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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo Sept./Dec. 2020

 

DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA

 

Comunidades tradicionais e conflitos socioambientais: e a psicologia com isso?

 

Traditional communities and socio-environmental conflicts: and psychology with it?

 

Comunidades tradicionales y conflictos socioambientales: ¿y psicología con esto?

 

 

Eugênia Bridget Gadelha FigueiredoI; Bader Burihan SawaiaII

IPsicóloga e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora Adjunta da Universidade Federal do Piauí, curso de Psicologia. Membro do Grupo de Pesquisa da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia do Brasil (ANPEPP), intitulado: A Psicologia Sócio-Histórica e o Contexto Brasileiro de Desigualdade Social. Vice-coordernadora do Núcleo de estudos em psicologia crítica e políticas de subjetivação (NUPOLIS) da UFPI. Membro do grupo de pesquisadores do Núcleo de Estudos sobre a dialética Exclusão/Snclusão social (NEXIN). Suas pesquisas versam sobre desigualdade social, comunidades tradicionais, afetividade e política, práxis psicossocial e saúde coletiva / ebgfigueiredo@gmail.com
IISocióloga e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora Titular do curso de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP. Membro fundadora do Grupo de Pesquisa da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia do Brasil (ANPEPP), intitulado: A Psicologia Sócio-Histórica e o Contexto Brasileiro de Desigualdade Social. Suas pesquisas versam sobre afetividade e política, desigualdade social e transformação social / bsawaia13@gmail.com

 

 


RESUMO

Temos como preocupação central neste exercício teórico buscar trilhas de superação dos efeitos do sofrimento ético-político produzido nos/pelos conflitos socioambientais que atravessam a constituição do processo de exclusão/inclusão social das comunidades tradicionais no Brasil. Compreendemos que a defesa de um mundo comum habitável passa pelo fortalecimento das comunidades tradicionais e que a defesa de seus conhecimentos, territórios e práticas socioambientais é um ato político-ecológico estratégico para a humanidade. Assim, sem desacreditar na força do sentimento de pertença que configura identidades/singularidades, propomos a necessária ampliação de movimentos/ideias que contribuam para a composição de corpos mais permeáveis ao sentimento do comum. Este afeto tem como princípio ético o reconhecimento dos outros corpos como potência em ato indispensável a costura da vida e como princípio político a apropriação do interesse comum como interesse pessoal. Neste sentido, defendemos o aprimoramento das relações humanas como horizonte ético-político da psicologia social.

Palavras-chave: Sofrimento ético-político; Comunidade tradicional; Conflitos socioambientais; Sentimento do comum; Psicologia.


ABSTRACT

The central concern of this theoretical exercise is to seek ways of overcoming the effects of ethical-political suffering produced in the socio-environmental conflicts that go through the constitution of the social exclusion/ inclusion process of traditional communities in Brazil. We understand that the defense of a common habitable world involves strengthening traditional communities and that the defense of their socio-environmental knowledge, territories and practices is a strategic political-ecological act for humanity. Thus, without discrediting the strength of the “feeling of belonging” that configures identities/ singularities, we propose the necessary expansion of movements / ideas that contribute to the composition of bodies more permeable to the “feeling of the common”. This affection has, as its ethical principle, the recognition of other bodies as a powerful of life and transformation action, and as a political principle the appropriation of common interest as a personal interest. In this sense, we defend the improvement of human relations as the ethical-political horizon of social psychology.

Keywords: Ethical-political suffering; Traditional community; Socio-environmental conflicts; Feeling of the common; Psychology.


RESUMEN

Tenemos como preocupación central en este ejercicio teórico buscar senderos de superación de los efectos del sufrimiento ético-político producido en los conflictos socioambientales que atravesan la constitución del proceso de exclusión/inclusión social de las comunidades tradicionales en Brasil. Comprendemos que la defensa de un mundo común habitable pasa por el fortalecimiento de las comunidades tradicionales y que la defensa de sus conocimientos, territorios y prácticas socioambientales es un acto político-ecológico estratégico para la humanidad. Así, sin desacreditar en la fuerza del sentimiento de pertenencia que configura identidades/singularidades, proponemos la necesaria ampliación de movimientos/ideas que contribuyan a la composición de cuerpos más permeables al sentimiento del común, afecto que tiene como principio ético el reconocimiento de los otros cuerpos como potencia en acto indispensable la costura de la vida y como principio político la apropiación del interés común como interés personal. En este sentido, defendemos el perfeccionamiento de las relaciones humanas como horizonte ético-político de la psicología social.

