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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2021

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e autoritarismo: articulações entre unheimliche em Freud e fascismo em Adorno e Horkheimer1

 

Psychoanalysis and authoritarianism: interactions between unheimliche in Greud and fascism in Adorno and Horkheimer

 

Psicoanálisis y autoritarismo: articulaciones entre unheimliche en Freud y fascismo en Adorno y Horkheimer

 

 

Rafael da Silva ShirakavaI; Gustavo Henrique DionisioII

IBacharel em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus de Marília. Mestre em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus de Assis / rafael.2015.shirakava@gmail.com
IIProf. Assistente-Doutor no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus de Assis, em nível de Graduação e Pós-Graduação / gustavo.h.dionisio@unesp.br

 

 


RESUMO

Afinal, o que leva os sujeitos esclarecidos a agirem de maneira hostil e violenta contra aqueles que lhes são estranhos? Buscando responder esta questão o objetivo principal do artigo consiste em uma análise do conceito de Unheimliche na teoria freudiana e suas implicações políticas na Teoria Crítica de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, tendo em vista que esse conceito atravessa as significativas reflexões destes autores acerca de sua concepção de personalidade potencialmente autoritária. Para tanto, o método utilizado foi a revisão bibliográfica na qual se analisou nas formulações tanto de Sigmund Freud quanto dos pensadores frankfurtianos os possíveis elementos que auxiliam na compreensão da violência contra o inquietante (Unheimliche). A partir dessa aproximação teórica, concluiu-se a necessidade de ampliação do debate acerca do fascismo, visto que seu ressurgimento nas primeiras décadas deste século aponta para seu perigo iminente.

Palavras-chave: Unheimliche; Psicanálise; Fascismo; Teoria Crítica; Política.


ABSTRACT

After all, what makes enlightened people act in a hostile and violent manner against those who are strange to them? Seeking to answer this question, the aim of this article is to analyze the concept of Unheimliche in the Freudian theory and its political implications in the Critical Theory of Theodor W. Adorno and Max Horkheimer, considering that the concept passes through significant reflections of these authors about their conception of a potentially authoritarian personality. For this purpose, the chosen method was the bibliographic review by which we analyzed some elements that assist us on the comprehension of the violence against the Uncanny (Unheimliche), based on the thoughts of both Sigmund Freud and the Frankfurtian thinkers. From this theoretical approach, we concluded that there is a need to amplify the debate about fascism, considering that its resurgence in the first decades of this century indicates its imminent danger.

Keywords: Unheimliche; Psychoanalysis; Fascism; Critical Theory; Politics.


RESUMEN

Después de todo, ¿lo que lleva a los sujetos iluminados para actuar de una manera hostil y violenta contra los que son ajenos a ellos? Buscando responder a esta pregunta el objetivo principal del artículo consiste en un análisis del concepto de Unheimliche en la teoría freudiana y sus implicaciones políticas en la Teoría Crítica de Theodor W. adorno y Max Horkheimer, teniendo en cuenta que este concepto atraviesa las significativas reflexiones de estos autores acerca de su concepción de personalidad potencialmente autoritaria. Para ello, el método utilizado fue la revisión bibliográfica en la que se analizó en las formulaciones tanto de Sigmund Freud como de los pensadores frankfurtianos los posibles elementos que ayudan en la comprensión de la violencia contra lo inquietante (das Unheimliche) A partir de ese acercamiento teórico, se concluyó la necesidad de ampliación del debate sobre el fascismo, ya que su resurgimiento en las primeras décadas de este siglo apunta a su peligro inminente.

Palabras-clave: Unheimliche; Psicoanálisis; Fascismo; Teoria Crítica; Política.


 

 

Introdução

Em seu livro Eclipse da razão, Max Horkheimer (1947/2015) afirma:

Os reais indivíduos de nosso tempo são os mártires que passaram pelo inferno do sofrimento e da degradação em sua resistência diante da conquista e da opressão, e não as personalidades infladas da cultura popular, os dignitários convencionais. Esses heróis inglórios expuseram conscientemente sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista, a qual outros inconscientemente se submetem por meio do processo social. Os mártires anônimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram em uma linguagem que será ouvida, mesmo que vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania. (pp. 177-178)

Diante disso, questionamos: afinal, o que leva sujeitos ditos "esclarecidos", filhos de uma sociedade racional, a hostilizarem pessoas que "não fazem parte" do laço social? Tem-se aí uma inquietação acerca dos motivos pelos quais os indivíduos aderem à violenta agitação fascista. Tal preocupação desdobra-se na esteira reflexiva tanto de Sigmund Freud, exímio observador da cultura e de seus efeitos na vida psíquica dos indivíduos, quanto de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, pensadores da Teoria Crítica da Sociedade que, ao analisarem o mundo administrado1, perceberam o imenso descompasso entre a produção material e o seu escasso grau de emancipação.

Assim, tendo essa questão como fio condutor, tornou-se necessário buscar na teoria psicanalítica os elementos psíquicos que apontam para o entendimento da questão central, ou seja: é preciso rastrear os mecanismos psicológicos que estão presentes "cooptação" fascista. Quanto aos mecanismos objetivos (sociais) do autoritarismo, a Teoria Crítica da Sociedade - principalmente as formulações de Adorno e Horkheimer - lança luz sobre o fenômeno ao indicar o irracionalismo contido na Aufklärung, sem desconsiderar, evidentemente, temas pertinentes da psicanálise freudiana tais como projeção, narcisismo, identificação e o das Unheimliche (o estranho-familiar).

Além disso, convém ressaltar que buscamos desenvolver o tema acerca de das Unheimliche (o estranho-familiar), trabalhando com a hipótese de que esse afeto é um elemento basilar nos grupos fascistas. Entende-se que no interior desses movimentos, ao eliminarem as figuras que sejam índice de alteridade, os indivíduos potencialmente autoritários buscam atenuar seus conflitos internos. Trata-se de uma tentativa de evitar a angústia oriunda das primeiras experiências do infans e sua inserção no laço social (as normais sociais rigidamente estabelecidas). Por isso torna-se indispensável uma análise da "metapsicologia social"2 freudiana, na qual se elencam alguns dinamismos psíquicos presentes na vida dos sujeitos tanto no que diz respeito à participação nos grupos autoritários como na dinâmica da vida danificada (Adorno, 1951/1993), na qual o fascismo se desdobra. Neste contexto, Adorno (1951/1993) observa que a vida danificada, sob o registro do mundo administrado (Horkheimer, 1947/2015), embrutece os sujeitos destituindo-lhes de autonomia e resistência, ao mesmo tempo em que os compele à participação ativa e irracional nas atrocidades autoritárias. Fato este que já aponta a relevância deste estudo, uma vez que o fascismo é um fenômeno que ressurge na aurora do século XXI, tanto em nível nacional quanto internacional, denotando que os mecanismos que determinam sua perpetuação ainda não foram extintos. Ao contrário, permanecem na esteira do "estado de exceção" como regra, tal como apontado por Benjamin (1940/1994) em seus ensaios sobre a história.

