencadear de problemas de saúde, de conflitos relacionados a identidade étnica e espiritual (Tempass, 2010; Rosado, Fagundes, 2013).

Se analisarmos estes processos por uma perspectiva de entendimento de tecnologia (como já apresentamos no início do texto), podemos entender a produção alimentar como dinâmica subjetiva e não só material, vemos que elas transversalizam a existência de inúmeros povos, com formas e efeitos diferentes. Ainda que os Mbyá-Guarani possuam uma cosmologia própria para a justificação de suas práticas de PCPC alimentares, muitos outros grupos sociais mantêm relações espirituais com a interdição ou o preparo específico de alguns alimentos (como ocorre no Cristianismo, no Islã e no Judaísmo), com dimensões tecnológicas altamente procedimentais e também organizadas com base em outros regimes de racionalidade que não os derivados da cientificidade.

Neste campo de discussão a ideia de "purificação" da produção e do consumo de alimentos transcende o campo religioso, e mostra-se presente em diferentes movimentos como os "Naturalistas" ou "agroecológicos", mesmo que sob outra ordem epistêmica ou de cosmovisão. Entretanto, essa dimensão de diálogo pode fazer atentar para o processo de atribuição de significado das práticas e da dimensão política, social, de produção de verdade que engendram. Traçando um paralelo entre estas dimensões de análise podemos nos indagar acerca do processo de consumo atual no ocidente eurocentrado, de modo a discutir a naturalização utópica de suas prerrogativas.

O discurso majoritário no Ocidente, o científico, se propõe de outra dimensão que não o espiritual ou religioso, entretanto, cabe a nós alguns tensionamentos em relação aos efeitos "religiosos" que atualmente produz. Se o argumento para o consumo ou preparo específico de algum alimento fosse exclusivamente "científico", não figuraria em nossa alimentação o consumo de substâncias que a "ciência nutricional" condena, sob os cânones da bioquímica ou da fisiologia. Mas o sujeito tem certo potencial inovador, transgressor, que se manifesta também no campo alimentar mesmo sendo uma espécie definida taxonomicamente como onívora - com uma dieta potencialmente irrestrita. Processo este que se dá numa tensão diária, entre controles e normas alimentares produzidas nos cânones de cientificidade e as transgressões potencializadas pelos resultados dessa mesma ciência em seus desdobramentos tecnológicos.

 

Ser Onívoro: Possibilidade ou Sentença, na Dicotomia Cultura/Natureza

Alguns estudos exploram a dimensão conflituosa que sustenta o "paradoxo do onívoro", indicando que homens e mulheres buscam a diversificação e inovação ao mesmo tempo com prudência e desconfiança em relação ao novo (Fischler, 1995). Segundo Fischler (1995), o paradoxo do onívoro está entre a neofobia (medo do desconhecido, resistência ao novo e prudência) e a neofilia (tendência a explorar, necessidade de mudança, de novidade e variedade). Essa oscilação entre o familiar e desconhecido, a monotonia e variedade, e de mudança ou segurança, é relacionada por Fischler (1995) ao paradoxo do onívoro com a ansiedade ou angústia na escolha alimentar. Trata-se de um processo de decisão- passar a fronteira entre o mundo (de fora) e o nosso corpo (de dentro) -, chamado por Fischler (1995) de incorporação.

Para criar estratégias em relação a angústia gerada pelo paradoxo do onívoro existem diversos mecanismos, circunscritos tanto pelos atravessamentos sociais e, particularmente, do capital na atualidade, quanto dos processos que delineiam esse comer diante de um aparato de técnicas. As cozinhas, por exemplo, são espaços intrinsecamente relacionados com um corpo de práticas e técnicas, representações, normas, regras e classificações, pautadas culturalmente, tendo como uma das suas características sua intrínseca relação com o paradoxo do onívoro (Fischler, 1995). Parte constituinte do nosso tempo histórico, a cozinha se constitui nessa trama com o paradoxo do onívoro no sentido que exige método, procedimentos, consumo de aparatos e artefatos cada vez mais novos e preparados ao diverso.