Palabras clave: Sufrimiento ético-político; Comunidad tradicional; Conflictos socioambientales; Sentimiento de lo común; Psicología.


 

 

Introdução

Presenciamos no Brasil a intensificação, de conflitos socioambientais que atingem de maneira direta as comunidades tradicionais, povos historicamente marcados pela opressão, exploração de sua força de trabalho e degradação de seus territórios. O Mapa de Conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil apresentado por pesquisadores da FIOCRUZ em 2017 registrou 571 focos no território nacional e apontou dados relevantes sobre o problema, dentre eles: (a) quase metade dos conflitos socioambientais estão concentrados em áreas rurais, 48,81%; (b) cerca de 70% atingem diretamente as comunidades denominadas tradicionais; (c) 58% destes conflitos são causados pela atuação de instituições governamentais e 65,80% tem como principal elemento gerador a alteração no uso e manejo das reservas naturais e ocupação do território.

Os impactos negativos mais frequentes na saúde dessas comunidades, apontados no Mapa, são: violência, insegurança alimentar e nutricional, redução da qualidade de vida, estes últimos diretamente ligados a degradação dos recursos naturais do território e dos vínculos comunitários.

Dos dados apresentados pelos pesquisadores da FIOCRUZ podemos ainda identificar, alguns movimentos que determinam as dinâmicas desses conflitos e suas formas e que, portanto, são significativos para a compreensão do problema: (a) estão concentrados em áreas de uso ancestral comum, com grande potencial de reservas naturais a ser explorado o que revela a utilização sustentável dessas reservas pelos povos denominados tradicionais; (b) o Estado tem papel relevante nas dinâmicas produzidas o que indica a existência de um projeto de exploração dessas reservas em curso, que não contempla a participação e as necessidades das comunidades comprometendo a saúde das mesmas; (c) a exploração das reservas naturais é o alvo da cobiça, em última análise, a gênese dos conflitos encontra-se radicada nas novas formas de (re)produção e acumulação do capital.

Diante de tal cenário não é possível deixar de ressaltar a intencionalidade desses movimentos tecidos dentro de um sistema que busca o lucro máximo na exploração indiscriminada das reservas naturais compondo o que Mészáros (1989) denominou processo de produção destrutiva. Esse processo fica ainda mais evidente quando tomamos como exemplo os dois crimes socioambientais cometidos pela Companhia Vale do Rio Doce em Minas Gerais que expôs o poder de destruição da atividade mineradora exercida em conformidade com a lógica do lucro máximo. Uma lógica para a qual a valorização da vida é apenas um detalhe e não o eixo central de organização das atividades humanas.

Neste processo, o sistema trabalha para que além da esfera ecológica as esferas social e psicológica se degradem em benefício da manutenção da acumulação de capital, operando em um estado limítrofe de tensão entre a destruição das reservas naturais, o esfacelamento das seguranças políticas e a quebra dos vínculos humanos.

Sua forma de exploração e acumulação exige a tomada de territórios subjetivos/materiais configurando o que Harvey (2007) chama de acumulação por espoliação1. Forma de acumulação que consome não apenas o espaço, mas também, captura subjetividades e poder. Os efeitos desse processo de produção destrutiva e sua forma executiva de acumulação por espoliação não atingem a todos de maneira igual. Os países e populações pobres são os mais afetados. Esses são movimentos globais, assentados nas novas bases para a acumulação de capital.

Economistas como Dowbor (2017), filósofos como Mèszáros (1989), Dardot e Laval (2016), geógrafos tal Harvey (2007) e Santos (1985), entre outros estudiosos nos ajudam a compreender as fundações que permitem a execução do modus operandi de acumulação de capital vigente e que interditam a promoção de igualdade e justiça social. Em comum, esses estudiosos apontam: um sistema econômico que não funciona para a maioria da população mundial (o rentismo produz concentração de renda nas mãos de seletos grupos multinacionais) concentrando a riqueza, que por sua vez, promove também a concentração de poder. Para Dowbor (2017, p. 35) "a armadilha se fecha. É o que chamamos de 'captura do poder'. O sistema não deixou apenas de funcionar para a população em geral, mas deixou de funcionar como sistema."

