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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.11  Salvador Oct. 2010

 

O não-poder

 

The non-puissance

 

 

Miriam Elza Gorender*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

Este trabalho versa sobre os chamados “novos sintomas” como estreitamente vinculados à questão da inibição, e a partir daí faz um revisão do conceito da inibição e procura estabelecer quais as formas tomadas por esta relação.

Palavras-chave: Inibição; poder; infinito; "novos sintomas"..


ABSTRACT

This paper describes the "new symptoms” as closely tied to the question of inhibition, and then reviews the concept of inhibition, seeking to establish the forms taken by this relationship.


Key words: Inhibition, power, infinite, “new symptoms”.


 

 

Para falar do tema desta nossa Jornada, “O Poder”, escolhi tomá-lo em seu anverso, e mirar mais de perto ali onde ele falta. Como frequentemente ocorre em Psicanálise, o negativo de algo revela-se pelo menos tão importante quanto sua face aparente. Muito tem se dito sobre os males psíquicos da cultura ocidental moderna. Entre a morte de Deus, o desaparecimento da figura paterna, a falta de uma “lei”, há um comentário subterrâneo contínuo que se alimenta, de um lado, de uma nostalgia apontada para uma época áurea imaginada e, de outro, de uma fantasia de reparação de uma moralidade tanto mais imaginária quanto mais possa ser dirigida ao outro (a moralidade, aliás, desde tempos imemoriais costuma servir melhor aplicada ao outro, o que não ocorre com a ética). Entre psicanalistas vê-se uma profusão de discursos apelando a um nome-do-pai e a uma lei que parecem com freqüência ter mais fundamento no Código Penal do que nas questões da linguagem, uma preocupação com novas formas da clínica, supostamente mais difíceis de demandar análise, quase como se pudesse haver uma dissolução das estruturas psíquicas e uma desumanização com saída da linguagem na presença dos “novos sintomas”. Quadros nos quais penso haver uma grande participação da inibição, da recusa e do negativo, enquanto nossos estudos têm tratado com maior cuidado das duas outras pontas da tríade inibição, sintoma e angústia.

Evidentemente nem tudo é falso, imaginário ou inexistente. Há novas dificuldades e mudanças contínuas. Mas qualquer revisão histórica demonstrará um passado tão cheio de horrores quanto o inferno inconsciente que cada um de nós traz em seu cerne é capaz de conceber, em nada ficando a dever aos do presente. A atração de um passado utópico provém, creio, de pelo menos duas fontes: a idéia de uma juventude ideal e para sempre perdida à qual se deseja retornar, motivação perene à memória inventada de nós mesmos, e a sensação, expressa pela idéia da morte de Deus, de ausência de referências fixas.

Onde antes predominava um discurso único há hoje uma pluralidade, uma quebra de hegemonia. Não por acaso Lacan passa, em seu estudo mais tardio, do nome-do-pai único aos nomes-do-pai, múltiplos, possivelmente mais frágeis e temporários. A falta de uma ancoragem firme e permanente é capaz de suscitar por si mesma uma angústia provinda deste aparente estar à deriva. O centro, como diz Derrida (1979, p. 231-232), tornou-se descentrado e a verdade muda e pode ser refeita por cada um, como num jogo labiríntico.

Assim como a sublimação, nem todos têm condições em sua estrutura para suportar a ausência de uma verdade absoluta, o que contribui para o aumento, entre outras coisas, de uma radicalidade e fanatismo nas crenças e ideais com redução na capacidade de diálogo e debate, ou de fenômenos inibitórios como uma verdadeira paralisia que fixa o sujeito a um horizonte restrito. Não se pode dirigir, não se pode comer, fazer sexo, fazer amigos, sair do computador, não se consegue sair das paredes familiares criadas por uma compulsão qualquer. Caso queiramos uma via de acesso mais clara a essas novas formas de sofrimento, urge uma melhor compreensão de seus laços com a inibição.

