INTRODUÇÃO
Os estudos de gênero, no campo da saúde coletiva, intensificaram-se a partir da década de 1980, impulsionados pelas lutas feministas, pelos processos de redemocratização brasileira e, no caso da saúde, devido à reformulação de seu sistema (Araújo, Schraiber, & Cohen, 2011; Couto & Gomes, 2012; Medrado & Lyra, 2008). Joan Scott (1995) traça um percurso histórico sobre as definições de gênero na perspectiva feminista e como uma categoria de análise, referindo-se ao uso do termo com a intenção de escapar dos determinismos biológicos do sexo, das definições normativas sobre feminilidades e agregar o aspecto relacional entre homens e mulheres, porém não de forma binária. Para ela, “o gênero é entendido como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” (Scott, 1995, p. 86). Tais relações se dão a partir de símbolos, de normas, de concepções políticas, organizações sociais e de identidades subjetivas. Em revisão de seu próprio texto, Gênero: uma categoria útil de análise histórica,Scott (2010) afirma que gênero só será uma categoria útil de análise se houver reflexão crítica sobre como os significados dos corpos sexuados são construídos, empregados e modificados, um em relação ao outro e em determinados contextos.
Connell (2013) define gênero como um processo social ativo que apresenta os corpos reprodutivos para a história, produzindo impactos na saúde, não como um efeito colateral deste regime, mas no centro de sua própria criação. Faz-se necessário desnaturalizar concepções de gênero, para ir além da biologia, ainda que “não devemos temer a biologia, nem devemos ser tão refinados ou engenhosos em nossa teorização do gênero que não tenhamos lugar para corpos suados” (Connell, 1995 p. 188). Para a autora, uma nova política de gênero pode ser produzida a partir da aliança entre diferentes coletivos e experiências, provocando novas dinâmicas sociais, buscando dar visibilidades e potencializando as narrativas de diferentes formas de ser e habitar o mundo, através de práticas “escandalosas, alegres” (Connell, 1995, p. 204).
Assim, problematizar as lógicas de opressão e desigualdades numa perspectiva relacional de gênero torna essencial a discussão dos modos de subjetivação contemporâneos, bem como as suas interseccionalidades. “Os corpos são ‘datados’, ganham um valor que é sempre transitório e circunstancial. Inseridos num contexto histórico-político cultural específico, os corpos são, então, fabricados por variadas marcações” (Louro, 2020, p. 82). Diferentes dinâmicas corporificam coletivos de modo a compor formas de subjetivação atravessadas por marcas de raça, classe, gênero, sexualidade, geração. Assim, defender a equidade de gênero só é possível ao considerarmos a integração com outras lutas, aliadas ao objetivo de justiça social (Connell, 1995, 2016; Viveros-Vigoya, 2018). Viveros-Vigoya (2018) refere a abordagem interseccional como uma forma de compreender as desigualdades, compreendendo as dinâmicas de dominação como complexas e contraditórias e ainda pontuando se tratar da “distribuição do poder e dos recursos da sociedade entre todas as posições, incluídas as dominantes, pensadas em todas as suas dimensões” (p. 23). Desse modo, são relações que se coproduzem, um modo de habitar o gênero, a classe, a raça, a idade etc.
Buscamos, portanto, a vertigem de um corpo por vir, um corpo que escape ao sistema de desigualdades e irrompa em experimentações libertárias e equânimes. Sobre este processo de construção de novos mundos por vir, Rolnik (2018) trata das formas e das forças na produção de subjetividades. As formas, contornos sociais estabelecidos que subsidiam a nossa existência concreta, são os modelos atuais, a cultura, as representações e os códigos distribuídos no campo social, bem como suas normativas e ordenamentos. Tais formas são percebidas pela via da percepção e do sentimento (experiência sensível e emoção psicológica). As forças atravessam as formas, com vetores direcionadas a múltiplas direções: alteram, agitam, incomodam as formas percebidas. Tal função é apreendida pela via do percepto e do afeto. Estes, “não têm imagem, nem palavra, nem gesto que lhes correspondam – enfim, nada que os expresse- e, no entanto, são reais, pois dizem respeito ao vivo em nós mesmos e fora de nós” (Rolnik, 2018 p. 53), é o que a autora denomina saber-do-corpo. Tais funções, forma e força, são imanentes, intrínsecos movimentos de produção de vida, para além do sujeito individual, mas coletivamente construído. No regime capitalístico, a função forma ganha valor gigantesco e busca paralisar o efeito das forças. A autora estabelece, então, dois movimentos micropolíticos de produção de subjetividades nos extremos, entre tantas maneiras de criação do existir: um extremo ativo, que escuta os afetos, e outro extremo reativo, que silencia os mesmos, característica do inconsciente-colonial-capitalístico1.
Ao articular o conceito de saber-do-corpo (Rolnik, 2018) com a construção subjetiva e performada de gênero, circulamos pelo paradoxo do corpo, entre a experiência liminar que possibilita um novo corpo por vir e a experiência formatada, invisibilidades e silenciamentos de corpos reprodutores de uma estrutura social, seja de gênero, raça, classe, e da própria saúde, por exemplo. Rolnik (2018) busca deslocar tal teoria de um sujeito individualizado, mas aproximá-la do enredo sócio-histórico e político para compreender os efeitos do regime colonial-capitalístico em nossos corpos, marcando a necessidade de aliarmos a insurgência macropolítica da revolução micropolítica. Segundo Paul Preciado (2018), no seu entendimento sobre a articulação entre mudanças macro e micropolíticas, “não há possibilidade de uma transformação das estruturas de governo sem a modificação dos dispositivos micropolíticos de produção de subjetividade” (p. 19).
Deste modo, cabe compreender que os modelos de atenção à saúde, inseridos em diferentes serviços, estão mergulhados nestas estruturas sociais acima descritas, e exercem a partir dos corpos de trabalhadoras, de usuários e da comunidade, regimes de cuidado com dinâmicas de reprodução e resistência sobre o próprio sistema. Ao adentrar um serviço substitutivo ao manicômio, como o Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil- CAPS IJ2, percebemos na estrutura de sua concepção e criação um campo produtor de um modelo de saúde que pretende ser voltado para a liberdade e para o respeito à singularidade dos sujeitos no mundo (Amarante, 2007). Desta forma, a estrutura social sobre gênero se conecta à estrutura saúde-loucura e produz dinâmicas locais específicas e movimentos micropolíticos de produção de subjetividade (Amarante, 2007; Mattos, 2020; Passos & Pereira, 2017, 2019; Rolnik, 2018).