Como vimos, no Brasil, as comunidades tradicionais são as mais afetadas por essas dinâmicas. Quando não são despejadas de seus espaços nos quais tecem um modo peculiar de existência, permanecem neles ficando diretamente expostas aos efeitos da espoliação e da degradação ambiental. Estamos falando de 8 milhões de pessoas que ocupam 1/4 do território nacional (Zimmerman, 2009) e que vivem quase que exclusivamente das reservas naturais de seus territórios. Elas resistem as estratégias de espoliação implementadas e os conflitos explodem, muitas vezes de forma violenta, neste sentido, os conflitos socioambientais ocorrem quando:

grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território se enfrentam, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis - transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos - decorrentes do exercício das práticas de outros grupos. (Acselrad, 2010, p. 26)

Importante sublinhar que para esses povos os movimentos de resistência não objetivam apenas assegurar a propriedade privada e a exploração indiscriminada dos recursos do território, tal como na racionalidade do sistema hegemônico. A defesa do território é, ao mesmo tempo, a defesa de suas formas de (re)produção psicossocial que não se situam dentro da lógica do lucro máximo e adotam técnicas de exploração mais sustentáveis das reservas naturais. Para Zhouri (2008, p. 18) o conflito eclode "quando o sentido e a utilização de um espaço ambiental por um determinado grupo ocorrem em detrimento dos significados e usos que outros segmentos sociais possam fazer de seu território, para com isso, assegurar a reprodução do seu modo de vida."

Nesta outra forma de conceber e constituir uma vida humana, território e comunidade são elementos indissociáveis da ação coletiva que delineiam formas de pensar, sentir e agir elaborando as biografias singulares e as características particulares de organização psicossocial de cada povo/comunidade. Mas, são singularidades/particularidades em relação que se deparam com questões comuns, articuladas aos processos de acumulação do capital em cada momento histórico ameaçadoras de sua potência de existir.

Neste contexto, delineado por conflitos socioambientais, frentes populares, científicas, e normativas se apresentam como campos cujos movimentos/ideias revelam mais claramente as arenas de disputa e servem de base para a conformação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). No campo socioambiental, conservacionistas ortodoxos defendem a proibição total da exploração de determinadas áreas ricas em biodiversidade, inclusive, a retirada das populações com a criação de parques nacionais, uma espécie de poupança ambiental.

Em contraposição, a ecologia social tem argumentado que a biodiversidade não é um conceito simplesmente biológico, relativo à diversidade genética de indivíduos, de espécies, e de ecossistemas, mas é também o resultado de práticas, muitas vezes milenares, das comunidades tradicionais que domesticam espécies, mantendo e, em alguns casos, aumentando a diversidade local (Diegues, 2004).

Nessa perspectiva, além de serem responsáveis pela exploração sustentável dos ecossistemas são também responsáveis pela ampliação da biodiversidade e essa possibilidade existe a partir da produção de práticas e saberes relativos ao território e aos ciclos de vida nele presentes e compartilhados por gerações. A ecologia social defende, assim, que a sustentabilidade depende principalmente dos costumes, dos conhecimentos produzidos e compartilhados por esses sujeitos/comunidades e não apenas do aprimoramento técnico-científico de exploração dos recursos naturais esgotáveis, aos quais a maioria dessas comunidades sequer tem acesso em virtude do processo histórico de isolamento ao qual estão submetidas.

Ela é garantida por "práticas resultantes de uma coevolução entre as sociedades e seus ambientes naturais, o que permite a conservação de um equilíbrio entre ambos" (Diegues, 2004, p. 12). Em última instância, isso nos diz que se quisermos proteger e/ou ampliar as reservas que garantem a possibilidade de vida dos modos existentes temos que compor com essas comunidades um corpo político mais forte para os enfrentamentos/negociações nas arenas de disputa.

Há nesta concepção, da ecologia social, grande contribuição de estudos e pesquisas das ciências sociais e humanas, em especial, da antropologia que vai fundamentar o reconhecimento das diferenças socioculturais (multiculturalidade) como argumento inapelável na/pela construção de novas relações entre os diferentes modos de vidas que compõem o tecido social no país. Nessa perspectiva, a afirmação de uma nação multicultural seria a ação política propulsora das transformações das relações desiguais de poder e a possibilidade de manutenção das riquezas naturais.

