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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.24 Rio de Janeiro June 2012

 

PRELÚDIO E CONFERÊNCIA

 

Uma interpretação que leve em conta o real1

 

An interpretation which takes into consideration the real

 

 

Colette Soler*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesta conferência a autora investiga a especificidade de uma interpretação que incide sobre o real, interrogando se ela implica uma nova concepção da interpretação. Após longo percurso por várias obras de Lacan, e tomando o grafo do desejo para analisar essa questão, a autora verifica que as ressonâncias da interpretação, que toma por referência a poesia e a alíngua, existem desde Função do campo e da linguagem em psicanálise. Concluindo com Lacan que, se a interpretação analítica não pode desconhecer o real, a análise não opera sem o sentido, tese que Lacan mantém até o fim, pois, a análise, inconsciente real ou não, opera por e no nível do dizer.

Palavras chave: Análise, interpretação, inconsciente real, sentido.


ABSTRACT

In this conference, the author investigates the specificity of an interpretation which acts upon the real, questioning if this implies a new conception of interpretation. After a long trajectory through several of Lacan's works, and taking the graph of desire to analyze the question, the author verifies that resonances of interpretation, taken as reference from poetry and lalangue, have existed since The function and the field of speech and language in psychoanalysis. Ending with Lacan, the author affirms that if the analytical interpretation can not ignore the real, the analysis does not operate without the meaning, thesis supported  by Lacan until the end, once the analysis, unconscious real or not, operates for and at the level of saying. 

Keywords: Interpretation, unconscious real, sense, analysis.


 

 

Tomei como título a primeira expressão que me veio à cabeça quando escolhemos o título para os trabalhos desse ano.2

Já que cada um fala com base naquilo que o habita, vou, de início, dizer algumas palavras sobre uma das preocupações que me animaram enquanto estava preparando esta conferência. Quando chamei a atenção para a virada implicada pela noção de inconsciente real pensava, claro, que havia ali algo não banalizado, novo, mas não que isso estremecesse todas as perspectivas práticas e, ainda assim, fiquei espantada pela surpresa produzida. Perguntei-me, então, se não havíamos, eu não diria esquecido, mas minimizado certas elaborações anteriores de Lacan.

De fato, no que diz respeito à interpretação, em nosso Seminário deste ano, a questão está colocada, desde o início, tratando-se de saber qual seria a especificidade de uma interpretação que incidisse sobre o real, como se fosse preciso, para essa nova noção de um inconsciente real, uma prática da interpretação totalmente nova. Eu mesma havia colocado essa questão, mas sem respondê-la de fato e, portanto, depois de meus colegas, que falaram este ano, perguntei-me até onde seria esse o caso, até onde o último ensino de Lacan implica uma nova concepção da interpretação?

E de saída, não consegui me lembrar de que encontramos as ressonâncias da interpretação (à qual damos tanta importância quando falamos da alíngua), assim como a referência à poesia e aos recursos da língua, desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN, 1953/1998). Esse é o título da terceira parte deste texto: "As ressonâncias da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica"(Ibid.  p. 290). Encontramos ali todas as expressões do último ensino de Lacan. A equivocidade dos símbolos, a necessidade de uma "assimilação dos recursos de uma língua" (Ibid. p. 296), o apelo à poesia, e mesmo a ideia de que as palavras, a linguagem, são corpo – corpo sutil, mas são corpo. Não estamos longe de uma moterialidade3 gozada. Evidentemente, tudo isso não é realmente desdobrado ali; é como se fosse algo à parte, pois seu objetivo é outro, é fazer valer a dimensão própria do sujeito como apenso ao simbólico – isso não é desdobrado, mas já está ali.

Primeiro desdobramento para mostrar que Lacan, desde sempre, afirma que a interpretação analítica não pode desconhecer o real. Adquirimos o hábito de distinguir o significante, o Outro, a cadeia do sujeito, de um lado, digamos, o simbólico-imaginário, e depois, do outro lado, o real. Mas em nenhum momento Lacan desconectou um do outro, e ele sempre procurou precisar como eles se ajustavam – e isso começa ainda em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Op. cit.)..

