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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.13  Salvador Nov. 2012

 

Novos desafios para a psicanálise

 

New challenges to psychoanalysis

 

 

Marli Piva Monteiro*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O novo psicanalista queda-se atônito ante os novos acontecimentos e fatos que tem que enfrentar e sobre os quais se sente questionado. O que acontece no interior da mente de um homem bomba? O que o faz reagir tão decisiva e teimosamente na perseguição de seu objetivo final - a morte? O que há de tão atraente em ser um transgressor ou um fora da lei? Em que medida o papel da mãe influencia na escolha do estranho objeto de desejo desse sujeito? Além de uma recompensa celeste, haveria também uma distinção irresistível na terra? A destrutividade sentida como um poder extraordinário garante uma honraria especial a eles próprios e suas famílias – algo que ultrapassa o amor e o carinho maternos. Há uma diferença entre este e outros tipos de suicídio e André Green desenvolveu a teoria do narcisismo negativo que tem uma função “desobjetalizante”. É quando o narcisismo se volta para o ponto zero – ponto de não excitação. O trabalho deste narcisismo é obscuro e só pode ser identificado por uma série de evidências, no entanto, a pulsão de morte quieta e silenciosa, ainda que muitos psicanalistas não a aceitem... continua lá.

Palavras-chave: homens bomba; suicídio; narcisismo de morte; narcisismo de vida; ego ideal; ideal do ego.


ABSTRACT

The new psychoanalyst is overwhelmed by the new events and facts he has to face and is argued about nowadays. What may happens inside a suicide bomber’s mind ? Why does he react so decisively and stubbornly in his search for death as an inevitable aim? What is in the target a mother makes a child seek, as a mysterious total and absolute object of desire? What is so attractive in being an out of law and a transgressor? Besides a reward in heaven, is there an irresistible distinction on earth? Destructiveness seems to be felt as an overwhelming power that guarantees a special honor to themselves and their families — something that surpasses mother’s love and care. There must be a difference between other types of suicide and such a violent one. Trying to make a co-relation with the death instinct, a French psychoanalyst, André Green developed the theory of negative narcissism — a narcissism of death instead of the narcissism of life, the first one involving a “desobjectalizing” function that may explain the suitable circumstances and irresistible environment which enable the emergence of such events. The narcissism of death sets the trend to the zero point — the point where there is no excitation. It works as the hidden part of narcissism of life in which we may identify a series of signs, but the death instinct though quiet and mute and even not acceptable by many psychoanalysts is still there.

Keywords: suicide bombers; suicide ; narcisism of death; narcisism of life; ideal ego; ideal of the ego.


 

 

Do mesmo modo que outros campos do saber, a psicanálise tem tentado entender a controvérsia sobre novos acontecimentos atuais e um deles é o do suicídio dos homens-bomba.

Embora eles tenham a conhecida motivação religiosa e ajam de acordo com os ditames da sua fé, não podemos simplesmente concluir que essa explicação satisfaz aos motivos psicológicos ou inconscientes da questão.

Desde o começo dos estudos de Freud sobre o Inconsciente, o mundo teve de olhar para uma nova realidade. Foi obrigado a reescrever e refazer muitos conceitos e assertivas da mesma forma que após as teorias de Darwin.

Os homens tiveram de se confrontar com as novas feridas narcísicas, de admitir — e isso não foi simples — que não eram, efetivamente, os senhores absolutos de seus pensamentos e ideias e que não tinham o inteiro controle e o comando da sua vida mental.

Como psicanalistas, estamos convencidos de que, embora o mundo tenha mudado tão profunda e intensamente, o Inconsciente preservou seu caminho na mesma direção e conservou seus impulsos.

O novo mundo parece não aceitar as velhas regras e normas. O novo homem está consciente das suas extremas possibilidades e acredita que pode ser onipotente. Pouquíssimas coisas lhe são negadas em seu acesso, e o homem do século XXI é a cada dia mais e mais narcísico.

É diante deste novo homem que a psicanálise para e olha atônita, à procura do sujeito em falta.

A teoria psicanalítica tem sido submetida a mudanças profundas desde que Freud1, em 1914, escreveu seu ensaio sobre o Narcisismo. A primeira mudança tem a ver com a teoria dos instintos — de acordo com os novos pontos de vista, o instinto de conservação e os instintos sexuais fazem parte do narcisismo positivo.