Ao mesmo tempo em que precisamos de uma alimentação variada para satisfazer as necessidades nutricionais, estabelecemos relações com os alimentos que vão além das funções biológicas, com implicações nos processos de identificação e diferenciação. As sociedades criam "prerrogativas alimentares", que são conjuntos de categorias que definem a ordem do que é comestível ou não e as formas (ou tecnologias) necessárias para a obtenção desses alimentos, do que deve ser comido ou como deve (ou pode) ser preparado (Poulain, 2010). Estas atividades se desenvolvem, produzem e se esquivam de certos 'riscos', associados a questões contextuais como são a emergência e acentuação de uma vida urbana, a modificação intensa nos processos de produção de alimentos (desde o avanço de técnicas já tradicionais, como a irrigação e os cruzamentos artificiais até processos de maior refinamento bioquímico, como é o caso da produção dos transgênicos), e as diversas intersecções de marcadores sociais, como classe, raça/etnia/geografia, gênero, que tornam o acesso à alimentação (assim como o medo da fome) uma temática marcantemente assimétrica no cotidiano atual. O modo de vida urbano, em específico, ressignificou a relação do ser humano com a sua alimentação, e a busca por uma dieta prática, muitas vezes industrializada, também desencadeou a um distanciamento progressivo com o ciclo de produção dos alimentos - origem, produção, conservação, armazenamento e transporte - (Contreras, Gracia, 2011).

Outro aspecto histórico marcante do processo alimentar na cultura majoritária ocidental, e que nos dá pistas sobre as formas do interagir eurocêntrico com os alimentos em todo o mundo, é sua relação com o trabalho - proveniente do processo de industrialização. O crescimento de uma economia global acirrada, o aumento vertiginoso da urbanização e a centralidade do trabalho formal como marcadores sociais geraram efeitos importantes sobre as práticas alimentares globais, especialmente pós Revolução Industrial - inicialmente no hemisfério norte e, com as expansões comerciais e colonizadoras, em todo o mundo. Com a criação do 'indivíduo trabalhador/trabalhadora', máquina falante - que perde a capacidade de se autogerir, pois, como bem retrata Charles Chaplin em "Tempos Modernos", é somente um instrumento de trabalho - se concebe o ser humano enquanto força de produção. E cada força tem um valor e esse valor gera possibilidades de acesso distintas aos alimentos.

Esses processos laborais materializam uma série de concepções do que é o ser humano, ao mesmo tempo em que demonstra um novo patamar no processo de globalização iniciado nas navegações. Serve de exemplo para fazer emergir alguns marcadores da cultura Ocidental contemporânea, que nos convidam a pensar a forma com que a alimentação foi compreendida. A concepção de pessoa do período industrial foi marcada pela noção do físico, do palpável, em que o corpo é tomado como máquina concreta, munida de dispositivos que permitiriam uma vontade para intervenção positivista no mundo (Duarte, 2003). Nesse sentido, é notável observar um exercício de racionalização e de reiteração que circunscreve a Industrialização numa suposta 'natureza humana' que deveria estar preparada para o trabalho. Herdeira do Iluminismo em sua centralidade e positivamente ligada a uma ideia mecânica do corpo humano, esse processo contribuiu de forma relevante para a aproximação do ser humano a uma concepção de máquina-humana-de-consumo-de-combustível - o que torna significativa a referência à indústria alimentar e farmacêutica e a emergência de produtos otimizados, elixires para a saúde do trabalhador do século XIX (Perrot, Bottmann, Joffily, 2009).

Como um maquinário, o indivíduo passa a executar as tarefas no tempo ótimo (em termos mercadológicos) e, então, também se alimenta de forma mercadologicamente otimizada. O alimento passa a ser cada vez mais o combustível para manter a máquina-humana em funcionamento e, dessa forma, percebemos uma modificação na dimensão psico-social-cultural da alimentação. O tempo escasso, o refeitório da fábrica, o cansaço excessivo após longas horas de trabalho e a miséria de salário - representando o mínimo de custo com a máquina-humana - redesenham as dimensões culturais e subjetivas de mulheres e homens com o alimento. Na medida em que as sociedades vão se adaptando a esse novo quadro de relação alimentar, entram em diferentes estágios daquilo que se tem chamado de "transição nutricional". Essa transição se caracteriza por um aumento no consumo de alimentos com grande densidade energética, ricos em gordura e açúcar refinado, e uma diminuição de carboidratos complexos (ricos em fibras), expressão das transformações ocidentais com as alterações sócio-político-econômicas presenciadas nos séculos XIX, XXe XXI.