Real: o que isso significa? Com todas as definições que dele conhecemos, vou munir-me de uma primeira definição, bastante ampla. O real é o que não é nem simbólico, nem imaginário; Lacan acabará por dizer que é o que ex-siste a um e outro, antes de escrevê-lo como terceira volta do nó. O que dizer disso? Ex-sistindo, o real é impredicável, já que não se predica nunca, a não ser com significante. Em 1976, ele diz antinômico à verossimilhança – comentei bastante esse ponto; ora, a verossimilhança participa, ao mesmo tempo, da interpretação e do sujeito, e está sempre do lado dos semblantes. Mas Lacan não parou de criar esquemas que respondem à questão do acesso. Isso vai do esquema L ao nó borromeano, passando pelo grafo. O que ele disse muito cedo sobre isso é que ele vem a um lugar, e mesmo que ele volte sempre ao mesmo lugar – o que não prejulga aquilo que ele é. Para que haja um lugar é preciso o simbólico, é verdade, por definição, mas o que é heterogêneo ao S, talvez conectado com ele, mais precisamente alojado no S. Tese constante em Lacan, e ele disse lugar antes de dizer nó, mas era para resolver o mesmo problema.

Poderia tomar o esquema L e R para abordar a questão do lugar do real, mas escolho o grafo, que combina a estrutura da fala e a da linguagem e que esquematiza, portanto, ao mesmo tempo, a estrutura do sujeito e a prática analítica. Pois bem, a primeira interpretação que leva em consideração o real, se lermos bem, é dada em A direção da cura, em 1958. Evidentemente, isso se lê melhor, de fato, quando se acrescenta à Direção da Cura (1958/1998), Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960/1998), em que Lacan dá seu grafo, ao passo que na Direção da Cura (Op. cit.) ele dispõe dele, mas não o dá e fabrica algumas obscuridades. Essa interpretação não é o que uma leitura rápida poderia levar a acreditar, ou seja, que a interpretação neste texto seria uma interpretação que opera com o significante do falo, com minúscula. É verdade que Lacan insiste em dizer a importância deste significante, e que o anseio do neurótico é de ser o falo, o significante da falta do Outro do discurso, mas é a todos, a cada neurótico que poderíamos dizer "seu anseio é de ser o falo". Ora, a interpretação verdadeira é sempre particular. O falo serve para situar a estrutura da neurose, mais do que para interpretar, em cada caso, sua particularidade. Vocês conhecem a fórmula da interpretação de que estou falando, ela se encontra na página 648 dos Escritos: "A que silêncio deve obrigar-se o analista para evidenciar acima desse pântano (a literatura analítica), o dedo erguido do São João, de Leonardo, para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que se deve desdobrar sua virtude alusiva?" (LACAN, 1958/1998). Pela expressão "horizonte desabitado do ser" entendam desabitado dos significantes que constituem o lugar do significante, é o que se escreve S() no grafo, e cujo dedo apontado designa o lugar. Esse lugar é o do real no inconsciente estruturado como uma linguagem. O comentário de Subversão do sujeito... é mais explícito; ele diz: "O que sou Eu?" Ao escrever Eu com maiúscula, para marcar bem que Eu não é o sujeito suposto ao significante, mas o ser, o referente que o suporta. Resposta: Eu sou no lugar do gozo, esse gozo que falta ao lugar do Outro, já que o significante não é algo vivo. Entretanto, evocar a falta no Outro não deve presidir a nenhuma religião da falta; Lacan diz isso explicitamente, vejam nas páginas 832-833 de Subversão do sujeito.... S() não é matema de um simples furo, é um significante que é suposto estofar a cadeia do inconsciente e o furo, ele se escreve S(). Qual é esse significante? É uma questão complexa, sobre a qual Lacan patinhou um pouco creio eu, mas, em todo caso, há variada. Deixo a coisa em suspenso, mas a escrita do grafo implica que o dedo da interpretação esteja apontado para um significante no lugar do real. Isso não é a mesma coisa que o significante no real, que está fora de cadeia. O único lugar possível para o real na cadeia significante é aquele em que o deslizamento metonímico para, o do ponto de estofo, portanto, e não esqueçamos que a parte esquerda do grafo escreve os pontos de estofo das duas cadeias significantes.

Apontar o dedo para este lugar onde o Outro não responde, mas onde o falante está inscrito sob um significante que não é do Outro: qual interpretação seria essa? Um dedo apontado, isso não fala, isso não articula nada; isso mostra, é uma interpretação que não diz nada, silenciosa – dela fiz um título –, alusiva. Esse gesto é uma imagem para designar um dizer que indica sem enunciar, que é como um colofão do lugar do ser de Gozo. É uma interpretação não do Gozo, mas pelo gozo. De fato, no fundo, uma interpretação – e isso levanta sempre a mesma lebre – isso diz sempre: por causa do Gozo. Creio que esta frase de A direção da cura era uma pedra de espera no ensino de Lacan. Com efeito, na sequência ele situou a interpretação de outra forma, no nível do que ele chama de "uma via de confluência" (LACAN, 1958/2003, p. 629) para designar em seu grafo não a cadeia inconsciente do gozo, mas a linha de seu significado em que corre o regato do desejo.