Levando em conta o regime colonial capitalístico – e o enfraquecimento subjetivo das coletividades, que expropria a força vital, não mais somente pela força de trabalho, mas pela própria vida e pela captura do desejo para acúmulo de capital – temos o desafio de lutar pela reapropriação de nossa força. Assim, podemos nos conectar de forma coletiva e colaborativa para a transformação de mundos: uma revolução micropolítica, na construção do comum (Rolnik, 2018) aliada às lutas de classe, gênero, raça e antimanicomial, por exemplo.
Mapeamos as formas que sustentam as lógicas de dominação, globalizadas, massificadas, tão fortalecidas ideologicamente neste contexto político mundial atual, neoliberal, seja em relação ao gênero, seja ao cuidado com a saúde-loucura (Couto & Delgado, 2015; Leite, 2019). Mas é a garimpagem em terrenos férteis, porém pouco explorados, de produções subjetivas outras que nos interessa mais, onde existem possibilidades de encontrar formas de escapar e de criar modelos mais justos e igualitários de viver em sociedade, uma vez que, por mais raros que pareçam e por mais insipientes que sejam, são sempre revolucionários: devires (Deleuze & Parnet, 1998; Rolnik, 2018). Isto posto, apresentamos o modo de feitura do campo de pesquisa e as análises realizadas a partir da construção conjunta com trabalhadoras de um saber sobre gênero, cuidado e subjetividades, pois, afinal, acreditamos que “o mundo vive efetivamente em nosso corpo e nele produz gérmens de outros mundos em estado virtual” (Rolnik, 2018, p. 55).
No presente artigo, analisamos uma experiência-narrativa de uma pesquisa-intervenção com trabalhadoras3 da saúde ao problematizar e (re)inventar as concepções relacionadas à estrutura de gênero, com o objetivo de causar interferência na ordem social, a partir do corpo e da experiência de si no mundo. Utilizamos ferramentas práticas no intuito de provocar os corpos a produzir a reflexão desde a própria experiência vivida e, a partir dela, produzir deslocamentos possíveis na ordem de gênero dominante em busca de caminhos de equidade, nos próprios corpos das trabalhadoras, como também em nossas práticas profissionais no serviço.
Método
Analisamos a experiência do estudo, advindo do mestrado em Saúde Coletiva, que abordou as dinâmicas socias de gênero e a produção de subjetividades junto com trabalhadoras de um Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil – CAPS IJ. Utilizamos do método cartográfico (Cavagnoli & Maheirie, 2020; Passos & Barros, 2015a) para propor este estudo, como uma metodologia qualitativa de pesquisa intervenção. Tal método, utilizado no campo da pesquisa da psicologia social, por exemplo, entende os processos de subjetivação como produtos e produtores de estruturas e dinâmicas sociais (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2015; Tedesco, 2015). A proposta da cartografia é mapear, então, estes processos de subjetivação como propõem Deleuze e Guattari (2007, p. 22): “O mapa é aberto, é conectável em todas suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente”.
Uma pesquisa cartográfica busca mapear os territórios existenciais, a produção de subjetividades para então acompanhar a expressão dos sistemas sociais e as estruturas de gênero corporificadas em ato, performadas na intervenção. Buscamos, assim, com a cartografia, acompanhar processos e não definir objetos ou realidades (Preciado, 2017). Esta pesquisa trata de uma perspectiva-corpo-afetiva-visceral-sensorial dos modos de produção de subjetividades.
Considerando que estamos constantemente produzindo saberes-fazeres em nossa prática, seja de cuidado ou de pesquisa, a perspectiva utilizada alia o posicionamento da pesquisadora no campo como alguém que faz parte do próprio plano de produção de conhecimento e não como um sujeito que acessa de forma neutra um contexto previamente dado, recolhendo seus dados. O cartógrafo produz no campo e nele é produzido (Passos & Barros, 2015; Passos & Eirado, 2015).
O método cartográfico, superando o paradigma da neutralidade, busca desinstitucionalizar os corpos de pesquisador e sujeitos acompanhados e realizar constantemente a análise de nossas implicações no contexto de pesquisa (Lourau, 2004; Paulon, 2005). Dessa forma, buscamos ativar o saber-do-corpo para desnaturalizar práticas, sujeitos e sistemas sociais. Assim, a entrada na esfera empírica se deu com o objetivo da pesquisadora, em seu mestrado em saúde coletiva, de conectar o seu campo de trabalho, o CAPS IJ, lugar onde atua como psicóloga à produção de saber sobre gênero. É de dentro do campo da saúde coletiva, como trabalhadora e pesquisadora, que as inquietações relacionadas às dinâmicas de gênero e o cuidado em saúde mental são problematizadas. Ao longo do processo da pesquisa sobre gênero, a construção do objeto de pesquisa se deu a partir da observação entre nós trabalhadoras de posicionamentos que reforçam e reproduzem modelos heteronormativos de produção de subjetividade, como, por exemplo, falas de trabalhadores como “isso é coisa de menina” e a partir do sofrimento de adolescentes quanto à sua identidade de gênero e orientação sexual e a falta de acolhimento das famílias e um não saber do profissional que ali os cuidavam. Desta forma a construção de um espaço de educação em saúde se aliou à produção de saber para esta pesquisa.
Analisar as implicações é observar, por exemplo, que o corpo da pesquisadora está mergulhado no campo, como trabalhadora, conectada aos corpos das trabalhadoras que fizeram parte da pesquisa. A pesquisadora, ainda, apresenta-se como mulher, muitas vezes oprimida e outras tantas vezes reprodutora do sistema de violência. Com uma identidade de gênero cis, de orientação heterossexual, com recorte de raça branco, de classe média, busca ampliar o olhar de sua própria experiência corpórea para dar passagem a outras interseccionalidades, ao mesmo tempo em que percebe o próprio limite desta circunscrição.
Ao problematizar a lógica do inconsciente-colonial-capitalístico em uma pesquisa-intervenção cartográfica buscamos, também, provocar os traços de colonialismo em nós. Viveros-Vigoya (2018) usa o conceito “inimigos íntimos” para orientar criticamente a nossa formação como sujeitos e como produtores de saberes-fazeres. Portanto, neste estudo, buscamos produzir enlaces teóricos utilizando, basicamente, autores locais e do sul global, como forma de reconhecimento da potência de nossas produções situadas (Connell, 2016), a partir da realidade corporificada dos autores produtores de conhecimento, articulada à crítica da “extraversão forçada” que “se refere a necessidade de ter referências acadêmicas metropolitanas para validar e dar legitimidade à produção científica feita fora de seus centros acadêmicos” (Viveros-Vigoya, 2018 p. 178).