E como entender a inibição? Para Freud (1926, p. 91), na inibição há uma limitação de uma das funções do eu, enquanto que no sintoma há uma variação ou nova operação agindo sobre a função. Poder-se-ia pensar na inibição como representando um sinal de menos, ao que equivaleria o sintoma com o sinal de mais? As coisas não são tão claras conceitualmente, ainda mais quando diversas formas de inibição são hoje classificadas em si mesmas como sintomas. Basta pensar na esquiva social ou na anorexia. Quanto há de inibição e quanto de sintoma fóbico, por exemplo, na chamada timidez patológica? Freud (1926, p. 93) vai também afirmar que a inibição de uma função do eu está relacionada à erotização excessiva de determinada parte do corpo. Por qual mecanismo agiria esse excesso erótico para colocar o eu na direção de uma imobilidade? Vejamos se entre Freud e Lacan conseguimos alguma pista.

Lacan (1962, p. 3), retornando à tríade freudiana, ordena seus termos em função de dois eixos: o do movimento e o da dificuldade, como se segue:

Como se pode ver, a inibição está aí no ponto de menor dificuldade e menor movimento, o que é coerente com as afirmações de Lacan, de um lado, de que é “da parada da locomoção que se trata” (LACAN, 1962, p. 3-4), parada de locomoção que pode ser metafórica, e, de outro, que a inibição é “um sintoma posto no museu”. Por no museu é, ao mesmo tempo, preservar de forma imutável e também retirar de circulação. (BESSET, 2000, p. 31). A retirada de circulação põe efetivamente a inibição fora do discurso. Contrapondo-se ao sofrimento do sintoma, como trazido pelo analisando, há o silêncio da inibição. É assim que vemos relatos de inibição surgirem como que casualmente no discurso da análise, trazidos não como queixa principal ou como fonte de angústia, mas como um obstáculo, algo aparentemente menor. Este algo menor tem mostrado, com perturbadora freqüência, ter relações estreitas com o sintoma trazido, de tal forma que a resolução de um não se dá sem o desaparecimento do outro.

Mas ter uma dificuldade no sentido de não conseguir ou não obter o que se almeja, aparece como distinto de sofrer de um sintoma. Talvez esteja aí o ponto de distinção: na inibição, o sofrimento do sujeito pode ficar, diferentemente do sintoma, escamoteado, por assim dizer. Na inibição, grosso modo, o sujeito não diz sofro, mas: “algo me aborrece”. Este sofrimento escamoteado na roupagem da inibição nos remete ao fora de circulação do sintoma posto no museu, tal como sugere Lacan (1962, p. 4).

Algumas funções que proporcionam proveito e êxito podem ser inibidas pelo eu, que renuncia a elas para não entrar em conflito com o isso. São inibições freqüentemente ligadas às atividades profissionais. Segundo Freud (1926, p. 93), estão a serviço da auto-punição, vedando o acesso àquilo que um supereu severo negou. Entretanto, as inibições mais gerais do eu obedecem a um mecanismo diverso, mais simples. Quando se trata de uma tarefa psíquica especialmente penosa, como o luto ou a sufocação de fantasias sexuais que afloram continuamente, “o eu se vê obrigado a limitar seu gasto de energia em muitos terrenos ao mesmo tempo.” A energia de que dispõe é pouca, tal como “o investidor que utiliza todos os seus recursos em suas empresas.” (FREUD, 1980, p. 94). Duas das situações mais marcantes envolvendo este mecanismo seriam a neurose obsessiva e, talvez, a perda de energia como parte dos estados depressivos, um dos vários quadros que a imprensa gosta de noticiar como “a doença do século”. Ou seja, a partir do eu parece haver três diferentes mecanismos para a produção da inibição: aumento de erogeneidade do órgão, punição pelo supereu, empobrecimento do eu pelo gasto excessivo de energia. Seriam os três correlacionados?



Neste esquema (Lacan, 1962, p. 4), vemos que, enquanto na inibição há uma parada do movimento, no sintoma este se encontra impedido. A diferença encontra-se em que no caso do sintoma a satisfação pode se dar, embora de forma substitutiva. “No sintoma, o processo substitutivo é mantido afastado da motilidade, sendo obrigado a se esgotar em uma alteração do corpo próprio.” (FREUD, 1926, p. 95). O que significa que na inibição não há possibilidade de satisfação, embora não se possa dizer que o desejo esteja aí de todo ausente.