Isso é o mais conhecido: interpretamos o desejo. A interpretação do desejo orienta-se não para o lugar do real, ponto de estofo da cadeia inconsciente, mas para o intervalo significante em que, no grafo, se coloca a linha que vai do x do desejo à fantasia que suporta este desejo. É uma versão bem freudiana da interpretação, que tenta responder à questão "che vuoi?", que tenta, portanto, dizer o que isso quer dizer e o que isso quer nas falas como nos sintomas do analisante. Em outras palavras, uma interpretação que procure determinar o significado da cadeia inconsciente. Esse significado é depositado numa dupla escrita no grafo, de um lado o x do desejo, e do outro a fantasia.

 

 

Ali se abre a grande questão de saber se essa interpretação que incide sobre o significado é do sentido ou da significação. Lacan pôde afirmar um e outro: a interpretação é uma significação e a interpretação é sentido que vai contra a significação. Com isso, poderíamos acreditar que a preocupação com o real não está aí, e seríamos até mesmo tentados em dizer "ainda não", se pensarmos em seu último ensino. Mas não é esse o caso. Quer se trate de significação ou de sentido, Lacan sempre colocou e respondeu à questão de saber o que há de real em cada um.

Começo pela significação. Ela é gramatical por definição – ponto de estofo, portanto –, e dela Lacan diz que o sujeito como efeito de significação é "resposta do real" em O aturdito (1972/2003). Qual real? Ele precisa: o do significante assemântico sem nenhuma espécie de sentido – é a própria definição do real fora de sentido. Estamos em 1973, página 458 de O aturdito. (Ibid.). Isso esperou tão pouco seu último ensino, que Lacan lembra que essa tese data de abril de 1956 – seminário As psicoses (LACAN, 1955-1956/1988). Evidentemente, condensado assim, eu não diria que é algo "límpido"; mas Lacan explica suficientemente a junção da significação ao significante fora de sentido, e de forma definitiva, creio eu, em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1973), na antepenúltima lição. Cito: A interpretação visa ao significado, "é uma significação que não é qualquer uma... que reverte a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível" (LACAN, 1963-1964/1985, p. 236). Em outras palavras, ela inverte o efeito de metáfora que havia reconduzido um significante no significado.

S1—————————> S2
Interpretação ↑
significativa

Esta tese é implicada pela concepção de metáfora exposta desde A instância da letra, (1957/1998), ou seja, que o significante desaparecido manifesta-se indiretamente por um mais de significado. Aliás, a propósito de Freud e daquilo que ele lhe atribuía de atrevimento na interpretação, Lacan notava que quando ele denunciava uma pulsão, isso era um advento de significante. Em outras palavras, não há nova significação sem novo significante. Lacan insiste: "o que conta" – diz ele, para o advento do sujeito – "não é o significado em questão, mas que ele veja... para qual significante – não senso, irredutível, traumático, ele está como sujeito assujeitado" (Ibid, p. 237). É, portanto, uma validação da interpretação significativa. E o analista está suposto saber a significação. Essa significação não é sem significante primariamente recalcado, que a interpretação significativa evidencia. Embora significativa, ela ainda assim é "intrusão de significante" (Ibid). O sintoma estava ali definido como metáfora, e habituamo-nos a opô-lo ao sintoma letra, una, fora de sentido, mas Lacan precisou isso desde este momento, esse sintoma é construído sobre um primeiro significante originário, primário, o do traumatismo. O significante do trauma é um S(), um significante que não é um significante incluso no Outro, que se fixou nas contingências dos encontros de gozo. Ora, em si mesmo ele não tem nenhuma espécie de sentido, ele vai, aliás, renomeá-lo Traço Unário; e teria sido preciso dizer desde já que ele era do inconsciente real, salvo que Lacan postulava, então, que ele fazia cadeia com os significantes da demanda. Está, portanto, bem certo que mesmo enquanto ele afirmava o inconsciente estruturado como uma cadeia, Lacan postulava sua ancoragem na moterialidade de um significante fora de sentido, aquele mesmo que o dedo apontado da Direção da Cura (Op. cit.) designava. Tudo isso é inscritível sobre o grafo na linha em feedback que religa a significação do fantasma e o S().