Totalizamos dezoito pessoas, quinze mulheres, três homens, todos com uma identidade de gênero cis, sendo que uma mulher se autodeclarou negra, duas se autodeclararam pardas, e um homem referiu ter no seu registro civil a cor branca, mas se colocou a pensar, pois parte de sua família paterna é negra; ainda assim, preferiu se autodeclarar branco.
Orientamos a pesquisa de mestrado a partir das observações de campo, nos atendimentos clínicos e na proposição de quatro oficinas temáticas sobre gênero, masculinidades e equidade de gênero em saúde direcionadas à equipe num processo de educação permanente. Neste artigo, analisamos a produção de conhecimento geradas a partir das oficinas e da narrativa das trabalhadoras sobre as suas corporificações de gênero e discutimos como tais modelos podem impactar o cuidado em saúde (Passos & Barros, 2015b; Barros & Kastrup, 2015).
Propusemos as oficinas como ferramenta metodológica de pesquisa, e como dispositivo de educação permanente4. Compreendemos o espaço de reflexão coletiva como um campo rico em possibilidades de criação, de ser e saber. A concepção de Educação Permanente vem ao encontro da perspectiva cartográfica, pois entende a produção do saber vinculada a prática, cocriada a partir da experiência, que é local e demarcada por dinâmicas sociais do território e pelo plano de forças e afetos (Alvarez & Passos, 2015; Barros & Kastrup, 2015; Escóssia & Tedesco, 2015). É desde esta concepção que provocamos o nosso campo empírico, a partir de uma proposta participativa, colaborativa de enlaces e afetos mútuos entre nós trabalhadoras na construção de saberes sobre gênero.
Construímos quatro oficinas5, com as seguintes propostas: a primeira foi a confecção da árvore dos gêneros, que consistiu na discussão das normas de gênero, os discursos dominantes, os atores envolvidos nesta estrutura social bem como os ‘frutos’ deste sistema, ou seja, dados de desigualdade de gênero como a divisão sexual do trabalho, violências etc6. Na segunda oficina, compartilhamos a experiência vivida, a partir de uma técnica que provocava a pensar nas dinâmicas hegemônicas de gênero direcionadas a cada um e por eles reproduzidas, bem como as formas de resistência. Na terceira oficina, assistimos ao documentário Precisamos falar com os homens?7 e discutimos sobre equidade de gênero e o papel de cada um nesta luta. A quarta e última oficina foi o compartilhamento do desafio proposto de falar com alguém sobre o tema gênero e perceber seu corpo no encontro. Utilizamos de ferramentas grupais no intuito de apresentar materiais que pudessem ser utilizados com os adolescentes que atendemos. Portanto, buscamos produzir um corpo em oficina que se lance para o fazer.
Utilizamos do conceito de intercessores para fundamentar a análise desta produção (Deleuze, 1992), que representam modos de dar passagem para exprimir o que intentamos criar. Os intercessores inventam a obra, artesanalmente, a partir da invenção de palavras que caibam na experiência. Intercessores causam interferência nos saberes instituídos e buscam dar passagem ao devir. Tal conceito vem ao encontro da proposta cartográfica e implica dar visibilidade para os modos de corporificar as dinâmicas de gênero e produção de subjetividades entre o grupo de trabalhadoras que participou deste estudo.
Analisamos a partir de duas posições de experiências intercessoras: na primeira, refletimos sobre a produção de corpos em vertigem, quando a perspectiva relacional de gênero causa interferências, desacomodações em práticas-corpos dominantes, causando desvios no sentido de produzir ações de equidade e potencializar o saber-do-corpo; e, na segunda, analisamos as invisibilidades e os silenciamentos institucionalizados em corpos, no que se refere à estrutura de gênero e o desafio existente para fazer ver e dar voz aos sujeitos no combate ao regime colonial-capitalístico.
As oficinas foram gravadas e transcritas e os nomes das trabalhadoras foram alterados. Devido à pandemia, o grupo de trabalhadoras que aceitou participar do estudo foi dividido em dois, para manter os cuidados e não haver aglomerações. Todos autorizaram a participação com a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE e foram observadas as normas da Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta a realização de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil (Conselho Nacional de Saúde, 2016).
VERTIGENS PELA EQUIDADE DE GÊNERO: CORPOS INTERSECCIONADOS QUE RESISTEM
Ao adentrar no encontro com as colegas trabalhadoras meu corpo treme. Tratar sobre gênero, feminilidades, masculinidades, fazendo parte de um sistema que muitas vezes oprime a voz da mulher, me faz titubear. Mas é da necessidade de causar tensões nesse sistema que o corpo, imerso, também sente e, neste caso, “o corpo pede ouvidos, porque já não aguenta mais” (Giacomel, Régis, & Fonseca, 2004, p. 103). Ali, no encontro coletivo das forças e dos afetos, começa a constituição de saberes-fazeres. Ao propor, em oficina, o compartilhamento das concepções sobre gênero dominantes – e como nós nos percebemos dentro desta estrutura –, múltiplos olhares e vivências se encontram. “Eu sempre fiz ao contrário do que ela (a mãe) mandava, não é pra cortar cabelo curto: eu cortava; não é pra jogar bola: eu jogava; era rebelde, ‘tu parece que não é uma menina’ e eu nem aí.” (Fran, mulher, cis, branca, “quarenta e poucos anos”). Escutar a experiência, ativar o devir-criança (Deleuze & Parnet, 1998) em nós, trabalhadoras em saúde mental infanto-juvenil, para nos conectarmos às forças do mundo que pedem passagem. Uma revolução a partir do corpo inventa mundos (Connell, 2016; Rolnik, 2004).
Abordamos as narrativas das trabalhadoras em oficina-produção de conhecimento sobre gênero e suas interseccionalidades, pois, “já não está na hora de aprendermos a compartilhar experiências mais do que despejar saberes? E não precisaríamos, antes de tudo, aprender a experimentar, como criança, ou como o artista?” (Giacomel et al., 2004 p. 100). O relato acima nos provoca a pensar sobre as artimanhas de ser quem se é, devir-criança que provoca o corpo a rebelar-se. Potências de si, que germinam o espaço oficina de potencialidades de criação.