A afirmação de identidades que se fundam numa outra lógica (diferente da do mercado e que mantém modos de vida sustentáveis) parecia ser a saída viável para ações coletivas de fortalecimento das ações políticas voltadas à proteção psicossocial das comunidades tradicionais. O sentimento de pertença, afeto que preenche o processo de configuração identitária, foi/é potente na organização dos movimentos coletivos de resistência e na delimitação de algumas normas jurídico-constitucionais em defesa desses povos.

Mas, na particularidade brasileira alguns entraves se apresentam e parecem aprisionar as ações políticas na esfera identitária e as mantêm sob os auspícios da Lei, entre eles: (a) a própria configuração sociohistórica do país, fundada no escravismo, na desigualdade extrema e, portanto, violenta entre os diferentes grupos que a compõe, com supremacia da cultura branca, europeia; (b) a lógica neoliberal que atravessa as práticas econômicas, sociopolíticas e os ordenamentos jurídicos voltados para as garantias individuais em detrimento do direito coletivo reclamado por estes grupos. Segundo Rocha e Serra (2015, p. 73) "a sobrevivência do multiculturalismo em um mundo no qual o Estado reconhece, protege e pretende transformar todos os direitos em individuais, é quase impossível;" (c) as ações inconsistentes do Estado quando não predatórias, pois, o Estado brasileiro é responsável pela eclosão da maioria dos conflitos estabelecidos no território nacional e as práticas socioinstitucionais discriminatórias e de tutela que aprofundam a desigualdade submetendo ao sofrimento de natureza ético-política singularidades e coletivos.

O sofrimento ético-político é o fundamento da questão psicossocial a que nos dedicamos neste artigo. Em outras palavras, temos como preocupação central buscar trilhas de superação ou, no mínimo, a mitigação dos efeitos desse sofrimento gerado pela desigualdade e agravado pelos conflitos socioambientais que, ao mesmo tempo, atravessam a constituição do cenário sociopolítico de exclusão/inclusão social desses grupos no Brasil. Como define Sawaia (2001, p. 370), o sofrimento ético-político é: "sofrimento/paixão, gerado nos maus encontros caracterizados por servidão, heteronomia e injustiça, sofrimento que se cristaliza na forma de potência de padecimento, isto é, de reação e não de ação, na medida em que as condições sociais se mantêm, transformando-se em um estado permanente de existência."

Sabemos que a desigualdade, em todas as suas formas de expressão causa sofrimento ético-político o qual, enquanto potência de padecimento pode aprisionar pessoas e grupos em teias de (re)ações que só favorecem aos processos de agudização e cronificação do mesmo. Causa e efeito de condições sociais desiguais e injustas, os afetos que preenchem o sofrimento ético-político (como medo, ódio, vergonha, humilhação) quase sempre levam a quebra do comum, a perda da possibilidade de expansão de potencialidades, a falta de confiança em si, nas instituições, no outro fragilizando ações voltadas para o fortalecimento dos sujeitos, dos vínculos comunitários e, consequentemente, do poder político necessário à existência social de natureza igualitária e livre.

Por ter sua gênese nos maus encontros o sofrimento ético-político só pode ser superado nos/pelos movimentos, ideias e afetos que preenchem as relações sócio-política-afetivas e que determinam as dinâmicas desses encontros entre diferentes sujeitos, interesses e paixões. Quanto maior a simetria nas relações entre os corpos, maior liberdade e autonomia; quanto maior a assimetria maior a heterenomia, servidão e sofrimento.

Assim, tendo sua gênese nas relações travadas com o outro o sofrimento ético-político só pode ser superado por movimentos contrários as causas que o gera e com igual ou maior potência de poder (E IV, esc.1 da prop. 37). E nesse caso, das comunidades tradicionais, as causas estão relacionadas menos com a diversidade de modos de vida e mais com a desigualdade social extrema, a concentração de poder e renda que promovem injustiça, espolia, adoece, discrimina e mata.