Quanto ao sentido, que é o sentido do desejo, ele não é gramatical, incompatível com a fala, dizia a Direção da Cura, inarticulável embora articulado, ele foge, Lacan precisa em 1973. A interpretação a que visa, Lacan situou-a inicialmente pelo significante fálico, significante da falta. É o caso na Direção da Cura (Op. cit.). E em seguida, com o passar dos anos, ele reformulou o que falta em termos de objeto a, perda de gozo, e ele disse, finalmente: a interpretação "incide sobre a causa do desejo" – essa causa que só é causa porque falta. Esse objeto a causa do desejo, é ele algo de real? Lacan disse a respeito dele, mas disse outra coisa. Digamos, inicialmente, que sua subtração como perda de uma parte de vida é um efeito da linguagem no real, como podemos notar com o lugar do objeto no coração do nó. Em seguida essa causa, como impossível de dizer, impossível de subsumir sob um significante – que, portanto, falta ao saber segundo a fórmula da Proposição de 1967, pois bem – faz "função de real" (voltarei a essa expressão) em relação a tudo o que pode se formular e se imaginar de suas quatro substâncias episódicas que, antes de Lacan, eram colocadas na conta do pré-genital. A interpretação do sentido visa, portanto, àquilo que assombra a metonímia da fala e que Lacan designou inicialmente por (– φ) antes de dizer a e mais-de-gozar (Cf. sua crítica da hermenêutica no Seminário 11, 1964). Ele precisa que o que falta à hermenêutica, particularmente a de Ricœur, não é se ater apenas às significações, é não levar em conta a realidade sexual da linguagem, do inconsciente, que é a realidade da castração e a realidade pulsional (de novo as quatro substâncias). Que a interpretação possa visar ao intervalo significante que se anima do objeto, tomado ou como falta ou como mais-de-gozar; é uma tese que se mantém até o fim em Lacan, já que a análise não opera sem o sentido (Posfácio ao Seminário 11, 1973/2003). O objeto a é o trilho por onde a demanda a ser interpretada advém ao mais-de-gozar, na Introdução à edição alemã dos Escritos...(1973/2003): a análise entrega ao analisante o sentido de seus sintomas, isto é, o desejo irredutível, contudo, determinado, aos quais eles estão enodados e, como podemos ver ainda na última conferência sobre Joyce, a análise desvaloriza o gozo fora de sentido recorrendo ao sentido.

A moterialidade do inconsciente linguagem não está no intervalo significante; ela não é nem no sentido nem significação, mas está sobre as linhas, como eu me expressei. Mas a operação interpretativa do intervalo, que acabei de dizer, simultaneamente inverte a metáfora do trauma e segue a pista da metonímia do objeto – essa interpretação não está separada, e não é separável do que há sobre as linhas. Que vocês tomem o inconsciente como Significação ou como Sentido, ou como cadeia, a interpretação não pode operar senão por meio dos recursos da língua que, aliás, fabrica os três. É o que explica, penso eu, a constância do vocabulário que Lacan aplica à interpretação do começo ao fim de seu ensino: ressonância, efeito poético, corte, equívoco; alusão da Direção da Cura é uma guisa disso, sem falar do "cristal linguístico" e outros equivalentes. Notem que na série não coloco costura, embora O aturdito evoque a costura – Michel Bousseyroux deu destaque a isso,4 embora Lacan retome isso com os termos de nó [épissure] e emenda [raboutage], que ele utiliza para o nó borromeano. Mas essa dimensão da remendagem, se vocês me autorizarem este termo, não define a interpretação em si mesma, mas somente o seu resultado, seus efeitos de transformação sobre o dizer analisante da demanda. Portanto, insisto, o destaque sobre a função dos equívocos da alíngua na interpretação está presente desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Op. cit), e nunca foi desmentida.

Entretanto, na série dos termos que acabo de mencionar é, ainda assim, o termo equívoco que acabou prevalecendo, por reabsorver os outros, e até mesmo o poético, ao qual Lacan, no entanto, deu mais destaque no final, pois o próprio poético opera pelo equívoco. Então, e por quê? É preciso responder a essa questão para apreender bem que não se trata nem de um gosto nem de uma veneta de Lacan.

Por que o equívoco?