Acordar o corpo, num movimento de reflexão de si sobre as lógicas de gênero, amplifica a própria vivência e pode dar visibilidade aos regimes e estruturas sociais dos quais fazemos parte, para então irromper novos corpos, a partir dos gérmens de vida em nós, devires (Deleuze & Parnet, 1998; Rolnik, 2004, 2018). Relatos sobre as próprias vivências de gênero são entrecruzadas pela produção subjetiva marcada pela raça, geração, performances de gênero como a orientação sexual, e a ocupação como trabalhadoras de saúde. A concepção das interseccionalidades no encontro com a discussão sobre gênero se faz fecunda. Por exemplo, o marcador social da diferença de geração. Entre o grupo de trabalhadoras éramos dezoito pessoas, duas com idade entre 20 e 30 anos, a maioria de nós entre 30 e 40 anos (11 pessoas), três trabalhadores entre 40 e 50 anos e duas pessoas com mais de 50 anos de idade:
Aretha (mulher, branca, 53 anos): na minha geração era tão reto os credos! É isso, e acabou. A Rita (mulher, branca, 33 anos), que é mais jovem, está com dificuldade de nomear, categorizar, por isso.
Lélia (mulher, branca, 47 anos): talvez seja também, pela geração, porque os pais não tinham muito diálogo.
Aretha: As expectativas dos pais eram caras. Algumas foram frustradas (risos)
Lélia: ainda bem que a gente não respondeu às expectativas deles
Jurema (mulher, branca, 39 anos): eu frustrei minha mãe
Lélia: eu também
Jurema: até hoje eu frustro
Lélia: eu me rebelar contra a família foi difícil. No interior é bem difícil as coisas, se rebelar. Eu articulava por fora, hahaha, Não! não tinha como encarar a minha mãe, minha mãe era assim. (gesto imponente)
Corpos que resistem aos credos, à normatividade, em diferentes tempos geracionais, atualizam e instauram a potência da rebelião, do saber do corpo que foge à opressão, das mais diversas formas, e em diferentes períodos do tempo. Há quem vivenciou um tempo mais opressor quanto às normas de gênero, há quem experimenta um período com maior diálogo e fluidez sobre as expressões do tema. Além disso, pode-se perceber que o território, interiorano ou metropolitano, também marca diferença nas dinâmicas e normas de gênero.
Ativar o poder do pensamento, segundo Rolnik (2004, 2008, 2018), em sua proposta micropolítica ativa, é acordar o corpo vibrátil, o saber-do-corpo e, assim, escutar os afetos, a memória de um corpo em contestação, conforme as narrativas acima, podendo irromper em transformações da realidade, produzir devires, polinizar o cuidado, dando passagem, em um serviço antimanicomial da infância e da juventude, à contestação do sistema, à escuta e ao cuidado do corpo artista/arteiro em ebulição/vibração. No que concerne às políticas de subjetivação para a garantia de ações de equidade, “disso depende o quanto um modo de subjetivação favorece ou constrange a processualidade da vida, a sua expansão como potência de diferenciação” (Rolnik, 2004 p. 233). Um campo coletivo germina algo.
Somos corporificados, também, pelo capitalismo e pelo poder. Montados e classificados por marcas como gênero, classe e raça, somos produzidos por uma dinâmica social que qualifica os corpos, então alguns valem mais e outros menos, alguns terão alguns acessos e outros não (Louro, 2020; Rolnik, 2018). A vivência racializada de uma trabalhadora mulher nos dá um exemplo:
Brenda (mulher, negra, 38 anos) Enfim, mas essa questão... assim, de sentir essas situações, por ser preta, morar na periferia, isso é uma coisa que vem enraizada com a gente desde que a gente nasce. Que a gente tem que sempre estar com medo. A gente tem que sempre cuidar a roupa que a gente vai vestir. Cuidar pra não sair correndo, principalmente de noite, e eu como eu to sempre atrasada eu vivo correndo. Então, já tive situações de ser parada de noite, eu tava correndo e de capuz. Ai tu fica pensando, puta que pariu neh, que país de merda que eu vivo. Mas ok, é o país que eu vivo. Então, tem que aprender a ser resiliente assim, com essas coisas, de aprender a lidar que, no mercado, alguém sempre vai estar me seguindo, entendeu. Que mesmo eu querendo roubar alguma coisa ou não. Nunca roubei. Então lidar com todas essas coisas é muito difícil, muito complicado. As vezes dá vontade de sair e matar todo o mundo, as vezes dá vontade de mandar todo mundo à merda e ai a gente tem que aprender a lidar com tudo isso. E aí, acho que isso, pra quem é preta é muito mais complicado do que todas as outras coisas, eu não tô menosprezando, é que a gente tem que estar sempre com esse cuidado de ‘o que que eu to vestindo, que eu não posso correr, aonde é que eu vou ir, vai ter alguém comigo, não vai, eu posso ir sozinha em tal lugar, eu não posso’. Porque não adianta, a gente é preto, então a primeira coisa é porque tu é preto, ai depois porque tu é mulher. Tá, mas... enfim.
Considerar tais dinâmicas, coletivamente, é dar luz ao fato de que “as normas regulatórias se voltam para os corpos para indicar-lhes limites de sanidade, legitimidade, moralidade ou coerência” (Louro, 2020 p.76). Em um país sexista e racista como o Brasil (Zanello, 2018), buscar formas de romper com este sistema de desigualdades pede por uma escuta das diversas realidades, bem como incomodar-se com o efeito do escancaro. Um corpo negro se apresenta, e então estremece o corpo das trabalhadoras que compartilham que “por mais que eu diga que eu sou antirracista que eu combato o racismo, ele é estrutural, ele está entranhado na gente” (Isis, branca, 26 anos). Elas dão voz a práticas sociais racistas: “dava dislike no homem negro e eu dizia assim, ‘não mas ele não é meu tipo’ obvio que ele não vai ser meu tipo. Nunca um galã da novela é negro, não tinha um Ken negro, não tava na capa da Capricho” (Aline, branca, 33 anos). O reconhecimento disso se traduz afetivamente: “Quando eu digo que, assim, algumas coisas me atingem, nem se compara com o que, por exemplo, a Brenda passou” (Aline, branca, 33 anos). “Eu acho que têm dinâmicas que dificultam ainda mais a vida de certos corpos, a população LGBT, a população negra.” (Leandra, branca, 34 anos). Ainda: “E tu falou e eu me emocionei assim (choro), porque nunca fui parada pra me revistar, se eu corro na rua de noite, não vão me parar também” (Aline, branca, 33 anos). Brenda encerra: “resumindo: ser preto é bem difícil”.