Temos já algumas definições, mas que ainda deixam muitas perguntas sem resposta. Particularmente me interessam as relações entre inibição e pulsão. Se os “novos sintomas” são formas de gozo, e se seu vínculo com a inibição é profundo, o que pensar disto? Se a inibição vai acometer o órgão pela sua sobrecarga de erogeneidade e considerando-se que a mesma apresenta características próprias e particulares, como manter-se silenciosa, tender a um imobilismo que remete ao reino do inanimado, não se evidenciar a não ser por meios indiretos, mostra-se nisto mais próxima do gozo que o sintoma.

Quinze anos depois de sua primeira investida sobre o tema, Lacan irá voltar ao seu estudo a partir de 1977, ao dizer que

[...] a geometria concerne expressamente aos anjos, e para o resto, quer dizer para a estrutura, não reina mais que uma coisa, é o que eu chamo a inibição. Inibição à qual acometo, quero dizer que me ocupo dela, que dela faço um problema. O problema que me proponho por tudo o que aqui lhes aporto como estrutura, está ligado a este único fato, que a geometria verdadeira não é a que se crê, a que resulta de espíritos puros, mas a que tem um corpo. É o que queremos dizer quanto falamos de estrutura (LACAN, 1977, p. 35).

É claro que a questão das relações da geometria com os anjos fica mais interessante quando consideramos a questão do sexo dos mesmos. Poderiam os anjos ser castrados? Já o imbricamento entre estrutura, inibição e pulsão será melhor deslindado no seminário seguinte, aonde vai propor que a inibição se localiza precisamente na hiância entre o Real e o Imaginário (Lacan, 1977-1978, p. 9 e 44-47).


Por ser o tecido do Real algo impossível de se imaginar, a cada vez que este é invocado a partir do Imaginário esbarra-se nesta hiância. O que impera nas nossas inibições atuais não é da ordem de um gozo puro, e sim de uma multiplicação da imagem. Mas não de uma imagem qualquer. Trata-se especificamente de uma invocação a uma imagem do gozo, representado em toda parte pelos apelos ao infinito e ao ilimitado.

Segundo Koyré, a concepção da infinidade do universo começa, como não poderia deixar de ser, com os gregos. Os debates acerca do infinito foram uma constante nas escolas gregas. Foi durante o séc. V a.C. que Zenão de Elea mostrou que se o conceito de contínuo e de infinita divisão for aplicado ao movimento de qualquer corpo, então o movimento não existe. Zenão expôs a sua argumentação com base em quatro situações hipotéticas, que ficaram conhecidas como os paradoxos de Zenão. Não existem registos na História que clarifiquem qual a razão que levou Zenão a desenvolver estes famosos argumentos. Talvez ele quisesse apenas ilustrar o pouco que sabemos sobre o tempo, o espaço, e tudo aquilo que não pode ser contado. De facto, depois da época de Zenão, a matemática não progrediu como se esperava. Nenhum dos problemas por ele propostos foi resolvido na Antiguidade. (POMBO, 2010a.)

Vejamos três de seus paradoxos.

O paradoxo do estádio: É impossível atravessar o estádio; porque, antes de se atingir a meta, deve primeiro alcançar-se o ponto intermédio da distância a percorrer; antes de atingir esse ponto, deve atingir-se o ponto que está a meio caminho desse ponto; e assim ad infinitum.

Por outras palavras, se admitirmos que o espaço é infinitamente divisível e que, portanto, qualquer distância finita contém um número infinito de pontos, chegamos à conclusão de que é impossível alcançar o fim de uma série infinita num tempo finito.

Aquiles e a tartaruga: Aquiles nunca pode alcançar a tartaruga; porque na altura em que atinge o ponto donde a tartaruga partiu, ela ter-se-á deslocado para outro ponto; na altura em que alcança esse segundo ponto, ela ter-se-á deslocado de novo; e assim sucessivamente, ad infinitum.

 

Deste modo, numa corrida, o perseguidor nunca poderia atingir o perseguido, mesmo que fosse mais rápido que este. A teoria do espaço que está aqui implícita é a que o supõe infinitamente divisível.