À questão "por que o equívoco?" pode-se responder de forma geral: porque o inconsciente já procedeu por equívoco. Mas é necessário ser mais preciso. É em O aturdito (Op. cit.) – antes do nó borromeano, portanto – que Lacan deu seu maior desenvolvimento à função do equívoco e àquilo que funda essa função. Esse texto traz muitas outras coisas: inicialmente, a valorização do "que se diga", que não procede da estrutura linguística S/s, e que até mesmo a condiciona. Em seguida, algo capital, as fórmulas de sexuação construídas com base na função proposicional, F (Φ). É uma função de gozo que inclui a castração como necessária. Essa função estando colocada, então lemos ali o seguinte: "Nada funciona, portanto, senão pelo equívoco significante" (LACAN, 1973/2003, p. 459). Não se trata da operação da interpretação, e o "portanto" dá a razão da prevalência do equívoco, ela não é nada além disso: a função fálica não dá acesso, é a sua expressão, ao real simbólico. Seria preciso, portanto, escrever, a partir do momento em que que a função é colocada, o que Lacan chama de "o ponto de suspensão da função". F (Φ)... O que quer dizer que o Um fálico, que o conduzirá a formular em seguida "Há um" [y a d'l'Un] e nada mais, o Um fálico não tem parceiro propriamente sexual. É esse real da não relação, o real próprio ao simbólico, portanto – o que ele chamava anteriormente de a carência de toda pulsão genital –, que motiva o papel determinante do equívoco para o falante. Ela opera primariamente para instaurar o parceiro... pseudossexual. Não há nenhuma necessidade de evocar uma pulsão poética do falante qualquer, o equívoco é somente, eu cito, "a astúcia por meio da qual o ab-senso da relação se tamponaria ao ponto de suspensão da função" (Ibid.). Em outras palavras, não há outro complemento ao Um do gozo fálico senão aquilo que se elucubra como objeto a ou como sintoma pelos equívocos do inconsciente linguagem.

Equívoco

F(Φ).   (a ou Σ)

Se perguntarmos "por que essa função de equívoco?", é preciso responder por causa do real, por causa do impossível do real simbólico.

E isso não data do último ensino de Lacan, isso não data sequer da psicanálise, embora seu dizer o revele:

Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser estruturado ‘como uma linguagem', isto é, a alíngua que ele habita, está sujeito a equívoco pelo qual cada uma delas se distingue. Uma língua, entre outras, não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistir nela. É o veio em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar sua saída, o real de que não existe relação sexual – se depositou ao longo das eras. (LACAN, 1973/2003, p. 492).

E, de fato, cada inconsciente, já desenvolvi isso, faz empréstimo da grande reserva de sua língua e de seus equívocos para fazer suplência à falta de relação. Em 1969, no resumo sobre O ato psicanalítico, Lacan havia postulado que os equívocos significantes do "inconsciente sem sujeito" (LACAN, 1969/2003, p. 372) determinavam não o sujeito, mas o parceiro-objeto, objeto causa do desejo ou mais-de-gozar. Eles não determinam menos o parceiro sexual, sintoma de gozo, introduzido em R.S.I. A razão pela qual os equívocos da alíngua podem funcionar contra o gozo do sintoma é porque ele se fez com base na alíngua. E recordemos a observação de Freud ao dizer que não se pode interpretar o sentido de um sintoma corretamente, quer dizer com efeitos de modificações, sem as associações verbais próprias do paciente. Isso indica que é a própria técnica freudiana com seus resultados que implica a função da alíngua na constituição não somente da significação e do sentido, em outras palavras, da verdade dita pela metade. Lacan acrescenta sua função na constituição das manifestações fora de sentido do inconsciente real, que não é uma cadeia. Dessas manifestações, a que nos interessa antes de tudo, dentre elas está sintoma – embora lapsos, chistes e mesmo o sonho ponham uma lenha bem-vinda na fogueira5 da tese. Embora seja preciso não esquecer, ainda, que o equívoco não se reduz à homofonia. Lembro-lhes das três versões das ressonâncias do equívoco em O aturdito (Op. cit.): homofônicas, que jogam com a raiz fônica de todo significante; gramatical, que faz ponto de parada "de um real" (LACAN, 1973/2003, p. 476), e coube a Lacan estender a todas as estruturas clínicas o famoso "eu não o amo", que Freud reservava à psicose; lógica, aí o equívoco assume a forma do paradoxo, especificamente os dos conjuntos russelianos e do transfinito cantoriano que não deixa de estar em jogo na relação com o sexual e no dizer da demanda.