Quanto à metodologia, foi capital a revisão bibliográfica das obras tanto de Freud quanto dos autores frankfurtianos, nas quais buscou-se os argumentos necessários para a nossa investigação. Por fim, a conclusão extraída da pesquisa aponta para a necessidade de ampliação de debates, de lançar "mensagens na garrafa" no sentido adorniano do termo (Adorno, 1996), uma vez que ainda estamos muito longe de escrever a nossa história a contrapelo (Benjamin, 1940/1994).

 

O conceito de Unheimliche na psicanálise freudiana e suas implicações político-sociais

Na tentativa de tangenciar um conceito a princípio pertencente ao campo da estética, "a faculdade do sentir", Freud (1919/2010a), em seu ensaio O inquietante (das Unheimliche), lança mão de uma análise do conto O homem da areia do escritor alemão E. T. A. Hoffmann3. Entretanto, vale ressaltar que tal análise não é arbitrária. Pelo contrário, relaciona-se, acima de tudo, com o movimento que a clínica freudiana operava naquele momento, cujo ensaio em questão funciona como uma "dobradiça" entre a primeira e a segunda tópica (Cesarotto, 1996), na qual o conceito de Unheimliche antecipa a noção de pulsão de morte contida na obra Além do princípio de prazer. Acerca dessa mudança teórico-clínica, principalmente no que concerne ao movimento que vai da sublimação ao Unheimliche, Parente (2017) argumenta que a publicação do ensaio sobre das Unheimliche valeu-se principalmente dos movimentos político-sociais daquele momento, no qual a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi o principal pano de fundo e cujos efeitos na subjetivação dos indivíduos podem ser analisados nos dias atuais. São eles: a queda da autoridade paterna, os chamados transtornos de pânico oriundos das neuroses traumáticas, as incertezas acerca das forças técnico-científicas como forma de garantir bem-estar e segurança.

Nesse cenário, observa-se o deslocamento que Freud concebeu em sua clínica, abandonando aos poucos o tema da sublimação - em que os traços do romantismo alemão de Goethe foi significativo - para então adentrar no tema da inquietação, da angústia, do asco, em cujo corpo teórico-clínico os contos fantásticos de Hoffmann tornaram-se centrais (Parente, 2017). Ademais, no ensaio em questão, o psicanalista vienense propôs que o inquietante está ligado ao que é terrível, que desperta medo e horror e que, devido à sua imprecisão terminológica, pode ser equivalente ao angustiante. Assim, ao fazer uma análise etimológica do termo Unheimliche, Freud observou que o estranho se relaciona ao que é simultaneamente familiar. Portanto, a palavra heimlich, que pode ser traduzida como "doméstico, do lar, familiar", possui curiosamente uma estrita relação com seu oposto, ou seja, Unheimliche, cujo Un, na língua alemã, denotaria a negação.

Diante disso é preciso salientar que a tradução de tal categoria não é realizada sem tropeços e controvérsias. No Brasil, há pelo menos três traduções do termo Unheimliche: estranho, inquietante e, a mais recentemente, infamiliar. Em outras línguas é possível encontrar as seguintes traduções: ominoso (assustador), siniestro (sinistro), uncanny (estranho), inquiétant familier (inquietante-familiar) dentre outras. Tal dificuldade de localizar uma palavra que seja fiel ao léxico deve-se à vivacidade da língua e, consequentemente, suas variações, ou, mais especificamente, na dificuldade de tangenciar, categorizar, algo não-categorizável, intraduzível, inominável.

Assim, conforme Gilson Iannini e Pedro Heliodro Tavares (2019), a exaustiva aventura de Freud no estudo filológico de um vocábulo é inédita e única em sua teoria - ainda mais de um léxico que possui várias traduções, leituras e interpretações. Porém, como em psicanálise nada é eventual, não se pode perder de vista que tal exercício está em consonância com o próprio andamento da clínica psicanalítica, principalmente se nos atentarmos às suas premissas basilares acerca do estatuto freudiano sobre o inconsciente e a divisão do sujeito. Logo, a dificuldade de "categorizar" algo inquietante, de transformá-lo em um princípio de identidade (equivalência) deve-se, acima de tudo, à constituição subjetiva dos indivíduos. Tal abalo produzido no estatuto científico de matriz cartesiana atesta que o Eu não é uma unidade e que os atos de consciência não são assim tão transparentes. Desse modo, o que se observa, via psicanálise, é a divisão dos sistemas psíquicos que frequentemente, e a contragosto dos estados de consciência, se apresenta de maneira contraditória (Iannini & Tavares, 2019).

Desse modo, entende-se que a concepção de Unheimliche denotaria o familiar que se tornou estranho, na qual esse Un demarca precisamente o registro de um recalcamento (divisão psíquica). Assim, formula Freud, o "que é heimlich vem a ser unheimlich", pois "tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu" (1919/2010a, pp. 337-338), tratando-se, portanto, de algo familiar, conhecido, isto é, de elementos arcaicos da vida anímica que, por alguma razão, foram recalcados e que retornam quando suscitados.

Esse retorno dos conteúdos infantis primitivos, que são conservados na vida anímica, corresponde ao "retorno do mesmo", conforme salientado por Freud em Além do princípio de prazer, no qual discutira os conceitos de pulsão de morte e de compulsão à repetição. Esses, no entendimento de Koltai, "giram em torno da questão da compulsão à repetição" (2000, p. 86), uma vez que quanto mais o familiar se impõe, mais torna-se estranho porque o Eu não consegue abarcá-lo totalmente. Nesse tipo de processo sempre sobra um resto, algo inassimilável e, portanto, Unheimlich, pois, "quanto mais examinamos os fundamentos psicanalíticos do eu, tanto mais esse eu prova ser estranhamente frágil e ameaçado" (Koltai, 2000, p. 86). Assim, o estranho é percebido como aquilo que lembra a "compulsão de repetição interior" (Freud, 1919/2010a, p. 356), que evidencia sua natureza secreta de heimlich (familiar) que se converte em seu oposto, Unheimliche (estranho) que "não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo repressão alheou-se dela" (Freud, 1919/2010a, p. 360).