Estas transformações podem ser relacionadas com a posterior substituição do modelo de sustentação do capitalismo - da tríade Estado nacional, modelo de Bem-Estar Social, e modelo taylorista-fordista, sua produção em série e em massa, para a tríade Globalização, Estado neoliberal e a reestruturação produtiva. Nesta modificação, expressa pelo novo modelo de capitalismo que se efetiva, alterava-se, principalmente, aspectos subjetivos que acentuavam a noção de individualidade (Ruiz, 2003). A fragilização das identificações tradicionais e a construção de novas possibilidades identitárias acarretaria, consecutivamente, formas outras de pensar e transformar a realidade, incluída aí a relação/conceituação dos alimentos. Do sujeito-coletivo - fonte de identidades sociais fixas - para o indivíduo-fragmentado - fonte de identificações pulverizadas; dos alimentos locais, sazonais e tradicionais, para os novos alimentos: globais, atemporais e comercialmente orientados.

Com a intensificação de aspectos globalizantes no final do século XX, problemáticas relacionadas aos tensionamentos regional/mundial, identidade nuclear/identidades múltiplas, muito influenciadas pela emergência da comunicação em massa, promovem discussões acerca das noções de cultura e subjetividade. A aceleração e saturação de marcadores da Modernidade (Lipovetsky, 2005), a liquidez das relações contemporâneas (Bauman, 2007), e a velocidade como um importante vetor social para o entendimento dessas modificações (Virilio, 1996) são algumas destas leituras. Para além das divergências teóricas, estas reconhecidas interpretações acadêmicas envolvem a percepção da modificação incomodamente rápida de aspectos psicossociais. Como afirma Ruiz, se produzem subjetividades mais flexíveis e se consolidam paradoxos constituídos, tais como fragmento-homogeneização e liberdade-submissão (Ruiz, 2003).

O processo de globalização que marca intensamente o século XX - e que abarca o tensionamento entre uma estética industrial e a constante fragmentação identitária - incrementa-se em diferentes paradoxos, o que não exclui a relação alimentar desse panorama. Entre a possibilidade transnacional, evidenciamos a homogeneização de certos processos de produção alimentar e a sensação de perda da diversidade nos planos econômico, ecológico e cultural (Amon, 2014). Esse estado de emergência social, da velocidade, da intensidade das relações de consumo e criação de mercado consumidor, perpassa diversos aspectos da vida e nos faz pensar no 'oroboros'2 contemporâneo, que é consumir rápido para produzir e produzir rápido para consumir mais. Além disso, nos mostra interfaces entre um tempo de trabalho herdeiro do período industrial, a estruturação de um mercado globalizado de tendências hegemônicas, e a multiplicidade de escolhas permitidas aos sujeitos consumidores contemporâneos - que lhes situa num panorama identitário múltiplo.

Essa 'fragmentação' identitária fala não só da relação com o tempo e o espaço contemporâneos - caracterizados pela comunicação rápida, pela diminuição das distâncias, possibilidades de consumo e criatividade das sociedades globalizadas - mas também do que se pode chamar um processo de individualização hedonista e por vezes angustiante, de recusa à identidades fixas herdadas do Iluminismo (Hall, 2005). Uma sociedade menos ligada às expectativas positivistas e mais facultativa, fundamentada no aqui e agora, que põe em pauta a realização do desejo imediato. Na interpretação de Lipovetsky (2005) trata-se de uma radicalização dos aspectos da Modernidade, e de uma modificação do capitalismo que se torna de autoritário, para hedonista e permissivo. Segundo essa leitura parece coerente que a comida e o momento das refeições também passem a ser mais individualizados, homogeneizados, banalizados, acelerados, nesta alteração do espaço da sociabilidade, do simbólico e do afetivo (Amon, 2014).

Um exemplo usual nesta perspectiva é o crescimento, nas últimas décadas do século XX, de cadeias de restaurantes de estilo fast food, principalmente de origem estadunidense. O sociólogo George Ritzer, por exemplo, descreve o fenômeno da sociedade contemporânea, utilizando o termo McDonalização, comparando a sociedade com as características de um restaurante de comida rápida (fast food) (Ritzer, 2011). A racionalidade dos tempos atuais pode ser traduzida por quatro componentes: eficiência, quantificação, previsibilidade e controle - todos esses de paralelismo muito ilustrativo se pensarmos em seu impacto no processo de produção, comercialização, preparo e consumo de alimentos. O impacto dessa transição incide, também, na dimensão nutricional e é observado espacialmente na saúde, com o aumento significativo da obesidade e de doenças e agravos não transmissíveis, em todo o mundo, além de áreas como a da economia rural e de geoprocessos globais, como as migrações de pessoas e de capitais (Proença, 2010).