Estes processos fazem parte do serviço, como ver, ouvir e sentir, seja enquanto espaço de educação permanente, ou mesmo na organização de corpos de profissionais, ou no cuidado aos usuários e à comunidade; é dar possibilidade de engendrar outras perspectivas, interseccionadas, na atenção à saúde das pessoas a quem nos dirigimos e, propriamente, em nossas vidas.
Ao tratar sobre gênero e interseccionalidades, buscamos ampliar a perspectiva de que ao falar sobre gênero estamos direcionando o olhar às mulheres. Nesta narrativa, entrecruzamos o olhar para as masculinidades8, especificamente nesta sessão, a experiência de uma masculinidade que busca romper com a normatividade, e os efeitos de não corresponder aos anseios hegemônicos sobre um padrão de ser homem:
Fernando (homem, branco, 39 anos): eu na verdade, assim, pensando na minha criação, dentro da minha casa, eu não lembro assim de ter distinção. Ficou muito por nossa conta, não tinha um modelo predeterminado assim. Mas no grupo de amigos tinha, eu lembro muito de não poder ficar muito...eu sempre fui um bom ouvinte, desde que eu me entendo por gente. Então as vezes eu passava muito mais tempo com as meninas conversando e ouvindo, do que com os meninos. E aí os meninos não gostavam, achavam, começavam a falar um monte de coisa.
Grupo: veado
Fernando: aham, e aí ficavam meio assim né, de ficar junto, por conta disso, achando que tinha uma outra coisa né. Sofri muito, né, por conta disso também. Mas assim, não consigo definir muito, não tive muito isso, ah isso é coisa de menino, isso é coisa de menina. A minha mãe e meu pai sempre trabalharam fora né, e aí a gente sempre ficou responsável pela casa, assim, desde pequenininho. Tanto que eu aprendi a cozinhar e a lavar roupa e tudo, arrumar a casa.
Ao buscar por narrativas que causem vertigem, em nós, é importante tal vivência ser colocada, pois o paradoxo do gênero contempla práticas sociais reais, a partir dos corpos de homens e mulheres que, muitas vezes, se veem reproduzindo tal sistema estrutural, por fazer parte dele. Mas quando percebemos brechas da diferença, é a partir delas que buscaremos o devir. Neste caso, o devir-mulher no homem, ou até mesmo o devir-veado, produtor de masculinidades outras. Como construir projetos “visando a reconstruir e transformar o comportamento dos homens e a masculinidade em práticas revolucionárias feministas?” (Viveros-Vigoya, 2018 p. 179). Como fazer tal crítica sem banalizar o paradoxo da transformação, ou mesmo os dividendos patriarcais que privilegiam corpos de homens, cis e brancos, neste caso? Para Viveros-Vigoya, o feminismo é também assunto dos homens e, para que as transformações aconteçam, é necessário integrar as práticas feministas nos projetos de vida dos homens e incluir “pelo e no feminismo, inclusive na narrativa que este faz de sua própria história” (2018, p. 179). A autora coloca ainda, a partir de seu conceito de outras masculinidades, que “essas expressões masculinas heterotópicas devem ser retiradas da obscuridade, da invisibilidade e do silêncio para resistir à imposição de uma visão unilateral da história” (Viveros-Vigoya, 2018, p. 185)
Segundo Rolnik (2018), transcender o entendimento dos modos de subjetivação do sujeito limitado ao indivíduo é ampliá-lo para uma experiência inserida e produzida em um contexto global. Neste cenário de gênero e masculinidades, significa compartilhar tal experiência e, precisamente, romper com diversas dinâmicas homogêneas e dominantes que, naturalizadas, causam desigualdades no âmbito da sociedade. O desafio é problematizar normas e padrões, sejam de gênero, raça, geração e, ativar a potência de diferenciação, germinações de vivências que floresçam e sejam polinizadas em outros territórios e práticas sociais. “O gênero pode, claro, ser definido de muitas formas . . . Mas o que faz com que cada uma delas tenha importância para o mundo é o que podemos fazer coletivamente com essas identidades e classificações” (Connell, 2016, p. 17).
Ao longo das oficinas, as experiências e modos de pensar mais reativos ao tema sobre gênero também nos surpreenderam. De um corpo fechado, teoricamente embasado, porém que minimizava as situações de desigualdade, apareceu, ao final do processo, como um desvio. Legitimado pelo discurso de outros homens9, abaixa suas armas e se coloca a pensar:
Cora (mulher, parda, 53 anos): atépra ti que considerava ‘eu não sou machista’: tu viu que isso não existe
Antônio (homem, branco, 40 anos): Muito! Extra! Totalmente!Ainda! O que me chamou a atenção ali foi... de colocar os pezinhos no chão, de vestir a sandalinha que tem um monte de atitude ainda que eu não controlo. Ainda! E que se tu tiver isso em mente e conseguir ter isso, porque eu acho que aí tu consegue melhorar cada vez mais, Agora, no momento que tu diz, ‘não, eu não sou’, ou ‘eu acho que a gente tem que ser igual’. Gente, tem uma distância muito grande, muito trabalho ainda pra isso né. E é sim, essa posição, a gente ocupa uma posição que ela também tem um peso, como foi dito ali, mas, sobretudo, em função de tudo que foi apresentado em relação a dados, a gente também tem mais responsabilidade né (os homens). E é uma coisa muito linda isso, porque todo o mundo ganha, absolutamente todo mundo ganha. Essa foi uma coisa que eu achei maravilhosa, foi um discurso não sei de quem. Cara, que todo mundo ganha com isso, trabalhando pelo feminismo na sua essência. Buscando a igualdade, buscando.
Nesta narrativa, ocorre um deslocamento de si, um vetor de força do mundo atravessa um corpo-forma para ali desestabilizar, causando vertigens! Experiências liminares essas que podem produzir novas aberturas, novos porvires, masculinidades que enxergam, até que enfim. Com isso, parece que a luta e o incômodo de produzir reflexões fazem sentido. A tensão do corpo de pesquisadora alivia, pelo menos nesse instante.