Avançando um pouco mais o conceito, Mezan (2006) considera que Unheimliche vincula-se à noção de trauma, operando em dois tempos: o primeiro corresponde à "vivência/fantasia", e o segundo à reanimação dos afetos experienciados no tempo anterior, geralmente motivada por uma causalidade externa. Reativa-se, nesse processo, a angústia de castração, pois o agente imaginário castrador que promoveu a separação da mãe e do bebê - a função paterna - retorna e fornece os matizes do Unheimliche. Acerca disso, Dionisio assinala que o "efeito do estranhamento pode ser entendido, nessa linha de raciocínio, como resultado lógico de uma íntima relação entre a castração e o seio materno" (2012, p. 209), e questiona, na esteira de Didi-Huberman: "não se poderia dizer que o que nos olha enquanto vemos é, de modo mais preciso, este duplo que é ao mesmo tempo interno e externo?" (Dionisio, 2012, p. 209). Isso, estaria associado à reativação de ideias aparentemente superadas, tais como crenças primitivas que ressurgem quando "parecem novamente confirmadas" (Freud, 1919/2010a, p. 371).

Essa dinâmica ocorre, convém ressaltar, na Outra cena, isto é, no inconsciente, lugar onde reside nosso estranho revelado pela projeção dos seus objetos internos. Assim, o inconsciente, como um estrangeiro que nos habita, fala por meio dos lapsos, sonhos, atos falhos ou mesmo pela expressão do recalcamento, ou seja, sintoma (Freud, 1933/2010c), atestando, com isso, a fragilidade da razão e do princípio de identidade. Por isso, o Unheimliche desvela uma oposição à racionalidade burguesa (Parente, 2017), indicando que a razão, apesar de seu eminente potencial emancipador, é débil diante do inconsciente.

Ora, é justamente esta condição de sermos estranhos para nós mesmos um dos principais elementos mobilizados nos grupos autoritários, sobretudo no que diz respeito à exaltação da diferença entre um "nós" e um "outros" - e que o próprio Freud (1930/2010b) denominara narcisismo das pequenas diferenças - valorização exacerbada da identidade grupal, menosprezo daqueles que estão do lado externo, eis os caracteres essenciais desta condição, e que não deixam de aparecer nos movimentos autoritários contemporâneos. Para o psicanalista vienense, em O mal-estar na civilização, "é sempre possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade" (Freud, 1930/2010b, p. 81), como também apontado em Psicologia de massas e análise do Eu, na qual expôs que o grupo funciona, majoritariamente, por um investimento libidinal em seu interior, congregando os indivíduos, ao passo que os componentes agressivos são projetados para o exterior, isto é, nos estranhos cujas qualidades não são valorizadas pelo corpo social (Freud, 1921/2011). Essa integração dos membros na massa é possível graças à identificação, na qual os integrantes se identificam uns com outros e com o líder que, agindo como Pai, auxilia os membros tratando-os como filhos, direcionando-os e assim evitando o desligamento libidinal e a angústia oriunda da desintegração do laço afetivo. Em sua crítica ao Cristianismo, Freud sustenta que a mesma religião que "prega" o amor é inversamente tirana para com os que não participam de sua comunhão, guardando em seu íntimo a crueldade e a intolerância em direção aos estranhos, àqueles que estão "do lado de fora" (Freud, 1921/2011, p. 54). A agressividade é aqui projetada como forma de manter a união grupal, bem como o alívio da tensão entre as exigências dos sujeitos; mais precisamente, entre o Eu e o Ideal de eu (Super-eu).

Tal análise é retomada em O mal-estar na civilização quando o psicanalista sublinha a impossibilidade de "Amar o outro como a si mesmo", uma vez que não amamos o diferente de nós, a alteridade, mas apenas narcisicamente com quem nos identificamos. Além disso, Freud (1930/2010b) define este estranho como uma espécie de inimigo potencial, alguém de quem se pode zombar, tirar vantagens ou ser-lhe hostil, sendo preciso olhar para ele com desconfiança, justamente porque não faz parte de nossa vida afetiva.

É possível perceber, segundo Gay (1989), uma concepção bastante hobbesiana nessa interpretação que Freud estabelece acerca da cultura. Fato este que é justificado pelo tom realista sobre a impossibilidade de realização do amor altruísta, uma vez que o homem seria um potencial inimigo da civilização e que por isso precisa ser contido pelos regulamentos sociais e pelas instituições. Ora, como pensa o psicanalista, a civilização exige de cada sujeito uma perda de sua liberdade em prol de segurança, na qual o indivíduo é cooptado pelo todo de forma coercitiva e incentivado a se relacionar com os outros membros. Entretanto, compelir o sujeito a uma socialização massiva apenas produz sofrimento, já que a cultura, ao tentar se manter unificada, torna-se cada vez mais intolerante com respeito à alteridade, desejando inclusive a morte daqueles que não se adequam às normas da vida coletiva: "Ela é animada pelo ódio e por uma alucinação coletiva", propõe Enriquez, "a qual se forja uma imagem de estrangeiros (ou dos desviantes) como perseguidores onipotentes e, portanto, seres a eliminar. O indivíduo que adere sem falhas a esse tipo cultural só pode se sacrificar por ela e comporta-se de forma heterônima" (Enriquez, 2001, p. 34). Nesse processo, as pulsões agressivas são inibidas em nome da civilização assim como a agressividade que não pode ser expressa diretamente volta para o lugar de onde veio, ou seja, para o próprio Eu; introjetada, essa agressividade alimenta o Supereu, representante interno da cultura. E é por meio dessa instância internalizada que há possibilidade para controlar "o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada" (Freud, 1930/2010b, p. 92). Impedidos de realizar plenamente seus desejos, aos sujeitos não resta muita alternativa senão a adaptação forçada aos modelos culturais, e, com isso, o abandono de uma suposta felicidade em prol da segurança, o que exige renúncia e obediência de cada um para a manutenção da ordem social.

Notavelmente atento ao fenômeno da massificação, Horkheimer (1947/2015) argumenta que tamanha renúncia, seguida de um ajustamento quase cego às regras sociais, pode gerar uma espécie de fúria e ressentimento contra a própria cultura, isto é, afetos que podem ser facilmente mobilizados por discursos autoritários. Entretanto, o alinhamento com o fascismo não é totalmente desorientado, de modo que é preciso, no mínimo, uma participação ativa dos indivíduos, pois, como sublinha o teórico crítico, as pessoas leem nas entrelinhas as relações de poder e se ajustam a ele. Portanto, opera-se uma adesão com poucas resistências, haja vista que a capacidade de pensar por si mesmo se encontra eclipsada. Este aspecto não deixa de ter relação com aquilo que Adorno (1972/2015) denominou como impostura no que tange à obediência dos seguidores ao líder fascista. Em outras palavras, pode-se dizer que há um tom farsesco que constitui a estrutura do fascismo, na qual a mobilização da massa não é autêntica, pois as ilusões fornecidas são rarefeitas. Assim, é possível perceber, nesse cenário, que é mais vantajoso para o indivíduo abrir mão da liberdade e sua inerente sensação de angústia do que fazer uma leitura honesta e crítica tanto de si mesmo quanto do mundo (Arbex, 1998). Desse modo, para evitar qualquer contato com a alteridade, cujo encontro se revelaria arriscado porque o remeteria a ter que pensar suas próprias questões (Matos, 1989), o indivíduo idealiza uma sociedade perfeita e sem máculas (Enriquez, 1990). Aos seus olhos, ela se apresenta como um objeto maravilhoso, garantia de estabilidade psíquica na qual o mal-estar do desamparo estrutural seria temporariamente atenuado, desde que os sujeitos, ao longo do processo, submetam-se aos líderes tutelares, objetos de idealização e identificação (Adorno, 1972/2015).