Então, se o psicanalista se utiliza do equívoco em sua interpretação apofântica é porque o equívoco já estava ali, já havia operado para dar a cada um – segundo uma expressão que Lacan empregou – ou igualmente para lhe proibi-la. É como dizer que o parceiro, longe de ser eleito por uma pulsão genital qualquer, só se constitui com base nos traços vindos do inconsciente. Traço de repetição, dizia Freud, mas também traços ditos de perversão, e aí podemos nos lembrar do famoso exemplo do brilho no nariz etc. – este ponto mereceria ser desenvolvido.

É com relação ao equívoco homofônico que Lacan disse: "Afirmo que todos os lances são permitidos aí em razão de que, estando qualquer um ao alcance deles, sem poder reconhecer-se nisso, são eles que jogam conosco". Somos, portanto, jogados pelo equívoco sem saber e sem nada poder fazer. "Exceto quando os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém. Onde isso for conveniente para o seu fim" (LACAN, 1973/2003, p. 493).

Qual é essa finalidade? É sobre esse ponto que o último ensino introduz uma mudança considerável, mas que não muda nada no papel do equívoco na interpretação: ele diz respeito à forma de conceber a relação da verdade, que é subjetiva por definição, com o real fora de sentido, que não é subjetivo – embora seja singular, próprio a cada um. Essa mudança engaja um outro movimento, sem dúvida, não nas modalidades da interpretação analítica, mas em sua própria visada e, portanto, na direção prática da cura. O aturdito definia essa finalidade essencialmente nos mesmos termos e na mesma topologia do toro e da banda que os da Proposição de 1967...(Op. cit.). Ele postulava que a intervenção do analista visa rescindir o sujeito (é o termo que Lacan emprega), a produzir, portanto, o corte – do qual o objeto cai.

Com a noção do falasser e o esquematismo do nó borromeano – solidário da ideia de que o inconsciente não é cadeia, mas língua que embreia o corpo de gozo – a problemática se inverte. O nó, e há sempre um nó já feito, faz manter juntos esses três heterogêneos que são R, S e I, ou seja, a moterialidade do verbo, o gozo do corpo vivo e a realidade assexual do corpo imaginário. Nó já feito, eu disse, mas poderia ter dito também poema já feito. Se o falasser é borromeano, a finalidade não pode ser de cortar, mas no máximo de corrigir o nó, de amarrar de outra forma. Não é mais a finalidade de rescindir o sujeito, mas de assegurar a consistência do falasser. Em vez disso, temos a esquizofrenia, o real que vai embora sozinho, ou a doença da mentalidade, o imaginário está à deriva.

O nó já está feito, mas quando isso aconteceu? Na hora do traumatismo, sem dúvida, contingência que se inscreveu em necessidade do sintoma, que não cessa de se escrever. Preciso que quando digo sintoma, falo do sintoma tal como definido em R.S.I., como um elemento gozado do inconsciente – esse sintoma é o da moterialidade externalizado no real, portanto. Vocês podem observar que o vocabulário se inflecte paralelamente a esse novo esquematismo e que o parceiro pseudossexual, situado até então como causa do desejo, é pensado, além disso, como parceiro sintoma. Isso é explícito a partir de R.S.I.; a tese culmina na última conferência sobre Joyce, e mais ainda com a fórmula "identificação ao sintoma", que é fixão – com um "x" de gozo –, algo bem diferente de corte.

Lacan hesitou colocar esse sintoma no nó borromeano. Inicialmente, ele pensou-o como uma intrusão do real do gozo no campo da linguagem. Era coerente com a tese nova de Mais, ainda, dizendo que o ser, ao falar, goza e que o saber inconsciente se goza – o que, uma vez dito, não deixa mais margem de dúvida. Em seguida, ele se corrigiu e disse que o sintoma era, antes, intrusão do verbo, efeito do simbólico no campo do real, portanto. O que inscreve ele próprio fora do simbólico.

 

 

Esse ponto tem uma grande importância, pois isso quer dizer que ele está fora da dialética do discurso, ao passo que o gozo de falar não é fora dialético. Vemos bem o que Lacan procurava resolver, e é precisamente o problema da análise: se falar é um gozo, como sair do gozo tomado nesta infinita deriva da fala de verdade? Não basta responder que ela está estivada à constância da significação da fantasia, e ao significante assemântico do traumatismo. Não é que isso seja falso, mas isso não o impede de correr atrás de sua miragem, mesmo que seja em círculos. Lacan, portanto, tratou de produzir uma outra resposta pelo real – a do sintoma. Essa é toda a questão do Prefácio... (Op.cit.) Volto a isso, então, brevemente.

