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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.11  Salvador Oct. 2010

 

O poder do grande Outro

 

The power of the big Other

 

La puissance du grand Autre

 

 

Jairo Gerbase*

Associação Científica Campo Psicanalítico

 

 


RESUMO

Este artigo distingue fundamentalmente o conceito de Outro, isto é, de linguagem, da ideia de uma outra pessoa, para demonstrar que o poder na psicanálise é uma questão que concerne à relação entre o sujeito e o significante ; o sujeito é tributário do significante e é assim que o outro exerce seu poder.

Palavras-chave: Outro; outro; sujeito; significante; poder.


ABSTRACT

This article distinguishes fundamentally the concept of the Other, that is, language, from the idea of another person, to show that power in psychoanalysis is a matter that concerns the relationship between the subject and the significant; the subject is a tributary of the significant and is so the other exercises power.

Key words: Other; other; subject; significant; power.


RÉSUMÉ

Cet article distingue fondamentalement le concept de l'Autre, c'est-à-dire de langage, de l'idée d'une autre personne et, de là pour démontrer que la puissance dans la psychanalyse est une question qui concerne la relation entre le sujet et le signifiant; le sujet est tributaire de le signifiant et c'est ce que l'autre exerce son pouvoir.

Mot-klés: Autre; autre; sujet; signifiant; puissance.


 

 

O grande Outro é a linguagem. O grande Outro é o inconsciente. É uma Outra cena. Não que o inconsciente seja a condição da linguagem, mas que a linguagem seja a condição do inconsciente.

Para escrever corretamente seu matema deveria escrever [S( )], o que se lê como: falta um significante no grande Outro. Isto implica que o grande Outro também seja barrado, o que se pode ler como: o grande Outro não existe.

Podemos lhe dar várias antonomásias: vazio, falta, furo, real. Podemos enunciá-lo a partir dele vários axiomas: o objeto é reencontrado; o desejo é de desejo; todo sujeito está sujeito à castração; não há relação sexual etc., pois é isto que caracteriza a estrutura de linguagem.

Enunciar o grande Outro como o lugar dos significantes, tal como se lê no escrito “subversão do sujeito...” é uma utopia, uma fórmula ideal, pois para todo falaser falta um significante no grande Outro. A falta de um significante no Outro, torna impossível a relação biunívoca.

Quis enunciar o grande Outro dessa maneira para evitar sua redução ao pequeno outro, que se pode escrever como [a’], para dizer que se trata do semelhante, do próximo. É verdadeiro que o grande Outro exerce seu poder sobre o sujeito por intermédio de um arauto, mas um arauto não é um monarca.

Por isso proponho que não se deva reduzir o grande Outro aos representantes do pequeno outro [a’] tais como: um pai, uma mãe, um mestre... Estas pessoas que representam o poder são arautos do grande Outro.

No exercício do poder sobre o sujeito do inconsciente [$] o principal arauto do grande Outro é alíngua. Alíngua não é o idioma que o sujeito fala. Alíngua é o mal-entendido que o idioma, ou seja, a língua porta em si. Alíngua é a enunciação da língua.

O que é uma enunciação? "Lucy, a irmã de Charlie Brown, inventou para si uma ideologia: doravante, disse ela, quando alguém me disser alguma coisa, perguntarei sempre: o que isso quer dizer? Charlie Brown replicou: está bem, doravante não lhe pergunto mais nada. Lucy então treplicou: o que isso quer dizer? Esse “o que isso quer dizer”, essa enunciação se ilustra de uma maneira extraordinária, recorrendo a De Laclos. Sabe-se por "ligações perigosas" que o Visconde de Valmont está tentando de todos os modos seduzir a Presidenta de Tourvel que lhe resiste. Falta-lhe uma prova de amor. Uma tarde, enquanto se comprazia sobre o corpo de uma cortesã, ele lhe escreveu uma carta onde dizia: "Nunca tive tanto prazer em lhe escrever". O fascínio que este enunciado suscitou à Presidenta deixa bem entrever a função da enunciação.

Em qualquer diálogo há, de um lado, um emissor e, do outro, um receptor. De outra maneira, há, de um lado, um enunciado e, do outro, uma enunciação. Bateson propôs o termo metálogo, em lugar de diálogo. Há diálogo quando a linguagem serve à comunicação e metálogo quando serve ao mal-entendido. Ele afirma que existe na família um tipo de diálogo que denominou de duplo vínculo, que funciona como uma espécie de dialogo sobre o próprio diálogo, uma espécie de metalinguagem.

O diálogo se sustenta na hipótese de que na comunicação o emissor emite uma mensagem que o receptor recebe (ER), enquanto que na comunicação trata-se de fazer o interlocutor dizer a resposta que o locutor espera, trata-se de encarnar no outro a resposta que já se tem (ER). O que torna o interlocutor agente da comunicação.

Entre aquilo que é emitido e aquilo que é recebido, há uma contingência do que é ouvido, que limita muito a responsabilidade dos pais para com seus filhos, além do fato de que eles mesmos sofrem os efeitos daquilo que mais lhe escapa, os efeitos do inconsciente.