Conforme aponta Santos (2001), a intensificação da interdependência transnacional e das interações globais faz com que as relações sociais pareçam hoje cada vez mais desterritorializadas, ultrapassando as fronteiras dos costumes, dos nacionalismos, dos idiomas, das ideologias e de todos os demais marcadores de fronteira antropológica, como as práticas alimentares. Neste panorama ocidental, em que os processos de identificação social galgaram, no período contemporâneo, um estatuto de maior fluidez e incerteza, traçaram-se diversas influências ideológicas, tais quais o fisicalismo, a psicologização e o hedonismo - que também atravessam e se organizam pelo campo alimentar, talvez o vetor mais potente e indispensável do consumo humano. Mas o que significa pensar hoje nas interfaces entre a globalização, a tecnologia, e o corpo a ser nutrido quando do alimentar-se? É no processo constante desse fazer histórico que mulheres e homens constroem o "universo simbólico", isto é, o mundo das representações que são potencializadas e produzidas por intermédio da sociedade, em sua complexa trama cultural. Hábitos, valores, crenças e costumes seriam negociados nessa trama cultural em que alguns marcadores históricos se interpõem. Essas diferentes leituras parecem demandar, a despeito de olhares acadêmicos considerados mais tradicionais ou dissidentes sobre o comer, um panorama teórico em renovação.

 

Poderia haver uma cosmologia alimentar contemporânea?

Para além dos problemas de produção, acesso e distribuição de alimentos na contemporaneidade é uma grande questão a ser discutida, em especial nas sociedades desenvolvidas pós-industriais, somada à própria definição de qualidade alimentar. De todas as assimetrias e iniquidades sociais fomentadas pelas sociedades capitalistas, o acesso à alimentação de qualidade é um grande desafio. O grande número de opções e a incerteza dos consumidores sobre todos os processos de PCPC, atualmente a origem dos ingredientes tornou-se um dos fatores centrais do mal-estar e dúvida em escolhê-los para além da dimensão apenas econômica. Além disso, em função do mercado competitivo, característico do atual cenário econômico, os novos produtos lançados diariamente geram dúvidas se forem muito diferentes dos já conhecidos e mais aceitos (Contreras, Gracia, 2011).

Simultânea à identificação da postura de afastamento e ignorância em relação ao que comemos - figurando no que se compreende como certa despersonalização e industrialização da alimentação, o uso de aditivos, agrotóxicos e transgênicos (Menasche, 2004) - reconhecemos que no atual período histórico nunca se estudou tanto sobre a relação dos alimentos com doenças, fisiologia, bioquímica, metabolismo. As ciências biológicas e da saúde, que se modificaram de forma extraordinária, passaram a funcionar sob a égide científica da classificação e categorização dos alimentos em nutrientes, composição química, funcionalidade, driblando e, muitas vezes negando a sua complexidade social e cultural (Contreras, Gracia, 2011).

Na contemporaneidade parecemos conviver com o mal-estar proveniente do tensionamento entre uma memória social associada ao campo tradicional e romantizado da família nuclear ocidental (conjuntura na qual o alimento é sabido em termos de origem e preparo, cujo consumo é circunscrito em momentos de comunhão, afeto - vide os anúncios de margarina) e uma diversidade de produtos para o consumo solitário, rápido e funcional, derivado dos processos de industrialização da economia e da cultura como um todo. A tecnologia de produção que sustenta a materialidade desses alimentos na contemporaneidade é percebida, nesse tensionamento, como uma "artificialização" indesejável por muitos coletivos (Contreras, Gracia, 2011). Nos últimos cinquenta anos, o ritmo das inovações alimentares apresentou aumento de forma acelerada. Segundo Pollan (2008) a cada ano 17 mil novos produtos alimentícios são lançados no mercado. O desenvolvimento tecnológico-industrial de alimentos tem levado a uma perturbação da função dupla identificadora do culinário, ou seja, a identificação do alimento e seu papel na construção de uma relação identitária com os indivíduos de cada coletivo ou comunidade (Contreras, 2007). Ao passo que temos uma variedade interessante para públicos não pensados anteriormente, como diabéticos e intolerantes a certas substâncias (glúten e lactose, só para ficar nos exemplos mais publicizados na atualidade), a discussão social sobre as novas alternativas alimentares não tem acompanhado grande parte dessas criações. É como se a "crise" de nossa relação com os alimentos fosse maior do que apenas uma metáfora do mal-estar que aparentemente parece existir em relação ao modelo de sociedade, como um todo.

