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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.6 Salvador 2004
O CLIENTE
A construção do sujeito contemporâneo
Nadja Ribeiro Laender
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
O presente trabalho enfoca a multiplicidade de fatores que propiciaram à estruturação do sujeito contemporâneo, enfatizando a importância dos meios de comunicação, a prevalência do registro do imaginário e suas conseqüências na estruturação do psiquismo.
Palavras-chave: Alienação, Narcisismo, Subjetivação, Formação do eu, Angústia, Narcisismo, Imaginário, Adoecimento psíquico.
A realidade psíquica necessita, para se constituir, além de alguém que vá decodificando e nomeando os primeiros balbucios de necessidade da criança, uma série de interações que são implementadas pelos aspectos culturais e sociais, sem deixar de lado a questão biológica pois a realidade psíquica necessita de um suporte corporal para que as pulsões possam inscrever, sobre esse corpo, sua estória libidinal.
Entretanto, a cultura na qual a criança nasce carrega toda uma história e formas de pertencimento que se particularizam em seu meio familiar, propiciando traços identificatórios, valores e normas que são parâmetros balizadores para a construção da subjetividade e da realidade psíquica. A sociedade produz padrões socialmente valorizados e aceitos que são encarnados nas instituições como o Estado, a família e a escola, servindo também como um lugar de amparo importante.
No século XX, inúmeras mudanças ocorreram levando a uma desintegração, a princípio lenta, não só dos valores vigentes da família, da moral e da sociedade, mas também a uma transformação radical nos meios de comunicação, fator relevante para a introdução da cultura de massa e globalização do mercado.
David Harley1 , geógrafo inglês, citado por Gustavo Ribeiro (2000), apresenta uma teorização sobre o espaço onde o encolhimento do mundo é entendido como sendo um efeito de compressão do espaço-tempo, isto é, da aniquilação do espaço pelo tempo resultantes do tremendo desenvolvimento das indústrias de transportes, comunicação e informática . Segundo Harvey a compressão do tempo-espaço se refere aos processos que revolucionam de tal forma as qualidades objetivas do espaço e do tempo que nos vemos forçados a alterar, às vezes de maneiras bastante radicais, como nos representamos o mundo. Uso a palavra “compressão” porque se pode argumentar fortemente que a história do capitalismo tem sido caracterizada pela aceleração do ritmo de vida, ao mesmo tempo que por uma superação de barreiras espaciais de tal forma que o mundo às vezes parece estar implodindo sobre nós.
Podemos concluir que os fatores velocidade e simultaneidade são as bases estruturais para a criação do mundo contemporâneo pois ambos concorreram de forma decisiva para o seu encolhimento e aumento da percepção fragmentada do mundo ao colocarem à disposição do habitante da sociedade de massas uma incrível e inusitada quantidade de estímulos e informações.
A velocidade, hoje, tornou-se fato corriqueiro em nossas vidas mas devemos levar em consideração que todos os atuais meios de transportes deram um salto vertiginoso em termos de velocidade e tecnologia, do começo do século até nossos dias. O trem, o navio, o carro e o avião são símbolos da modernidade. Eles possibilitaram o transporte mais rápido e seguro de pessoas e, principalmente, agilizaram o comércio internacional.
Por outro lado, os aparelhos de simultaneidade ( o satélite, a televisão, o telefone, o computador e o fax) contribuíram sobremaneira na criação de realidades que, não sendo nossas, são vividas como tais. Essa virtualidade facilita e energiza a mistura hipercomplexa de pessoas, capital e informações, provocando dessa maneira uma profusão, uma exuberância de informações que os habitantes da nossa sociedade têm que processar.
Para poder processar tal quantidade de informações, o homem moderno teve que adotar uma linguagem única, globalizada, gerando como consequência uma perda de sua identidade cultural, dos regionalismos, das particularidades que o diferenciavam do outro. Ocorre então uma uniformização que leva a uma alienação não só do discurso do sujeito, mas também uma desreificação da realidade. O virtual torna tudo possível, há o primado do imaginário onde quanto mais o sujeito contempla, menos vive, quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo.