Ao encontro disto, nos provocamos a conversar, para além do espaço de oficina, sobre as dinâmicas de gênero, seja com nossos pares, amigos, familiares ou pessoas atendidas. E, então, compartilhamos como o corpo reagiu à experiência e de que modo foi a conversa. Algumas participantes reproduziram o documentário10 assistido em oficina com os seus companheiros. Os relatos surpreenderam, vindo ao encontro da lógica de que a “libertação é uma tarefa do dia a dia. É aí onde as políticas de gênero geralmente acontecem, de fato” (Connell, 2016, p. 222).
-E foi tranquilo propor a ideia de ver o documentário?
Rita (mulher, branca, 33 anos): foi bem tranquilo. Assim, foi bacana, e daí a gente parava e ele mesmo puxava e perguntava ‘mas é assim?’, quer dizer, eu não sei em que mundo ele vive às vezes, daqui a pouco: ‘as mulheres inclusive morrem!’
Denise (mulher, branca, 47 anos): Sim, a gente saiu na sexta ali no boteco de baixo de casa pra comprar gin. Aí a minha cachorra número 6 se manifestou pra ir junto, ele disse ‘tu não vai entrar comigo?’ e eu falei: ‘te espero na esquina’ e junto com a gente tava vindo duas guriazinhas que não deviam ter mais de dez, onze anos, assim. Uma tava de shortinho mais curto e a outra tava com uma calça, e a que estava de calça entrou, ele disse que observou, eu fiquei na esquina com a guria assim, ele observou que a guria entrou assim ó (corpo retraído) porque estava cheio de homens na calçadinha, tomando uma cervejinha, ele disse que a menina entrou assim ó, aham, daí ele disse assim ‘ai Denise, pra mim fez mais sentido o que aquela menina disse no documentário e o que tu disse, eu nunca vivi isso enquanto homem’.
Causar vertigem, mínimas que sejam, pelo olhar da empatia e da abertura para as diferentes vivências de si podem dar pistas para práticas que desnaturalizem a ordem, que causem interferências no cotidiano. Por isso, o tremor inicial, de uma mulher branca, cis e hétero evoca uma ética e estética de vida que podemos propor para uma nova política de gênero (Connell, 1995), indo ao encontro de uma revolução micropolítica de nossas subjetividades, através do corpo e do fora-do-corpo, que esteja alerta ao novos diagramas de forças do mundo produzidos coletivamente, e que “tolera a turbulência que tais encontros provocam em sua experiência como sujeito ... suportando a tensão que o desestabiliza e o tempo necessário para germinação de um mundo, sua língua e seus sentidos” (Rolnik, 2018, p. 60).
SILENCIAMENTO E INVISIBILIDADE INSTITUCIONAL: O PARADOXO DE CORPOS QUE REPRODUZEM
E eu vi assim, o quanto foi difícil eu desconstruir com eles, em relação a mim. Que era bem difícil assim, eu acabava às vezes cedendo às demandas porque já estava esgotada, assim, de lutar contra aquilo. Que mulher é submissa, que mulher tem que cuidar da casa. Aquela coisa toda que eu via que eles foram criados daquela forma e eles reproduziam comigo o tempo todo. E o quanto foi bem difícil desconstruir algumas coisas. Outras, até hoje eu não sei lidar ainda. Acabei me afastando por não saber lidar. Mas é bem difícil. E eu não sei também, porque no interior, na cidade de onde eu venho também isso é muito forte, sabe. É uma terra que foi dos coronéis, então isso foi se perpetuando. E bem isso, fica bem assim, já está bem pragmático isso, a mulher cuida da casa, e todas as mulheres que tentam fazer diferente, elas têm um exercício muito difícil de sair desse papel, e que às vezes eu via muito na família. Acabavam se acomodando porque dá muito trabalho tu sair disso. Dá muito trabalho. Muito difícil, muito difícil, muito difícil! Porque é assim, duas famílias contra uma pessoa, sabe. Que não tem apoio de nenhuma das partes, sabe, então isso é bem difícil. (Lélia, mulher, branca, 47 anos)
Corpos que insurgem para poder falar. Pesquisar sobre gênero, necessariamente, é se deparar com o sistema que buscamos romper; é perceber nossos corpos envolvidos, tolhidos, sujeitados e, apesar do enternecimento, seguir falando, em busca de micropolíticas ativas e da justiça social. Trataremos nesta sessão de forma visceral-sensorial sobre um sistema hegemônico das relações de gênero, que se reproduziram nas oficinas-produção, nas narrativas das trabalhadoras. Aqui, os conceitos de silenciamento e de invisibilidade são utilizados para descrever os efeitos de um sistema que cala corpos em opressão, e para evidenciar a negação frente a esta estrutura social, tão deletéria e a serviço de um regime colonial capitalístico, que se empenha em manter o status quo de um sistema de desigualdades. É pela desnaturalização dos corpos, das micropolíticas reativas em denúncia por onde buscamos nos infiltrar: “ah deixa pra lá, eu não vou enfrentar, é uma coisa... ah deixa’. Quase chega a ficar com pena do homem em relação isso né, ‘ah, não se dá conta, deixa’. Uma coisa assim de tolerância demais a isso né, em alguns momentos” (Aretha, mulher, branca, 53 anos).
As dinâmicas sociais são gendradas, e diferentes dispositivos, subjetivos e materiais são conformados, pois se gênero é relacional, ele se configura como relação de poder. Assim, diferenças sexuais foram traduzidas em desigualdades (Connell, 2016; Louro, 2020; Viveros-Vigoya, 2018), e historicamente, entrecruzando tal perspectiva com o cuidado em saúde mental, percebemos que os serviços substitutivos ao manicômio, como o CAPS IJ, onde se insere esta pesquisa, deve se colocar a pensar sobre a sua dívida histórica com a produção da loucura e a sustentação destes regimes de opressão e dominação, seja de gênero, raça, classe idade etc. Sabemos que o silenciamento institucionalizado de mulheres e, outros corpos marginalizados, advém de uma herança da subjugação de corpos, com a qual a psiquiatria e outros campos ‘psi’ se puseram como agentes “disciplinadores do gênero” (Zanello, 2017, p. 57), neste caso. Uma lógica manicomial segue servindo ao regime colonial-capitalístico e à manutenção de opressões de gênero, raça e classe mesmo fora dos espaços asilares (Passos & Pereira, 2017) e é esta racionalidade que buscamos problematizar.