Tudo isso funciona como num "jogo de espelhos" (Rouanet, 1989, p. 132), no qual admiramos as qualidades do outro em nós, isto é, "miramo-nos no espelho que nos é estendido pelo próprio objeto de nossa admiração" (Enriquez, 2001, p. 32). Nessa perspectiva, é possível afirmar que a idealização é uma peça fundamental de toda sociedade, pois permite manter o indivíduo como membro essencial do conjunto sem correr grandes riscos de desintegração: "É por isso que o indivíduo pode aceitar recalcar seus desejos, reprimir suas pulsões, aderir profundamente às injunções sociais, e às vezes, ser um agente ativo desses processos de recalque, de repressão e adesão" (Enriquez, 2001, p. 32). Concomitantemente, tais indivíduos perpetuam a barbárie na medida em que reproduzem os valores culturais de dominação, segregação e hostilização da diferença (Adorno, 1951/1993, 1967/2009), evidenciando que o "estado de exceção" se constitui como regra na sociedade capitalista (Benjamin, 1940/1994).

 

Irracionalidade esclarecida e subjetividade mutilada

Nesse percurso teórico, convém ressaltar que a relação do indivíduo com a cultura não passou despercebida por Max Horkheimer (1947/2015) e Theodor Adorno (1951/1993, 1967/2009, 1972/2015). Eles produziram pesquisas intensivas acerca do autoritarismo, da regressão das massas e dos mecanismos objetivos e subjetivos que ainda permitiam a perpetuação da barbárie (Adorno & Horkheimer, 1944/2006), buscando entender a mutilação do indivíduo em prol do mundo administrado. Para tanto, tornou-se necessário para o programa de investigação interdisciplinar da Escola de Frankfurt algumas reformulações em seu corpo teórico a partir da década de 1940 (Rouanet, 1989; Whitebook, 2008; Wiggershaus, 2002), período no qual a teoria psicanalítica foi incorporada de maneira significativa nas pesquisas desses pensadores.

No período, conforme indica Rouanet (1989), observa-se uma mudança no eixo teórico dos frankfurtianos motivada principalmente pelo bloqueio das condições objetivas de emancipação. Diferentemente do período entreguerras, no qual havia uma pauperização crescente da classe trabalhadora, denotando, com isso, uma possível revolução, percebe-se nos anos de 1940 uma imbricação entre verdade (as contradições objetivas) e ideologia unidimensional que desmantela a consciência infeliz (a percepção crítico-dialética das contradições do mundo) transformando-a em uma "consciência feliz"4 (percepção ajustada ao status quo). Trata-se, portanto, de um momento em que as contradições da realidade objetiva são suplantadas pela ideologia da sociedade administrada (a racionalidade técnica), em que a indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 1944/2006) desponta como um nocivo integrador desse processo. Assim, com esse pano de fundo, a teoria psicanalítica foi incorporada no plano de investigação da Escola de Frankfurt, uma vez que "o próprio Esclarecimento - a racionalidade e o sujeito racional - parecia estar implicado na catástrofe que estava engolindo a Europa. A validade da razão como um organum para o entendimento dessa experiência não poderia, portanto, ser tomada como garantida" (Whitebook, 2008, pp. 107-108).

Diante disso, fez-se necessária a análise dos aspectos irracionais contidos na racionalidade (Rouanet, 1989). Ou seja, a tarefa, agora, consistia na tentativa de reescrever a história noturna da civilização Ocidental (Adorno & Horkheimer, 1944/2006), na qual estavam contidas as paixões humanas que foram recalcadas ao longo do progresso civilizatório. Logo, voltar-se para a psicanálise tornou-se uma exigência inevitável para estes pensadores, uma vez que "a natureza radical da nova tarefa os conduziu a encarar os aspectos mais controversos e especulativos dos escritos de Freud, a saber, suas teorias psicoantropológicas da cultura e da civilização" (Whitebook, 2008, p. 108). De acordo com Safatle (2019), a teoria psicanalítica teve um papel significativo na Teoria Crítica, principalmente adorniana. Pois, nesse quadro apresentado, a psicanálise foi capaz de oferecer uma base sólida para a crítica da sujeição do indivíduo moderno ao aparato social. Para o filósofo, na reconstrução do materialismo dialético dos teóricos críticos, a psicanálise tornou-se uma ferramenta profícua de investigação, visto que "(...) não é possível falar de liberdade e autonomia antes e depois da psicanálise. Com o auxílio da psicanálise, a dialética produzirá uma modificação maior em conceitos normativos de nossos horizontes de vida" (Safatle, 2019, pp. 184-185).

Tal aspecto é notável nas linhas que compõem a Dialética do esclarecimento, na qual Adorno e Horkheimer apresentam "sua versão da explicação psicanalítica do desenvolvimento (individual e coletivo)" (Whitebook, 2008, p. 108). Nessa obra, os filósofos questionam os motivos que impossibilitam a Aufklärung (Esclarecimento) de adentrar realmente em um estado de liberdade e lançam, com isso, a hipótese cortante de que o Esclarecimento não estaria a serviço de uma real emancipação dos homens, mas, bem ao contrário, serve ao seu domínio. Deslocando seu olhar crítico para os tempos primordiais do pensamento ocidental, a mitologia grega, Adorno e Horkheimer (1944/2006) apontam que o herói da Odisseia de Homero, Ulisses, já continha os princípios ordenadores da razão instrumental, bem como o que aqui denominamos de subjetividade mutilada, em que há uma violência contra si mesmo em nome dos valores culturais. Assim, compreende-se que a tese freudiana segundo a qual o eu não é senhor em sua própria casa aparece de maneira expressiva na interpretação que os filósofos forneceram às aventuras ulissianas, - figura esta que, de antemão, possibilita entender o processo civilizador e seus impactos na subjetividade.