O ano de 2011, por exemplo, parece particularmente importante quando nos debruçamos sobre estas questões, principalmente quando o situamos num processo global de eventos sociais de repercussão midiática em diferentes partes do globo (Harvey, 2012). De acordo com Pizzinato e colaboradores (2016), vários autores apontam que a partir desse período a mídia começa a perceber várias ações coletivas antissistema no globo: a derrubada de regimes políticos na Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen no continente africano; nos territórios europeus, com ocupações e greves como as acontecidas na Espanha e Grécia, revoltas no subúrbio de Londres; ações coletivas em ocupações na Wall Street, nos EUA; ou nos eventos ocorridos na Rússia (desde as ativistas do Pussy Riot, até as ações independentistas), na criação de novos partidos políticos não convencionais, formas de resistência à globalização e descrédito com o modelo político democrático convencional como um todo.

Nesse contexto, de resistência e transgressão, mesmo que nem sempre com devido foco ou crítica, ressurgem movimentos identitários regionalistas, retomam-se também ideais romantizados das noções tradicionais de comunidade e, na mesma esteira, o "resgate" de certos alimentos, seletivamente batizados como "tradicionais" e, portanto, mesmo sem romper com a lógica do sistema capitalista em que estamos inseridos adquirem novos valores, muitas vezes sob o rótulo de "agroecológico". Ao mesmo tempo, alimentos geneticamente modificados, animais alimentados com ração feita de cereais complementada com antibióticos, sangue e ossos animais; salmão alimentados com ração e corantes artificiais para dar cor à carne, produtos industrializados "enriquecidos" (vitaminas, polifenóis, antioxidantes, fibras...), adoçantes artificiais que não são absorvíveis (e por isso não calóricos) são exemplos da crescente tecnificação industrial da alimentação atual, numa tecnificação nunca sonhada pelos pioneiros dos cruzamentos de hibridização e enxertagem.

A percepção da industrialização como artificialização - a que tanto o discurso agroecológico se opõe - é facilmente compreendida se levarmos em conta que a frequente transformação dos alimentos distancia a relação dos processos de produção do consumidor final, expandindo, dessa forma, a cadeia alimentar em um processo considerado cada vez menos "humanizado", menos "relacional". Essa "artificialização" da alimentação evidenciada pelo uso de conservantes, corantes e aromatizantes artificiais, na agropecuária, com o uso de agrotóxicos e adubos químicos industrializados no processo de produção dos alimentos, aumenta a ingestão de substâncias que causam intoxicações silenciosas, muitas vezes cumulativas, ao par de uma série de controles de vigilância alimentar na proteção de outros elementos potencialmente danosos (como os de origem biológica, na conservação e contaminação bacteriana, por exemplo).

É a partir da reflexão sobre esse distanciamento relacional e substantivo dos alimentos de suas relações tradicionais na cultura que Claude Fischler cunhou o termo "Objeto Comestível Não Identificado" (OCNI), um trocadilho de estranheza valendo-se da metáfora com a definição de Objetos Voadores Não Identificados (OVNIs), popularmente utilizada como referência de estranheza, ainda que originalmente tenha um uso limitado, no campo da física espacial (Fischler, 1995). Na categoria OCNI se enquadrariam os alimentos geneticamente modificados, que começaram a ser produzidos em 1983 e que estão no mercado desde 1999. Ainda sabemos pouco sobre seus efeitos no organismo humano e no meio ambiente (Zanon, Ferment, 2011; Smith, 2009).