Ao encontro desta perspectiva, tratamos por evidenciar os múltiplos atravessamentos desta narrativa para o contexto de um serviço de atenção à saúde mental infanto-juvenil. Não somente as relações de gênero como dispositivos de poder podem ser colocadas em questão, mas toda uma ordem de acesso aos corpos pelo sistema colonial-capitalístico, bem como as relações entre saúde-loucura, moral-ética, enfim, uma lógica social discriminatória e excludente a qual viemos enfrentando na luta por justiça social. Abrir um caminho cuidadoso para que tal sistema possa ser exposto e então irromper formas de cuidado em diferenciação é deixar narrar uma mulher que atualiza a sua angústia ao (re)existir neste sistema, é “sustentar o mal-estar que gera nos processos de subjetivação a introdução de uma diferença, uma ruptura, uma mudança” (Preciado, 2018, p. 17). Assim, o próprio sistema fica aparente, e desse modo tentamos abalá-lo na micropolítica de nossa pesquisa-oficina-produção. Como garantir que os corpos que enfrentam um sistema de gênero dominante não percam sua voz, sua força? Como garantir que ao cuidar de crianças e jovens, meninas ou meninos, possamos nos posicionar nesta estrutura, a partir de nossa história e nossas implicações, e irromper em feminilidades e masculinidades outras, em criação, coproduzindo um sistema equitativo? E ainda, de que forma problematizar as estruturas que produzem diagnósticos de saúde e formas de cuidado, a partir de um regime de gênero?11
Somado a este processo de silenciamento, encontramos, imbricadas no meio do caminho, tentativas sutis a olhos nus, mas extremamente agressivas ao objetivo de fazer brotar devires para uma nova micropolítica de gênero e saúde. O corpo que invisibiliza!
Eu tô ouvindo tudo, e eu fico pensando... eu me sinto num universo paralelo. Porque lá em casa, a Fabi (esposa) trabalha em dois empregos, eu trabalho em um. Quem fica mais em casa, quem organiza a casa, sou eu! É ao contrário do que toda a galera, então pra mim...eu não...eu realmente não acho que... lógico é uma dinâmica nossa, então, assim. Eu vejo muito o pessoal falando, esses comentários que vocês trouxeram, assim. E eu acho muito estranho, além do que já é normal. Porque pra mim eu nunca tive isso, nem perto disso, assim. Dentro da minha casa não existe isso, nada disso. (Fernando, homem, branco, 39 anos)
A invisibilidade como um intercessor, aqui, busca dar passagem para um modo de subjetivação que “funciona por repetição e pelo cerceamento das possibilidades de criação, impedindo a emergência de ‘mundos virtuais” (Preciado, 2018, p. 13). A sutileza, que quase não enxergamos neste discurso, é escancarada nas vísceras, é percebida pelos corpos que vibram e já não aguentam mais. Quase passa despercebido e nos cala novamente, mas estamos atentas. Aquela sensação de deslegitimação das questões trazidas ou mesmo um minimizar, justificar a lógica estabelecida foi percebida em alguns discursos, principalmente dos homens que participaram das oficinas. Esta narrativa aponta o paradoxo, as contradições das relações de gênero, pois, neste caso, é construída pelo mesmo trabalhador que luta por existir como uma masculinidade “outra” (Viveros-Vigoya, 2018). Assim, fazer ver um sistema de gênero que produz práticas sociais e desigualdades exige fazer vibrar a membrana que invisibiliza, buscando provocar empatia naqueles que não sentem a violenta opressão do sistema em seus corpos, como bem elucida a trabalhadora inicialmente, e a partir daí, ampliar o olhar para um sistema social, que coloca alguns corpos em situações de não precisarem ver. Aqui, se faz necessária a reflexão de Viveros-Vigoya (2018) sobre a importância de “aprender a me dirigir aos homens e falar sobre eles com uma voz feminista que os desafia, mas sem diminuí-los” (p. 21). Aprender um modo de falar, e não calar. A oficina como uma ferramenta-oftálmica propicia um efeito que embaça a vista, pois, ao trazer corpos invisíveis e que invisibilizam, de mundos paralelos para o enfrentamento ativo neste mundo, vai além das práticas individuais, construindo a aliança como um sujeito gendrado no desafio de mudanças desse mundo presente.
Outro trabalhador narra sua construção subjetiva de um modo semelhante ao anterior, ponderando situações de desigualdade, quando levantávamos os dados sobre a diferença da divisão sexual do trabalho12
Cara, eu tava pensando numas coisas. Que eu já havia falado que a gente teve uma criação diferente, né. Mas pela personalidade das mulheres da minha família, e eu digo a personalidade da minha mãe e do meu pai. A gente foi criado de uma forma diferente do que era estabelecido assim, com autonomia praticamente, ou totalmente igual, sabe. E eu segui por essa linha, que eu entendo que é o correto. E a gente tem que se dar conta também, que, o fato de por exemplo se for um acordo em uma relação, se isso fizer bem àquela relação, não há problema, por exemplo, no sentido de só o homem estar fazendo a comida, ou só a mulher estar fazendo a comida. Por que que eu digo isso? Porque não é isso que declara, que dá o flagrante da violência de gênero, do preconceito. Não é isso. Não são rótulos. Isso tá em toda e qualquer atitude da pessoa, né, e então a gente tem que fazer essa separação. (Antônio, homem, branco, 40 anos)
Connell (2016), assim como Viveros-Vigoya (2018), aponta que, apesar de surgirem caminhos para a transformação de uma identidade hegemônica de “homem”, para o entendimento das múltiplas masculinidades e algumas intenções, na prática, muitos sustentam a igualdade a partir dos diferentes modos de subjetivação. Logo, falar sobre gênero ainda coloca o homem em pano de fundo das discussões, na medida em que eles “continuam a coletar dividendos patriarcais” (Connell, 2016, p. 98), dispondo de privilégios sociais quanto ao seu gênero, desse modo, mudanças nesta ordem ameaçam uma tal identidade, ou ainda, para alguns grupos, abala uma tal supremacia masculina.