Nesse sentido, a fratura psíquica do sujeito esclarecido seria, na verdade, uma chave de compreensão da própria sociedade mutilada e sua produção de vidas danificadas. Portanto, para entender os mecanismos que impediam a emancipação humana, tornou-se necessária uma resposta filosófica ao fascismo. Esta resposta, segundo Negt (2005), circunscreve-se na Dialética do esclarecimento e a sua tentativa de lançar luz sobre os escombros da Aufklärung, direcionando-se à origem do pensamento racional com o objetivo de localizar as aporias e os elementos que bloqueiam a sua efetiva realização. Tal forma de pesquisa filosófico-antropológica dos frankfurtianos justificava-se devido à profunda lesão contida na civilização, que não permite aos autores interpretar nenhum pensamento ou categoria sem antes fazer uma minuciosa revisão: "É preciso voltar às origens da cultura burguesa para detectar o seu pensamento excludente de identidade, esse mecanismo básico do desenvolvimento da civilização" (Negt, 2005, p. 104). Este deslocamento feito por Adorno e Horkheimer é validado pelo fato de que a mitologia funcionaria como uma antecipação da reificação cientifica do século XVII, uma vez que "os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram produto do próprio esclarecimento. ... O mito queria relatar, dominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se" (1944/2006, p. 20). Diante disso, considera-se que a construção de uma certa universalidade em detrimento do singular já aparecia tanto nos mitos como nas primeiras formulações pré-socráticas acerca da origem do mundo, na qual buscava-se a unidade primordial da physis, a arché (Freitas, 2008). Nesse registro, a figura mitológica de Ulisses é vista por Adorno e Horkheimer (1944/2006) como o protótipo do burguês: astuto, porém ferido devido às renúncias que precisou fazer em nome da cultura, cujas aventuras são metáforas de dominação e, ao mesmo tempo, do medo de perder-se na natureza que busca dominar: "O astucioso só sobrevive ao preço de seu próprio sonho, a quem ele faz as contas desencantando-se a si mesmo bem como aos poderes exteriores" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 55), já que, para construir sua identidade, recalca a natureza interior, e, com isso, adere a uma espécie de segunda natureza - a única permitida pela civilização.

Frente a isso, tem-se o que ulteriormente se entende em teoria psicanalítica como a passagem infância para vida adulta, do narcisismo primário para o secundário, ou, justamente, no recalque da "libido mais originária" - o que configura, na leitura de Gagnebin (2006, p. 13), o "paradigma da violência necessária para o estabelecimento da razão instrumental e da identidade subjetiva". Nesse processo, Ulisses atesta, de maneira antecipada, evidentemente, o fortalecimento do Eu5, a sobrevivência, o afastamento dos aspectos primitivos e instintivos ligados à vida arcaica. Assim, o Eu se petrifica, é reificado, de modo que

cada ato adicional de renúncia contribui para a realidade da consolidação e da força do ego, transformando-o ainda mais num sujeito racional qua estratégico, que pode manipular o mundo externo. E na medida em que a natureza externa é reificada, esta é transformada em uma matéria apropriada de dominação. (Whitebook, 2008, p. 109)

Por isso, não é desmedido quando os teóricos críticos asseveram que "toda reificação é um esquecimento" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 133). Em vista disso, Adorno e Horkheimer definem o Esclarecimento como totalitário, na medida em que a natureza (interna e externa) é convertida em mera objetividade calculável e manipulável. Ora, se se busca no fenômeno sua identidade una, na qual a matéria amorfa, caótica ou indiferenciada torna-se unitária, idêntica a si mesma, na qual a contradição torna-se identidade (A=A), o singular submerge na universalidade, na totalidade, de modo que "O que seria diferente é igualado" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 23), algo que, por sinal, encontra-se disseminado no conhecimento científico cujo foco central é a produção de um saber neutro, sem contradições e desvios. Diante disso, apaga-se a história tanto individual quanto coletiva, pois estas são percebidas como obsoletas e superadas, e, assim, "o que um indivíduo foi e experimentou no passado é anulado em face daquilo que ele agora é, daquilo que ele agora tem e eventualmente daquilo para o que pode agora ser utilizado" (1944/2006, p. 178). Por isso, conforme destacado por Matos (1989), o conhecimento é alicerçado pelo terror em um movimento de "obsessão do diverso" em que há o ajustamento da diferença (não-idêntico) em prol de uma universalidade; oriundo da burocratização da vida e da reificação do Geist (Espírito), tal ajustamento "lida com o princípio de identidade, excluindo o contraditório, o heterogêneo, o não idêntico. Seu procedimento consiste em lidar com uma razão sem conteúdo, uma racionalidade formal que exclua de seu âmbito o politeísmo de valores" (Matos, 1989, p. 143).

Nesse sentido, percebe-se, de acordo com os teóricos críticos críticos, que a capacidade de pensar por si mesmo, o Sapere Aude kantiano que tira o indivíduo do estado de minoridade, vê-se aniquilada em um mundo administrado (Adorno, 1951/1993, 1967/2009; Horkheimer, 1947/2015) e que, portanto, impossibilita o sujeito de refletir sobre sua realidade (interna e externa) para além da causalidade formal, da equivalência. Nesse registro, ao não refletir sobre si mesmo, principalmente sobre os conflitos em seu mundo interno (os objetos internalizados na primeira infância e, muitas vezes, persecutórios), o sujeito esclarecido trata o Unheimliche de modo intolerante e violento. O estranho levaria o indivíduo a uma recordação de seu ingresso traumático na vida social (Enriquez, 1990), destituindo suas certezas e, com isso, colocando em dúvida em sua suposta felicidade.

Por causa disso, argumentam Adorno e Horkheimer, "as pessoas recalcam a história dentro de si mesmas e dentro das outras, por medo de que ela possa recordar a ruína de sua própria vida, ruína essa que consiste em larga medida no recalcamento da história" (1944/2006, p. 178). Vale expor que este aspecto indica uma das facetas que compõem a autodestruição da Aufklärung: a tentativa cega de recalcar os afetos, sejam eles quais forem, no esforço de manter o modus operandi do capitalismo tardio. Nesta esfera, nota-se que o fascismo se desdobra como um sintoma da irracionalidade esclarecida em que as diferenças (a figuras que indicam não-identidade) são apagadas em benefício de uma sociedade ilusoriamente harmônica, sem conflitos e, portanto, sem angústia.

 

Unheimliche e projeção patológica

Os elementos que implicam em uma rarefeita capacidade reflexiva, bem como no recalcamento da vida afetiva em favor do mundo administrado alinham-se diretamente ao fascismo. Tais aspectos são formulados de maneira refinada no ensaio Elementos do Antissemitismo: limites do esclarecimento, principalmente nas teses V e VI, nas quais os autores descrevem a constituição da subjetividade dos indivíduos preconceituosos e cujo tema do Unheimliche6 é expresso de maneira enfática.

Na tese V, por exemplo, Adorno e Horkheimer buscam localizar uma raiz psicológica do antissemitismo. Nessa tese, argumenta Gagnebin (2006), encontram-se os mecanismos de recalque e repressão que constituem a mentalidade antissemita e fascista. Assim, a autora chama a atenção para o seguinte fato: o fascista arranja uma desculpa para suas ações preconceituosas atribuindo à vítima características particulares. Ele caracteriza sua intolerância militante e aguerrida "como tendo sua fonte numa reação idiossincrática espontânea e irresistível, comparável a uma alergia que acometeria a pele na proximidade de gatos ou do enxofre" (2006, p. 84). Contudo, há uma verdade escondida na afirmação do fascista. Como uma mensagem invertida, a reação idiossincrática revela o fenômeno do recalque, ou, mais especificamente o afastamento dos aspectos animalescos e primitivos, que, por sua vez, não se perdem completamente, mas encontram bastante arraigados na vida psíquica.