Há sobre esse ponto um problema de interpretação. Depois de ter evocado sua invenção do passe, em que não se pode fazer nada melhor senão testemunhar a verdade mentirosa, ele acrescenta: "Eu o fiz por haver produzido a única ideia concebível do objeto, a causa do desejo, isto é, daquilo que falta" (LACAN, 1976/2003, p. 569). Ele prossegue: "A falta da falta constitui o real, que só sai assim, como tampão" (Ibid.). Noto, inicialmente, que não há nessa fórmula nenhum equívoco. Lacan não disse tampão do real, que seria equívoco por causa do "de"; receio, em contrapartida, de ter eu mesma empregado essa expressão por falta de precisão. O real só advém ali; tampão, ele tampona. Onde, então, é esse "ali"? Ali onde havia a falta do objeto que ele acaba de evocar como razão de sua invenção do passe. Ele tampona o que falta. É sua função, a do real, e seu único mérito. Ele tampona e limita, portanto, isso a que aquilo que falta preside, ou seja, a infinita deriva da verdade. Esse tampão pelo real, na medida que tem nó, tem no nó uma função homóloga, que era a função do ponto de estofo na cadeia significante: é um princípio de parada.

Segunda observação: o que dizer da expressão "a falta da falta faz o real"? Eu havia notado no início, que ele emprega ali uma expressão que ele havia desgastado a propósito da angústia para designar a causa não do desejo, mas da angústia com relação ao Outro. Não podemos, no entanto, concluir daí que é da angústia que ele fala quando ele diz o real tampão, pela simples razão de que não poderíamos, em nenhum caso, dizer que a angústia "faz" o real. A angústia é um afeto que, como qualquer afeto, é um efeito, um efeito que responde ao real, afeto tipo de qualquer advento de real mesmo. O real feito pela falta da falta, aquele do qual não se pode dizer que é verdadeiro, antinômico a qualquer verossimilhança é somente o sintoma letra, o que os falasseres têm de mais real, diz Lacan, que se inscreve entre S e R, ao passo que a angústia é um efeito do real, claro, no imaginário. A tese é, aliás, freudiana, pois ele situava justamente a angústia no eu.

Coloca-se a questão de precisar a relação desse real tampão inverossímil com a Verdade. Antes dessas últimas teses, depois de 1975, Lacan havia articulado Verdade e Real. Em Radiofonia, (1970/2003) resposta à questão IV, , ele diz: "a verdade situa-se por supor o que faz função de real no saber, que se acrescenta a ele (ao real)" (p. 443). O saber que se acrescenta ao real é o do inconsciente, que vocês o tomem como linguagem ou como alíngua. O inconsciente-saber acrescenta-se ao real fora do simbólico. O que é que faz função de real no saber? Não é o sintoma que, por sua vez, está no real, mas não no saber. Lacan respondeu: o impossível. A tal ponto que podemos dizer que é do lado das modalidades lógicas que o dizer da análise estabelece, que procuramos o que faz função de real no saber inconsciente. Sob uma dupla forma: o que o dizer da análise não pode escrever e o que ele não pode não escrever. É, em primeiro lugar, o impossível da relação, não há relação sexual que valha para algo real e, em segundo lugar, a contingência da "função proposicional" F(x) que a análise estabelece, o há o Um [y a de l'Un] demonstrando indiretamente o não há [y a pas]. A verdade, irmã tanto do gozo como da castração – vocês reconhecem as duas expressões de O avesso da psicanálise (1969-1970/1992) – tinha bem algumas contas a ajustar com essa função proposicional, e Lacan podia até mesmo postular que o real, o do impossível da relação sexual, "comanda a verdade". E se vocês olharem a Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973/2003) verão que no fim, o "parceiro que tem chance de responder" (p.555) ao amor de transferência, aqui o próprio Lacan, responde em termos de modalidades.

Em contrapartida, a tese do Prefácio...(Op. cit.) é, aparentemente, totalmente diferente: nenhuma relação entre verdade e real, a partir do momento em que o real é o fora simbólico. A verdade sempre, em falta de uma última palavra, não pode dizer a verdade desse real, e o real – falta da falta, fora de sentido – é antinômico a qualquer verossimilhança. Não interpretamos, portanto, a fala de verdade com o gozo fora de sentido do sintoma, pois seu real não comanda a verdade, ao passo que a interpretávamos em parte com o que fazia "função de real", ou seja, as modalidades lógicas e também a pulsão. Ele também não advém daí, contingência do trauma; no máximo ele detém sua mentira, ele a faz se calar, tamponando-a. Neste sentido, o afeto do real é justamente a certeza, o fora de dúvida, e isso é um problema, talvez, para o dispositivo do passe. Não há relação, então, mas há um nó possível no qual o real faz limite à verdade mentirosa. Sua letra é do significante assemântico, sem nenhuma espécie de sentido – vocês reconhecem aí as primeiras expressões de Lacan –, mas é significante que passou ao real, não ao recalque de onde poderíamos desalojá-lo pela interpretação significativa, que passou ao real por um gozo que não é o da verdade. Esta letra, diferentemente dos signos que deciframos, não é substituível.