Nesse sentido, compreendemos que o enfrentamento do sofrimento ético-político passa, principalmente, pela ruptura com a lógica do modo produtivo vigente e pelo aprimoramento das relações sócio-políticas e afetivas exigindo muito mais que a representatividade da multiculturalidade e a contratualização/conciliação fantasmagórica entre as classes. Essa costura exige poder de negociação e de enfrentamento, no mínimo iguais, nas arenas de disputa o que exige um equilíbrio de forças e definitivamente não é o que vimos acontecer.

Sob a tutela do Estado, à mercê da fragilidade da legislação ambiental e considerados cidadãos de segunda classe as comunidades tradicionais brasileiras, com fraco poder político vão, literalmente, perdendo terreno, sendo engolidas pelos projetos de desenvolvimento nacional e global que não contemplam seus direitos e as submetem a um processo de extermínio e adoecimento que já dura séculos, além de terem seus territórios tragados pela exploração indiscriminada das reservas naturais o que compromete, inclusive, a manutenção da vida planetária.

Diante de tal realidade, movimentos de resistência assentados no sentimento de pertença (afirmação identitária) têm se mostrado necessários, mas, não suficientemente potentes para barrar o avanço da violência contra esses povos e da degradação ambiental. Torna-se urgente ampliar as possibilidades de composição dos mais diversos corpos em relação. Essa é uma ação política que exige elaboração coletiva de novas formas de produção de vida, de subjetividade e de aprimoramento das relações sociais entre os diversos grupos existentes no território brasileiro o que só deve acontecer se esta ação for preenchida pelo sentimento do comum.

 

2. Do Sentimento de Pertença ao Sentimento do Comum

A história das comunidades tradicionais no Brasil revela relações sociopolíticas e afetivas guiadas pelos padrões da cultura europeia/colonizadora, promotoras de desigualdade e violência que resultaram, e ainda resultam, em genocídio, invisibilidade, exclusão social e inclusão social perversa. Zimmermann (2009, p. 47) argumenta que a invisibilidade e a exclusão social promovida por pressões econômicas, fundiárias e/ou por processos discriminatórios evidenciados, principalmente, na "representação desses povos como subdesenvolvidos, primitivos e atrasados apresentam-se como a grande questão social a ser resolvida. "

Essas significações servem como combustível ideológico aos discursos e ações de desqualificação social (Paugam, 2003), racismo cultural (Souza, 2015) e injustiça socioambiental (Zhouri, 2008) que atinge esses grupos e cujo objetivo é a legitimação de processos de (re)colonização e/ou expulsão de seus territórios de origem para privatizá-los e explorá-los. Além disso, facilitam a retirada desses povos da cena política e sua submissão ao Estado.

Na contramão desse movimento, Diegues (2004) afirma, que o uso "subdesenvolvido" da terra e de seus recursos, geralmente descrito como "primitivo e atrasado" pelas agências oficiais de desenvolvimento, tem se mostrado como o uso mais rentável de alguns territórios a curto e médio prazos, mantendo a biodiversidade e os processos naturais de forma eficaz; mesmo que não sirva aos interesses das populações urbanas mais densas e poderosas. O que nos deixa atentos, mais uma vez, à contribuição desses povos na conformação de cotidianos regidos por uma lógica realmente sustentável ignorada pelo Estado brasileiro que tem seus interesses alinhados aos interesses do mercado.

O fato é que os debates e as lutas empreendidas a favor dos povos/comunidades tradicionais resultaram, em 2007, na organização de uma política voltada para sua proteção. A PNPCT, assim os/as define:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (Decreto-Lei nº 6040, 2007, p.1)

Duas questões são centrais para a PNPCT: "o direito ao acesso à terra e o reconhecimento do sentimento de pertença a um grupo diferenciado. Assegurar esse direito à terra significa manter uma organização de vida comunitária a partir da relação direta com a natureza de maneira sustentável e manter vivos na memória os acontecimentos e fatos históricos do grupo ((Decreto-Lei nº 6040, 2007, p.1)

Dessa forma, a PNPCT busca assegurar o direito ao território como condição sine qua non para manutenção dos sistemas produtivos sustentáveis e a organização psicossocial dos sujeitos e das comunidades. O segundo aspecto ressaltado pela política se refere a autoidentificação, a cultura e ao sentimento de pertença. Segundo Diegues (2004, p. 87), comunidades tradicionais são:

grupos coletivos humanos que possuem um modo de vida distinto da nossa sociedade padronizada pela indústria cultural, não produzindo os danos ambientais que as comunidades urbanas produzem; sendo a autoidentificação, o "reconhecer-se como pertencente" uma das mais importantes características para o reconhecimento destas comunidades enquanto povos tradicionais.