Assim, Adorno e Horkheimer afirmam que essa idiossincrasia, este antigo apelo dos antissemitas para justificar o ódio à figura do estranho, denota precisamente uma consciência do absurdo. Para eles, ademais, ela estaria associada ao particular, aos componentes biológicos que não foram capturados pela ordem racional, remetendo assim às origens, à nossa proto-história biológica de reações involuntárias (tais como o batimento cardíaco acelerado, as contrações epidérmicas, o suor que goteja da testa): "Na idiossincrasia, determinados órgãos escapam de novo do domínio do sujeito; independentes, obedecem a estímulos biológicos fundamentais" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 149). Para o afastamento dessa condição tudo que denota descontrole é proscrito, e, nesse sentido, o sujeito substitui as ações reflexo-motoras pela "recognição no conceito" (1944/2006, p. 149), pela racionalização, na qual o múltiplo (o dispersivo) torna-se idêntico: o natural é suplantado pela racionalização e a natureza incontrolada é recalcada em nome da civilização e do progresso. Para não se "identificar", portanto, com a natureza resta ao sujeito esclarecido se distanciar dela, pois na ordem esclarecida - e, portanto, totalitária -, aquilo que representa aspectos suplantados pela razão instrumental devem ser exterminados.

Assim, os homens apenas têm conhecimento da natureza recalcada quando percebem que os gestos que se tornaram tabus permanecem em outros homens, na medida em que apresentam traços e comportamentos de um resto não racionalizado, primitivo e vergonhoso. Em vista disso, o tema do Unheimliche faz-se presente no pensamento dos filósofos ao considerarem que "o que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar" (1944/2006, p. 150) e cuja manifestação provoca fúria, ódio - "Os proscritos despertam o desejo de proscrever" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 151) -, tendo em vista que os agentes autoritários buscam exterminar justamente aqueles aspectos considerados vis, daninhos, inferiores, sujos, baixos, impuros, impróprios, danosos e primitivos. Em resumo:

Deve-se exterminar aquilo que se contenta em vegetar. As reações de fuga caoticamente regulares de animais inferiores, a formigação das multidões de insetos, os gestos convulsivos dos martirizados exibem aquilo que, em nossa pobre vida, apesar de tudo, não se pode dominar inteiramente. (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 151)

Em outras palavras, aquilo que não está na ordem do espírito enrijecido, que indique inferioridade ou fragilidade é hostilizado e eliminado da cultura, pois demarcam, de maneira angustiante, a vida primitiva abandonada, aspectos considerados danosos tanto para a ordem social como para o progresso. Assim, na civilização esclarecida, elimina-se os estranhos, as figuras que indicam uma não-identidade, na tentativa de atenuar o sofrimento inerente as regulações culturais. Matos (2006), ao estabelecer uma relação entre o conceito de Unheimliche e a perspectiva dos frankfurtianos acerca da condição psíquica do indivíduo esclarecido, argumenta que o conhecido caminha junto com o desconhecido. Com efeito, aquilo que é tão íntimo é também, no fundo, estranho para o próprio sujeito. Por isso, assevera a filósofa, "interrogar a intolerância é, pois, questionar as relações do eu ao outro, mas sobretudo de nós a nós mesmos" (Matos, 2006, p. 62).

Nesse sentido, Gagnebin (2006) aponta que a necessidade compulsiva de eliminar a diferença e de "não suportar o outro" remetem ao tema do sofrimento, e, mais profundamente, ao inquietante, isto é, ao Unheimliche que retorna nas figuras consideras estranhas para o corpo social. Nesse caso, a reação idiossincrática está associada às experiências da primeira infância, de quando o infans se vê incapaz de sobreviver por conta própria, de quando o corpo ainda era surpreendido por reações involuntárias, por manifestações inquietantes em relação ao corpo materno. Portanto, aquilo que retorna na vida adulta, sob o índice do não-idêntico (Adorno, 1967/2009), é a lembrança ainda que vaga da passividade primária, da vida lúdica abandonada, mas não totalmente perdida na dimensão psíquica (Gagnebin, 2006). Diante disso, entende-se que aquele que se direciona com fúria contra sujeitos em condições inferiores não suporta a ideia daquilo que precisou fazer em nome da civilização, da cultura e das regras rígidas de normalidade, trabalho, higiene, beleza etc.

Com notável sensibilidade, Pucci (2012) observa que o não-idêntico é, geralmente, vítima de uma espécie de frieza oriunda da lógica de troca mercantil que sedimenta a cultura. Com isso, ao ler a Dialética negativa de Adorno, o autor assinala que o não-idêntico - que se caracteriza pela sua resistência de não-participação no status quo - é o sujeito histórico real, concreto, que, na sua singularidade, resiste em seu tornar idêntico. Sua concretude indica que o conceito de não-idêntico não é apenas abstrato, mas, trata-se, acima de tudo, de um sujeito histórico execrado pela dominação burguesa.

Essa perspectiva está bastante alinhada à percepção de Adorno (1967/1995) ao afirmar que a história da perseguição contra aqueles que são considerados inferiores é, na maioria das vezes, motivada por um certo semblante de resistência inerente ao singular. Diante disso, a nosso ver, aquilo que Adorno (1967/2009) entende como não-idêntico possui estrita relação com o Unheimliche, cuja resistência para não se tornar igual (equivalente) é notória.

Avançando um pouco mais no ensaio Elementos do antissemitismo, mais precisamente na tese VI, Adorno e Horkheimer (1944/2006) introduzem o tema da projeção, expondo que a falsa projeção seria o principal mecanismo que sedimenta o antissemitismo e que esta fica a serviço dos aspectos paranoicos da razão. Para os autores, contudo, o fascismo não está ligado a esse caráter simplesmente projetivo, mas à ausência de reflexão. Tomando como base o pensamento kantiano, alegam que a projeção estaria arraigada em nossa vida mental desde os tempos primordiais enquanto percepção do ambiente para captura de alimentos e sobrevivência. Nesse sentido "perceber é projetar" (1944/2006, p. 154), haja vista que para conhecer um fenômeno o sujeito "projeta" as categorias do entendimento através da sensibilidade, tendo acesso à multiplicidade de dados que será "sintetizado", isto é, transformado em unidade.