Um exemplo singelo da contingência do ouvir se pode encontrar neste diálogo entre um menino e sua avó: “Vovó, mamãe disse que eu não tenho um pinto de vergonha; eu tenho, olhe aqui”; e lhe mostra o pinto.

O menino fez uso de uma regra que Carroll usa em seus doublets: o deslocamento de uma letra. Nos termos de Freud se trata de uma formação do inconsciente: um lapso. As formações do inconsciente: sonhos, lapsos, piadas e sintoma são por isso arautos do poder do grande Outro.

Dito em termos empíricos: uma mãe censura o cinismo de um filho dizendo: “você não tem um pingo de vergonha”. Quis tomar este exemplo como exercício do poder do grande Outro na dimensão da clínica psicanalítica encarnado na mãe enquanto arauto. Quis ainda dizer que o efeito do dito do grande Outro por intermédio de um arauto só tem significância na medida em que a língua, por uma contingência do ouvir, se torna alíngua traumática.

Gostaria de usar outro exemplo em que o exercício do poder do grande Outro tomou por arauto uma música. Eu só tinha sete anos, ele diz, quando ouvi, pela primeira vez, Sgt. Pepper; foi como um dèjá vu; eu ainda não sabia inglês, mas tive uma compreensão profunda desta expressão: lonely hearts. Isto fez interessar-me muito pela língua inglesa e logo descobrir que a tradução desta expressão era: corações solitários. Entrei, a partir daí, para a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta.

Esta é uma experiência que privilegiei para dizer que foi The Beatles quem o traumatizou. Que foi o encontro com um par de palavras, com o significante lonely hearts que fez função de real. Não importa quem tenha sido o arauto do grande Outro da linguagem.

Ademais, entra em jogo algo que devemos denominar novamente de contingência do ouvir, o que decide se um dito do Outro se tornará traumático. A contingência do ouvir é a significância que o sujeito dá ao dito do grande Outro.

De modo que, esse moço vai ser músico, sabe tudo sobre The Beatles, seria capaz de comentar qualquer música deste grupo, gosta especialmente neste álbum de A day in the life, já deu provas, por seus comentários, que conhece bem a língua inglesa, que aprendeu por sua conta e risco, desde que encontrou este significante lonely hearts.

O exercício do poder do grande Outro na formação do sintoma neurótico se denomina recalque. O recalque não é a repressão. A repressão é o exercício do poder parental ou social. É a imposição de limites. É o dizer não. É o proibir. Por seu turno, o recalque é da linguagem. Um bom exemplo do recalque está na proposição de Carroll: “Toque a campainha também”. Diante deste aviso devo bater na porta? O enunciado “bata na porta” está elidido, recalcado.

O recalque não provém da repressão. A repressão consiste em dizer: se você continuar a mexer no seu pipi, papai irá cortá-lo. O recalque não é isso. O recalque é primário. A repressão da família, da sociedade, certamente é edificada a partir do recalque.

O recalque é Verdrängung. É oposição ao drang. O drang é o impulso. O recalque é o contra-impulso. O impulso é catexia. O recalque é contra-catexia. O impulso é investimento. O recalque é contra-investimento. A pulsão é interesse. O recalque é o contra-interesse. A pulsão é significância. O recalque é contra-significância.

A relação entre psicanálise e poder, eu gostaria de colocar nestes termos. O poder da psicanálise é o poder do significante. Depende do Outro escrito com maiúscula e não do outro escrito com minúscula. Depende da linguagem e não de um arauto dela.

Os exemplos de Freud são abundantes. Aliquis, o esquecimento de uma palavra estrangeira, é um significante da alíngua, recalcado, que representa um sujeito para a hesitação entre a necessidade de um descendente para efetuar uma vingança e a recusa de um descendente natural. Isto é um exercício do poder do grande Outro da linguagem.

Signorelli, o esquecimento de um nome próprio, é um significante da alíngua, recalcado, que representa um sujeito seja para seu nome próprio, Sigmund, seja para a questão judaica, Signor, Elli, Senhor, Senhor. Isto é um exercício do poder do grande Outro da linguagem.

A mancha vermelha é um significante da alíngua, recalcado, que representa um sujeito para a questão seja da impotência do marido ou da impossibilidade da relação sexual. Isto é um exercício do poder do grande Outro da linguagem.

E como derradeiro exemplo gostaria de mencionar um sujeito que, de súbito, golpeia o espelho de seu quarto. Supõe-se a hebefrenia, a bipolaridade e, de preferência, a drogadição.

Quando lhe damos a chance de se explicar ele diz que ganhou significância para si estes enunciados do grande Outro da linguagem: Não sou eu mesma hoje à noite; meu antigo eu se foi, me sinto nova em folha; alguém chame o médico, porque eu perdi a cabeça; não me deixe comigo mesma, não me deixe morrer; e, principalmente: todo dia eu tenho uma guerra contra o espelho. Eu quero ser qualquer outra pessoa.

Trata-se de dismorfofobia, transtorno dismórfico corporal, síndrome da distorção da imagem, deformação topológica do corpo, dismorfismo, dis-torção topológica do corpo, despedaçamento do corpo? Ou do poder do dito do grande Outro da linguagem?

 

 

Referências

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

 

*Psicanalista. Salvador, Bahia.

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