No livro “A sociedade do espetáculo”, Debord ilustra a vida das sociedades como simples condições de uma produção vigente, apresentando uma imensa acumulação de espetáculo. O que era vivido diretamente, agora é considerado como representação. Como se dá esse fenômeno? A realidade é considerada parcialmente porque é tomada de imagens que se destacam da vida e formam um pseudo mundo à parte, objeto de contemplação. O espetáculo não é um conjunto de imagens mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens; apresentando-se como: a própria sociedade, como parte da sociedade e como instrumento de unificação. É uma weltanschauung (visão de mundo) que viabiliza desde o projeto até a produção das mercadorias. O produto é criado antes mesmo de sua necessidade, sua demanda é feita a posteriori, ao consumidor resta apenas consumir. Podemos concluir que o espetáculo é resultado e projeto do modo de produção existente, constituindo o âmago do irrealismo da sociedade que vivemos. Consumimos informação, publicidade, diversão. Este é o modelo dominante da vida atual da nossa sociedade, gerenciado pela economia multinacionalizada, desmaterializado pelos meios de comunicação e que induz ao indivíduo consumir muito mais do que necessita através do marketing, que faz o consumidor acreditar que determinado produto é feito para ele e que irá minorar qualquer desconforto ou sofrimento. Melhor dizendo, o espetáculo, ao separar o mundo em representações, produz sua unificação através das imagens que ele mesmo constrói, levando à alienação tal qual a pensamos em psicanálise. O espetáculo seria como a produção da imagem narcísica na fase do espelho: ao mesmo tempo que a criança se identifica com aquele que o nomeia, se aliena na imagem do Outro e, por se alienar no Outro, ela cada vez mais se identifica. “O que o espetáculo exige é a aceitação passiva, sem réplica por seu monopólio da aparência.” (Debord,2000:17) Aceitação passiva, passividade frente a demanda do Outro, produz laço social, onde o outro na posição de terceiro o reconhece como sujeito mas não sujeito dividido, pensante e falante; e sim sujeito narcísico, preso nas teias mercadológicas onde ele se acha aonde não é , e se perde aonde poderia ser. É nessa brecha do engano que a publicidade se apóia, acenando com objetos de satisfação e felicidade que completariam o sujeito e o realizariam.
A dominação da economia sobre a vida social através do espetáculo, acarretou numa degradação do ser para ter e agora do ter para parecer. Qual a conseqüência dessa degradação? Como o espetáculo tem a tendência a fazer ver o mundo, de forma que não podemos tocá-lo diretamente, a visão é o seu sentido privilegiado. A mídia, com ênfase na televisão, encarrega-se de recriar o mundo através do simulacro que é a reprodução técnica da realidade, vendendo ilusões e sentido à vida de milhares de telespectadores, moldando assim, seus pensamentos e atos. Desta forma, o sujeito cada vez mais perde a sua singularidade, em detrimento à imagem e às mensagens impostas pelos meios de comunicação. O que importa não é o que se pensa ou o que se diz, mas sim o que se pode consumir. É através do quê se consome, da imagem que se passa aos outros, que se é reconhecido enquanto homem. Sempre se faz necessário o olhar do outro, testemunha silenciosa, para que haja a confirmação de que se é. Desta maneira, o sujeito vive permanentemente em um registro especular, imaginário, onde o Outro não barrado é o próprio mercado, a sede da alienação. Ele só existe se segue as regras do mercado por isso o olhar do outro é importante para confirmação de sua existência.