Nessa perspectiva, o indivíduo "coloca" algo seu no objeto (as categorias a priori do entendimento) e "retira" deste, através dos dados da sensibilidade, os elementos necessários para reconhecê-lo. É este último aspecto que naufraga no fascismo, pois o espírito reificado, moldado pelo positivismo (razão instrumental), não enxerga nada além da mera formalidade, do pragmatismo cego, pois, na medida em que não recebe nada do objeto, ele apenas projeta, tendo em vista que a qualidade "móvel" do pensamento - que opera no abismo entre o sujeito e objeto - encontra-se danificada (Adorno & Horkheimer, 1944/2006). Por isso, sem receber nada, o indivíduo apenas coloca no externo o que é interno e, nessa medida, transforma o mundo em palco de seu delírio. Sua consciência é suplantada e a paranoia assume papel expressivo na política autoritária:

Ele perde a reflexão nas duas direções: como não reflete mais o objeto, ele não reflete mais sobre si e perde assim a capacidade de diferenciar. Ao invés de ouvir a voz da consciência moral, ele ouve vozes; ao invés de entrar em si mesmo, para fazer o exame de sua própria cobiça de poder, ele atribuiu a outros os 'Protocolos dos Sábios de Sião. (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 156)

Ao perder sua capacidade reflexiva acerca dos objetos e de si mesmo, o sujeito então compreende o mundo dentro de um ciclo fechado, idêntico, sem se preocupar eticamente com as particularidades e singularidades. Dessa forma, o Eu projeta de maneira compulsiva, exteriorizando "senão a própria infelicidade, cujos motivos se encontram dentro dele mesmo, mas dos quais se encontra separado em sua falta de reflexão" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 158). Em uma nítida referência à teoria freudiana, Adorno e Horkheimer argumentam que "a projeção patológica consiste substancialmente na transferência para o objeto dos impulsos socialmente condenados do sujeito" (1944/2006, p. 158), que assim buscará no mundo exterior objetos para "descarregar" seus impulsos internos, e, por conseguinte, produzir artificialmente inimigos de plantão. Estes, figuras indiciárias de uma vida deixada para trás, revelam "um país desconhecido onde fronteiras e alteridades são, permanentemente, construídas e desfeitas" (Matos, 2006, p. 63).

Nesse contexto, há uma similitude entre o paranoico (tal como descrito por Freud em sua análise do caso Schreber) e o cientista porque ambos abordam o mundo externo como algo a ser dominado, situação em que a dúvida e a incerteza são descartadas de modo que o objetivo precisa ser realizado esquematicamente e sem desvios ou erros. Desse modo, o pensamento perde sua potencialidade, seu aspecto negativo, dialético, por assim dizer: deixa de analisar a si mesmo "e limita-se à apreensão do factual isolado" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 162). O espírito abandona, com isso, suas possibilidades de elaborar as consequências de suas próprias ações, já que o pensamento se reduz a um saber neutralizado, mobilizado apenas para a "simples qualificação nos mercados de trabalho específicos" que aumentam em termos de "valor mercantil" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, pp. 162-163). Esse aspecto pode ser descrito como uma sensação claustrofóbica no mundo administrado em que o sujeito é compelido à socialização, ao mesmo tempo em que fica preso numa rede totalizante cada vez mais densa, com possibilidades muito rarefeitas de fuga (Adorno, 1967/1995). Com a sua capacidade reflexiva "mutilada", ao sujeito restam poucas escolhas que não a adaptação e a reprodução da vida social em sua desumanidade, denotando aquilo que Adorno (1951/1993) entende por vida danificada.

Ora, não seria então descabido estabelecermos uma relação direta entre o mal-estar contido na vida social, tal como compreendido por Freud (1930/2010b), e o apagamento de alteridades que, segundo Adorno (1972/2015), funciona como acessório de governos autoritários que lançam mão de técnicas psicológicas rigidamente estabelecidas para a criação de um clima de "pogrom" - como se sabe, o líder fascista não costuma se preocupar com políticas objetivas, concretas, mas apenas ideológicas (Adorno, 1972/2015). Agindo como bom paranoico, o líder autoritário visa produzir uma violência generalizada através da exaltação das qualidades do grupo eleito junto ao menosprezo dos que estão do lado de fora, preservando aquilo que Horkheimer e Adorno (1956/1973) denominaram a posição de ciclista: obediência cega à autoridade seguida de uma severidade para com o estranho (Unheimliche).

Com esse recurso, ele incita a violência por meio daquilo que Adorno (1972/2015) descreve como um uso racional da irracionalidade, traço autoritário que se caracteriza pela utilização de estratagemas psicológicos com a finalidade de insuflar as massas, criando assim uma atmosfera de catástrofe que separa o in-group do out-group, o dentro e o fora, os amados e os odiados, enfim, o "familiar" e o "estranho". De acordo com Endo (2006), essa criação de dicotomias é um "instrumento de triunfo sobre a ambivalência, de triunfo sobre o onírico, da superação de todo caos pela ordem (...) cujo ideal é a univocidade de sentido e a literalidade semântica" (2006, p. 429). Para que isso funcione de modo eficaz, argumenta o psicanalista, as dicotomias são impostas de maneira violenta "e a insuflam, no sentido em que postulam, por intermédio das suas operações, o fim da contingência, do latente, do imprevisível e do estranho" (2006, p. 429).

Nessa perspectiva, concordamos com Gagnebin (2006) quando expressa que o fascismo não precisa apenas de heróis, tais como se apresentam na clássica figura do agitador populista que desesperadamente quer transparecer o seu caráter incorruptível, puro. Para que a projeção (assim como a identificação) torne-se eficaz é necessário que se criem inimigos, isto é, um grupo mais ou menos homogêneo de "não-autênticos, os bastardos, os mal-cheirosos, aqueles que estão próximos dos bichos (e das bichas), os piolhos; e todos aqueles que não trabalham direito: os nômades, os preguiçosos, os vagabundos" (p. 85). Assim, conclui Gagnebin, "cada sociedade constrói e escolhe seus negros, seus judeus, seus travestis segundo suas angústias e necessidades" (2006, p. 85).

 

Considerações finais

Nesse percurso teórico, objetivou-se analisar o conceito de estranho (Unheimliche) e suas possíveis implicações políticas na Teoria Crítica de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer no debate sobre o fascismo. Com isso em vista, foi possível localizar na teoria freudiana e no pensamento frankfurtiano elementos subjetivos e objetivos que auxiliam no entendimento da questão central deste artigo. Observou-se que o Unheimliche faz parte da vida psíquica dos indivíduos (Freud, 1919/2010a), cuja origem pode ser localizada no ingresso ao laço social (Enriquez, 1990). Tal afeto liga-se ao efeito de estranhamento, à angústia de castração e, portanto, aos aspectos mais primitivos da vida anímica (Dionisio, 2012; Freud, 1919/2010a; Gagnebin, 2006; Mezan 2006). Na leitura de Adorno e Horkheimer (1944/2006), o Unheimliche relaciona-se com o afastamento da natureza arcaica, da vida animal, tratando-se, portanto, de um aspecto recalcado pela cultura.