O que pode uma interpretação que leve em conta esse real? Eu havia colocado a questão. Será que seria o dedo apontado para o gozo opaco, esse gozo que se excetua do gozo da fantasia que, por sua vez, não é opaco, mas familiar para cada um? É ele, sem dúvida, essa fixão opaca, que é constituinte daquilo que Lacan chama, na última lição de Mais ainda, para cada um, de "a unidade da copulação com o saber da alíngua" (LACAN, 1972-1973/1985, p. 196), essa unidade que faz de cada um de nós "unaridades", 1977. Essa unidade manifesta-se como o Um-nó que nós somos, e ela não vai sem o Um-dizer, que representa o quarto círculo do nó? Ora, a análise, inconsciente real ou não, opera por e no nível do dizer. Em outras palavras, nós somos poema, ou seja, sinthoma, o sintoma-letra aí estando incluído, mas não identificável, a não ser a título hipotético. É isso que a referência final à poesia implica. Somente ali onde o poeta faz cálculo do equívoco para produzir um dizer que lhe seja próprio, o dizer de seu poema; pois bem, o analista não pode fazer igual, ele não pode calcular sua interpretação, a verdade sendo tão incalculável quanto o real. Ele vai ali, portanto, a esmo, "todos os lances são permitidos". Além disso, ele tem que lidar com um poema que não é o seu, e que ele não conhece, mas que lhe pedem, eventualmente, para corrigir. Então, para levar em conta esse poema como real, sinthoma, ele se utiliza, em seu dizer, de um outro real, o da alíngua e de seus equívocos, os quais podem jogar contra o gozar do poema, já que é por eles que o poema se fez.

Não obstante, remanejar o poema – isto é, o nó – não é, necessariamente, corrigir o gozo opaco, nem encontrar a palavra do real. A análise é o que faz verdade, mas está excluído que ela faça verdade do real. Então, retificar o poema é amarrar de outra forma, por nó [épissure] – sutura, diz Lacan –, e isso consiste, antes, a mudar não o núcleo opaco ininterpretável, do qual tudo indica que ele permanece opaco, mas a balança entre verdade e real, entre o gozo do sentido e o gozo daquilo que o tampona e que faz ali como que um contrapeso. É por essa razão que Lacan não disse que, no passe, vinha-se testemunhar do real, mas da verdade mentirosa. Não se testemunha do real tão pouco quanto não se interpreta dele, dado que testemunhar dele ou interpretá-lo seria fazê-lo passar à verdade. Aliás, podemos constatar que a partir de 1975-1976, todas as elaborações de Lacan consistem em explorar modificações possíveis do enodamento sob o efeito do dizer analítico, esse dizer que não é o do analista, é o que resulta dos efeitos do equívoco interpretativo sobre o dizer analisante. Sua morte põe ali um termo, sem dúvida, prematuro, em que o momento de concluir que fica em suspenso deixa um certo sentimento de algo inacabado.

Tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira

Revisão: Dominique Fingermann

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Colette Soler
E-mail: solc@wanadoo.fr

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais "Psicanálise na civilização" (Contracapa), "O que Lacan dizia das mulheres" (JZE), "O inconsciente a céu aberto na psicose" (JZE) e a recém-lançada edição bilíngue do caderno "Stylus 1: O corpo falante".
1 Conferência proferida em 8 de março de 2012, no Fórum do Campo Lacaniano de Paris (Soirée d'École da EPFCL – França).
2 Referência ao Seminário de Escola 2011-2012, cujo título (Une interprétation qui tienne compte du réel) é o mesmo da conferência proferida pela autora.
3 Neologismo de Lacan, criado com base nos vocábulos mot (palavra) e matérialité (materialidade).
4 Referência à conferência de abertura do Séminaire École 2011-2012, proferida em de 13 de outubro de 2011, no Fórum do Campo Lacaniano de Paris (França).
5 Em francês, "apportent une eau bien venue au moulin de la thèse", expressão que significa "dar recursos", "dar involuntariamente argumentos num debate".