Um desafio para este estudo é evidenciá-los, fazer ver também seus corpos como produtores de práticas sociais (Nascimento, 2018), bem como convocar os mesmos para o desafio da equidade de gênero e suas responsabilidades neste enredo, de maneira a também sustentar em nós, mulheres, pesquisadoras e trabalhadoras, os mal-estares, os incômodos que calamos. Como aliar os homens num caminho de equidade sem perder a voz? Como fazer o homem ver, mesmo sem ele vivenciar a opressão de gênero, o sistema de desigualdade? “Deve-se habitar o espaço da crítica, com sua temporalidade de longa duração, e reconhecer que o mundo que se critica é o mundo no qual vivemos e para o qual contribuímos com comportamentos cotidianos” (Viveros-Vigoya, 2018, p.17). “Até a medida em que a regra causa desigualdade ela precisa ser questionada. Enquanto houver uma mulher morrendo por ser mulher, o feminicídio, ou uma pessoa LGBTmorrendo, ainda vai exigir o nosso debate sobre isso” (Leandra, mulher, branca, 34 anos).
A invisibilidade e o silenciamento institucionalizados atingem corpos, tanto de mulheres como de homens. Revelar o efeito da lógica hegemônica não desconsidera as múltiplas formas de expressar este sistema, assim como os diversos modos de existência interseccionados por contextos e dinâmicas variadas ou os movimentos de emancipação do inconsciente-colonial-capitalístico. Logo, não buscamos a generalização como um efeito neutralizador, mas como potência de enfrentamento, entendendo que os silêncios e os embaçamentos atravessam diferentes corpos em suas múltiplas dinâmicas e paralisam o saber-do-corpo.
Considerar que somos parte de um mundo que convive com formas instituídas, lógica que intenta uma estabilidade ficcional, o qual o regime capitalístico se utiliza para perpetuar desigualdades e diferenças excludentes é nos posicionarmos no embate que intentamos, a justiça social. Analisar as nossas implicações neste cenário e provocar vertigens, devires-viscerais-sensoriais, ativando o poder do corpo e escandalizar o regime de gênero fazendo ver, e gritando as desigualdades, é nos encontrarmos com o nosso saber-do-corpo.
Eu coloquei, submissa, bem isso, às vezes pra não dar tanto embate eu fico assim, ‘ah, deixa, deu, sabe’. E vulnerável às demandas dos opressores, que às vezes quando é da família em si, fico vulnerável, porque às vezes, ah, não vale a pena. Sabe? E às vezes eu perco a oportunidade de sabe (responder), é! (Lélia, mulher, branca, 48 anos)
Que por essa coisa assim de... ah, eu não vou estar no conflito o tempo inteiro, tu acaba às vezes cedendo. Cedendo, cedendo, cedendo...pra evitar tanto conflito. Só que tu contribui à não mudança da outra pessoa. Porque aí tu acaba se moldando naquela situação pra evitar atrito, conflito (Angela, mulher, branca, 40 anos)
Mas aí chega um ponto que tu nem sabe mais quem tu é!! (Elza, mulher, negra, 38 anos)
Encerro esta sessão sobre invisibilidades e silenciamentos com a provocação desta trabalhadora ao final do trecho que traduzo na intenção que as oficinas, nesta pesquisa, e enquanto espaço de educação permanente, tiveram. Objetivamos não anestesiar o saber-do-corpo. Buscando sustentar o efeito vertiginoso de tensionar os sistemas normativos de gênero e nos aproximarmos de um corpo que, ao questionar o seu papel social, provoca deslocamentos em si e, também, nas suas ações de cuidado em saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abrir o espaço para o diálogo, de corpo aberto, para tratar de questões de gênero e subjetividade em um espaço de cuidado em saúde faz-se primordial, na medida em que enfrentamos, como sociedade, embates destrutivos no que tange às políticas públicas e aos modelos de atenção à saúde. Assim, a pesquisa cartográfica e o espaço de educação permanente atuam em duplo sentido convergente, um provocando um sistema de saber-fazer e o outro produzindo tensões no fazer-saber.
Um corpo pesquisadora-trabalhadora se utilizou dos afetos atravessados nesta experiência para dar ouvidos aos olhos e às gargantas, fazer polifonicamente/coletivamente corpos vibráteis que provoquem micropolíticas ativas rumo à equidade de gênero e à construção do comum. A intervenção conjunta teve o intuito de problematizar corpos de trabalhadoras, para que efeitos no cuidado sejam possíveis. A partir da experiência vivida, encontramos brechas que irromperam gérmens de mundos por vir e também resistências, incômodos que tentamos suportar como um caminho ético-estético-clínico-político. Desde experiências micro revolucionárias, que “frustraram” a sociedade patriarcal, até movimentos sutis de conservação deste sistema foi possível ser debatido, desnaturalizado.
Tais temáticas, dentro de um serviço de saúde mental, buscam também produzir a desnaturalização de nosso cuidado às pessoas atendidas de modo polifônico/coletivo, como refere a trabalhadora Aline (mulher, branca, 33 anos): “a tua amostra pode ser os profissionais, mas a tua população multiplica, né, porque os profissionais da saúde pulverizam assim. Então, é muito rico, assim, porque isso aqui vai florescer”. Compreender as dinâmicas de gênero dentro de um regime colonial capitalístico é polinizar saberes-do-corpo para podermos construir caminhos que desestruturem, que abalem as formas enrijecidas e deem lugar ao novo, novas formas de subjetivação, novos cuidados possíveis.
Da mesma forma, as experiências marcadas pela diferença, as interseccionalidades, como construtoras de corpos singulares em mundos que dinamizam práticas sociais e produzem diversidade, mas também, desigualdades, são explicitadas neste estudo como um fator a ser percebido em nossas práticas de cuidado. A partir de nosso posicionamento social e como trabalhadoras, as análises de nossas implicações, a nossa história no mundo, devem ser consideradas no encontro conosco e com o outro, como bem pontua Franciele (mulher, branca, 26 anos): “a gente precisa reaprender a lidar com assuntos que não são nossa matéria, não são nossas realidades, mas são realidades alheias, então a gente tem que saber entender o outro pra ajudar o outro.”
Assim, enfrentamentos de um sistema colonial-capitalístico a partir das experiências com o corpo são necessárias para desestabilizar modelos opressivos da sociedade, sejam das relações de gênero, ou dos modelos de cuidado que buscamos. Tal exercício ético busca a reapropriação de nós mesmos, de nossa força-vital para que não deixemos de saber quem nós somos em função de um sistema de dominação, mas para que criemos novidades por vir, corpos que falam, que enxergam e sustentam a estranheza dos corpos-devires. Há muito corpo por vir.