Como afirmamos anteriormente, o sentimento de pertença foi/é o afeto que preencheu ideias e movimentos determinantes para a demarcação de garantias às práticas de (re)produção psicossocial (re)afirmando identidades socioculturais diferenciadas daquelas engendradas pelo capitalismo, mas, por outro lado, esse processo no contexto brasileiro atrelou a manutenção dos direitos dessas comunidades a ficção de uma "confiança jurídica" (espécie de pacto/contratualização) exprimindo a ideia hobbesiana que se baseia na hipótese de que para se obter uma organização sociopolítica equilibrada é necessário renunciar ao direito natural de uma vida autorregulada elaborando pactos e elegendo representantes para sua defesa.

Espinosa (2017) apresenta dois obstáculos intransponíveis a essa ideia: (a) a impossibilidade de observância do contrato, pela inconstância da natureza humana; (b) e porque "ninguém pode alguma vez transferir para outrem a sua potência e, consequentemente, o seu direito a ponto de deixar de ser um homem" (TTP, Cap.XVII). Para Espinosa, o direito de cada um [singularidades/coletivos] equivale a sua potência de ação no campo relacional e oscila frente a correlação de forças presentes nos diversos cenários e contextos históricos. Assim, a estabilidade e o poder são sempre transitórios o que significa dizer que pactos podem ser quebrados e (re)formulados a qualquer instante dependo da correlação de forças em ação, mesmo que as normas e costumes tentem garantir o contrato.

Como nos alerta na introdução do Tratado Político:

Sem dúvida, em qualquer sociedade existem costumes e normas, que se destinam a contrariar o aleatório e a introduzir alguma previsibilidade no fluir das ações humanas. Mas, a estabilidade alcançada por esses meios permanece intrinsicamente provisória, visto estar assente, em última instância, não na pura razão, mas nos afetos, sejam esses de medo ou esperança, pelos quais se orienta o comum dos indivíduos, enquanto só alguns, e nem sempre, se orientam pela razão. (Espinosa, 2017, p. 9)

Garantir jurisdição sob si próprio, superar o sofrimento causado por uma forma de inserção social injusta, discriminatória, opressora, produto e produtora de afetos tristes não exigiria uma costura social mais ampla e uma reordenação jurídiconormativa mais democrática?

Aqui cabe uma digressão. Nem de longe estamos, com esses argumentos, negando a importância e a necessidade das políticas afirmativas no Brasil, pelo contrário, queremos ampliá-las! Nosso desejo é transcender a esfera identitária para adentrar a esfera do comum.

O que estamos propondo, em outras palavras, é que haja um deslocamento de análise do campo da causalidade final (formal) para o campo da causalidade eficiente (genética). Pois, nada mais natural que a diversidade de existência dos modos de vida e nada mais desumano que a servidão. Ou seja, a causa eficiente (a que mostra a gênese do problema) não se encontra fundamentada na natural diversidade dos corpos em relação, mas, na subjugação de determinados modos de existência por outros. Assim, a causa formal (identidade) não alcança a gênese do problema que se encontra radicada nas relações de poder, mas, a contém.

Partindo das análises e proposições de Espinosa retomadas por Negri (2010), Dardot e Laval (2016), Sawaia (2018), entre outros e das formulações teóricas e metodológicas do Núcleo de Estudos sobre a dialética Exclusão/Inclusão social - NEXIN- da PUC São Paulo procuramos afirmar que o aprimoramento das relações humanas, útil a expansão dos corpos e a consequente superação do sofrimento ético-político, está fundamentalmente atrelado a potência do sentimento do comum que amplia, inclusive, a potência política do sentimento de pertença posto que o retira do processo de guetificação.