Mais tarde, então, em 1917, Freud2 introduz o conceito de instinto de morte, que ainda hoje é um aspecto complexo e difícil de ser assimilado, sendo rejeitado por muitos analistas. A exceção é Melanie Klein, que aceitou a ideia de um instinto agressivo e destrutivo não muito bem compreendido por grande parte dos psicanalistas.

Um das contribuições mais importantes ao tema do narcisismo é a constituição do Ego Ideal e do Ideal do Ego.

O Ego Ideal constitui-se por si mesmo precocemente e depende da primeira relação simbiótica entre a mãe e a criança, a relação mãe-bebê. É através do olhar da mãe para a criança que esta captura no interior do olhar da mãe uma imagem especular, imagem essa constituída pela afeição e pelo amor incondicionais.

As mães investem seus filhos com qualidades e capacidades que a criança reconhece e adota como suas.

O Ideal do Ego depende de elementos sociais e é constituído com base nas qualidades e capacidades que emergem do interior da própria criança e são reconhecidas como boas e relevantes.

Quanto ao instinto de morte, ele tem relação com a agressividade e a destruição, mas parte dele está incluída no narcisismo positivo, como um impulso que se dirige ao ponto zero ou a uma situação de equilíbrio e não excitação. Ele se dirige para um ponto neutro, o vazio, o NADA.

A formação do Self e de um Ego forte e bem estruturado depende do narcisismo.

Sabemos que as relações objetais são sempre frustrantes e egodistônicas. O tempo sincrônico do Ego só existe em referência ao narcisismo positivo como efeito da neutralização do objeto.

Essa possibilidade, embora preciosa, é precária, no entanto, uma vez que o Ego não é capaz de substituir inteiramente o objeto. Mesmo quando ele o tenta, dentro de pouco tempo a necessidade de um objeto idealizado se faz clara.

Se, por um lado, esse homem novo tenta mostrar sua onipotência e completude, por outro, vai a extremos, como atos terroristas e até suicídios como homens-bomba.

Para compreender essas ocorrências desconcertantes, a psicanálise tem de recorrer à correlação entre a distância espacial e a descontinuidade do tempo, marcou o descentramento, criando uma experiência de ressentimento, ódio e desespero, conforme Green (2010).

Não há outra chance de retornar à unidade ou de reencontrar-se com o objeto idealizado, e o homem então procura o NADA, numa aproximação com a morte psíquica.

É através do narcisismo que a oportunidade de uma mimese do desejo pode advir, evitando que a descentralização torne inevitável o investimento do objeto que detecta a condição de acesso ao centro. O centro, como objetivo de plenitude, é suprimido e abandonado, tornando-se um lugar vazio.

O bem é alcançado sem nenhum grau de satisfação que supostamente existira, e a vida se torna equivalente da morte — a última dominando total e completamente —, o único objetivo sendo um alívio de qualquer desejo.

O modelo de atividade psíquica é a alucinação negativa do desejo. Nessa situação, o prazer é substituído pelo NEUTRO. É possível encontrar qualquer outra explicação psicanalítica para o suicídio dos homens-bomba, além do narcisismo negativo de Green?

A primeira referência que encontrei a respeito dessa interpretação foi através do trabalho — “Fundamentalismo religioso — um olhar psicanalítico” do psicanalista e professor da Universidade de São Paulo, Zeferino Rocha3.

Para André Green4, existe uma interseção entre a teoria dos instintos e a teoria de relação de objeto.

O impulso de vida tem o papel de transformar em objetos (objetalizar), criando relações objetais e influenciando a constituição do Ego, bem como os caminhos da atividade psíquica.

O impulso de morte, ao contrário, faz o trajeto oposto e desobjetaliza — promove a desconexão nas relações objetais e o próprio investimento.

Esse é o modo como as operações negativas se mostram essenciais para estruturar os limites (intra e extrapsíquicos), auxiliando os processos de simbolização e os processos psicossomáticos.

Quando o trabalho do “negativo” falha, o fading do objeto é evidente, e o desinvestimento externo se superpõe à objetalização.

Enquanto o narcisismo primário se dirige ao UM, o narcisismo negativo é o duplo do Ego do narcisismo primário, encoberto pela sombra, de acordo com Green.