O espetáculo, que é o apagamento dos limites do eu ( moi ) e do mundo pelo esmagamento do eu (moi) que a presença-ausência do mundo assedia, é também a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência. Quem sofre de modo passivo seu destino cotidianamente estranho é levado a uma loucura que reage de modo ilusório a esse destino, pelo recurso a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no cerne dessa pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta.” ( Debord,2000:140)
Lacan no Seminário X: A Angústia (1962-63) propõe um esquema sobre a angústia composto de dois eixos: o da dificuldade e o do movimento. Em cada ponto de interseção, o sujeito vai se encontrar em um nível de dificuldade. A dificuldade máxima é o esmagamento (emoi). Eduardo Vidal seguindo a “indicação de Lacan para a língua portuguesa propõe traduzir emoi por esmagamento. O termo emoi, cuja raiz latina é ex-magare , acentua o afeto de comoção e inquietação, mais próximo do vocábulo português turbação. Mas o termo esmagamento recupera de sua raiz a significação de comprimir, machucar, até privar da força e da liberdade, como também afligir e angustiar.” ( Vidal, 1993:217)
Ora, Debord ao propor o espetáculo como causa de apagamento dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu, suscita a questão da angústia. Se a angústia aparece como defesa ao desamparo, numa tentativa de recobrir para o sujeito a falta do objeto que causa o seu desejo, quando ele se encontra no estado de esmagamento, revive a posição de objeto frente ao Outro. Ponto de alienação máxima, o sujeito assim capturado transita entre o ser e o sentido. Ele pode escolher entre uma identificação fixada por significante ou por uma fixada pelo sentido. Quando se tem um elo entre os significantes ( S1 e S2) tem-se sentido. No momento em que o sujeito se identifica com um significante-mestre, ele fica petrificado, obtendo uma significação para seu ser. Essa petrificação leva a um não questionamento sobre si mesmo; ele vive e age, mas não pensa sobre si, recusa-se mesmo a pensar sobre o que é. Desta maneira, fica impossibilitado de saber sobre o seu desejo porque, para desejar, é necessário que a cadeia significante deslize metonimicamente.
Se o reconhecimento e o consumo das mercadorias são pseudo-respostas que utilizam “o recurso a técnicas mágicas”, podemos pensar que tal técnica é a utilização consumo da mercadoria como S1, o mercado substantivando o supereu e seu imperativo: Goza! Ao consumidor resta obedecer. Ser é ter, ter é parecer. Parecer é ser. Ser de consumo, característica da subjetividade na cultura do narcisismo, ser preso em sua armadilha narcísica, apassivado, o sujeito torna-se incapaz de se descentrar de si mesmo, desaparecendo por trás do objeto que o satisfaz. Tal característica estende-se às relações entre os homens. Hoje, a transitoriedade das parcerias demonstra de forma cabal que o laço humano também é um objeto de consumo a ser substituído se não proporcionar satisfação imediata. Joel Birman escreve em Mal- estar na atualidade, que... o sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como um objeto para seu usufruto. Seria apenas no horizonte macabro de um corpo a ser infinitamente manipulado para o gozo que o outro se apresenta para o sujeito no horizonte da atualidade... O outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento grotesco da auto-imagem, podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir para essa função abjeta. (Birman, 2000:25)
Se os laços afetivos precisam gerar prazer imediato é devido à demanda incessante de felicidade aqui e agora. A lógica do instantâneo atende à lógica do gozo a qualquer preço. A felicidade torna-se sinônimo de euforia, excluindo a existência dos outros afetos humanos: tristeza, angústia, luto; a qualquer sinal de sua proximidade, o indivíduo deve acessar dispositivos para sedá-los. Não é à toa que o uso de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos têm sido cada vez mais utilizados em nossa sociedade. Tudo para conter as angústias e o sofrimento e capacitar o eu a continuar a se exibir no mundo do espetáculo.
A partir dessas considerações, podemos obter uma visão geral de como as modificações na cultura levadas a cabo através da mídia, interferiram na construção da subjetividade e do laço social, fazendo com que ocorresse um descentramento da questão do sujeito como sujeito do desejo, para a do sujeito do consumo tornado objeto, que tem dado origem a diferentes formas de adoecimento psíquico.
BIBLIOGRAFIA
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. [ Links ]
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; tradução Estela dos Santos Abreu. 2ª reimpressão, maio de 2000. Rio de Janeiro: Contraponto. [ Links ]
PLASTINO, Carlos Alberto (org.) Transgressões. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2002. [ Links ]
RIBEIRO, Gustavo Lins. Cultura e Política no mundo contemporâneo: paisagens e passagens. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. [ Links ]
ROJAS, Enrique. O homem moderno.Tradução: Waldir Dupont. 2ª edição. São Paulo: Mandarim, 1999. [ Links ]
VIDAL, Eduardo A. Passagem ao ato e acting-out. Publicação da Escola Letra Freudiana - ano XII n° 14 Rio de Janeiro: Ed. Espaço e Tempo Ltda.1993. [ Links ]
NOTA
1 HARVEY apud Ribeiro. Cultura e política no mundo contemporâneo, p 26.