Compreendemos o sentimento do comum como força ontológica e política do conatus 2, pois, é ele quem irá regular o fundamento de uma vida humana, segundo Espinosa: a potência de agir só é possível de ser realizada quando compomos com outros corpos (E IV, esc.1 da prop. 37). Espinosa, ao trazer a questão do comum, de maneira ao mesmo tempo ontológica e política, o faz para falar da humanidade do homem, de composição de uma vida humana, e não de outra (Bove, 2010) que só acontece na intercorporeidade. Nesse sentido, o sentimento do comum só pode ser compreendido a partir da composição efetuada entre singularidades, o homem que vive na relação com o outro, que se define na relação com o outro. Sem a qual ele não existe em si mesmo enquanto ser social.

Inspirado na obra de Espinosa, Negri (2005, p. 17) reafirma essa compreensão:

o comum está fundamentalmente articulado, no sentido mais pleno da palavra, com o movimento e a comunicação das singularidades. Não existe um comum que possa ser referido simplesmente a elementos orgânicos ou a elementos identitários. O comum é sempre construído por um reconhecimento do outro, por uma relação com o outro que se desenvolve nessa realidade.

Reconhecer o outro como "meu maior bem" (E III, def. 3), como potência em ato igualmente importante à costura da vida de cada um e de todos é a essência desse afeto. Compreender que só poderei ser eu mesmo e garantir minha existência em real segurança e liberdade se o outro também gozar desse direito, pois, nenhum corpo quer ser dominado, subjugado por outro, e por isso mesmo a construção da autonomia e da alteridade passa, necessariamente pela defesa do direito natural de permanecer existindo. Assim, reconhecer minha humanidade no outro e a dele em mim é o fundamento ético do sentimento do comum.

No prefácio do Tratado Político, Espinosa escreve que: "o melhor Estado é aquele onde os homens passam suas vidas na concórdia" e ele continua "entendo por isso uma vida humana (vitam humanam intelligo), uma vida que não se define pela circulação do sangue nem por outras funções comuns a todos os animais, mas, acima de tudo, pela razão e pela virtude." (TP V, §5). Não se trata aqui de acreditar na falácia de eliminação dos conflitos existentes estabelecendo definitivamente a paz e a concórdia "isso é o que dizem os teóricos que não fizeram mais do que escrever sátiras e utopias" (Tp, 12, &8, GIII), mas, de colocar nossa potência de desejar, pensar, sentir e agir em prol do aprimoramento das relações. Entender que o direito do indivíduo é extensivo e extensão do direito comum.

É a potência do comum que garante e mantém as existências dos corpos humanos que, na sua convivência, o compõem e esta potência comum é tanto maior, quanto maior é a convergência entre as suas partes. O indivíduo, "na realidade, não tem qualquer direito sobre a natureza além desse que o direito comum concede ao próprio (indivíduo)." (TP; II, §13). Assim, o fundamento político do sentimento do comum é tomar como seu o interesse de todos.

A potência de ação e o poder político são, portanto, diretamente proporcional à potência do sentimento do comum, pois, é esse afeto que irá regular a capacidade de composição com outros corpos. Se sua potência cresce, nos bons encontros, irá facilitar a convergência de desejos, interesses, paixões e, consequentemente, a realização de coatividades mais baseadas na confiança (e não na cumplicidade utilitarista) e na simetria das relações que visem a construção de um mundo habitável para todos. Se sua potência diminui nos maus encontros é grande a possibilidade de aumento da potência de padecimento e as paixões tristes (como medo, ódio e solidão) diminuirão as possibilidades de ação coletiva, colocando uns contra os outros e/ou isolando-os.

Diante do exposto, tecemos alguns apontamentos que podem contribuir para o aprimoramento das relações sócio-político-afetivas. De início retomamos Martín-Baró (1998) quando diz que a psicologia deve primeiro libertar-se da própria práxis para compreender o que se passa com os povos tradicionais que não se encaixam nos padrões culturais europeus ou norte-americano, hegemônicos na conformação da psicologia enquanto ciência e profissão no Brasil e na América Latina. A terapêutica dirigida ao sofrimento ético-político desses povos requer da psicologia desideologizar e desnaturalizar saberes, práticas e tecnologias homogeneizadoras, a-históricas e adaptativas.