Um investimento para o Ego ou para um objeto significa um retorno ao ponto zero. Esse investimento é dirigido à inexistência, à anestesia, à vacância, quer seja o afeto o investido (indiferença), quer as representações (alucinações), ou mesmo o pensamento.

Sob o comando do investimento libidinal do Ego, pode-se perceber a ação unificadora do narcisismo sem nenhum objetivo psicossexual.

O Ego, nesse ponto, é sentido como uma totalidade, contudo Freud conclui dialeticamente que há uma mudança, com especial atenção para a escopofilia e o sadismo, e conclui, ainda, que o Ego é um Ego corpóreo porque o Ego é uma superfície e uma projeção — a projeção que possibilita compreender o papel do olhar e o espelho.

O espelho reflete a superfície corporal e cria, ao mesmo tempo, uma imagem sob os auspícios de um olhar que muda através do seu testemunho, a forma do semelhante.

É oportuno rever a descrição de Freud5 da organização narcísica do Ego em “Os instintos e suas vicissitudes”. Nesse ensaio, Freud considera que eles retornam ao próprio sujeito, transformados no seu oposto, e essa combinação cria um padrão de “dupla mudança”.

Quanto à identificação, ela ocorre com uma poderosa arma de destruição e secundariamente dirige-se à dessexualização, transformando a libido objetal em libido narcísica a fim de garantir os desafios à integridade do Ego através da castração.

O segundo ponto é o enfrentamento das relações narcísicas com a realidade.

Inicialmente, os dois pontos são opostos; há uma primeira contradição de o Ego ser, ao mesmo tempo, uma instância psíquica que deve manter relação com a realidade e ignorar a realidade para compreender a si mesma.

Freud chega à conclusão de que estes pontos de fixação e regressão não são bastante para fazer uma psicose, por exemplo.

A relação com a realidade transcorre entre dois limites — pensamento e ação.

A onipotência do pensamento é a expressão de um duplo investimento — a superestimação dos poderes do Ego e, circunstancialmente, a impotência dentro da onipotência e a sexualização do pensamento.

Haverá outra possibilidade de entender o ato suicida dos homens-bomba?

Quando há possibilidade de satisfação da necessidade de comando, o ódio narcísico surge.

A realidade dos desejos dos outros constitui frequente obstáculo, mas a frustração é a verdadeira razão para esse ódio, enquanto a satisfação liberta os homens dos seus desejos.

O pênis narcísico é um objeto cuja posse garante que o desejo de satisfação seja certamente encontrado sem nenhum obstáculo.

Será que o homem-bomba se identifica com o artefato que prende ao próprio corpo como um pênis narcísico?

O Ideal do Ego tem alguma semelhança com ele, e, embora uma aspiração do Ego, um dos seus valores pode ser subscrito pela realidade, porque o Ego pode apenas procurar sua projeção narcísica no objeto, uma verdade adaptada às demandas do sujeito.

A irrealidade do objeto leva a uma regressão da sexualidade pré-genital, inundando o Ego para que assuma amplamente sua exclusividade a uma sexualidade autoerótica mais uma vez.

O Ideal do Ego é parte essencial do Ego, de acordo com Freud.

No começo, a criança superestima as imagens parentais, refletindo a resposta dada à idealização parental. Por outro lado, o destino do Ideal é a renúncia radical dos instintos, incluindo a satisfação narcísica.

Esse é o modo de purificar o Ideal do Ego, quando os servos do Ideal chegam aos extremos, não somente para obter benefícios secundários, mas o abstêmio assume também as inevitáveis feridas narcísicas — um narcisismo moral é então idealizado e enaltecido. Parece haver uma grande similitude com o enaltecimento dos homens-bomba. A autoaniquilação é o alvo de qualquer messianismo narcísico — a recompensa para esses sofrimentos como efeitos danosos inerentes ao sacrifício transforma-se nos favores reservados aos eleitos cuja imagem é um feed back para o narcisismo negativo.

Existe uma tendência à vacância, a atração pelo nada objetal, a categoria neutra. De fato, esse narcisismo dirige-se ao desinvestimento, à procura da indiferença.

Para Lacan, o suicídio é o único acting out completo. De qualquer modo, é certo que ele é prova de total autonomia demonstrada pela humanidade — a exibição do sujeito como senhor e dono do seu desejo.