O processo de industrialização alimentar gerou um aumento de acesso ao consumo de alimentos com grande concentração de energia, açúcares, gorduras e sódio e diminuição de proteína e fibras (Whitworth; World Health Organization, International Society of Hypertension Writing Group, 2003). A classificação de produtos de consumo alimentar, baseada no grau de processamento dos alimentos, agrupa os alimentos em: alimentos in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários processados e produtos prontos para o consumo. Os alimentos prontos para o consumo, processados ou ultraprocessados (estes últimos, formulações da indústria), contendo pouco ou nenhum alimento integral, geralmente vendidos em porções maiores do que as necessárias para a saciedade, normalmente possuem outra característica modificada: a "hiperpatabilidade", pela adição de substâncias que realçam sabores, uniformizam os produtos e prolongam sua duração. O consumo dos ultraprocessados é o mais promovido pelas estratégias de marketing das grandes indústrias alimentares que costumam associar sua estabilidade e a tecnificação de seus processos físicos, químicos e biológicos à segurança nos processos de PCPC alimentares (Monteiro, 2001; Monteiro, Levy, Claro, De Castro, Cannon, 2011; Moubarac e cols., 2013).

Essa noção de segurança alimentar - baseada no controle da e na técnica gera uma visão dos processos de PCPC de alimentos que vêm sendo combatida pelo discurso "agroecológico", que se alinha a outros discursos de resistência e transgressão das imposições do sistema capitalista - em outros patamares políticos, como os já citados. O principal argumento dessa visão de alimentação é o resgate de uma certa naturalidade das relações alimentares, a começar, pela do próprio alimento.

Mas o que seria um alimento in natura nos dias de hoje? Como avaliar ou dimensionar o impacto no humano na constituição do que definimos como alimento? O cozimento? A comercialização? A manipulação genética? Seriam os alimentos sujeitos à mesma definição que autores como Preciado (2011) dão às pessoas, como "sujeitos tecnológicos"? Definir que o alimento "sempre" é tecnológico pode parecer contraditório para os que advogam por certo essencialismo acultural do que se define por alimento, ou pela naturalização das características químico-fisiológicas como a "verdade" acerca do que se pode ou se deve aceitar por alimentos. A considerada 'alta tecnologia' se apresenta quase sempre como algo melhor, mais rápido, mais eficaz, sempre mutante, o próprio motor da história e do tempo. Os alimentos, ao contrário, mesmo quando têm seu caráter histórico posto em evidência, seguem sendo descritos em um marco mais ou menos estável, atemporal e naturalizado. É como se o alimento fosse a última fronteira "natural" do humano, depois que outras dimensões de tecnologia se debruçaram sob as possibilidades de redimensionar o corpo humano.

Para a construção desse argumento, é interessante a noção defendida por Donna Haraway (1998) de que o discurso antropológico e colonial se vale da noção de tecnologia para definir o "naturalmente" humano. Em boa parte da discussão antropológica (e psicológica, em muitos casos), o humano é definido, sobretudo como um animal que utiliza instrumentos, em oposição aos demais animais (Preciado, 2011). A noção de tecnologia defendida por Haraway (1998) é outra, a da totalidade dos instrumentos que as pessoas fabricam e empregam para realizar coisas, dentre elas, alimentarem-se. A noção de tecnologia é, então, uma categoriachave ao redor da qual se estrutura o conceito de humano. Mesmo assim, muitos movimentos sociais advogam atualmente por uma revolução antitecnológica do processo de produção, comercialização, preparo e consumo de alimentos, libertando pessoas e alimentos do poder coercitivo das tecnologias atuais para fundir-se em um processo "natural". O problema da radicalização desses planteamentos é que a tecnologia vem para modificar uma natureza dada, ao invés de pensar a tecnologia como a própria produtora do conceito de natureza.

Portanto, mesmo que com isso não consigamos definir uma única cosmovisão sobre os processos alimentares na contemporaneidade, evidencia-se um embate potente de visões, talvez um dos focos dessa angústia e dessa necessidade de se repensar o alimentar. É mais nos seus dissensos do que em seus consensos que essa fratura de projeto de unicidade se potencializa, ilustrando a complexidade e a potência dos fazeres humanos mesmo os mais naturalizados. Questionarmos os processos de PCPC do sistema de alimentos é muito mais do que discutir elementos biofisiológicos de seres e/ou substâncias. É, de forma implicada, construirmos outras realidades - mesmo que menos deterministas - neste campo.

 

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Recebido em: 03/08/2017
Aprovado em: 15/10/2018

 

 

1 As plantas tradicionalmente cultivadas pelos Mbyá-Guarani são o milho, mandioca, amendoim, feijão, abóbora, melancia, batatadoce, banana, canade-açúcar, fumo.

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