Dardot e Laval (2016) atualizam e ampliam essa crítica ao analisar o encontro da economia política com a psicologia científica. Segundo esses autores, esta última tornou-se fiadora de um projeto de homem delineado pelo mercado cuja eficiência, felicidade e sucesso são alcançados pela gerência de si, pelo suposto controle das emoções (muitas vezes, as custas da medicalização da vida), exercício de sua única vontade, ideia deturpada de livre arbítrio. Não é por acaso que estamos vendo crescer e ganhar evidência dentro da práxis psicológica uma espécie de treinadores ou gestores de pensamentos e emoções, coaching, que exemplifica bem essa tendência impulsionada pelos estudos da neurociência.

Se deslocarmos a questão da perspectiva individualizante e tomarmos como horizonte da psicologia social o aprimoramento das relações sociopolíticas e afetivas (pela ampliação da circulação do sentimento do comum) devemos estar atentos a alguns aspectos: primeiro, faz-se necessário conhecer as bases formativas dessas relações o que impõe o diálogo interdisciplinar a práxis psicossocial; segundo, não podemos desprezar a produção de afetos, imagens e costumes que delineiam a qualidade e intensidade dos encontros configurando uma unidade psicossocial que sustenta essas relações; terceiro, é preciso elaborar de forma coletiva estratégias capazes de borrar as fronteiras que separam esses grupos dos demais grupamentos humanos, rompendo o isolamento que enfraquece os corpos ao não permitir uma maior composição ético-político-afetiva dos mesmos na construção de um mundo habitável para todos; quarto, o conhecimento produzido ao longo de séculos por estas comunidades precisam ser incorporados aos projetos de exploração das riquezas naturais; quinto, contribuir para a desconstrução de identidades marcadas pelas significações de subdesenvolvimento, atraso e primitivismo. É ainda indispensável considerar a dialética singular/particular/universal na apropriação do real em nossas análises e intervenções.

 

3. Considerações finais

Entre os efeitos negativos do sistema de produção destrutiva do capital se encontram os conflitos socioambientais que atingem de maneira cruel as comunidades tradicionais e envolvem a exploração indiscriminada das reservas naturais necessárias não apenas para a manutenção da vida desses povos, mas, a de todos os modos existentes de vida. Portanto, compreendemos que a defesa de um mundo comum habitável passa pelo fortalecimento do poder político das comunidades tradicionais e da defesa de seus territórios. Concordamos com a ecologia social de que defendê-las é defender a sustentabilidade ambiental, relações humano-ambientais mais equilibradas, um ato político-ecológico estratégico para a humanidade.

Um dos grandes desafios para a práxis psicossocial, neste âmbito, é a superação do sofrimento ético-político que aprisiona pessoas e grupos nas teias das paixões tristes geradas pela desigualdade e injustiça social fragilizando a potência de ação de cada um e de todos. Essa superação está, portanto, condicionada a (re)formulação dos modos de produção, das relações sociopolíticas e afetivas.

O afeto mais potente para preencher esse processo de aprimoramento das relações é o sentimento do comum, pois, possibilita a composição de um corpo sócio-político mais forte nas arenas de disputa. Para que isto aconteça é necessário que as significações, "heranças históricas", decorrentes de um processo de submissão sejam quebradas; que o isolamento e o silenciamento desses povos sejam rompidos e que seus conhecimentos sejam reconhecidos e incorporados aos projetos de desenvolvimento em curso.

Nesta perspectiva, a práxis psicossocial deve estar voltada para o aprimoramento das humano-ambientais tendo como horizonte a conformação de corpos mais permeáveis ao sentimento do comum que tem como princípio ético: o reconhecimento dos outros corpos como potência em ato necessária a costura da vida de cada um e de todos e como princípio político: a apropriação do interesse comum como interesse pessoal.

 

'Notas de fim'

1 Harvey (2007) afirma que a acumulação por espoliação é a forma como operam os novos mecanismos de valorização de capitais, entre eles: (a) a ênfase nos direitos de propriedade intelectual e a biopirataria em favor das grandes corporações; (b) a mercantilização das formas culturais e simbólicas de expressão humana, com a exploração da cultura, sobretudo das comunidades locais; (c) a mercantilização dos recursos ambientais globais, como a água, o ar e o subsolo; (d) as privatizações das reservas naturais comuns.

2 Para Espinosa o conatus é desejo de perseverar na existência, potência de vida.

 

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Recebido em: 25/05/2019
Aprovado em: 31/01/2020

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