A diferença entre esse e outros tipos de suicídio é que o suicídio habitual relaciona-se com uma situação de luto, perdas e privações, e o Ego está ensombreado, como diz Freud, com as sombras do objeto — a agressão a uma parte do que o Ego reflete, a agressão ao objeto introjetado, parte objeto perdido, parte objeto odiado.

Nesse caso particular, são endereçadas à ameaça externa; a agressão e a destrutividade para com esse inimigo externo fazem o Ego sentir-se poderoso, identificado com uma arma poderosa que parece uma extensão do seu próprio corpo.

Eles se elogiam a si próprios, como se fossem onipotentes, e à possibilidade de matar muitos ao mesmo tempo. Não obstante, eles têm de matar a si próprios.

Para Green6, todo investimento traz consigo o desinvestimento – isto como se sua própria sombra fosse projetada para trás e olhasse para o estado místico que precede o desejo, sendo direcionada ao alívio permitido pela neutralidade que segue à satisfação de um desejo tido como plenamente satisfeito.

O narcisismo negativo implica toda satisfação narcísica através da não satisfação do desejo de objeto, porque o primeiro deve ser considerado como mais desejável do que a satisfação submetida à dependência objetal, bem como a variação aleatória e as respostas erradas estão relacionadas à esperança do que se considera como tendo sido realizado.

Tanto o narcisismo objetal quanto o investimento narcísico possuem uma carga de ambiguidade.

A realidade do objeto é inimiga do narcisismo, e o objeto da realidade é sua função na economia do Ego. O objeto é essencial para a fundação do Ego e a elaboração do narcisismo.

Este é o ponto essencial da questão. O Ego projeta toda sua libido no objeto escolhido, o que empobrece o próprio Ego, como um autossacrifício em nome de um Ideal de Ego que é tomado como modelo de perfeição e fonte de toda felicidade, conforme Zeferino Rocha7.

As causas políticas e religiosas tornam o Ideal do Ego com as mesmas características do Ego Ideal infantil, com os pais onipotentes idealizados.

No final, há uma identificação do sujeito com um mesmo tipo de Ego Ideal que traz uma satisfação narcísica que suplanta qualquer outro tipo de satisfação.

Onipotentes e perfeitos, eles não são apenas os representantes da lei, mas eles próprios a Lei acima da vida e da morte.

 

Referências

DOR, J. Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.         [ Links ]

FREUD, S. Introdução ao Narcisismo [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes [1915]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.         [ Links ]

FREUD, S. Luto e Melancolia [1917]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.         [ Links ]

FREUD, S. Além do Princípio do Prazer [1920]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. 1976. v.XVII.         [ Links ]

FREUD, S.O Ego e o Id [1923]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.v.XIX.         [ Links ]

GREEN, A. Narcisismo de vida. Narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.         [ Links ]

GREEN, A. O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artrmed, 2010.         [ Links ]

ROCHA, Z. Fundamentalismo religioso: um olhar psicanalítico. Comunicação em Mesa- Redonda “Fundamentalismo:diversos olhares” da Semana da Cultura Cs TCH-CULTURA da UNICAMP, Campinas, 17 de abril de 2002. Xerocopiado.         [ Links ]

 

 

*Médica. Psicanalista do CPB. Delegada da IFPS. Endereço:Av. ACM 1034 s/121C – Ed. Pituba Parque Center – Itaigara.Salvador- Bahia CEP 41825-000; e-mail – pivamarli@gmail.com. Trabalho apresentado no XVII Forum da IFPS sobre o tema "New challenges to Psychoanalysis"; realizado na Cidade do México no período de 09 a 13 de outubro de 2012.
1 FREUD, S. Introdução ao Narcisismo [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.
2 FREUD, S. Luto e Melancolia [1917]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.
3ROCHA, Z. Fundamentalismo religioso: um olhar psicanalítico. Comunicação em Mesa-Redonda “Fundamentalismo:diversos olhares” da Semana da Cultura CTCH-CULTURA da UNICAMP, 17 de abril de 2002, xerocopiado.
4 GREEN, A. Narcisismo de vida. Narcisismo de morte. São Paulo: Escuta. 1988
5 FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes [1915]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.
6GREEN, A. Narcisismo de vida. Narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.
7ROCHA, Z. Fundamentalismo religioso..., op. cit.