A seta voadora: Um objeto está em repouso quando ocupa um lugar igual às suas próprias dimensões. Uma seta em vôo ocupa, em qualquer momento dado, um espaço igual às suas próprias dimensões. Por conseguinte, uma seta em vôo está em repouso.

O objetivo deste argumento é provar que a seta voadora está em repouso, resultado de se admitir a hipótese de que o tempo é composto de momentos; se não admitirmos esta hipótese, a conclusão não tem viabilidade. (Pombo, 2010b.)

Segundo Bento de Jesus Caraça,“Concluiu-se pela incapacidade numérica para resolver o problema das incomensurabilidades; portanto, pela degradação do número em relação à Geometria. Consequência: abandonou-se o que a escola pitagórica afirmara de positivo - a crença numa ordenação matemática do Cosmos - e retomou-se, a breve trecho, em termos cada vez menos nobres, o lado negativo das suas concepções. Concluiu-se pela exclusão do conceito quantitativo de infinito dos raciocínios matemáticos – a matemática grega toma uma feição cada vez mais finitista: invade-a o horror do infinito. Concluiu-se pelo abandono das concepções dinâmicas, sempre que tal fosse possível - a matemática grega é invadida pelo horror do movimento”. (CARAÇA, 2000, p. 78, apud Pombo, 2010a.)

Muito mais tarde Gauss, no século XIX, torna a alertar: “não enfrentem o infinito de frente, nunca o olhem nos olhos.” (DOXIADES, 2010, p. 126). Podemos ver que o pensamento do infinito e a ausência do movimento, na estrutura psíquica, caminham juntos. Quais os apelos ao infinito que permeiam o imaginário atual?

Recentemente retornava do aeroporto e ao passar por um outdoor com uma propaganda de televisão de LCD, ou algo assim, vi a palavra que melhor define, para nós, este apelo: borderless. Seguido da frase: ultrapasse os limites da imagem. Como viver sem bordas? É pelas bordas, pelos orifícios, que somos suportados corporalmente, bordas que precisam ser refeitas pela vida afora, delimitando os campos do sujeito e do Outro e justamente através das quais a pulsão se exercita. Sem bordas, o que fazer da pulsão? Sem limites, o infinito se traduz em imobilidade. A imagem cujos limites se ultrapassa é a do vazio. Para o que se preconiza, a transmutação da inibição em sintoma com o ganho da demanda, é necessário abrir mão de um infinito no qual todas as direções são equivalentes, todas as distâncias nulas, aceitando as frágeis e provisórias bóias de navegação de um mundo em mutação permanente.

Mas para toda perda há um ganho. O que perdemos em segurança e autoritarismo ao abrir mão de um centro fixo e inquestionável podemos compensar com toda uma riqueza de possibilidades, de caminhos e escolhas, de recriação de novas imagens de uma humanidade que permanece, em seu fundamental, idêntica a si mesma. Ao comer do fruto da árvore do bem e do mal perdemos o paraíso, é verdade, embora este nunca tenha sido nosso. Ganhamos em troca todo um mundo, e o poder, antes divino, de criá-lo e recriá-lo. Tentação, abismo e prazer renovados a nossa espera.

 

 

Referências

BESSET, Vera Lopes. Inibição e sintoma: a angústia na clínica hoje. In: Psychê. nº 5. Ano IV. São Paulo: CEPP, 2000.         [ Links ]

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1979.         [ Links ]

DOXIADES, Apostolos & PAPADIMITRIOU, Christos. Logicomix. São Paulo: Martins Fontes, 2010.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. V. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1980.         [ Links ]

LACAN, Jacques. Seminário10. Classe 1: 14 de novembro de 1962. Psikolibro (Xerox).         [ Links ]

______. Seminário 24. Classe 10: 15 de março de 1977. Psikolibro (Xerox).         [ Links ]

______.Seminário 25. Classe 3: 20 de dezembro de 1977 e Classe 12: 9 de maio de 1978. Psikolibro (Xerox).         [ Links ]

POMBO, Olga.
a. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/cantor/histinfinito.htm acessado em 02/09/2010
b. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/cantor/aradzenao.htm acessado em 02/09/2010.         [ Links ]

 

*Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora adjunta do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBA, doutora em Psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.


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