Nessa aproximação teórica, observou-se também que tal afeto é um dos elementos mobilizados no fascismo, em que o líder autoritário, com seus discursos psicotécnicos, faz a distinção entre "nós" e os "estranhos" por meio de uma exaltação de qualidades do grupo, ao passo que os não-integrantes são hostilizados, considerados inferiores. Tal recurso é caracterizado por Adorno (1972/2015) como um uso racional da irracionalidade. Além disso, entende-se que a agitação fascista é um fenômeno que está intrinsecamente alinhado com a racionalização do mundo, isto é, a burocratização da existência que, na perspectiva dos teóricos críticos, caracteriza como mundo administrado ou vida danificada. Nessa esfera, o pensamento crítico é suplantado pela tecnificação, a instrumentalidade racional, de modo que o sujeito não produza reflexões profícuas tanto do seu mundo interno quanto externo. Para compreender esse diagnóstico da sociedade contemporânea, tornou-se necessário circunscrever o deslocamento crítico que Adorno e Horkheimer produziram na Dialética do esclarecimento, ao buscar na figura de Ulisses os elementos para compreensão da reificação e de uma subjetividade mutilada. Para tanto, foi também preciso entender como a psicanálise forneceu base segura para a compreensão daquilo que os autores entendem como "história noturna" (o recalque da vida afetiva em prol da cultura burguesa), na tentativa de reescrever o processo de autodestruição da Aufklärung.

Diante do que aqui pudemos explorar, é preciso apontar que o ressurgimento do autoritarismo em pleno século XXI evidencia o diagnóstico de que ainda não conseguimos escrever nossa história "a contrapelo", tal como Benjamin (1940/1994) sugeriu em suas teses Sobre o conceito da História. O Anjo da história - Angelus Novus -, do qual falava o filósofo, ainda permanece batendo suas asas sobre os escombros deixados pelo vento do progresso (Benjamin, 1940/1994), de modo que continuamos precisando buscar nos restos alguma sombra de verdade perdida, qualquer coisa que conduza a uma reconstrução da história que não se reduza à história das imagens fixadas. Logo, torna-se necessário "despertar no passado as centelhas de esperança", pois, na marcha do progresso, argumenta Benjamin, "os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado em vencer" (1940/1994, pp. 224-225).

Em virtude disso, o que parece nos restar pelo momento é lançar algumas mensagens na garrafa (Adorno, 1993/1996), numa tentativa de levar adiante o pensamento reflexivo ao apresentar um registro do nosso tempo presente. Longe de esgotar o assunto, o presente trabalho é um convite para a reflexão acerca do autoritarismo que continua a se desdobrar no horizonte da civilização - a realidade brasileira parece ter se tornado um exemplo inconteste desse avanço! -, e das condições que concorrem na produção de uma personalidade potencialmente fascista, bem como na exclusão e eliminação do estranho (Unheimliche) a ela diretamente proporcional. Em síntese, trata-se de apontar para uma linha de fuga que caminha pela via da teoria freudiana e da filosofia política de Adorno e Horkheimer (1944/2006) que indicam claramente a posição de não permitir que o fascismo tenha a última palavra, pois, conforme asseverou Brecht, "é fértil ainda o colo que o criou" (1941/1992, p. 213).

 

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Recebido em: 07/06/2019
Aprovado em: 23/04/2020

 

 

1 Grosso modo, o mundo administrado pode ser caracterizado por uma extensa racionalização das relações de trabalho, familiares, afetivas e cognitivas. Seguindo a esteira reflexiva de Horkheimer (1947/2015), observa-se nessa dinâmica uma exacerbada instrumentalização da vida oriunda de um pragmatismo cego, que, por sua vez, está em consonância com a razão subjetiva (instrumental). Esta, para o teórico crítico, preocupa-se apenas com a autoconservação do indivíduo, isto é, com o domínio técnico da natureza (externa e interna) de modo a preservar o modus operandi do capitalismo tardio. De acordo com o filósofo: "Abrindo mão de sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. ... A razão foi completamente mobilizada pelo processo social. Seu valor operacional, seu papel na dominação dos homens e da natureza, tornou-se o único critério. Os conceitos foram reduzidos a sumários das características que vários espécimes têm em comum ... tornaram-se dispositivos 'otimizados', racionalizados, poupadores de trabalho. É como se o próprio pensamento tivesse sido reduzido ao nível dos processos industriais, sujeitos a uma programação estrita - em sua, transformado em parte e parcela da produção". (p. 29)
2 A expressão de Paul-Laurent Assoun (2012).
3 Em linhas gerais, Hoffmann (1815/2019) apresenta, em O homem da areia, a história do jovem Nathaniel que, na vida adulta, se depara com o ótico Copolla, um vendedor de barômetros e construtor da boneca Olímpia, por quem Nathaniel se apaixona - sem saber que se trata de um autômato. Contudo, a presença de Copolla na história representa, na verdade, Copellius, o antigo advogado que visitava sua casa na infância e que em algum momento Nathaniel acreditou ser o homem da areia, que iria arrancar-lhe os olhos. Para maiores detalhes do conto ver "O homem da Areia" in O infamiliar (1919/2019). Sugerimos também as leituras feitas por Koltai (2000), Mezan (2006) e Parente (2017).
4 Para Marcuse (1964/2015), o escasso poder negativo do pensamento, isto é, o seu caráter eminentemente crítico, que se alastra na chamada "sociedade unidimensional", transforma a Razão em instrumento de submissão. O valor crítico atribuído ao pensamento é redimensionado para a perpetuação da própria civilização, pois, "a eficiência do sistema enfraquece a capacidade do indivíduo de reconhecer que esse sistema só contém fatos que expressam o poder repressivo do todo. Se os indivíduos encontram-se nas coisas que moldam suas vidas, não é porque eles estabelecem a lei das coisas, mas porque eles a aceitam - não como uma lei da física, mas enquanto uma lei de sua sociedade ... Os meios de transporte e de comunicação de massa, as mercadorias de habitação, alimentação e vestuário, a irresistível produção da indústria do entretenimento e da informação trazem consigo atitudes e hábitos proscritos, certas reações intelectuais e emocionais que unem os consumidores mais ou menos prazerosamente aos produtos e, por meio destes últimos, ao todo". (p. 49)
5 Não é sem motivos que a figura do Ulisses é a antecipação daquilo que no século XX aparece na sociedade administrada como self-made man (Horkheimer, 1947/2015).
6 Devido a extensão do tema acerca do autoritarismo no pensamento de Horkheimer e Adorno, nos limitaremos apenas a estes pontos do ensaio sobre o antissemitismo, uma vez que estes expressam de maneira nítida a temática sobre o Unheimiche.

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